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Lingüística, Poética e Cultura: estudos do enunciado latino (IV Bucólica de Virgílio)

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 84-89, 2008

Lingüística, Poética e Cultura: estudos do enunciado latino (IV Bucólica de Virgílio)

Thalita Morato FERREIRA G – FCLAr – UNESP Prof. Dr. Márcio THAMOS FCLAr – UNESP Grupo LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica / UNESP

thalitamorato@yahoo.com.br

A poesia tem a virtude de perpetuar valores e de registrar um povo e um momento da fala desse povo. Assim, por meio da poesia, podemos tentar resgatar a cultura e a beleza do mundo romano que se perpetua na fala de autores legítimos, aqueles que, vivendo na sociedade romana, adotaram o latim como meio legítimo de comunicação e por meio desse idioma expressaram sua cultura e a perpetuaram. Portanto, é na fala de um autor como Virgílio, um falante natural, que o presente trabalho ganha consistência.

Somente a língua materna tem a virtude de expressar com legitimidade a cultura de um povo, e como bem atesta Alceu Dias Lima “a única língua compatível com o homem e com a sabedoria é a da poesia”. Assim, o presente trabalho, intitulado “Lingüística, poética e

cultura: estudos do enunciado latino”, procura estudar o registro textual de um falante

natural, alguém que, imerso na sociedade romana, pôde-se servir do idioma latino em toda e qualquer situação de comunicação, sem nenhum grau de artificialismo. Não se trata aqui de um purismo estéril e conservador em relação aos textos clássicos, mas sim de acreditar que é só por meio do uso que falantes naturais fizeram dessa língua antiga que conseguimos apreender a cultura e a beleza de um povo inteiro.

Tendo em vista que a herança literária dos antigos romanos não está encerrada no passado, mas permanece no tempo, com avidez de presente, como um legado legítimo para as sociedades atuais, podemos apreender a densidade cultural da civilização romana, imortalizada na expressão poética de um autor como Virgílio, por exemplo. Assim, escolhemos para este estudo a IV Bucólica1 desse autor latino.

O latim, idioma materno dos antigos romanos, comumente recebe o epíteto de língua morta. Contudo, é necessário combater a idéia de morte que, indevidamente, é imputada a esse idioma antigo, porque, afinal, o que morre são os falantes e não a língua e, embora a

1 As Bucólicas foram a primeira obra divulgada do poeta. Trata-se de uma coleção de dez poemas curtos independentes, compostos em hexâmetros e produzidos entre 42 e 37 a.C.

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língua latina, devido à extinção de seus falantes naturais, tenha deixado de apresentar variações de qualquer natureza em seu sistema, não há que se falar que esteja morta, já que podemos resgatar todo um legado cultural do mundo romano, por meio da fala de autores como Virgílio, aqueles que puderam sentir o mundo romano por meio dessa língua antiga, sem artificialismo. Julga-se, pois, que qualquer tentativa de se produzir hoje um enunciado em língua latina, por alguém que não tenha vivenciado toda a realidade histórica e cultural do mundo romano, não passará de uma simulação do que, por ingenuidade, se quer chamar de latim.

O que nos compete, neste trabalho específico, é a obtenção da competência receptiva da língua latina em sua modalidade escrita, já que o trabalho tem como ponto de partida o texto legítimo, ou seja, a representação da enunciação viva de falantes naturais, aqueles que adotaram o latim por uma necessidade real de comunicação e puderam atualizar a sua língua com legitimidade. O trabalho ainda tem o intuito de reconhecer, nos versos de Virgílio, certos efeitos de sentido que podem ser captados pela percepção da leitura e julga-se necessário refletir de que modo o arranjo particular da linguagem de um autor como Virgílio pode ser responsável pela expressão desses efeitos. O pesquisador iniciante, visando a competência receptiva da língua latina, tem o intuito de elaborar uma tradução de estudo do texto de Virgílio e fornecer um subsídio básico para a leitura do original em latim, juntamente com as notas de cultura que, geralmente, reclama um texto antigo.

Sob a luz dos conceitos explicitados por Ferdinand de Saussure, foi possível perceber que o latim, como qualquer outra língua, só pode ser analisado do ponto de vista da sincronia, porque é ela, a sincronia, que constitui a única e verdadeira realidade da língua. Uma vez que se encontra impossibilitado de apresentar variações de qualquer natureza em seu sistema, em sua estrutura fonológica, morfossintática e lexical, pode-se dizer que o latim é uma língua de sincronia fechada, ao passo que as línguas modernas, que ainda podem ser atualizadas por falantes naturais, seriam línguas de sincronia aberta. Ora, ainda podemos assimilar o sistema da língua latina por meio da fala, por meio do uso que falantes naturais fizeram dessa língua antiga.

De acordo com Émile Benveniste (1976) “língua e sociedade não se concebem uma sem a outra” e “a cultura é inerente à sociedade dos homens, qualquer que seja o nível de civilização”. Assim, o estudo do idioma materno dos antigos romanos só encontrará legitimidade quando entrarmos em contato com o registro textual de um autor como Virgílio, por exemplo, que adotou naturalmente o latim como meio de expressão e atualizou sua língua por meio da produção de discursos, por meio de seus versos, por exemplo. Logo, pode-se

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abordar o latim pelo ponto de vista da sincronia, apreendendo-se o funcionamento morfossintático dessa língua através de textos que foram produzidos por um falante natural.

Com o objetivo de realizar uma tradução literal do córpus selecionado e de apreender o sistema formal da língua latina, bem como o arranjo particular da linguagem de Virgílio, o trabalho investiu no conhecimento morfossintático do idioma materno do poeta, a fim de obter, por parte do pesquisador iniciante, a competência receptiva da língua latina em sua modalidade escrita, bem como de apreender um pouco do legado cultural que se perpetua por meio da expressão poética de um falante natural.

Estes versos foram extraídos do texto de Virgílio (hex. 8-10) e escolhidos para apresentação como exemplo de arranjo particular da linguagem, cujos efeitos de sentido não poderíamos apreender plenamente sem as referências de cultura (os versos também contêm o cerne do que, na verdade, a IV Bucólica representa, um hino à esperança):

Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum desinet ac toto surget gens aurea mundo casta, faue, Lucina: tuus iam regnat Apollo.

[Tu, ó casta Lucina, favorece o menino que está nascendo agora, com o qual, pela primeira vez, uma raça de ferro cessará e uma de ouro surgirá no mundo inteiro: já reina o teu Apolo]

A IV Bucólica nos revela o nascimento de uma criança como símbolo da esperança, a condição necessária para se instaurar, novamente, a harmonia e a paz sobre a Terra. É por meio do nascimento de uma criança que se terá o retorno da Idade de Ouro, que marca um período de prosperidade e alegria, ao passo que as outras Idades (a de Prata, a de Bronze, e a de Ferro) marcam a crueldade e fealdade humanas, numa decadência progressiva que nada tem a ver com harmonia e prosperidade. Assim, estes versos assinalam o nascimento de um menino, uma criança que será responsável pela instauração da harmonia e da paz sobre a Terra, do retorno da Idade de Ouro. Os versos evocam a casta Lucina que, na verdade, é Diana, geralmente conhecida como a deusa da caça, mas também como a própria Lua, e responsável pela proteção nos partos. Há também a evocação de Apolo, irmão de Diana, conhecido como o deus sol, como protetor das artes e exímio tocador de flauta, quando evocado pelo universo pastoril.

Com o retorno da Idade de Ouro, a terra, mesmo sem ser cultivada, produzirá tudo sozinha e (hex 21-23):

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ubera, nec magnos metuent armenta leones; Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores.

[As próprias cabritinhas levarão à casa as tetas cheias de leite, e os rebanhos não temerão os terríveis leões; para ti o próprio berço espalhará as delicadas flores] Dentro do sistema da língua há elementos que se interdefinem. Logo, se retirássemos dos versos os adjetivos magnos e blandos, os versos não teriam sentido algum, já que tanto

armenta e cunabula, substantivos neutros, como leones e flores, substantivos masculinos,

poderiam ocupar tanto o lugar de sujeito como o de objeto na frase latina. Sem os adjetivos as frases latinas ficariam ambíguas, já que não saberíamos se os rebanhos não temeriam os leões ou se os leões não temeriam os rebanhos, por exemplo. Assim, qual seria o sujeito e o objeto da frase latina?

Os versos de Virgílio trazem os adjetivos magnos e blandos, e é só por meio deles que a ambigüidade termina, já que eles só podem concordar com um substantivo masculino plural e no caso, acusativo, ou seja, objeto direto. Logo, os substantivos leones e flores só poderão ser os objetos da frase, uma vez que os adjetivos, que concordam em gênero, número e caso, contribuíram para a não ambigüidade da frase. Ora, como bem elucidou Saussure (2003), “um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos”; assim leones e flores adquirem seu valor quando se opõem a armenta e cunabula respectivamente, porque, ao se definirem como objetos da frase latina, estão automaticamente evocando os respectivos sujeitos que, no caso, são armenta e cunabula. Dessa forma, vê-se que um único signo tem o poder de evocar formalmente todo o sistema do qual faz parte.

Depreende-se dos versos o retorno da Idade de Ouro, o retorno da harmonia e prosperidade. Não só a terra produzirá tudo sozinha, mas também as cabritinhas não precisarão ser ordenhadas, já que trarão à casa o leite por livre vontade; e os rebanhos, no campo, não mais temerão os leões, já que haverá harmonia, equilíbrio sobre a Terra.

Todos os dias afloram na superfície de um idioma novas frases e palavras, ao passo que outras desaparecem. Os idiomas modernos sofrem essas variações todos os dias e o latim também sofreu enquanto houve falantes que atualizassem a língua por meio da produção de discursos. O texto de Virgílio, a IV Bucólica, é a representação do discurso de um falante natural, que, portanto, pôde-se utilizar do latim com toda a legitimidade.

“Pela língua o homem assimila sua cultura, a perpetua ou a transforma”, como bem elucidou Émile Benveniste (1976); assim, o projeto estuda a enunciação viva de um autor, que imerso em sua cultura, atualizou sua língua naturalmente por meio de seus versos, por exemplo. Logo, a IV Bucólica é o exemplo do uso que Virgílio fez de sua língua. Ora, foi por

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meio de sua língua que Virgílio viu seu Mundo, seu tempo e também o nosso, uma vez que se entenda que as palavras do poeta têm o poder de transcender seu tempo e permanecer universalmente sempre com avidez de presente.

De acordo com Italo Calvino “os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos” e “é clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”, dessa forma, o texto de Virgílio afirma a potencialidade de uma cultura que permanece para as sociedades atuais. Logo, é oportuno afirmar que o poeta latino traça o perfil de seu universo singular e também o universo alheio, é o fundamento de uma sociedade e a condição necessária para a sua permanência.

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Referências

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