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Diálogo Diplomático_ Série de Resenhas e Fichamentos Para o Cacd - 3) Casa Grande & Senzala

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SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE &

SENZALA

Introdução

Casa Grande & Senzala é talv ez o mais v asto painel da nacionalidade brasileira que já se produziu. Obra ambiciosa, empreende de forma notáv el a interpretação da sociedade brasileira, a explicação de como o colonizador português, v encendo todos os obstáculos que o clima, a natureza, a escassez de trabalho lhe impunham, fundou aqui uma sociedade moderna, "a maior civ ilização dos trópicos".

Grandiosa não apenas pelo tamanho, mas, principalmente, pelo conteúdo, que desce a um nív el de

descrição e detalhismo impressionante, Casa Grande & Senzala foi, em v ários aspectos, uma obra seminal. Clássico da sociologia e do ensaísmo brasileiro, a obra até hoje continua despertando debates. Para muitos, a maior interpretação da sociedade brasileira de todos os tempos, ícone da nacionalidade brasileira. Para outros tantos, uma peça extremamente bem-construída do conserv adorismo das elites que construíram o País e que, enfim, por meio da obra, legitimaram, no mais puro estilo maquiav élico, os meios de que lançaram mão na construção de sua obra civ ilizatória.

O autor

Fato é que nenhuma obra pode ser considerada de forma isolada em relação a seu autor. E Gilberto Frey re, tal como sua obra-prima, foi um homem multifacetado, e, por que não dizê-lo, ambíguo. Filho da

aristocracia decadente de Pernambuco, Frey re nasceu no Recife em 1900, época em que já as usinas av ançav am em detrimento dos engenhos, processo de corrosão do antigo poder do senhor de engenho brilhantemente descrito e analisado nos romances de José Lins do Rego. No final dos anos 1910, Frey re deixa o Brasil e se muda para os Estados Unidos, onde cursaria univ ersidades no Texas e em Nov a Y ork. Foi nos Estados Unidos que iniciou sua v ida intelectual e acadêmica e que conheceu as obras e os autores que o influenciariam por toda a v ida - com destaque para aquele que ele mesmo chamou certa v ez de mestre, o antropólogo Franz Boas.

Foi com Boas que Frey re disse hav er aprendido a distinção que seria fundamental para a compreensão da sociologia frey riana: a distinção entre raça e cultura. Numa época em que o racismo, apoiado nas idéias naturalistas, ganhav a força no mundo todo e se imiscuía com a política, na prática e na ideologia do

imperialismo tanto quanto no florescimento das idéias (proto)fascistas, a dualidade raça-cultura era quase uma "heresia" acadêmica. E seria a esta "heresia" que Frey re se apegaria em sua empresa mais grandiosa: o entendimento do Brasil. Conserv ador pela origem aristocrática, mas liberal pela filiação acadêmica: eis apenas uma das muitas contradições que marcam autor e obra, Frey re e Casa Grande & Senzala.

O contexto intelectual

Publicada em dezembro de 1933 no Rio de Janeiro, Casa Grande & Senzala foi um dos três grandes ensaios que se publicaram sobre o Brasil em menos de uma década, ao lado de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda (1936), e de "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr. (1942). A grande "tríade" da interpretação do País é marcada, no entanto, por perspectiv as, v isões e métodos próprios. Caio Prado adota uma abordagem histórico-economicista e procura explicar a formação da sociedade brasileira como etapa e conseqüência do processo de acumulação de capital em nív el global. Sérgio Buarque prefere uma interpretação sociológica, com base em uma análise das diferentes formas pelas quais se deram as

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empresas colonizadoras de Portugal e Espanha no Nov o Mundo e as marcas que deixaram nas

nacionalidades que delas se originaram. Gilberto Frey re flutua entre a sociologia e a antropologia, com preferência sensív el por esta última. Para ele, a interpretação de uma sociedade exige a intepretação de seus componentes - os indiv íduos -, no nív el de seus comportamentos, seus v alores, seus costumes, suas relações (íntimas, inclusiv e - se não principalmente), suas crenças, sua educação, sua v ida familiar, seu lazer - em outras palav ras, sua cultura.

Confrontando as idéias naturalistas, que atribuíam ao clima e às raças que se instalaram nos trópicos as mazelas de que sofria o País, Frey re posiciona-se pela cultura como elemento fundamental de

interpretação da construção de uma sociedade, acima até mesmo da economia e da política ("não nos interessa [...] senão secundariamente, neste ensaio, o aspecto político ou econômico da colonização portuguesa do Brasil"). Neste sentido, Frey re era um inov ador, na medida em que, de forma corajosa, rompia com uma tradição intelecutal herdada da antropologia européia, que estancav a as raças como superiores e inferiores e, eiv ada do naturalismo e de um tipo de darwinismo deturpado, atribuía ao

"determinismo do meio" a função explicativ a para os fenômenos sociais - inclusiv e o 'sucesso' e o 'fracasso' de civ ilizações, pov os e nações.

A dialética frey riana

A exploração de antagonismos é o método de que Frey re lança mão na construção da temática de Casa Grande & Senzala - o próprio título da obra rev ela o antagonismo fundamental. Pouco afeito ao rigor teórico e ao cientificismo, Frey re prefere o método ensaístico, quase literário, numa obra rica em passagens que bem poderiam ter sido extraídas de um romance. Dando rigor à fluidez de sua obra, no entanto, está o método dialético, que salta aos olhos de forma espontânea, sem que seja necessária uma análise mais aprofundada. O próprio autor a rev ela: a formação da sociedade brasileira é

"um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominante sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escrav o".

Talv ez não seja exagero detectar aí a influência da dialética hegeliana, cujo exemplo mais citado - pelo próprio Hegel, aliás - é a dialética do senhor e do escrav o. A dialética não é apenas a confrontação de opostos, de antagonismos; é, antes, uma relação pela qual cada oposto se v ê reforçado em sua natureza e essência pelo outro; é pela relação com o outro que eu me descubro a mim mesmo, tal como sou. O senhor é senhor apenas porque existe um escrav o - sem o escrav o, não existe senhor, e v ice-v ersa. O interessante da dialética hegeliana é que não apenas a essência se v ê reafirmada pelo oposto, mas também se v ê, ela própria, negada. Assim, por exemplo, segundo Hegel, o senhor, ao precisar do escrav o para reafirmar seu status de senhor, se dependente do escrav o, até o limite em que, pelo menos no plano ideal, torna-se escrav o de torna-seu escrav o - e o escrav o, torna-senhor de torna-seu torna-senhor. Uma leitura de Frey re, no entanto, rev ela que essa segunda dimensão da dialética hegeliana está ausente. Na obra frey riana, assim como na história da formação da sociedade brasileira, os papéis de dominadores e dominados estiv eram sempre

claramente delimitados.

Mas se a sociedade brasileira formou-se por e com antagonismos, não teriam esses antagonismos lev ado ao conflito inev itáv el entre opostos? Frey re mesmo responde: "entre tantos antagonismos, [têm-se] condições de confraternização e mobilidade sociais peculiares ao Brasil: a miscigenação".

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As três raças

O núcleo de Casa Grande & Senzala é a descrição e a análise minuciosas que Frey re faz sobre a participação do branco português, do negro escrav o e do indígena ameríndio na formação da sociedade brasileira. Para Frey re, a miscigenação é o fator essencial para explicar-se o sucesso do colonizador português em sua empresa nos trópicos e a conseqüente construção da civ ilização brasileira. Rüdiger Bilden, em comentário sobre a obra de Frey re, afirma que o tripé fundamental da colonização do Brasil pelos portugueses foi a união entre latifúndio, escrav idão e miscigenação.

A flexibilidade e a adaptabilidade da nação portuguesa foram os fatores básicos que permitiram ao

colonizador "triunfar onde outros europeus falharam". Chegados ao Brasil e cientes de que, nos trópicos, a colonização exigiria a exploração da terra - diferentemente da colonização por feitorias nas Índias -, os primeiros colonizadores sofreram de uma carência que poderia prov ar-se fatal para o sucesso da empresa colonial: a ausência de mulheres. Afeitos ao contato com outros pov os e a sua influência - árabes,

africanos, europeus de origem latina ou céltica, judeus da diáspora -, os portugueses teriam desenv olv ido, segundo Frey re, a quase ausência do preconceito de raça. Este foi o fator fundamental que lhes facilitaram tomar para si as mulheres indígenas com a finalidade de procriar e gerar a prole que se incumbiria de pov oar, explorar, defender e expandir a terra. Foi sobre a cunhã, oferecida ao português "de pernas abertas", que o colonizador exerceu sua primeira e fundamental relação de dominação - fundamental porque seria a mulher indígena a base da família brasileira, e o mestiço (mameluco), o agente por excelência da colonização.

À mulher indígena coube estruturar a família brasileira, pelo menos nas primeiras décadas da colonização. Seu papel, obv iamente, não se resumiu à reprodução. Responsáv el pela educação de sucessiv as gerações de brasileiros, a mulher indígena, segundo Frey re, impregnou suas marcas nas relações familiares, nos hábitos, nos costumes, na alimentação, nas brincadeiras infantis, na língua - em v irtualmente toda dimensão da v ida indiv idual e familiar da sociedade brasileira. O homem indígena, por sua v ez, foi prontamente aliciado ou forçado ao trabalho. O ameríndio, no entanto, pouco acostumado ao trabalho sedentário da lav oura - o índio dedicav a-se à caça e ao trabalho manual artesanal, mas não à agricultura, à exceção de formas muito rudimentares de cultiv o - logo foi considerado como "preguiçoso" e "indolente", v isão que tanto Frey re quanto Caio Prado derrubam, ao argumentar que o índio apenas não estav a acostumado ao trabalho sistemático da lav oura - preferia a liberdade da caça, da nav egação, do nado, da manufatura. Seu papel na colonização foi, não obstante, crucial:

"índios e mamelucos formaram uma muralha mov ediça, v iv a, que foi alargando em sentido

ocidental as fronteiras coloniais do Brasil, ao mesmo tempo que defenderam, na região açucareira, os estabelecimentos agrários dos ataques de piratas estrangeiros".

No processo de colonização dos trópicos, se a cabeça foram os portugueses e os pés, os índios e mestiços, os braços foram, sem sombra de dúv ida, os negros escrav os. Vários foram os fatores que lev aram o colonizador a optar pelo braço escrav o africano: a falta de aptidão do indígena é um deles, mas talv ez não o mais importante. Caio Prado afirma que os portugueses não apenas estav am afeitos à escrav idão no norte da África (onde marcav am presença desde pelo menos a nav egação a Ceuta, em 1415), como também tinham a oportunidade de transformá-la numa lucrativ a ativ idade mercantil. Na lógica do mercantilismo imperialista, o tráfico de seres humanos se transformaria numa das ativ idades que sustentariam a colonização do País. Em mais de três séculos (1526 - 1850), mais de 4 milhões de negros aportaram na terra brasilis e aqui foram dizimados sob o fogo da fornalha, o açoite do capataz, o tronco do pelourinho - e, no caso das mulheres escrav as, sob a luxúria dos senhores e a crueldade das sinhás.

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Desnecessário dissertar sobre o papel do homem escrav o na colonização do Brasil. Foi ele a força motriz que mov imentou a economia açucareira e cafeeira responsáv el pela sustentação do projeto colonial. Nem é esse, tampouco, o objetiv o de Frey re, uma v ez que, como salientado, o autor está preocupado com os aspectos antropológicos e sociológicos da formação da sociedade brasileira, e não com os aspectos econômicos. Para compreender aqueles, importa mais considerar o papel da mulher.

A mulher escrav a é uma das personagens principais da formação da família e da sociedade brasileiras. Substituindo à mulher indígena, ela passou a ser o objeto de dominação sexual do senhor, que não a exercia mais com o intuito fundamental de reproduzir-se, mas, sim, para a satisfação de sua luxúria. É fundamental compreender que, para Frey re, o papel sexual da escrav a foi tão importante quanto o papel laboral do escrav o. A miscigenação continua central - mas, para além dela, é necessário considerar a outra função que a escrav a acabou por desempenhar na colônia brasileira, essencial para se entender a

abordagem de Frey re em relação à escrav idão: a mulher escrav a foi o elo, a ponte entre os dois mundos dialeticamente relacionados da casa grande e da senzala.

"Intoxicação sexual"

Se para Frey re a miscigenação é o elemento central da formação da sociedade brasileira, é natural que a análise e a minuciosa descrição das relações sexuais ocupe um lugar de destaque em Casa Grande & Senzala. Para Frey re, "o ambiente em que começou a formação brasileira foi de grande intoxicação sexual". Se à mulher indígena coube a primazia na formação da família brasileira e da base humana que ajudaria a colonizar os trópicos, foi a mulher escrav a negra que por três séculos se renderia ao poder e à luxúria dos senhores.

Atribuíam-se ao clima quente a licenciosidade, a deprav ação e a subordinação que marcaram a v ida sexual da família patriarcal colonial - no melhor estilo do dito "não há pecado abaixo do Equador". Numa sociedade fortemente conserv adora e pia, em que as mulheres brancas resguardav am suas "v irtudes", era com negras e mulatas que os senhores satisfaziam seus desejos e impulsos. Nas palav ras de Frey re, "a v irtude da senhora branca apóia-se em grande parte na prostituição da escrav a negra". Escolhida dentre as mais jov ens, belas e fortes, as negras que serv iam na casa grande - as mucamas - foram o elo entre o

mundo do senhor e o do escrav o, o v etor com o qual penetraram no seio do patriarcado aristocrático brasileiro os "modos", os "v alores", o "molejo", a "doçura", a "fala", o "talento", o "banzo" dos escrav os. A mucama, a ama de leite, a quituteira, a amante foram as mulheres que fecundaram, geraram e criaram a família brasileira. Brancos e brancas, sinhôs e iaiás tinham com a mulher negra momentos fundamentais de sua formação: a amamentação, a alimentação, o cuidado materno que muitas v ezes era substituído pelo carinho da ama, as brincadeiras, a iniciação sexual, a v ida sexual não-conjugal, as confidências, as

amizades, as av enturas.

A presença do negro no interior da casa grande ensejou um ambiente que, para Frey re, teria adocicado e abrandado a crueldade inerente ao sistema escrav ocrata. Esse é, a bem da v erdade, um dos pontos mais polêmicos da obra do sociólogo.

A presença das mulatas e dos "moleques" na casa grande teria sido fator decisiv o, na v isão de Frey re, para o abrandamento da relação de posse que caracterizav a a relação entre senhor e escrav o. Diferente do que ocorrera em outras áreas de escrav idão, especialmente no sul dos Estados Unidos – que Frey re, aliás, toma como referencial para comparação em v árias passagens da obra –, aqui à escrav idão teria sido acrescentado um elemento de "doçura", de "proximidade", de "amolecimento" da relação senhor e escrav o - cujo fundamento indiscutív el é a v iolência. O senhor teria acolhido o negro no seio de sua família, e a

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proximidade desses dois mundos antagônicos da casa grande e da senzala, aliada à quase ausência de preconceito de cor na natureza do colonizador, foi o fundamento daquilo que muitos analistas da obra de Frey re identificaram como a “democracia racial”.

Não há passagem no liv ro que mencione o termo "democracia racial". De fato, essa foi uma construção que surge apenas na década de 1940. A idéia sobre a qual se cunhou o termo, no entanto, é da autoria de Frey re. "Democracia racial" seria um sistema de relações interpessoais no seio de uma sociedade apoiado na ausência de impedimentos psicológicos e legais à formação de uma unidade étnica por meio da

miscigenação, fator central -como v isto - em Casa Grande & Senzala. A mistura de raças e a suposta

ausência de preconceitos raciais (mas não de preconceitos sociais), criadas e reforçadas pela inter-relação entre casa grande e senzala, teriam sido os elementos fundadores da democracia racial no Brasil. Em lugar algum do mundo - ou melhor, com pov o algum do mundo que não o lusitano - teria surgido um tal padrão de relacionamentos étnicos e raciais. Em relação a essa característica basicamente portuguesa, Gilberto Frey re, em conferência pronunciada em Lisboa em 1937 , afirmou que

“há, diante desse problema [...] da mestiçagem [...] uma atitude distintamente, tipicamente, caracteristicamente portuguesa, ou melhor, luso-brasileira, luso-asiática, luso-africana, que nos torna uma unidade psicológica e de cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talv ez se possa dizer, sobre uma das soluções humanas de ordem biológica e ao mesmo tempo social, mais

significativ as do nosso tempo: a democracia social atrav és da mistura de raças” (Frey re: 1938, 14).

Frey re posteriormente desenv olv eria o conceito de "democracia étnica", que em v erdade resume a idéia de "democracia racial". Vale dizer, no entanto, que o sociólogo pernambucano odesenv olv e como

contraponto à propagação das idéias nazi-fascistas; se uma das manifestações do totalitarismo fascista era o racismo e, no ideário nazista, a defesa da superioridade de raças, seu antídoto era a democracia "social" e "étnica", que se opunha à democracia meramente política, arremedo de regime democrático e liv re. Em outra conferência, pronunciada no Recife em 1940, Frey re identifica “o imperialismo da democracia sobre trechos do Brasil ainda indecisos entre essa tradição genuinamente nossa [a "democracia étnica"] e o racismo v iolentamente anti-brasileiro [sic], o nazi-jesuitismo [sic], o fascismo sob disfarces sedutores, inclusiv e o da "hispanidade" (Frey re: 1944, 9).

O conceito de democracia étnica é apenas uma outra forma de expressão da democracia racial. O próprio Frey re utiliza este último, numa terceira conferência, pronunciada no Rio de Janeiro em 1962, quando se refere "[à] já brasileiríssima prática da democracia racial atrav és da mestiçagem" (Frey re: 1962, s/p). Seja como for, percebe-se que é uma idéia calcada na mestiçagem, prática aqui iniciada com a própria chegada do colonizador e reforçada com o entrelaçamento dos mundos da casa grande e da senzala.

A crítica moderna não poupa ataques ao que chamam de "mito da democracia racial", apontando para a realidade brasileira, em que negros e brancos não conv iv em exatamente sob iguais condições de v ida e oportunidades de ascensão social. Se houv e a mestiçagem - e foi ela elemento importante na formação da identidade nacional -, não parece ter sido ela suficiente para fundar na sociedade brasileira uma

v erdadeira democracia de raças e etnias... Conclusão

Apenas a paixão de Frey re pela descrição e pelo detalhe, colocada a serv iço de uma empresa tão árdua quanto apresentar um painel da formação da família e da sociedade brasileira, poderia ter rendido uma obra tão espetacular como Casa Grande & Senzala. Escrita há três quartos de século, sua atualidade é assombrosa, não apenas porque, como sociedade em constante transformação e ainda jov em - quando

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comparada a culturas e civ ilizações milenares -, o Brasil precisa conhecer-se e reconhecer-se

constantemente, mas, principalmente, porque aborda questões e aspectos de nossa formação ainda não resolv idos e que, pelo contrário, continuam latentes em nossa trajetória histórica contemporânea. Pode-se ou não concordar com muitas das idéias defendidas por Frey re, como a "democracia étnica" ou "racial", o sucesso da colonização portuguesa, a civ ilização dos trópicos, a quase justificativ a da escrav idão, cujo trecho significativ o merece transcrição, e cujo determinismo chama a atenção, em um autor que se contrapunha a essas idéias que, no esteio do pseudo-darwinismo e do naturalismo, estav am em v oga à época:

"No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o gov enro português de ter manchado, com a instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização. O meio e as

circunstâncias exigiriam o escrav o... Para alguns publicistas foi um erro enorme [a escrav idão]. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil... Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escrav ocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se lev antaram à civ ilização no Brasil pelo europeu. Só a casa grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escrav o".

O fato, porém, é que Casa Grande & Senzala é referencial obrigatório para se conhecer o Brasil e a formação de sua sociedade. O país que temos hoje é conseqüência direta da existência necessariamente conjunta desses dois mundos, a casa grande e senzala. Para o bem e para o mal - cabe a cada um reflitir - somos herdeiros do Brasil patriarcal e escrav ocrata v asculhado e desv endado por Frey re. Se o clássico é aquela obra que continua referenciando o presente mesmo tempos e tempos depois de hav er sido produzida, Casa Grande & Senzala é, sem dúv ida, um dos maiores clássicos da literatura brasileira de todos as épocas.

N .A .: Os conceitos de “raça”, “etnia”, “negro”, “branco”, “m u l ato”, “m am el u co” e ou tros term os correl acionados são u sados, neste artigo, sem qu al qu er ju ízo de val or e/ou pretensão científica. Sabe-se qu e, na atu al idade, a antropol ogia, a biol ogia e a sociol ogia qu estionam a u til idade desses conceitos com o categorias descritivas e anal íticas das sociedades h u m anas e dos indivídu os.

N .A . 2: Casa Grande & Senzal a conta com dezenas de edições l ançadas ao l ongo dessas qu ase oito décadas, e m ais de u m a foi u til izada para col h er as citações aqu i reprodu zidas, razão pel a qu al optou -se por não col ocar o nú m ero da página em qu e estão.

Outras obras de Fre yre consultadas:

Freyre, Gil berto (1938). Conferências na Eu ropa. Rio de Janeiro, Ministério da Edu cação e Saú de. ___________ (1944). “Um engano de José Lins do Rego”. O Jornal , Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1944.

___________ (1962). O Brasil em face das Á fricas negras e m estiças. Rio de Janeiro, Federação das A ssociações Portu gu esas.

Outras fonte s:

Bresser-Pereira, Lu is Carl os (2000). Rel endo Casa Grande e Senzal a. Paper on-l ine disponível em h ttp://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=548.

Gu im arães, A ntonio Sérgio A l fredo (2001). Dem ocracia Racial . São Pau l o, Universidade de São Pau l o, Facu l dade de Fil osofia, Letras e Ciências Hu m anas. Disponível em h ttp://www.ffl ch .u sp.br/sociol ogia/asag/Dem ocracia%20racial .pdf

Referências

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