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Oliveira, Joao Pacheco-Laudo Sobre Caxixos

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Academic year: 2021

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OS CAXIXÓS DO CAPÃO DO ZEZINHO:

UMA COMUNIDADE INDÍGENA DISTANTE DE IMAGENS DA

PRIMITIVIDADE E DO ÍNDIO GENÉRICO

RELATÓRIO ENCAMINHADO À FUNAI

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO EM CUMPRIMENTO DO

CONTRATO DE CONSULTORIA DGEP 30/2000

João

Pacheco

de

Oliveira

Museu

Nacional/UFRJ

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SUMÁRIO

Apresentação ...03

Um novo gênero de saber administrativo...05

Laudos antropológicos e outros gêneros ...07

Uma estratégia para a execução de laudos ...15

Um mau paradigma para o reconhecimento de direitos ...18

A crítica das fontes e o uso diferenciado da História ...23

O lugar da arqueologia nos laudos antropológicos ...26

As situações etnográficas ...29

O antropólogo como inquisidor ...30

Outras condições para o trabalho etnográfico...37

A situação observada em campo...41

O etnônimo Kaxixó...42

A identidade de “indígena” ...47

A conceituação de "índio"...51

Conclusão: As bases para o reconhecimento étnico ...56

Referências bibliográficas ...59 Anexo: Relatório de Atividades

APRESENTAÇÃO

Em 1994, por solicitação da FUNAI, foi elaborado o “Laudo Antropológico sobre a Comunidade denominada Kaxixó” (23 p.) por Maria Hilda Baqueiro Paraíso,

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então mestre em Ciências Sociais e professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Nesse texto a autora concluía que os assim denominados Kaxixó “no momento não formam uma comunidade indígena como é pensada jurídica e antropologicamente” (Paraíso, 1994,p. 20). Em 1999, em cumprimento de demanda da Procuradoria Geral da República no estado de Minas Gerais, foi redigido por Ana Flávia Moreira da Silva, antropóloga da 6ª Câmara do MPF/MG e mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, o trabalho intitulado “A História Tá é Ali, Sítios arqueológicos e etnicidade: os Kaxixó de Martinho Campos e Pompéu, MG” (187 p.), que chega à conclusão diametralmente oposta, reconhecendo os autodenominados Kaxixó como apresentando as características socioculturais necessárias para sua classificação como uma “comunidade indígena”.

Tendo em vista as inúmeras manifestações sobre tal assunto, bem como a existência de posições contrárias assumidas por diferentes instituições e organismos públicos, as quais se reportam para efeitos de legitimação a essas análises antropológicas divergentes, a agência indigenista oficial, FUNAI, propôs-me a realização de uma consultoria antropológica que lhe fornecesse “uma avaliação técnica detalhada dos laudos antropológicos existentes sobre a comunidade Kaxixó”, oferecendo-lhe “parâmetros e subsídios (...) no sentido de decidir sobre o reconhecimento formal da identidade indígena da comunidade autodenominada Kaxixó” (cláusula 1.1).

O parecer que se lerá a seguir tem portanto como finalidade refletir sobre o processo político-administrativo de reconhecimento dos Kaxixó, priorizando uma análise crítica do conhecimento existente e acumulado na agência indigenista sobre o assunto (sejam saberes produzidos por iniciativa da FUNAI ou de outras equipes e instituições, todos no entanto disponibilizados e incorporados ao material administrativo).

À diferença de um estudo monográfico sobre uma população ou coletividade específica, baseado primordialmente seja em bibliografia específica seja em atividades entendidas como de campo, esse parecer não tem tais fontes como seu foco principal e dinâmico.

A pesquisa de campo e bibliográfica foi ao contrário dirigida para pontos bem específicos, identificados a partir da leitura e análise preliminar dos laudos existentes, que nortearam o processo de investigação. O ponto de partida foram justamente os dados e interpretações antagônicas, que se buscou explicar seja por sua relação com os

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cânones da investigação antropológica e histórica, seja com a dimensão implícita das conceitualizações, hipóteses e estratégias de pesquisa adotadas, seja ainda por sua coerência interna. O acesso ao campo e aos documentos escritos resultam do desejo de verificar a base empírica de determinadas informações, contextualizar melhor certos fragmentos de discurso, conectar estratégias sociais e atores sociais específicos, explicitar certos argumentos e representações e acompanhar sua distribuição entre a população considerada.

O trabalho de campo e a pesquisa bibliográfica, ao permitirem especificar contextos e qualificar interlocutores, funcionaram assim como instrumentos para o aprofundamento da compreensão de situações etnográficas específicas e dos produtos de conhecimento (os laudos) daí derivados.

Em um relatório anexo, entregue anteriormente (fevereiro/2001) à FUNAI, estão descritas as atividades de pesquisa desenvolvidas. Durante o período de campo contei com a valiosa colaboração da historiadora Paula Caleffi, da UNISINOS (RS), com quem também discuti durante a preparação desse parecer, contribuindo em especial na crítica à utilização de material histórico. A responsabilidade pela análise apresentada nesse parecer, sobretudo por eventuais lacunas ou distorções, é inteiramente minha.

UM NOVO GÊNERO DE SABER ADMINISTRATIVO

Foi na segunda metade da década de 80 que a expressão “laudo antropológico” começou a ser utilizada de modo sistemático, indicando um novo gênero de saber administrativo, centrado na articulação entre um solicitante – uma autoridade judiciária – e um perito – um especialista independente e altamente qualificado.

Em 1987 tramitavam no STF 54 ações contra a União, requerendo vultosas indenizações pelas medidas administrativas de reconhecimento da posse indígena sobre a área do Parque do Xingu. O argumento utilizado era que tratava-se de terras devolutas que teriam sido legitimamente vendidas a particulares pelo estado de Mato Grosso; ou seja, que no momento dessa venda não era mais registrada presença indígena. Estimava-se que o montante das indenizações pretendidas poderia chegar a 102 bilhões de dólares – então cerca de um terço do PIB brasileiro. Duas dessas ações inclusive, no valor de 6 milhões de dólares, já haviam sido julgadas e perdidas pela União (Peter, Cynthia – “Saque contra a União”, revista Senhor, 22/12/1987).

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A Procuradoria Geral da República, alarmada com o que parecia ser uma verdadeira “indústria de indenizações” - que envolvia um único escritório de advocacia e um conjunto de perícias técnicas realizadas em geral por engenheiros, utilizando-se muitas vezes apenas das técnicas de sobrevôo e da leitura de livros de viagem - procurou cercar-se de documentação que comprovasse a continuidade da presença indígena na região. A consulta aos arquivos da agência indigenista revelou-se insuficiente para a instrução dos processos. Paradoxalmente os melhores subsídios procediam, seja de mapas de 1954 do Departamento de Aeronáutica Civil/DAC (localizando índios entre os paralelos 14 e 19) e de plotagens realizadas pela Divisão de Serviços Geográficos/DSG do Exército (lançando dúvidas sobre a incidência dessas glebas dentro dos limites do Parque), seja de uma cuidadosa argumentação de natureza histórica e antropológica desenvolvida por antropólogos e lingüistas indicados pela Associação Brasileira de Antropologia e que há muitos anos realizavam estudos com os povos e culturas da região xinguana.

No ano seguinte entrou em vigor um protocolo de intenções entre a PGR e a ABA para a realização de estudos e laudos periciais voltados para subsidiar e apoiar tecnicamente os trabalhos do Ministério Público Federal na defesa da União em causas judiciais atinentes às terras indígenas. A colaboração entre antropólogos, juizes e procuradores ampliou-se rapidamente para outras áreas indígenas, bem como para outras questões judiciais. Na 17ª Reunião Brasileira de Antropologia já um Grupo de Trabalho iniciava os debates sobre o tema.

A referência mais permanente e importante nessa matéria no entanto foi o Seminário intitulado “A Perícia Antropológica em Processos Judiciais”, promovido pela ABA em São Paulo, de 2 a 4 de dezembro de 1991, com a colaboração do Ministério Público Federal, da FINEP, da Comissão Pró-Índio (SP) e da USP (através da Faculdade de Direito e do Departamento de Antropologia, local onde se realizou o encontro. Nessa ocasião foram reunidas duas dezenas de especialistas (antropólogos e advogados) que apresentaram comunicações e debateram exaustivamente suas experiências. Disso resultou a elaboração de um livro, publicado em 1994 pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, com o mesmo título do seminário, que teve extensa circulação e constitui-se ainda atualmente em matéria de consulta e leitura obrigatória no que toca à temática dos laudos antropológicos.

Criou-se no âmbito da ABA uma tradição de discutir essa temática nos encontros nacionais, o que iria desdobrar-se em debates nas posteriores reuniões

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bianuais da associação (1994, em Niterói; 1996, em Salvador; 1998, em Vitória; e em 2000, em Brasília), além de outros fóruns mais específicos (como o Seminário realizado na UFF, em junho/2000 e a oficina em Ponta das Canoas (SC), em novembro/2000). Do ponto de vista do Ministério Público Federal, além de outros encontros mais gerais, caberia destacar os seminários de procuradores e antropólogos integrantes da 6ª Câmara, realizados nos últimos anos (Cuiabá, 1995 até Florianópolis, 2001).

LAUDOS ANTROPOLÓGICOS E OUTROS GÊNEROS DE SABER ADMINISTRATIVO

Tal recuperação histórica é imprescindível para uma avaliação adequada dos dois laudos existentes sobre os Kaxixó, produzidos em contextos muito distintos. Foi somente a apresentação e discussão de laudos e reflexões específicas em sucessivos contextos acadêmicos e profissionais, aliada à circulação progressiva da coletânea organizada pela ABA/Comissão Pró-Índio (1994) entre os antropólogos (especialmente aqueles encarregados da feitura de laudos), que conduziu a um relativo consenso sobre a natureza de um laudo. É necessário ter presente que isso só veio a ocorrer na segunda metade da década de 90, de certo modo coincidindo com a renovação do Protocolo ABA/PGR (1996), com a ampliação do quadro técnico de antropólogos do MPF e com a extensão da requisição de laudos aos casos de coletividades “remanescentes de quilombos”(e não apenas às terras indígenas).

O trabalho elaborado por Maria Hilda Baqueiro Paraíso, datado de novembro de 1994, resulta de uma pesquisa iniciada em meados de 1993. No período imediatamente anterior a autora havia realizado três trabalhos sobre diferentes situações indígenas em Minas Gerais – Xakriabá, Krenak e Maxakali. Ainda que as finalidades, os contextos de produção e as estruturas narrativas fossem absolutamente diversas, os três produtos são igualmente denominados de “laudos”.

O primeiro destinava-se a comprovar a identidade étnica dos Xakriabá, que tinham sido objeto de mortes, violências e crueldades por parte de regionais; visava fundamentar o Ministério Público e os advogados de acusação dentro de um processo de enquadramento de não indígenas por crime de genocídio. Seguia a forma de um texto corrido, com uma conceituação sobre identidade étnica; com reflexões sobre racismo,

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preconceito e miscigenação; uma breve trajetória histórica; e terminando com um capítulo sobre organização social.

Já o laudo Krenak era composto em resposta aos quesitos formulados pelas quatro partes intervenientes no processo (o Juiz Federal, a PGR, a FUNAI e o advogado dos fazendeiros). À diferença dos Xakriabá existia uma extensa documentação sobre a história do contato desde o século XVI até as últimas décadas, bem como sobre a atuação local das agências indigenistas (SPI e FUNAI) e de seu relacionamento com as autoridades estaduais. A extensão e intensidade das informações contidas no laudo sobre os Krenak (114 p.) revela-se como muito superior ao laudo Kaxixó, pois resultou de um trabalho com duração de 13 dias de uma equipe integrada por três estudantes de Ciências Sociais da UFBA, além de dois antropólogos da FUNAI, um do MPF e um indigenista.

O terceiro laudo era uma tentativa de elaboração de subsídios para uma possível e futura demanda fundiária dos Maxakali quanto ao caráter descontínuo das duas áreas em que se distribuem. Nesse caso o trabalho foi iniciado a partir da bibliografia etnológica e da tradição oral dos Maxakali, sendo concluído com o produto de buscas documentais. 1

O trabalho realizado sobre os Kaxixó apresentava, por sua vez, uma característica bem distinta dos três anteriores, destinando-se não a uma instância jurídica, mas sim administrativa. Tratava-se de subsidiar a FUNAI na tomada de decisão quanto ao reconhecimento (ou não) dessa coletividade como indígena, decisão que implicaria no início de um processo de proteção e assistência que resultaria na regularização de terras, na presença de indigenistas e em atuação em educação e saúde.

Os recursos para a implementação da viagem bem como o apoio logístico (viatura, motorista e técnico-indigenista da região) provinham do órgão indigenista, que era quem dava o enquadramento político e material mais geral à investigação e aos contatos realizados. Ou seja, a atividade do antropólogo era concebida como integrando a maquina administrativa, como um instrumento direto de ação indigenista. É nesse sentido – de uma Comissão encarregada de resolver uma questão administrativa - que pode ser entendida a menção feita logo no início do texto quanto às “dificuldades que vínhamos enfrentando para encontrar dados relativos ao grupo”, sendo então proposta a

1

Como Alvarez (2000) veio a descrever anos depois, a questão da reunificação das duas áreas Maxakali é um processo social bem mais complexo do que uma simples agregação territorial, o que recomendaria mais pesquisa de campo e maior cautela ao tentar “antecipar” demandas indígenas.

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um de seus líderes “algumas possibilidades de solução para o problema vivido pela comunidade” (p. 2).

Cabe notar que naquele contexto histórico existia uma outra modalidade de saber administrativo – os antigos relatórios de grupos de trabalhos para identificação de terras indígenas – que em muito se aproximavam da estrutura do laudo Kaxixó elaborado por Paraíso (1994), inclusive respondendo pelos seus limites. Eram muito raras as cobranças administrativas quanto a textos ou documentos de reconhecimento étnico, isso sendo focalizado dentro do relatório de identificação de terras, esse sim considerado um componente indispensável e fundamental ao processo de assistência. Em geral o reconhecimento dessa coletividade como indígena não passava de uma parte menor do relatório de identificação, quando não se limitasse a ocorrer via alguma carta, informação técnica ou relatório genérico de viagem.

À diferença de um trabalho de campo realizado por antropólogo, as atividades a serem desenvolvidas na identificação de terras indígenas estavam sempre associadas a uma equipe interdisciplinar e a múltiplas instâncias (FUNAI, INCRA, institutos estaduais de terras, por exemplo) de governo. O tempo de trabalho de campo não é concebido segundo as expectativas de uma pesquisa antropológica, que exige a construção uma relação densa e prolongada com a comunidade, mas como o tempo meramente técnico de execução das atividades cartográficas, do levantamento fundiário ou ainda das comissões políticas de arbitragem (Oliveira & Almeida, 1998).

Compartilhado com profissionais de outras formações técnicas, o tempo em campo revela-se como muito limitado e insuficiente, afetando profundamente o modo de condução da investigação, que passa a operar com contatos muito seletivos e dirigidos dentro da comunidade, privilegiando líderes e intermediários (isto é, informantes que se apresentam exclusivamente como porta-vozes da coletividade). No caso da pesquisa realizada por Paraíso, o tempo total de trabalho de campo reduziu-se a dois dias (2 e 3 de junho de 1994), que incluíram igualmente visita às cidades próximas (Martinho Campos, Pompéu e Pitangui), contatos institucionais, visita a antiga sede de fazenda de D. Joaquina e busca de documentos. A relação direta com a comunidade Kaxixó limitou-se a uma visita de algumas horas ao Capão do Zezinho (manhã do dia 2); de resto houve uma breve e pouco frutífera visita ao “bairro” Várzea do Galinheiro, na periferia de Pompéu (manhã de 3), além de uma rápida passagem pelos sítios arqueológicos (tarde do dia 2) e de uma conversa em Pompéu para acertos finais com o vice-cacique sobre os desdobramentos futuros do trabalho (p. 1 e 2).

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As críticas formuladas ao antigo padrão de relatório de identificação de terras indígenas2 aplicam-se perfeitamente ao laudo Kaxixó elaborado por Paraíso. Não houve qualquer esforço no sentido de levantar ou obter dados básicos que permitissem uma caracterização etnográfica mínima da comunidade visitada. Não se sabe quantas são as famílias e casas que integram a comunidade Capão do Zezinho, nem quais são as relações que essas pessoas mantém entre si nem com outras localidades vizinhas. Não é apresentado sequer um censo de população, um mapa da aldeia, fragmentos genealógicos de qualquer natureza, nem mesmo uma simples transcrição de depoimentos de informantes variados.

Uma comunidade deve ser construída pelo pesquisador através da observação positiva das pessoas que as integram, dos nexos que as unem, das interações que realizam, dos interesses e valores que perseguem, das estratégias que colocam em prática no cotidiano. Não é correto operar com uma totalidade retificada e desprovida de conteúdos concretos, limitando-se a enquadrá-la (ou recusá-la) como um mero exemplar de uma noção genérica de “comunidade indígena”.

Na dimensão cronológica a diretiva seguida por Paraíso se expressa através de uma história construída principalmente a partir de fontes historiográficas genéricas3, lidas com pressa e superficialidade, à contraluz das narrativas sobre o massacre colonial e a dizimação dos modos de vida e das culturas autóctones. Também nos antigos relatórios de identificação uma grande atenção é dedicada aos primeiros contatos, sobre os quais é mais comum a existência de registros escritos (afinal são as crônicas da conquista!), enquanto pouco existe disponível sobre o passado imediato (as relações de dominação cotidiana ou as práticas administrativas).

O laudo de Paraíso igualmente discorre com vagar sobre a história mais remota, descrevendo desde as primeiras entradas na região (1601-1602) até a instalação do capitão Inácio em Buriti da Estrada em 1748, em um relato que se estende praticamente por toda a parte III (“pequeno quadro da ocupação histórica e das relações interétnicas” – p. 5-11). Ao contrário não há qualquer indicação efetiva sobre o que se passou nos últimos duzentos e cinqüenta anos.

A ausência de menção à “índios” em relatos de viajantes e documentos administrativos não é algo que deva gerar surpresa ou estranhamento, pois não se trata de uma população bravia e arredia, nem mesmo missionarizada em relativo isolamento,

2

Vide Oliveira, 1998 e PPTAL/FUNAI, 1999, entre outros.

3

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mas sim inserida em relações econômicas e políticas de dominação! O que não nos pode de maneira alguma levar a pré-julgar que tais famílias e pessoas não construam uma identidade diferenciada, nem mantenham uma sociabilidade própria, inclusive com concepções muito distintas do universo social circundante.

A utilização de fontes específicas, de documentos efetivamente comprobatórios, é muito rara e casual. Não é realizada uma interpretação cuidadosa das fontes citadas, de seus limites e de sua positividade, inexistindo um exercício de peneiramento e crítica das fontes consultadas. A história funciona assim como um simples discurso legitimador do que já se supõe conhecer.

Ao cabo o produto de uma investigação como essa é menos uma peça técnica de conhecimento, fundada em procedimentos correntes na Antropologia, e mais a recomendação de uma dada modalidade de ação indigenista, acompanhada de justificativas para a sua adoção. Os dados, métodos e conceitos da Antropologia limitam-se a um papel totalmente secundário, servindo apenas para evidenciar a dificuldade em reconhecer a comunidade Kaxixó como indígena e estabelecer um território comum compartilhado (p. 20). Paralelamente a autora encaminha propostas e soluções administrativas alternativas, como é o caso da requisição de indenização pelos Kaxixó por sua condição de “descendentes de escravos africanos”, vindo a ser tais valores aplicados na aquisição de terras contíguas, que pudessem permitir a manutenção da unidade social da terra que ocupam (p. 20-21).

Em contraste com as indefinições de estilo e finalidades contidas no laudo de Paraíso, o trabalho elaborado por Ana Flávia Moreira dos Santos apresenta-se como um exercício rigoroso de utilização de conceitos e métodos da Antropologia no sentido de produzir subsídios técnicos à tomada de uma decisão por autoridade jurídica ou administrativa. Construído a partir de um contexto intelectual em que os debates teóricos sobre os laudos antropológicos já estão muito mais consolidados, a autora não demonstra qualquer indefinição ou ambigüidade quanto à natureza e às finalidades de um laudo, afastando-se totalmente de outros tipos de saberes administrativos, acadêmicos ou de vulgarização.

Em primeiro lugar cabe observar que os dados etnográficos apresentados são qualitativamente distintos do laudo de 1994. A investigação foi realizada através de um maior número de visitas ao campo, que se prolongaram por um período de mais de um ano, implicando em contatos expandidos e regulares com a grande maioria das famílias integrantes da comunidade. Nessas ocasiões dados puderam ser solicitados, testados e

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corrigidos, havendo ocasiões em que tais visitas se desdobraram em uma imersão total e convivência continuada com a comunidade (ainda que por períodos limitados).

Cabe mencionar o importante material etnográfico e histórico produzido por equipe conjunta do CEDEFES/ANAÍ, coordenado por Vanessa Alvarenga Caldeira, do qual participaram Alenice Mota Baeta, arqueóloga, Isabel Missagia de Mattos, doutoranda de Antropologia da UNICAMP, e José Augusto Laranjeiras Sampaio, antropólogo. Além de extensa pesquisa bibliográfica e documental foram realizadas em um período de onze meses, de fevereiro de 1998 a janeiro de 1999, seis visitas à comunidade, cada uma delas implicando em uma permanência de três dias. Dessa atividade resultou um relatório intitulado Kaxixó: Quem é esse povo? , com 77 páginas, 11 anexos e 46 fotografias (totalizando 159 p.), que fornece subsídios relevantes. Em grande parte os resultados dessa investigação foram incorporados e estão refletidos na argumentação utilizada por Santos (1998).

Uma dos pontos de maior interesse no laudo apresentado por Santos (1998) é o esforço de crítica e contextualização das fontes documentais utilizadas por Paraíso. Uma leitura acurada da bibliografia e uma consulta muito mais extensa a arquivos e especialistas, possibilitou importantes retificações no que concerne a categorias, localidades, eventos e personagens mencionados no laudo de 1994. Como resultado disso a sua reconstrução histórica é muito fina, consistente e persuasiva, procedendo a demonstrações e especificando claramente os seus limites, o que confere ao texto um caráter exemplar.

UMA ESTRATÉGIA PARA A EXECUÇÃO DE LAUDOS

Dentro do movimento de contextualização histórica dos debates sobre os laudos antropológicos foi apontado no capítulo anterior a influência exercida por outros saberes administrativos na feitura concreta de alguns laudos realizados na primeira metade da década de 90. Tal esforço de contextualização tem prosseguimento nesse capítulo com as concepções expostas pela autora de um desses laudos (Paraíso, 1994) – que participou ativamente dos debates e discussões realizadas sobre os laudos antropológicos no âmbito da ABA (1990 e 1991) – nesses contextos.

No Seminário acima mencionado, ocorrido na USP em 1991, Paraíso apresentou comunicação em sessão intitulada “A Construção da Perícia Antropológica: Metodologia e Objetivos”, coordenada pelo prof. Orlando Sampaio Silva.

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Posteriormente essa comunicação, como todas as demais do Seminário, foram reelaboradas pelos participantes e disponibilizadas amplamente através da publicação de 1994. O texto com o qual Paraíso (1994b) participou dessa coletânea, chamado “Reflexões sobre Fontes Orais e Escritas na Elaboração de Laudos Periciais” (p. 42-51), foi seguramente redigido antes da preparação do Laudo Kaxixó – no qual ela utiliza extensamente tal publicação – e oferece uma indicação precisa das preocupações da autora durante a realização do laudo Kaxixó.

Nesse artigo Paraíso procura demonstrar que, na formulação de um laudo pericial, “o antropólogo vê-se obrigado a ultrapassar essas limitações impostas por informações viciosas (sic) da História Oficial” (1994b, p. 44). As duas dificuldades básicas seriam “o caráter ideológico da produção histórica” (idem, p. 43) e a “falta de credibilidade” atribuídas ao uso das fontes orais (idem, p. 47).

Sobre o primeiro ponto a sua postura é bem clara: “Para a nossa sociedade, as fontes escritas, produzidas, portanto, por seus representantes, são as verídicas. A análise crítica da ideologia e interesses do autor em fornecer tal versão é considerada como dispensável. É como se pelo fato de ter sido escrito, e por “brancos”, lhes garantisse a sonhada neutralidade axiológica. Particularmente se corrobora a versão que beneficia os ocupantes nacionais das áreas indígenas” (idem, p. 46).

Quanto ao uso das fontes orais – ainda que a autora lembre ao início que as imprecisões de que costumam ser acusadas podem também ser atribuídas às fontes escritas (idem, p. 43) – ela recomenda ao antropólogo, dada à suspeição que sobre elas se abate, um uso “com parcimônia”: “O grande achado estratégico é encontrar informações da tradição oral que se cruzam e são confirmadas pelas fontes documentais escritas, o que quase nunca ocorre com a freqüência desejada” (idem, p. 47).

No laudo Kaxixó, Paraíso adota essa mesma estratégia de investigação e argumentação. “Sabíamos, antecipadamente, que encontraríamos dificuldades na elaboração do laudo. Uma delas seria a identificação e localização da documentação referente ao grupo e a de compatibilizar esses dados obtidos através da memória do grupo. Por outro lado sabemos que os dados do segundo tipo, devido à supervalorização da escrita na nossa sociedade, necessitam de pontos de confluência com informações documentais para serem aceitas como prova pericial” (1994,p.3).

Há uma contradição entre as duas dificuldades apontadas no artigo de 1994: a primeira aponta para uma crítica geral, que refere-se à natureza dos dados históricos; a segunda é formulada de maneira pragmática, com a intenção de ajustar-se aos

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preconceitos e etnocentrismos. Ainda que os dois textos (o artigo e o laudo, respectivamente 1994b e 1994) reflitam uma postura comum, neles operam duas sintonias bem distintas em termos de tom e de ênfase. No primeiro, de caráter mais geral e destinado a um foro acadêmico, a conjunção entre fontes orais e documentais é vista como uma solução feliz; no segundo texto, há uma diretiva nitidamente auto-defensiva.

Isso se expressa por meio de uma grande preocupação com o descrédito e as penalidades que podem incidir sobre o perito em função de “informações inverídicas” (p.3) ou da apresentação de “dados que não podem ser comprovados” (p.4). Os riscos de uma perícia são bastante acentuados por Paraíso: “Além do descrédito profissional, tal atitude poderá implicar, segundo a lei, em inabilitação para o exercício de novas perícias e na possibilidade de ser processado criminalmente (art. 147 do CPC)” (p. 3).

Há uma diferença muito grande, contudo, entre afirmações inverídicas (por Paraíso listadas como resultantes de “má fé, negligência, imprudência ou imperícia” – p.3) e outras que apresentam grandes dificuldades para ser comprovadas. A impossibilidade de comprovação pode ser circunstancial ou decorrer da própria natureza dos dados ou dos processos históricos que os geraram, como iremos considerar a seguir, mas nada permite estabelecer uma igualdade entre verdade e fonte documental.

O temor pela responsabilidade processual implicada na perícia leva a uma concepção totalmente distorcida dos objetivos e limites desse gênero de saber jurídico e administrativo. Nessa linha Paraíso define a natureza do laudo que está iniciando: “...produzir informações que permitam a formulação de um julgamento por parte dos interessados, evitando a fragilidade de apresentar dados que não podem ser comprovados” (p. 4). Ao realizar tal opção o antropólogo e o historiador declinam do exercício de análise e de crítica para lançar-se de braços abertos na falsa segurança de uma narrativa compatível com a história oficial, que naturaliza os fenômenos históricos, legitima os interesses dominantes e inviabiliza o reconhecimento de direitos de grupos e populações que foram objeto de largos processos de dominação.

UM MAU PARADIGMA PARA O RECONHECIMENTO DE DIREITOS

A história, seja ela baseada em documentos ou na oralidade, é uma construção interpretativa. Na perspectiva dessa disciplina é importante compreender quais foram os paradigmas teóricos conceituais que nortearam as análises presentes nos dois laudos,

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bem como as escolhas em que implicaram essas abordagens, haja visto que estas definições são responsáveis pelos caminhos percorridos pelas pesquisas e obviamente pelos diferentes resultados atingidos por elas. Estas escolhas constituem-se no que White chama de meta-história, ou seja, - aqueles paradigmas que apesar de não estarem explicitados, são responsáveis pela construção do discurso histórico (White, 1995 p.11).

Em termos de uma demografia histórica o Brasil constituiu-se como um ponto de convergência de grupos populacionais oriundos de três continentes, portadores de uma grande diversidade cultural interna. Tanto os indígenas americanos como aqueles provindos do continente africano são grupos de tradição oral - suas histórias não constam de códices escritos, mas sim de uma memória apreendida, exercida e reelaborada coletivamente.

O processo de conquista e colonização estabeleceu entre esses três grupos formadores da nacionalidade uma relação assimétrica de poder. A verdade torna-se monopólio destes grupos de origem européia, expressando-se através da escrita. Apesar de todas as transformações ocorridas na sociedade brasileira, nota-se a persistência de traços do pensamento colonial quando continua a atribuir-se status de verdade somente à documentos escritos em detrimento da tradição oral. Desse modo privilegia-se a forma de registro histórico proveniente de apenas um dos continentes em detrimento do aporte oriundo dos dois outros grupos formadores da nacionalidade.

Ao historiador – e ainda mais especialmente ao antropólogo – cabe precisamente conduzir uma crítica da naturalização dessa lógica etnocêntrica de estabelecimento de verdades e explicitando as escolhas políticas que isso supõe4. O laudo produzido por Paraíso – ainda que em outro texto (1994b, p.46), anteriormente citado, ela pareça concordar com o argumento acima exposto - reproduz uma postura colonialista de estabelecimento de “programas de verdade” (Veyne, 1984, p. 39)5.

Isso deixa bastante claro o lugar do discurso histórico na construção do texto, como aparece em dois parágrafos transcritos na nota a seguir6. Apesar da reunião com

4

Desde Platão que a questão de legitimação da ciência se encontra indissociavelmente conexa com a legitimação do legislador. Nesta perspectiva, o direito de decidir o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir o que é justo, mesmo se os enunciados submetidos respectivamente a uma e outra autoridade são de natureza diferente.(Lyotard,1989, p.26).

5

No mesmo sentido ver também Veyne, 1995 e Foucault, 1979.

6

“No outro dia na parte da manhã, deslocamo-nos para o Capão do Zezinho, onde reside o núcleo principal do grupo Kaxixó. Toda a comunidade participou da reunião, emitindo opiniões e fornecendo informações sobre a sua história.” (p. 2)

“Seguindo a orientação das referidas lideranças, visitamos a antiga sede da fazenda de Dona Joaquina Bernarda de Abreu Castelo Branco, e o cartório em busca de certidões que pudessem indicar a

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os Kaxixó e as informações que os mesmos lhe transmitiram sobre sua história, Paraíso pretende encontrar nas certidões do cartório indicações da identificação étnica dos mesmos, parecendo ignorar que as identificações estão integradas em sistemas de classificação, que são distintos de acordo com o agente classificador e com o contexto ao qual a classificação está referida.

Cabe recordar como a questão é focalizada em um artigo por diversas vezes citado em Paraíso (1994):

na realização dos laudos periciais o antropólogo deve privilegiar a pesquisa sobre as categorias e práticas nativas, pelas quais o grupo étnico se constrói simbolicamente, bem como as ações sociais nas quais ele se atualiza. A agente classificatório e o objeto primário de sua etnografia devem ser o próprio grupo investigado. As classificações (étnicas, de classe, etc) utilizadas por outros agentes sociais devem ser consideradas na medida em que afetam os circuitos de interação de que participam os membros daquele grupo, possibilitando a definição por esses de várias e diversificadas estratégias simbólicas e sociais. Ao invés de trabalhar com classificações étnicas operadas genericamente pela sociedade regional, o antropólogo deve explorar as incongruências internas aí verificadas, percebendo que elas constituem parte de um campo de luta em que estão envolvidos todos esses atores” (Oliveira, 1994, p.121) 7.

A autora ao contrário entende estes “dados escritos”, como conhecimento objetivo simplesmente por estarem grafados, desconhecendo que um documento é uma produção que comunica algo, e que “las formas de comunicación no son portadoras neutras o indiferentes de información sino que transmiten sus propios mensajes” (Burke, p.18). Uma estrutura verbal em forma de discurso narrativo não pode ser neutra, os dados assim produzidos constituindo-se no máximo em uma dimensão estratégica selecionada, mas nunca a verdade objetiva em sua totalidade.

identificação étnica dos registrados, a Igreja matriz e o Fórum que não pudemos visitar por encontrar-se fechado”.

7

Santos (1999, p. 126) faz esta mesma citação no laudo por ela produzido, mas integrado a uma argumentação e uso absolutamente pertinente.

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Em outro ponto de seu laudo Paraíso enuncia argumentos para a crítica das fontes, deixando entrever as razões para uma possível desqualificação das fontes não escritas:

Não podemos esquecer que as notícias escritas estão condicionadas ao contato interétnico e de que as informações advindas da memória grupal, além de imprecisas, são difíceis de serem identificadas espacialmente e não são consideradas como confiáveis num processo jurídico (Paraíso, p. 5).

Tal afirmativa torna absolutamente claro o paradigma de análise escolhido pela autora - a redução da tradição oral à uma imprecisa “memória grupal”. Referindo-se à dimensão espacial, denota desconhecimento da existência de formas de construção histórica e de apropriação do espaço e do tempo que não passam pela lógica da escrita e nem pela racionalidade da cultura ocidental (a qual a autora parece ignorar que também é uma construção)8.

Com a sua definição de perícia (p. 4) já mencionada anteriormente, Paraíso desconsidera as fontes orais como válidas, questionando implicitamente todo um arcabouço de conhecimentos históricos/antropológicos produzidos pelos chamados africanistas a partir da tradição oral9.

Como bem nos recorda Vansina (1985, p.166), não é correto estabelecer uma relação de tal modo assimétrica entre os dois tipos de fontes. “A questão é que o relacionamento entre as fontes escritas e orais não é aquele da prima-dona e de sua substituta na ópera: quando a estrela não pode cantar, aparece a substituta: quando a escrita falha, a tradição sobe ao palco. Isso está errado”.

Segundo Philippe Joutard, emérito estudioso da história oral enquanto teoria, método e prática: “(...) la tradicion oral es um discurso dinâmico, em constante contato com la actualidade más contenporanea y que, por lo tanto, es por completo uma expression de la história” . (Joutard, 1999, p. 157).

A tradição oral diferencia-se da reminiscência pessoal, que seria uma evidência oral específica das experiências de vida do informante, bem como da memória pessoal da testemunha, pois tais fatos e evidências não passam de geração em geração, exceto de modo esmaecido, como nas narrativas familiares privadas (Prins, 1992, p.172).

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Ver a este respeito a obra “A invenção da razão”, de F. Chatêlet.

9

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Os historiadores orais tem plena consciência das diferenças que envolvem os dois fenômenos, principalmente no que diz respeito à tradição oral ser aprendida e reelaborada coletivamente, e a memória pessoal estar relacionada com a experiência pessoal de uma testemunha sobre determinado episódio. Assim devem ser tratados como fenômenos que exigem abordagens diferenciadas, sendo um equívoco completo transformar a história oral em terreno privilegiado da subjetividade, da imprecisão ou da arbitrariedade.

Paraíso comete um equívoco também ao afirmar que as informações orais não são consideradas como confiáveis num processo judicial, desconhecendo inteiramente uma bibliografia relativamente extensa que descreve e analisa diversos casos de utilização de depoimentos e história oral em processos jurídicos chaves na história da humanidade. Isso ocorreu, por exemplo, no Tribunal de Nuremberg, onde foram acusados diversos oficiais militares e cientistas. Algumas dessas condenações estavam essencialmente baseadas em depoimentos de prisioneiros e parentes das vítimas dos campos de concentração, relatos que de forma alguma constam da documentação escrita produzida pelo III Reich, mas que nem por isso podem ser descartados como menos verdadeiros que os relatórios oficiais (von Plato, 1998, p. 7-22; Roseman, 1998, p. 33-44).

Situações similares se registraram em muitas outras regiões do mundo, gerando investigações de grande importância para o funcionamento da justiça nesses países, permitindo o estabelecimento de responsabilidades por parte de funcionários de regimes totalitários. Exemplos recentes de aproveitamento de fontes orais em processos judiciais podem ser encontrados em reconstituições de eventos históricos feitas a partir de depoimentos orais (coletivos e individuais) de sul africanos vítimas da política de apartheid (Grossmann, 1999, p. 131-149) ou na localização de corpos e no estabelecimento de paternidade, dos desaparecidos e de seus filhos, respectivamente, vítimas do regime militar argentino (Catela, 1998, p. 87-104)10.

A linha de argumentação adotada por Paraíso em realidade conduziria o investigador a ignorar todo o imenso esforço feito por historiadores e antropólogos para registrar a história das coletividades marginalizadas, perseguidas e discriminadas, cuja presença foi minimizada ou mesmo suprimida da história oficial. O reconhecimento

dos direitos de pessoas que pertencem a essas coletividades dependerá portanto

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Prins (1992) cita inúmeros exemplos de casos em seu artigo intitulado “História Oral”, cuja a primeira edição em português é de 1991, anterior ao laudo produzido por Paraíso.

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necessariamente do estabelecimento de critérios de legitimação de uma história

produzida a partir de uma memória coletiva e individual.

A CRÍTICA DAS FONTES E O USO DIFERENCIADO DA HISTÓRIA

Ao tomar o registro escrito como base de verdade na sua tentativa reducionista de legitimar a memória do grupo ou a tradição oral, Paraíso parece ignorar uma prática fundamental do trabalho do historiador, que é proceder a chamada crítica interna do documento. Isso é tanto mais grave quando observamos que as fontes utilizadas pela autora em sua análise, são fontes bibliográficas e de cunho historiográfico, caracterizando-se por conterem primordialmente interpretações sobre uma documentação consultada.

O uso de fontes escritas não pode confundir-se com uma mera colagem de fragmentos de livros e documentos, mas exige uma crítica interna do material utilizado, onde se desvele as condições que envolveram a sua produção social, indagando no mínimo por quem, quando e com que objetivo foi produzido.

Não são poucos os cuidados que o pesquisador deve ter ao manusear e utilizar as fontes bibliográficas e arquivísticas. O exercício de crítica é o espaço que se abre para a relativização das mesmas, das verdades nelas construídas e através delas publicizadas. Um esforço semelhante tem sido realizado por exemplo por antropólogos brasileiros que, inspirados em uma sociologia da produção intelectual (Bourdieu, 1974), têm proposto uma leitura nova dos relatos de viajantes ou de fontes administrativas (Almeida, 1983; Oliveira, 1987; e Lima, 1998).

Nesse sentido é importante incorporar uma visão crítica do processo de produção de conhecimento, como em termos muito simples e diretos nos propõe Schaf:

O sujeito que conhece “fotografa” a realidade com a ajuda de um mecanismo específico, socialmente produzido, que dirige a “objetiva” do aparelho. Além disso, “transforma” as informações obtidas segundo o código complicado das determinações sociais, que penetram em seu psiquismo mediante a língua em que pensa, pela mediação da sua situação de classe e dos interesses de grupos que a ela se ligam, pela mediação das suas motivações conscientes ou subconscientes e, sobretudo, pela mediação da sua prática social, sem a qual o conhecimento é uma prática especulativa (Schaff, 1995 p. 82).

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Entrando na análise do segundo laudo produzido sobre os Kaxixó, o mesmo aponta, com muita exatidão para essa fragilidade existente no trabalho de Paraíso (1994) e explicita caso a caso os pontos em que isso ocorre. Notoriamente entre as páginas 49 e 137, Santos (1999) utiliza-se de procedimentos teórico metodológicos absolutamente pertinentes, realizando uma crítica das fontes escritas existentes (o que lhe permite inclusive compreender os motivos dos “silêncios” da documentação), procedendo a um tratamento adequado da tradição oral da coletividade estudada. É o que podemos verificar pela citação abaixo:

Ao iniciar a análise dos relatos acerca do passado Kaxixó, enfatizei o propósito de tomá-los em si mesmos, na tentativa de apreender a lógica de sua articulação interna e os sentidos atribuídos às categorias que os conformam. De um discurso aparentemente caótico, vimos surgir, desta forma, um quadro ordenado de categorias através do qual os Kaxixó pensam seu passado e a si mesmos, narrativa que é, a um tempo, mito de origem e reflexão sobre a experiência histórica do grupo (Santos, p. 49).

Partindo de diretrizes adequadas, a autora não tenta reduzir uma à outra as narrativas históricas orais e escritas, ou seja, inviabilizar a história de uma coletividade de tradição oral ao subordiná-la à legitimação pela história documental escrita pela sociedade nacional. Ao contrário vai buscar compreendê-las em suas lógicas distintas, analisando a partir disso suas possíveis congruências.

A autora parte do princípio que as duas narrativas devem ser entendidas a partir do mesmo status de verdade e jamais tenta submeter a verdade contida na tradição oral à sua possível duplicação em documentos escritos.

(...) creio poder afirmar, com base nos dados acima apresentados, que os relatos sobre o passado Kaxixó demonstram ser congruentes com o processo de ocupação e colonização da região em que historicamente o grupo se insere. Devo enfatizar que a intenção não é a de procurar "provas históricas" que permitam "confirmar" - ou não- os referidos relatos, trata-se apenas de ressaltar que, embora estes expressem uma experiência histórica particular, configurando necessariamente uma versão distinta de outras versões sobre o passado local, não demonstram ser incompatíveis ou incongruentes com o disposto nas fontes consultadas sobre a história do Distrito de Pitangui, marco primeiro da colonização neo-brasileira naquela região(Idem,

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O LUGAR DA ARQUEOLOGIA NOS LAUDOS ANTROPOLÓGICOS

A utilização de vestígios arqueológicos no laudo de Paraíso apenas repete a escolha do paradigma acima criticado, que requeria a existência de documentação escrita para comprovar a tradição oral. Como antes havia uma visão ingênua e naturalizadora da história documental, aqui a autora supõe que os objetos possam falar por si mesmos sobre o passado indígena, atribuindo a uma prospecção arqueológica uma missão impossível – “esclarecer as dúvidas que se estabeleceram entre a tradição oral e os dados documentais” (p. 17). A perspectiva segue sendo a mesma, a verdade histórica produzida por uma coletividade através de seus relatos orais não vale por si só, mas necessita ser validada através de uma “prova” engendrada pela sociedade envolvente.

A arqueologia também trabalha com interpretações. Entre as pessoas e coletividades que produziram um objeto e o objeto propriamente dito, susceptível de observação contemporânea, existe uma cultura que lhe engendrou significações e finalidades. É sobre essa cultura, que está ancorada em um contexto histórico e em um nicho ecológico muito distantes dele, que o arqueólogo elabora as suas hipóteses e busca formular suas explicações. Não é possível esquecer que a arqueologia trabalha no cruzamento entre pelo menos duas culturas, a da criação do objeto e a que o interpreta, movida esta última por teorias e concepções atuais, que ocupam um papel central no desvendamento da significação dos resíduos do passado11.

Esse procedimento de buscar legitimar a posse dos grupos indígenas sobre determinados territórios apelando para a antigüidade dessa ocupação não é de forma alguma coerente com os termos da atual Carta Constitucional, que conceitua “terra indígena” através da noção de “ocupação tradicional” e não por meio da idéia de imemorialidade. Laudos ou quesitos que insistam demasiadamente na apresentação de provas arqueológicas como evidencia de antigüidade de ocupação territorial podem vir a

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É o que nos explica Hodder: “Por ello las teorias que uno defiende sobre el pasado dependem muchísimo del proprio contexto social y cultural de uno. Trigger (1980), Leone (1978) y otros han demostrado con gran acierto cómo las interpretaciones cambiantes del pasado dependen de los cambiantes contextos sociales y culturales del presente. Los individuos en el seno de la sociedad actual utilizan el pasado en sus estrategias sociales. En otras palavras, es en los contextos culturales e históricos donde se concibe y manipula la relación datos-teoria. (Hodder, 1988 p.30).

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ser considerados irrelevantes ou mesmo inconstitucionais, pois estariam baseados em uma argumentação invalida e inadequada. O que por si só deveria recomendar maior cautela ao atribuir um papel decisivo á investigação arqueológica em laudos relativos à terras indígenas.

Essa discussão sobre o lugar de argumentos arqueológicos na definição de áreas de ocupação indígena pode nos permitir dirimir as dúvidas sobre uma das razões apontadas por Paraíso para concluir pelo não reconhecimento étnico dos Kaxixó – ela afirma que por serem de origens distintas, eles nunca compartilharam um território comum (p. 20). A base para essa conclusão é uma rápida visita aos locais indicados por seu Djalma e Jerri Adriani, isso em resposta as indagações da antropóloga que solicitava “provas” da antigüidade da ocupação. Essa busca levou Paraíso a percorrer, entre outros ainda menos especificados, três sítios: um pasto com uma aguada e duas mangueiras antigas; alguns fogões de barro enterrados no chão; e um cruzeiro.

Sobre os fogões de barro a autora diz haver consultado “alguns arqueólogos na Bahia e em São Paulo que nos afirmaram ser estes fogões típicos de negros e não de índios” – p. 15), sem descrever melhor tais objetos, nem indicar como os apresentara aos arqueólogos, quais foram esses especialistas ouvidos e qual o exato teor de suas manifestações.

Os dois outros locais são descritos de forma sumária, estritamente na ótica de um observador externo à comunidade. “Visitamos, ainda, um cruzeiro, onde afirmam estarem enterrados os membros da comunidade que teriam sido mortos na luta pela terra e onde Jerry Adriani teria sofrido um atentado. O local não se diferencia de qualquer outro cruzeiro no interior de Minas Gerais” (p. 15). Certamente o que se deveria esperar de um antropólogo não seria uma descrição tão concisa e externa, mas uma apresentação de como a coletividade atual (os Kaxixó) fala e pensa sobre esse cruzeiro, bem como sua significação para a vida das pessoas.

Componentes físicos do espaço, tal qual os sítios arqueológicos, não podem servir em si mesmos como “prova” de ocupação tradicional daquela área por populações contemporâneas. Por outro, lado a ausência desses sítios não poderia de modo algum ser utilizada como “prova” da inexistência dessa presença, uma vez que a área pode ter sido objeto de destinações econômicas sucessivas que a tenham descaracterizado fortemente. Contrasta inteiramente com isso o tratamento dado aos sítios arqueológicos pelo laudo elaborado por Santos (1999), de grande originalidade e interesse antropológico, onde tais vestígios de populações ameríndias primevas são considerados sempre em sua

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relação com a coletividade Kaxixó atual. A ressignificação feita pelos Kaxixó dos sítios arqueológicos presentes no atual território por eles ocupado demonstra uma vivacidade de sua tradição oral, remetendo à existência de fortes laços de interação social que permitem a comunidade reelaborar constantemente sua tradição a partir de um contexto presente, o que se coaduna plenamente com o critério legal de ocupação tradicional.

AS SITUAÇÕES ETNOGRÁFICAS

Ao falar em situação etnográfica (Oliveira, 1999, p.61-62 e 9) objetiva-se chamar atenção para as condições concretas de realização da pesquisa antropológica, buscando apreender os padrões de interação e as mútuas percepções e expectativas que caracterizaram o encontro entre o pesquisador e os pesquisados. O que significa buscar proceder a uma etnografia da situação de pesquisa, recuperando o etnógrafo e a sua etnografia em uma dimensão real respectivamente de ator e de ação social, afastando-se de construções naturalizantes e elaboradas a posteriori sobre uma relação entre dois personagens idealizados e inexistentes - um “coletor” (de dados e relatos) e um “informante” (um ser passivo, que apenas reage, de maneira pontual e quase automática, às perguntas formuladas).

Os laudos sobre os Kaxixó (1994 e 1999) foram elaborados por profissionais identificados e que se auto-identificam como antropólogos, sendo fundamental portanto perceber que ainda que a pesquisa bibliográfica e em arquivos tenha sido uma parte importante do trabalho de investigação contido nos laudos, tais leituras vieram a fazer sentido justamente face às diferentes experiências vividas na situação etnográfica. O foco desse capítulo será assim uma tentativa de explicitação e reflexão sobre as condições sociais que permitiram a produção dos dados etnográficos nos laudos realizados sobre os Kaxixó.

Em um primeiro movimento é possível perceber, através dos próprios textos, quais as finalidades que os autores atribuíam ao “encontro etnográfico” (Asad, 1973); em seguida procura-se ver as conexões existentes entre os métodos e objetivos declarados do pesquisador e as modalidades concretas de ordenamento dos processos interativos por ele utilizadas; servindo-se por fim das vozes nativas (sejam essas resultante de um outro trabalho de campo, sejam essas contidas de maneira marginal na própria etnografia considerada) resgata-se a dimensão das escolhas nativas, mostrando como os discursos e atitudes desses decorrem igualmente de avaliações que realizam

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face ao trabalho do etnógrafo, bem como das estratégias adaptativas que nessas circunstâncias puderam elaborar face a um processo dirigido de interação.

O ANTROPÓLOGO COMO INQUISIDOR

Em capítulos anteriores já foram identificadas as estratégias maiores presentes na realização do trabalho de Paraíso (1994); caberia complementar buscando como se dá a nível da própria narrativa a construção de seus personagens. O texto de autoria de Paraíso sugere ao leitor uma atitude de permanente suspeita face aos seus interlocutores Kaxixó. A impressão que passa é de forte desconfiança, tanto quanto à veracidade dos fatos relatados quanto à própria consistência lógica do discurso. O adjetivo “confuso” é repetido diversas vezes, sendo inclusive aplicado ao depoimento do seu Djalma como um todo (“é uma narrativa confusa, com alguns pontos que nos parecem extremamente estranhos” – p.12).

A seguir Paraíso estranha a precisão com que é indicado o ano (1601) da expedição de André de Leão e Glimmer, a primeira a penetrar na região; em uma descrição de combates entre índios e bandeirantes ela questiona a “estranha precisão” da referência a “cinco” enfrentamentos; face à menção a um personagem histórico específico, Paraíso faz igualmente um outro comentário crítico: “(também desconhecemos grupos que identifiquem com tanta clareza um personagem tão distante, no tempo, como Antônio Taques de Taubaté, sem que ele tenha tido uma relação direta com a trajetória do grupo)”.

Paraíso indica ainda uma “contradição” entre a afirmativa de que os “gentios” (da hoje Fazenda Crisciúma) e os “índios caboclos” (da hoje Várzea do Galinheiro) eram “unidos” e disso extrai a conclusão de que eram “grupos distintos” (p. 13).

Na realidade tais fatos não poderiam de forma alguma lançar uma suspeição de princípio sobre a memória histórica dos Kaxixó, mas sim sobre as inadequadas condições de realização de uma pesquisa antropológica. Desde 1986, quando em uma reunião com sindicalistas haviam formulado pela primeira vez publicamente a sua condição de indígenas, os Kaxixó têm mantido contato com dezenas de pesquisadores, advogados, indigenistas, entre outros, que lhes propiciaram acesso a livros e documentos sobre a história da região. Diversos membros da comunidade têm também uma educação letrada, que lhes permite acompanhar e conhecer grande parte das

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discussões havidas nos últimos anos sobre a origem dos Kaxixó. Não pode causar estranheza portanto que datas e fatos da historiografia tenham sido incorporadas aos relatos orais, que freqüentemente são ouvidos (e também ditos) por pessoas que não

partilham apenas do universo da oralidade.

O recurso à repetição é um instrumento freqüente de geração adicional de sentido nos mitos e nos contos populares, o narrador mantendo pleno controle sobre o número de provas e as características de cada uma delas. Também a riqueza da enunciação (salientando em cada caso aspectos distintos) permite que um mesmo grupo seja ora apresentado como uno, ora como distinto. O que é sugerido como fraudulento ou ilógico resulta da tentativa de imposição de uma leitura arbitrária e exterior, que tropeça nos instrumentos e figuras de retórica, desconhecendo que está lidando com narrativas.

É fundamental atentar ainda para um fato insólito - as avaliações acima realizadas sobre a narrativa de seu Djalma não procedem de uma interlocução ocorrida no trabalho de campo, mas resultam de uma fita gravada por outros pesquisadores em uma data e contexto não especificado no laudo – “o depoimento de Djalma de Oliveira, gravado por Geralda Soares, do CEDEFES (...) (p. 12). Tão somente ouvindo uma fita gravada por outrem e em condições não conhecidas, a pesquisadora não tinha qualquer condição de esclarecer suas dúvidas e dialogar com o narrador. Nessas circunstâncias é a caracterização do relato como “confuso” que soa como apressada e leviana.

Para caracterizar melhor a situação etnográfica é preciso ouvir o relato dos Kaxixó sobre a visita da antropóloga. “Ela veio com uma outra pessoa aí. É antropóloga, né ? Naquele tempo com ela foi muito difícil, compreendia pouco as perguntas. Eu falava de um jeito e ela fazendo de outro. Ela fez muita pressão aí na gente. Fazia pressão de um jeito que a gente compreendia pouco, não entendia direito.” (Pedro , entrevista junto com a esposa, casa do Zezinho, 25-01-2001). “Não foi assim como a gente vê na televisão, quando vem um lá do governo, o Fernando Henrique, os políticos, que chega com foguete, para visitar. `Vamos vê o povão!´. Não é igual a Maria Hilda, não. Ela chegou aqui como quem está procurando um ladrão” (Seu Djalma, em sua casa, Capão do Zezinho, 25-01-2001). “Ela chegou aqui muito braba. Era uma brabeza só!” (Marilda, reunião na escola, Capão do Zezinho, 25-01-2001).

Além do registro feito por todos sobre a brevidade da visita (algumas horas, como já foi dito anteriormente), o mais repetido era sobre a dificuldade de comunicação, seguido pela sensação de imposição e suspeita. “Ela trabalhou como um

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delegado, que vem atrás de um ladrão. Foi igual a um delegado, que veio aqui atrás de um ladrão, que roubou o nosso tio, lá do outro lado do rio” (Seu Djalma, reunião na escola, Capão do Zezinho, 25-01-2001).

É de supor que em sua fala de apresentação, no intuito de mostrar a complexidade de uma perícia, a antropóloga tenha usado para descrever o seu trabalho a imagem de “advogado do diabo”. Isso transparece em descrições da comunidade sobre o início da reunião com a antropóloga: “Eu sou o advogado do diabo, agora os diabinhos vão ter que falar. Eu quero saber quem que vai vestir a camisa de índio?” (Seu Djalma, reunião na escola, 25-01-2001). O resultado foi devastador em uma comunidade muito católica, onde as pessoas não mencionam o nome do demônio e evitam referir-se abertamente às entidades malfazejas. “Ela não era o capeta não, ela era o demônio contra os capetas” (Cristina, casa de Zezinho, 26-01-2001).

Na última entrevista realizada com Zezinho, em sua casa, o tema do laudo voltou à baila, tendo ele feito o seguinte paralelo: “porque ela chegava e ao invés de falar, ouvir nós, conversar – como vocês, que fala, conversa, escuta – ela foi logo dizendo: Eu não tenho nada que contar, não! O senhor é que tem que contar prá eu!´ Aí você vai falar o quê?” (Zezinho, 26-01-2001).

Os questionamentos diretos e a velocidade com que eram conduzidas as conversas, agravados pelos problemas de comunicação, acabaram por gerar tensões e mesmo acusações dentro da comunidade. “Chegava um e ela logo dizia: ´Agora você que vai dar a notícia`. `Mas notícia de quê?´ Tanta coisa que ela perguntava, eu não entendia. ´Eu não sei como é essa história de aldeia, de tribo´. Foi aí que eu falei assim... (Geni, reunião com a comunidade, 25-01-2001). Voltando-se para o líder da comunidade, complementa com um desabafo irônico: “O Djalma diz que fui eu que pus o caso a perder” (idem).

A desconfiança mútua parece ter sido a tônica dessa relação entre antropóloga e comunidade, pois a própria antropóloga menciona as resistências e perplexidades de seu Djalma – achando que devia “dar outras informações e dados que não aqueles que eu estava solicitando” (Paraíso, 1994, p. 14); em lugar de alterar suas estratégias de pesquisa, ela conclui estar diante de um depoimento manipulado, que teria sido “instruído” por terceiros (p. 14).

Em um texto escrito anteriormente Paraíso faz uma analogia entre o trabalho do antropólogo envolvido em uma perícia e aquele do detetive. “Então o nosso trabalho termina sendo, também, um pouco o de um detetive, onde a intuição aliada à leitura

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sistemática de todos os documentos que nos chegam às mãos terminam por nos permitir entender o processo de invasão das terras indígenas” (Paraíso, 1994b, p.51). Essa singular percepção da natureza da atividade científica poderia até mesmo receber uma leitura positiva, evocando por exemplo Ginsburg (1989a) ao apontar o “paradigma indiciário” como uma alternativa para a pesquisa histórica.

A intenção de que essa atitude “detetivesca” – exercida, diz a autora, em proveito dos indígenas (para descrever as “invasões das terras indígenas”) - devesse presidir a investigação histórica, termina por ser paradoxalmente invertida nas frases finais do último parágrafo do texto acima citado. “O que procuramos fazer ao elaborar um Laudo é documentar ao máximo as nossas afirmativas. Reproduzir documentos, mapas e todas aquelas provas documentais que possam comprovar a veracidade das nossas afirmativas para que não possamos vir a ser acusados de idealistas, comprometidos, loucos vítimas de pesadelos” (idem, p. 51). É como se o pesquisador imperceptivelmente mudasse de papel nessa trama, passando de investigador à condição de um réu virtual, sobre o qual muitas suspeitas e acusações poderão incidir, enquanto simultaneamente os informantes tornam-se suspeitos.

Há um componente curioso na descrição dos Kaxixó sobre o comportamento da antropóloga, contrastando com a “brabeza” que lhe é unanimemente atribuída. Fala seu Djalma: “A Maria Hilda tava com medo de ser morta”. Pergunta do entrevistador: “ É ?” Resposta de seu Djalma: “É. Ela falou para mim, que esse negócio de laudo era muito perigoso. Uma vez, ela tava lá na Bahia, não sei onde, quando ela foi descer do avião já tava lá a Polícia para matar ela. Era os fazendeiros que tinham marcado isso pra ela. Aí teve que andar depressa e voltar pra Brasília na mesma hora, no mesmo avião. Então é por isso que ela tinha medo” (Djalma, Capão do Zezinho, 26-01-2001). Também em conversa com Zezinho ela falou sobre outros laudos que fizera e das “perseguições dos fazendeiros”. Essa preocupação com a penalização do perito também transparece no próprio laudo kaxixó (p.3 e 4), como já havíamos comentado, só que limitado à esfera legal.

A situação de tensão, aliada à dificuldade em encontrar documentação escrita comprovatória sobre identidade e território Kaxixó, parece haver feito Paraíso transplantar o método detetivesco da pesquisa com documentos para o plano da antropologia, passando a nortear por ele a sua atuação em campo.

O que ainda haveria a provar com um trabalho de campo ? O reconhecimento dos Kaxixó como indígena já havia sido inviabilizado pelo insucesso da pesquisa

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documental realizada anteriormente e ainda que a sua “tradição oral” pudesse ser rica e consistente, não haveria como comprová-la pelo cruzamento de fontes escritas. Do ponto de vista de resultados práticos a ida ao campo seria quase uma mera formalidade, pois de qualquer modo não poderia transformar o laudo em um parecer positivo; uma solução administrativa teria que ser buscada em outra direção (a via das indenizações como descendentes de escravos).

É impossível não lembrar aqui da provocativa analogia que estabelece Ginsburg (1989b) entre a figura do antropólogo e a do inquisidor. As “confissões” que o antropólogo busca em seu trabalho de campo são interpretações “iluminadas” da realidade vivida pelo seu outro (os “nativos”), seja pela capacidade heurística ou pela exemplaridade dessas interpretações. Não podem jamais ser equiparadas à comprovação de culpas ou ao desvendamento de manifestações sociais (tidas a priori como simulações). Mais que detetivesca a relação de Paraíso com os seus depoentes Kaxixó é

inquisitorial, subtraindo-lhes qualquer resíduo de verdade e contrapondo-os às provas

documentais e as suas observações diretas.

O inquérito – qualquer quer seja seu resultado –e além de criar uma visão muito negativa sobre os inquisidores, termina por traumatizar e desvalorizar as suas próprias vítimas. Seu Djalma ao início de nossa conversa foi peremptório: “Maria Hilda disse que eu era confuso, escreveu isso no laudo. É melhor não falar comigo, que eu não quero atrapalhar nada” (Seu Djalma, casa do Zezinho, 25-01-2001).

Ainda que em uma comunidade muito religiosa as críticas pessoais sejam evitadas, recai sobre os antropólogos uma avaliação bastante negativa. “Achei ela uma boa pessoa (...) Agora esse negócio de antropólogo, ela não fazia a coisa certa” (Pedro, 25-01-2001). Vanessa Caldeira em uma entrevista concedida no CEDEFES, em 23-01-2001, lembrava de seu primeiro encontro, em Brasília, com uma delegação de Kaxixó, que foi cercado de desconfiança pelo fato de ela haver se apresentado a eles como “antropóloga”.

OUTRAS CONDIÇÕES PARA O TRABALHO ETNOGRÁFICO

Quais foram os fatores determinantes da produção de outras bases de dados etnográficos disponíveis sobre os Kaxixó ? Ou seja, quais foram as situações etnográficas das quais resultaram esses trabalhos ? Estamos em realidade falando do laudo elaborado por Ana Flávia Moreira da Santos (Santos, 1999) e do levantamento

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realizado pelo CEDEFES/ANAÍ, do qual resultou a publicação Kaxixó: Quem é esse

povo? (1999), ambos realizando os seus trabalhos de campo durante o ano de 1998.

Cabe mencionar primeiro o trabalho realizado pela equipe CEDEFES/ANAÍ, pois seu início (fevereiro e março de 1998) antecedeu a perícia ambiental (abril de 1998) e sua conclusão e publicação (janeiro de 1999) também precedeu em vários meses a apresentação do laudo de Santos (novembro de 1999). Isso inclusive possibilitou que os resultados da pesquisa CEDEFES/ANAÍ chegassem ao conhecimento de Santos e pudessem ser utilizados na elaboração de seu laudo.

A sua origem foi uma solicitação dos Kaxixó ao CEDEFES, feita em 1997, para que os auxiliassem a reunir e divulgar os seus relatos sobre o passado. Contando com recursos limitados, uma equipe de quatro pesquisadores em história, antropologia e arqueologia , realizou seis visitas à comunidade Kaxixó durante o ano de 1998, ali permanecendo de cada vez por um período de três dias. Durante esses períodos em campo foram realizadas muitas entrevistas e observação participante.

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Na formulação da equipe o texto que resultou não foi nem um laudo nem uma dissertação, mas sim algo muito despretensioso, redigido em linguagem simples, “um apanhado da nossa história”, que pudesse informar ao grande público sobre o que são e o que pensam os Kaxixó. Apesar dessa modéstia12 é importante observar que o trabalho, executado por profissionais bastante experientes e todos igualmente com inserção ou formação acadêmica, fornece grande parte dos dados necessários a uma etnografia básica dos Kaxixó, contendo mapas, genealogias, um censo por casas e famílias, informações sobre a vida econômica e as múltiplas esferas da vida social, bem como transcreve narrativas orais, descreve algumas situações sociais e reproduz muitos documentos relevantes para a compreensão dessa população. O trabalho (77 p. e 11 anexos) tem grande importância e contribuiu bastante para esclarecer a história e os projetos dos Kaxixó em relação ao seu próprio futuro.

Por sua vez o laudo de Santos (1999) começou com uma perícia ambiental, motivada por denúncia realizada por Jerry Adriane de Jesus à Procuradoria da República no estado de Minas Gerais no ano de 1997 sobre os prejuízos que desmatamentos procedidos por uma empresa (Agropéu) estariam causando à sítios arqueológicos e a fauna local. A equipe encarregada desse trabalho foi composta por um arqueólogo, um engenheiro-florestal e duas antropólogas da PGR. A perícia ambiental e a visita a três sítios arqueológicos foi realizada em uma primeira visita, em 03-04-1998; em uma segunda fase, apenas com a participação dos peritos em antropologia e arqueologia, foram feitas, em um período de quatro dias (05 a 08-05-1998) entrevistas e visitados outros cinco sítios apontados pelos Kaxixó.

A razão da presença de Ana Flávia Moreira Santos (que havia concluído recentemente um trabalho acadêmico sobre indígenas do estado de Minas Gerais, a dissertação de mestrado em Antropologia Social intitulada Do terreno dos caboclos do

Sr. João à Terra Indígena Xakriabá: as circunstâncias da formação de um povo. Um estudo sobre a construção social de fronteiras, defendida na Universidade de Brasília,

1997) na equipe se devia à investigação não dos prejuízos arqueológicos ou ambientais, tarefas assumidas por outros técnicos, mas sim ao interesse da PGR em investigar o contexto em que a denúncia se inseria, incluindo a relação que aquela população

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Trata-se de fato de uma forma de escrita antropológica que busca valorizar ao máximo as vozes nativas e a polifonia, opção narrativa que não se aproxima de um “dossiê” (a suposta similaridade decorreria apenas da quantidade de documentos reproduzidos em anexos), nem tão pouco de “uma produção dos próprios indígenas” (pois inclui um complexo trabalho de pesquisa, seleção, edição e compatibilização dessas múltiplas vozes em um texto único).

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mantinha com os sítios arqueológicos e as condutas sociais prevalecentes na região, incluindo as relações entre índios e não-índios (Santos, 1999, p.2).

Posteriormente devido a um requerimento do mesmo Jerry Adriane de Jesus, acatado pela PGR/MG, o objeto do estudo foi ampliado, passando a ser a própria etnicidade Kaxixó. Por solicitação expressa do Procurador Álvaro Ricardo de Souza Cruz o estudo deveria incluir “uma análise detalhada” do laudo de Paraíso,1994.

Em que medida essas condições de pesquisa diferem daquelas do laudo realizado por Paraíso ? Ainda que em um primeiro momento haja uma similaridade entre a situação etnográfica de Santos e aquela dos grupos de trabalho interdisciplinares para identificação de terras, isso não mais ocorre na etapa seguinte, em que a antropóloga pode dedicar-se a suas atividades específicas de investigação.

Duas diferenças bem mais importantes devem ser ressaltadas. Uma, de que o ritmo e as finalidades do trabalho estão mais claramente associadas a uma perícia – onde é central a atividade de produzir dados – e não a um estudo que é simultâneo à tomada de decisões sobre uma questão muito disputada (como a definição dos limites das terras indígenas) e que implica em complexas gestões políticas junto aos regionais e a instâncias de governo.

A segunda, que o material etnográfico que resultou desse período de trabalho de campo não foi o único que subsidiou a elaboração do texto, tendo sido complementada por freqüentes contatos que, ao longo de quase dezoito meses, puderam corrigir, esclarecer ou ampliar aquela base anterior de dados. “Ao longo de todo o período de elaboração do trabalho mantive contato freqüente com os Kaxixó, por telefone ou pessoalmente, na figura de Jerry Adriane e Djalma Vicente de Oliveira (cacique), ocasiões em que tive oportunidade de esclarecer dúvidas surgidas durante a preparação deste relatório” (Santos, 1999, p. 3).

Menos que uma questão quantitativa (ter maior número de dias em campo), o contraste nas condições de pesquisa entre Paraíso (1994) e Santos (1999) é qualitativo implicando na criação de um espaço de escuta (ao invés das perguntas diretas, respondidas com simples afirmativas e negativas) e na possibilidade de uma

interlocução mais continuadas28 (os contatos posteriores ao trabalho de campo). Na

visão da comunidade do Capão do Zezinho os contatos com a pesquisadora também transcorreram calmamente, sem notícia de atritos ou apreensões suscitados pela pesquisa antropológica.

Referências

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