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MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO JOSÉ ROBERTO MELLO PORTO

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Academic year: 2021

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DIREITO MATERIAL E

DIREITO PROCESSUAL

POSSE E

USUCAPIÃO

2021

2ª EDIÇÃO

REVISTA E ATUALIZADA

(2)

Parte 1

DIREITO MATERIAL

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1.1. CONCEITO DE POSSE

A palavra posse comporta várias acepções no direito. Vemos no direito público a identificação da posse como domínio de um país sobre outro ou no ato solene pelo qual uma pessoa ingressa no serviço público. No direito de família existe a figura da posse do estado de casado e a posse e guarda dos filhos, mormente quando se dá o divórcio do casal e, não raro, empresta-se ao significante posse a própria ideia da propriedade.

No curso da evolução do estudo da posse no âmbito do direito das coi-sas, vários estudos conceituais surgiram, sendo possível afirmar que as teorias subjetiva e objetiva são as mais importantes para a finalidade de nosso estudo, sem prejuízo da abordagem também da teoria social da posse, que se aplica à realidade brasileira com muita atualidade e coerência.

1.1.1. Teoria Subjetiva de Savigny

Tomando por base estudos hauridos das fontes romanas, em seu Tratado

sobre a posse escrito em 1803, aos 24 anos de idade, Savigny1 sistematizou a

posse como sendo a união entre o corpus e o animus domini. Corpus é o poder físico que uma pessoa tem sobre uma coisa e animus domini é a intenção de tê-la para si. É chamada de subjetiva pela importância que se dá à circunstân-cia de alguém demonstrar que possui o bem como se fosse seu. Diz o autor que o animus domini consiste na intenção de tratar como própria a coisa que deve formar o objeto da posse, não se confundindo com a opinio domini, que seria a convicção de ser proprietário. Afirma o jurista que o direito de posse pode em certos casos ser alienado independentemente da propriedade e a posse derivada que nasce dele nada mais exige para a sua configuração do

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que a união do animus domini com a apreensão. A exigibilidade do elemento anímico tornaria impossível o exercício da posse por parte dos incapazes e de todos aqueles que receberiam a posse derivada de uma relação jurídica, como o comodatário, o locatário e o depositário. A esses dois elementos que mais caracterizam a teoria deve-se acrescentar a affectio tenendi, que vem a ser o procedimento de portar-se perante a coisa com a exteriorização da vontade de tê-la para si.

Dessa forma, entendia o autor que restariam claros não só o real sentido da posse, como também a diferença dela para a detenção regulada em nosso direito nos artigos art. 1.198 e 1.208, como se verá adiante. Assim, se uma pessoa tivesse apenas o corpus sem o animus, seria considerada simples detentora do bem e, por via de consequência, não poderia invocar a proteção possessória

ou se aproveitar de nenhum reflexo jurídico. É chamada pelo autor2 de posse

natural em contrapartida à posse propriamente dita, que confere ao titular o direito aos interditos, e à posse civil, que conduz ao direito de propriedade pela

via da usucapião. Savigny3 salienta que segundo as fontes romanas, a

expres-são possessio naturalis também era utilizada como aquela posse que jamais se converteria em propriedade por usucapião, mas critica essa concepção que estaria ligada ao equívoco da máxima Naturaliter possidet, ergo possidet, ou seja, é eficaz a posse daquele que possui por força da natureza. Dessa forma, podemos concluir que para o jurista a posse natural é uma das manifestações da detenção.

Na qualidade de estrênuo defensor da teoria subjetiva, Lafayette Rodrigues

Pereira4 a resume, asseverando que “a posse, como se deduz da sua noção (§

2o) consta de dois elementos: um material (corpus) – a detenção física da coisa;

outro moral (animus) – a intenção de ter a coisa como própria. A posse resulta da união destes elementos. Um deles sem o outro é insuficiente para gerá-la. A detenção é o fato material que submete à coisa à vontade do homem e cria para ele a possibilidade de dispor fisicamente dela, com exclusão de quem quer que seja. O elemento moral, a intenção, consiste na vontade de possuir a coisa como própria (animo sibi habendi)”.

Essa teoria recebeu críticas duras, sendo as mais relevantes as que lhe foram dirigidas pelo emérito jurista Rudolf Von Ihering que, estudando os interditos possessórios, sustenta ser possível existir posse sem corpus, assim como posse sem animus, sendo hoje a teoria aceita em diversos Códigos do

2. SAVIGNY, Friedrich Carl von. Obra citada, p. 36-60. 3. SAVIGNY, Friedrich Carl von. Obra citada, p. 58.

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mundo,5 inclusive o brasileiro, pela importância prática em resolver os árduos

problemas causados pela situação jurídica possessória. Com efeito, não há o menor sentido em negar a posse ao locatário, ao usufrutuário ou ao comoda-tário se eles não ostentam o animus domini, demonstrando, por conseguinte, a possibilidade de posse sem elemento anímico (subjetivo). Para os adeptos dessa

teoria, como, por exemplo, o Dr. Spencer Vampré,6 a situação acima, que se

qualifica como posse direta, é denominada de “quase posse”. Um caçador que tenha deixado uma armadilha na floresta e durante um período de descanso em sua casa, o animal tenha sido apreendido, faz-se possuidor da presa sem que tenha o poder físico sobre ela (corpus).

Na visão de Caio Mário da Silva Pereira,7 “o que sobreleva no conceito de

posse é a destinação econômica da coisa”. Ele diz que o caçador que encontrar a sua caça nas mãos de outrem pode acusá-lo de furto, mas não poderá fazê--lo se por acaso o que estiver nas mãos de terceiro for a cigarreira. De fato, a armadilha cumpre a sua destinação econômica na floresta e o mesmo não se pode dizer sobre a cigarreira.

Também Ihering8 apresenta situações do cotidiano, verificando-se com

razoável facilidade, que na proteção possessória muito pouco interessa a análise do “corpus”, devendo, a bem da verdade, se ter em mira a destinação econômi-ca da coisa como no interessante exemplo em que diz que “a intelligencia do homem do povo dá nisto uma lição vergonhosa à theoria dos jurisconsultos. O homem do povo sabe o que o jurisconsulto olvida, isto é, que não é a relação exterior, mas o destino economico o que faz inclinar a balança. Um pescador deixa cahir n’agua, numa rede extendida o seu chapeu ou o seu cachimbo, não vacillará em apanhal-os; mas não apanhará os peixes que hajam na rede. Por que razão? Porque elle raciocina desde modo: a rede foi collocada alli para apanhar peixes e não para apanhar chapeus e cachimbos; em outros termos, elle atem-se ao destino economico da rede”.

5. O Código Civil Espanhol de 1889 ainda adota a teoria subjetiva de Savigny, pois no artigo 430 prescreve que “posesión natural es la tenencia de una cosa o el disfrute de un derecho por una persona. Posesión civil es esa misma tenencia o disfrute unidos a la intención de haber la cosa o derecho como suyos”. Assim como a codificação argentina de 1869 em seu artigo 2.351: “Habra posesión de las cosas, cuando alguna persona, por si o por otro, tenga una cosa bajo su poder, con intención de someterla al ejercicio de un derecho de propiedad”. Nas Américas, temos o Código Civil argentino por influência do esboço de Teixeira de Freitas (art. 3.709) e do codificador Vélez Sarsfield, pois no artigo 2.351 é dito que: “habrá posesión de las cosas, cuando alguna persona, por si o por otro, tenga una cosa bajo su poder, con intención de someterla al ejercicio de un derecho de propiedad”.

6. VAMPRÉ, Dr. Spencer. Manual de Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia. v. II, 1920, p. 5. 7. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 20 ed., 2009, vol. IV, p. 16-17.

8. IHERING, Rudolf Von. “Sobre o “Corpus Possessionis”. O Fundamento dos Interdictos Possessorios, 2. ed., 1908, p. 298.

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Com singular felicidade, Caio Mário da Silva Pereira9 sistematiza as sutis

dessemelhanças entre as duas teorias da seguinte forma, verbis: “O compor-tamento da pessoa, em relação à coisa é símile da conduta normal do pro-prietário, é posse, independentemente da investigação anímica: qui omnia uti dominus facti. O que retira a tal procedimento este caráter, e converte-o em simples detenção, é a incidência de obstáculo legal. Neste ponto reside a dife-rença substancial entre as duas escolas, de Savigny e Ihering: para a primeira, o corpus aliado à affectio tenendi gera detenção, que somente se converte em posse quando se lhes adiciona o animus domini (Savigny); para a segunda, o corpus mais a affectio tenendi geram posse, que se desfigura em mera detenção apenas na hipótese de um impedimento legal (Ihering)”.

A despeito de não ter sido adotada no Direito Civil brasileiro, a teoria subjetiva é importante para o estudo da usucapião, em que a posse, para que pelo tempo seja convertida em propriedade (posse ad usucapionem), deverá trazer consigo a vontade de possuir a coisa como própria (animo sibi haben-di). Também tem o mérito de explicar a aquisição da posse pela apreensão e a perda pelo abandono, além da figura jurídica do constituto possessório que realiza a inversão do animus e será estudado por ocasião da análise dos modos de aquisição e perda da posse.

Enfim, segundo a referida teoria, para ser possuidor era fundamental que a pessoa reunisse em suas mãos corpus, animus e a affectio tenendi.

1.1.2. Teoria Objetiva de Ihering

Segundo essa teoria, a posse seria a exteriorização de um ou alguns dos poderes ínsitos à propriedade, quais sejam, o de usar, fruir, dispor ou reaver o bem. Afasta-se a posse no caso de haver mero contato físico de uma pessoa com a coisa que consubstanciaria uma detenção ou até mesmo na situação em que uma pessoa tenha título legítimo de proprietário, mas pelo abandono do bem, não seja mais considerado possuidor. Teremos nesse último caso a figura do proprietário não possuidor.

Para o legítimo exercício da posse, importa que ao possuidor seja possível, no âmbito do ordenamento jurídico, exercer em seu nome, pelo menos, um dos referidos poderes, total ou parcialmente. Para Ihering,10 a posse, além de

ser um direito real, é também um poder de fato, e a propriedade é o poder de direito sobre a coisa, de modo que ambas podem se encontrar sob a titularidade

9. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Obra citada, p. 16-17.

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do proprietário, assim como é possível a subsistência de uma sem a outra, mas forçoso reconhecer que a propriedade sem a posse seria inútil, sendo a finalidade primaz da posse a de permitir o pleno uso da propriedade.

Após perfilhar várias teorias sobre a posse, passa o mestre alemão a de-linear a sua própria opinião e já começa a fazer a seguinte proposição, verbis: “a protecção da posse, como exterioridade da propriedade, é um complemento necessario da protecção da propriedade, uma facilidade de prova em favor do

proprietario, que necessariamente aproveita tambem ao não proprietario”.11

O autor12 ainda repisa a ideia acima expondo que a posse é um reduto da

propriedade e que a proteção possessória se justifica por tal fundamento. Essa tutela, de tão relevante, acaba por beneficiar o não proprietário, fazendo exsurgir a autonomia da posse em relação à propriedade. Colocando a posse

como uma posição avançada da propriedade, Ihering13 resume seu

pensa-mento na seguinte proposição: “a proteção da posse, como exterioridade da propriedade, é um complemento necessário da proteção da propriedade, uma facilidade de prova em favor do proprietário, que necessariamente aproveita também ao não proprietário”.

É como se tivéssemos, na esteira dos exemplos do autor, uma pessoa proprietária de um belíssimo quadro guardado permanentemente em uma caixa fechada. De efeito, pensa o fantástico jurista que quem é proprietário necessita ter posse para proteger mais intensamente o seu direito e tornar possível a utilização econômica da coisa. Dessa forma, conclui o jusfilósofo alemão14 que “retirar a posse é paralisar a propriedade, e que é um postulado

absoluto da ideia de propriedade o direito a uma proteção jurídica contra o desapossamento. Não pode existir a propriedade sem essa proteção, sendo, pois, desnecessário buscar outro fundamento da proteção possessória: resulta da propriedade”.

E ainda, podemos citar as suas proposições com relação à susodita tese:

1. A posse é indispensável ao proprietário para a utilização econômica de sua propriedade;

2. Donde resulta que a noção de propriedade arrasta necessariamente o direito do proprietário a posse;

3. Não existiria esse direito se o proprietário não estivesse protegido contra o arrebatamento injusto da posse. A proteção jurídica contra todos os

11. IHERING, Rudolf Von. Sobre o ... Obra citada, p. 71. 12. IHERING, Rudolf Von. Sobre o ... Obra citada, p. 81-82.

13. IHERING, Rudolf Von. Fundamento dos Interditos Possessórios. Bauru: Edipro, 2007. p. 59. 14. IHERING, Rudolf Von. Sobre o ... Obra citada, p. 49-68.

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atentados injustos à posse do proprietário, consistente na sua retirada ou na sua turbação, forma um postulado absoluto da organização da propriedade;

4. A questão de saber, se a exemplo do direito romano, a proteção do direito de possuir do proprietário deve ser ampliada mesmo contra os terceiros possuidores, é para o legislador uma questão aberta que ele pode resolver e que resolveu num ou noutro sentido.

Para a teoria objetiva o possuidor é titular do direito de manter-se ou restituir-se na sua situação jurídica inerente ao jus possessionis (direito à posse) até o momento em que houver o embate entre o possuidor e o proprietário que concentra em suas mãos o jus possidendi (direito de ter posse). Desta forma, se a disputa por determinado bem tiver como causa de pedir o direito de propriedade e este restar provado, a situação possessória sucumbirá frente à situação proprietária. Entretanto, é importante desde já registrar que em demanda de posse não se busca judicialmente descobrir a quem pertence a propriedade ou, em outras palavras, em ação de posse não se discute a

propriedade, conforme reza o § 2o do artigo 1.210 do Código Civil, e será

melhor delineado adiante.

O Código Civil adotou a teoria objetiva ao conceituar, em seu art. 1.196, que possuidor é todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Pela adoção mais comprometida com a teoria objetiva, a codificação atual expurgou todas as reminiscências da teoria subjetiva de Savigny no tocante, primordialmente, às referências de aquisição da posse por apreensão – antigo art. 493, I – e perda pelo abandono – antigo art. 520, I –, modalidades estas que se encaixavam perfeitamente na definição do referido jurista, para quem somente haverá posse quando, além do contato físico com a coisa, houver a demonstração da intenção de possuí-la como se fosse sua. A apreensão seria a demonstração da vontade de trazer a posse do bem para si e o abandono a demonstração voluntária e inconteste de que o possuidor pretendeu despojar-se da coisa. Em ambas, o elemento anímico da teoria subjetiva sem encontra muito presente. Importante destacar para que não paire dúvidas de que a ausência do rol taxativo não significa o fim dos referidos modos de aquisição e perda da posse, sendo certo que o legislador apenas optou pela técnica de não descrever as hipóteses para guardar uma maior fidelidade à teoria objetiva.

Em que pese a importância da teoria objetiva de Ihering para o direito de diversos povos do mundo, inclusive o nosso, o fato é que por meio de uma filtragem constitucional do artigo 1.196 do Código Civil vê-se que ela se

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encontra em crise em razão da necessidade de afirmar o valor da função social da posse. Assim, no embate entre uma posse cumpridora de função social – posse-moradia ou posse-trabalho – e uma propriedade vazia de conteúdo

por descumprimento da determinação constitucional do art. 5o, XXIII, da

Constituição Federal, deve prevalecer aquela, conforme se defenderá a seguir. De acordo com os trabalhos da doutrina brasileira e a redação do próprio artigo 1.196 do Código Civil poderíamos definir posse como sendo o poder de fato que uma pessoa exerce sobre uma coisa de modo a exteriorizar algum ou alguns dos poderes inerentes à propriedade.

Seja qual for a teoria adotada, não há como negar que para que alguém seja possuidor é preciso que tenha poder de fato sobre o objeto possuído, pois um mero contato físico sem a submissão do bem ao interesse econômico do possuidor afasta a ideia de posse, assim como, ainda que não se tenha o contato físico, é possível a presença de interesse econômico, como é o caso do locatário que, ao receber aluguel, exterioriza o poder de fruição (frutos civis) ínsito ao

direito de propriedade. Assinala Hedemann15 que o poder de fato constitui

requisito máximo da aquisição de uma posse por apreensão, mas tal conclusão deve ser precedida pela observância do tráfico jurídico, das circunstâncias do caso concreto, além do conhecimento do ordenamento jurídico. Diz o autor que uma pessoa que se sente em um banco da praça não adquire posse, ao passo que aquela que adquire madeiras e as transporta por várias semanas e as transporta por muitos quilômetros é verdadeiramente possuidora da carga.

A importância do poder de fato para a caracterização da posse fica

igual-mente bem demonstrada na doutrina de Joel Dias Figueira Júnior16 quando

ele diz que “a posse não é o exercício do poder, mas sim o poder propriamente dito que tem o titular da relação fática sobre um determinado bem, caracte-rizando-se tanto pelo exercício como pela possibilidade de exercício. Ela é a disponibilidade e não a disposição, é a relação potestativa e não necessariamente o efetivo exercício”. Por tal motivo, víamos com bons olhos o conceito de posse

que constava no arquivado Projeto de Lei no 6.960/2002 para o artigo 1.196

do Código Civil Brasileiro, verbis: “Considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência socioeconômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse”.

15. HEDEMANN, Justus Wilhelm. Derechos Reales, 1955, p. 61.

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Concluindo, temos que as possibilidades jurídicas de um sujeito frente ao bem são as de ser mero detentor (ex.: caseiro), possuidor não proprietário (ex.: locatário), proprietário não possuidor (ex.: arrematante de um bem em praça pública quando o executado expropriado não mais exercia posse) e, por último, possuidor e proprietário, como sucede, por exemplo, com tantos bens móveis que possuímos.

1.1.3. Teoria Social da Posse

Embora seja forçoso reconhecer que o Código Civil Brasileiro adotou a teoria objetiva de Ihering definindo o instituto como a exteriorização da propriedade, é inegável que posse e propriedade são institutos absolutamente distintos, conforme pode ser visto até mesmo nos instrumentos de tutela

possessória, cujo art. 1.210, § 1o, do Código Civil, prevê que a alegação de

propriedade ou de outro direito real sobre a coisa não impede a proteção possessória. A referida constatação já bastaria para demonstrar que a posse não pode ser vista apenas como uma mera visualização do domínio, ou seja, tem a posse uma valoração econômica e social própria.

Tal constatação não passou despercebida pela doutrina de Saleilles que, inspirado em Ihering e fazendo críticas à teoria subjetiva de Savigny, defen-deu que o corpus do direito romano não era propriamente o contato físico com a coisa, mas sim a possibilidade de o possuidor explorar e se apropriar economicamente da coisa colocada à sua disposição, sendo essa a sua legítima pretensão. A ótica de Saleilles se adequa à noção da teoria social da posse no Brasil, pois para o autor francês o conceito de posse não parte de uma situação jurídica permanente e homogênea. Ao contrário, impõe àquele que pretende desvendar os seus mistérios a busca das diversas variáveis segundo a natureza da coisa, forma de utilização e os usos do país e da época.17 Ora, não podemos

estudar esse instituto de vital importância para os brasileiros sem a necessária adequação à nossa realidade social e econômica.

A posse deve ser respeitada pelos operadores do direito como uma si-tuação jurídica eficaz a permitir o acesso à utilização dos bens de raiz, fato

visceralmente ligado à dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF) e ao

direito constitucionalmente assegurado à moradia (art. 6o da CF)18 e ao

tra-17. NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, 2006, p. 38.

18. “Ação de reintegração de posse. Sentença que julgou procedente o pleito autoral quanto à reintegração de posse. Demanda que versa sobre a cessão de posse realizada sem a outorga uxória da autora. Cessão nula. Esbulho possessório caracterizado. Atendimento à emergente concepção social do instituto pos-sessório, já que o imóvel é fonte de renda familiar. Reintegração de posse que se impõe. Manutenção

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VISÃO GERAL DAS AÇÕES POSSESSÓRIAS

A terminologia “ações possessórias” merece ter seu sentido definido cri-teriosamente. Isso porque, no ordenamento pátrio, existe um autêntico leque de remédios processuais para a tutela da posse – ou, mais especificamente, em que se pede a tutela jurisdicional consistente na retomada da posse.

É didática, nesse sentido, a distinção das ações quanto aos seus elementos, notadamente a causa de pedir e o pedido. Podem ser consideradas como ações possessórias em sentido amplo aquelas em que se pleiteia a retomada da posse com base em qualquer fundamento (qualquer causa de pedir) e como ações possessórias em sentido estrito as que possuem causa de pedir restrita à posse. Assim, fala-se em ações possessórias em sentido estrito ou propriamente ditas quando se pede a posse com base na posse anteriormente exercida pelo autor, não se discutindo a propriedade.

A abrangência defendida se mostra recomendável porque, para além das “ações possessórias” (terminologia eleita pelo Código de Processo Civil para designar as ações possessórias em sentido estrito), a posse é garantida a quem de direito por outros instrumentos, destacadamente a ação reivindicatória – aí compreendida a de imissão na posse – e os embargos de terceiro, mas também a ação de nunciação de obra nova, a de dano infecto. Esses outros instrumentos

não são “exclusivamente voltados para a tutela possessória”1, também sendo

comum a lição de que a proteção da posse, nesses casos, estaria “destituída de suporte fático”2.

Outra classificação diz respeito à tutela típica e à atípica da posse3.

A primeira diz respeito típica às medidas cujo procedimento está previsto

1. Por essa razão, não seriam “ações possessórias típicas” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito

Processual Civil. 54. ed. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2020; GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1.018).

2. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1.018. 3. MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

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trazidos pelo ordenamento para que o magistrado possa efetivar decisões relativas à posse, aplicáveis isolada e subsidiariamente às medidas típicas, como os instrumentos previstos nos artigos 498 e 538 (quanto a obrigações de entregar coisa) e artigos 497, 536 e 537 (quanto a obrigações de fazer e não fazer), para além da cláusula geral do art. 139, IV, do Código.

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AÇÕES POSSESSÓRIAS EM SENTIDO ESTRITO

(INTERDITOS POSSESSÓRIOS)

2.1. CABIMENTO (CAUSA DE PEDIR E PEDIDO)

O primeiro grupo de instrumentos judiciais capazes de tutelar a posse são os interditos possessórios, reputados restritivamente pelo legislador, há vários diplomas processuais, como ações possessórias.

Fundamentalmente, descreve-se, como causa de pedir, uma agressão à posse, que pode ser total (esbulho), parcial (turbação) ou potencial (ameaça), e se pede a proteção possessória correspondente: reintegração (no caso de esbulho) ou manutenção (se for caso de turbação ou ameaça).

A discussão, desse modo, se restringe ao exercício da posse (ius posses-sionis), sendo descabida o debate a respeito de outros direitos, como a pro-priedade. É essencial, por isso, que o autor tenha exercido, preteritamente, a posse agredida pelo réu.

A essência da tutela possessória típica é, portanto, a solução imediata do conflito, sem se imiscuir em discussões mais profundas. Desde o Direito Ro-mano, aliás, os interditos possuem caráter enérgico e um traço de sumarização

(do procedimento, não da cognição)1.

Podem ser objeto da posse os bens corpóreos, móveis ou imóveis, e, para

parcela da doutrina, os semicorpóreos2, mas nunca os incorpóreos, como os

1. “Em Roma, os interditos eram sumários, mas essa sumariedade não consistia em restringir provas ou se contentar com provas superficiais e incompletas. A sumariedade, na espécie, era no sentido do caráter enérgico e coercitivo do comando do praetor, que cominava várias penalidades ao demandado com o fito de impedir procrastinações e de obter aceleração na marcha do processo.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 54. ed. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2020.).

2. Mencionando a tutela do gás encanado, em dinâmica a envolver aqueduto: MEDINA, José Miguel Garcia.

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de Justiça3.

Um aspecto importante nas ações típicas é que a causa de pedir deve se circunscrever às hipóteses eleitas pelo legislador. É dizer: se a posse não sofreu agressão nesses moldes, o procedimento especial não poderá ser utilizado. Naturalmente, o pedido de retomada ou de sua manutenção na esfera do autor é possível de ser feito, mas pelo procedimento comum.

Seguindo essa lógica, se se pretende receber de volta objeto em posse direta do réu por razões contratuais, exige o Superior Tribunal de Justiça a prévia desconstituição do vínculo, mesmo que haja cláusula resolutória expressa, em

homenagem à boa-fé4. É o que ocorre na hipótese do inadimplemento no curso

de contrato de incorporação imobiliária e até mesmo no bojo de uma locação,

na qual há saída específica (ação de despejo) 5. Mesmo em tais situações, é

importante que se diga que há quem sustente o cabimento da possessória,

quando constar a cláusula resolutiva expressa, como uma faculdade do autor6.

Igualmente reflexo da premissa destacada é a vedação de discussão sobre ato de apreensão de bens na alfândega por falta da licença de importação necessária (súmula 262 do STF7), já que a prática administrativa não constitui ato de força.

2.1.1. Espécies de proteção

Cumpre, então, esmiuçar as espécies de agressão à posse e as correlatas proteções previstas no ordenamento. Na prática, existem três subespécies de ações possessórias típicas, cuja distinção está na causa de pedir próxima

3. Súmula 228 do STJ: É inadmissível a interdito proibitório para a proteção do direito autoral.

4. “A ação possessória não se presta à recuperação da posse, sem que antes tenha havido a rescisão/resolu-ção do contrato. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de ser imprescindível a prévia manifestarescisão/resolu-ção judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos” (STJ, 4.ª Turma, AgInt no AREsp 734.869/BA, rel. Min. Marco Buzzi, DJe 19.10.2017).

5. MONTENEGRO FILHO, Misael. Ações possessórias no novo CPC. São Paulo: Atlas, 2017.

6. “Questão mais complexa é o contrato de leasing. Sustenta-se a possibilidade de se utilizar da proteção possessória nesse caso diante de cláusula resolutiva expressa. O simples inadimplemento da prestação é suficiente para a resolução do contrato, ensejando a reintegração da posse. Na ausência de tal previsão, deveria ocorrer a notificação do devedor, caracterizando-se a mora e, então, surgindo a oportunidade da ação de reintegração de posse. Contudo, o uso da ação possessória no leasing é, na verdade, opção processual do demandado, vez que a principal característica da ação possessória é a sua cognição restrita à questão possessória. E, nesse caso, o fundamento da ação possessória é mais o inadimplemento do contrato do que a violação da posse.” (PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Manual de Direito Processual

Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019.).

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(fundamentos fáticos da demanda), formando uma gradação evolutiva de

acordo com a intensidade da agressão8, desde a mera ameaça (iminente) até

a efetiva perda, parcial ou total, da posse.

2.1.1.1. Ação de interdito proibitório

A ação de interdito proibitório está prevista no art. 567 do Código de

Processo Civil/20159 e tem como causa de pedir próxima a ameaça de turbação

ou esbulho, hipótese em que o juiz se utilizará da técnica das astreintes –

co-minação de multa diária – como forma de desencorajar a iminente agressão.10

Trata-se de ação com indisfarçável caráter inibitório, uma vez que objetiva a prevenção do ilícito possessório, não se confundindo com uma tutela cautelar do possuidor ameaçado11.

Importa que o autor da ação de interdito proibitório demonstre o efeti-vo perigo de lesão a fim de que exista a necessária condição para o legítimo exercício do direito de ação, que vem a ser o interesse de agir. Com efeito, o caput do artigo 1.210 do Código Civil é claro ao dizer que o possuidor que tenha “justo receio” poderá pedir ao juiz que o segure da violência iminente12.

Podemos exemplificar a viabilidade do interdito proibitório para proteger moradores que foram notificados pela municipalidade para desocuparem as suas residências no prazo de 15 dias, sob pena de demolição das mesmas, ou então situação na qual grupo organizado que, com seriedade, ameaça que dentro em breve invadirá determinada Fazenda tida como improdutiva.

Para Humberto Theodoro Júnior, o interdito tem autêntico caráter

co-minatório consistente em condenação em obrigação de não fazer13, enquanto

8. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1.019. 9. Art. 567. O possuidor direto ou indireto que tenha justo receio de ser molestado na posse poderá re-querer ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório em que se comine ao réu determinada pena pecuniária caso transgrida o preceito.

10. Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Proc. no 201130227057, Rel. Des. Cláudio Augusto Montalvão das

Neves, Julg. em 10/12/2012: “Agravo de Instrumento. Ação de Interdito Proibitório. Liminar. Preenchi-mento dos requisitos do art. 932 do CPC. Ocorrência. Comprovação da ameaça à posse. Decisão mantida. Recurso conhecido e improvido à unanimidade”.

11. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória (individual e coletiva). 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 286-287.

12. De efeito, “o interdito proibitório somente deve ser concedido quando eficazmente demonstrada a existência de posse legítima, além do cometimento de atos que importem em ameaça de privação do bem pelo possuidor, configuradores de esbulho ou turbação. Incomprovados tais pressupostos, é de se indeferir o mandado proibitório” (TJSC, Apelação Cível 2011.038666-7, de São Joaquim, rel. Des. Jorge Luis Costa Beber, julgado em 27/6/2013).

Referências

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