O MITO NA POESIA LÍRICA CORAL DE PIND ARO
VOUUJL UALHAVAS*
Os epinícios c o n s t i t u e m o que se c o n v e c i o n a chamar de p o e s i a de circunstância, p o r serem odes a vitórias em c o n c u r s o s atléticos. A Olímpi c a I , que examinamos como exemplo n e s t a comunica ção, c e l e b r a a vitória de Hierão, t i r a n o de S i r a cusa, numa c o r r i d a de c a v a l o s , em Olímpia, em 473 a.C.
Se p o r se d e s t i n a r a esse t i p o de comemora ção, o epinício é de circunstância, a composição de Píndaro, como a f i r m a J a c q u e l i n e de R o m i l l y
( 4 , p. 98) o t o r n a "completamente d i f e r e n t e " des t e gênero de p o e s i a . De f a t o , em nenhuma ode, Píndaro se detém nos f e i t o s , nem na v i d a do ven c e d o r . Apenas s i t u a o vencedor e menciona o f e i . t o r a p i d a m e n t e . V e j a - s e na Olímpica I : r e f e r e - s e a Hierão como a q u e l e que "Da justiça ... detém o c e t r o na fecunda Sicília" e como t i r a n o v i r t u o s o e amante das a r t e s ( v . 1 2 - 1 7 ) ; em s e g u i d a , passa ao desempenho do c a v a l o Ferênicos "quando, às margens do A l f e u , seu c o r p o se p r e c i p i t o u ,
lançando-se na p i s t a sem s e r e s p o r e a d o , e ã vitó r i a c o n d u z i u seu dono, de S i r a c u s a o r e i cavale_i r o " ( v . 2 0 - 2 3 ) . Numa ode de 116 v e r s o s , apenas o i t o v e r s o s p a r a o v e n c e d o r e a c o r r i d a .
Como d i z a i n d a J a c q u e l i n e de R o m i l l y (4,58) Píndaro está preocupado com o s i g n i f i c a d o do fejL t o p a r a o homem. Para a t i n g i r o s i g n i f i c a d o , r e c o r r e a um m i t o , e s c o l h i d o , sem dúvida, de a c o r do com as circunstâncias: posição e c i d a d e do v e n c e d o r , l o c a l do c o n c u r s o , t i p o de j o g o . Chega ao m i t o p a r t i n d o de uma expressão da circunstân c i a . Na Olímpica I , ao se r e f e r i r ã glória que Hierão c o n q u i s t o u em Olímpia, onde se deu a c o r r i d a , d i z : "Na ... colônia do lídio Pélope". Ê a s s i m que se f a z a transição p a r a o m i t o d e s t e herói.
0 m i t o não é uma n a r r a t i v a c r i s t a l i z a d a . Aristóteles, quando o r i e n t a o p o e t a trágico p a r a que s e j a f a b u l a d o r , d i z expressamente que "não é
necessário s e g u i r à r i s c a os m i t o s tradició n a i s " . (1) (1451 b - 2 4 ) . A c r e s c e n t a até que que
" s e r i a ridícula t a l f i d e l i d a d e " (1) (1451 b - 2 5 ) . É e v i d e n t e que c e r t o s dados da tradição não po dem s e r a l t e r a d o s , como o próprio Aristóteles a d v e r t e e e x e m p l i f i c a : C l i t e m n e s t r a não pode dei^ x a r de s e r a s s a s s i n a d a p e l o f i l h o (1) (1453
b - 2 1 ) . Constatamos, no e n t a n t o , que, em Ésquilo e em Sõfocles, O r e s t e s a mata no palácio e, em Eurípides, na cabana de E l e c t r a .
0 p o e t a é um sophõs, um sábio ( v . 9 ) , que, na concepção aristocrática de Píndaro, é a q u e l e que tem s a b e d o r i a " p o r n a t u r e z a " , como e x p r e s s a na Olímpica I I :
"... sábio é o homem
que muito sabe por natureza.
Os que, pelo contrário, tiverem de aprender, violentos
na sua loquacidade, como corvos em vao lançam sua voz
contra o divino pássaro de Zeus" (v. 94-97)
0 p o e t a , como Píndaro, é "sábio de nascimen t o " , na tradução f e l i z de J a c q u e l i n e Duchemin, que i n t e r p r e t a , a i n d a , o " e i d o s phuái", como "um i m p u l s o v i t a l , uma germinação de c o n h e c i m e n t o " .
( 2 , p. 3 6 - 3 7 ) . Não é um c o n h e c i m e n t o , p o r t a n t o , que depende de um a p r e n d i z a d o , de informações de f o r a .
Esse p o e t a sophõs sabe l e r c r i t i c a m e n t e os m i t o s , d i s t i n g u i r da verdade as i n v e n c i o n i c e s :
"os m i t o s , com i n v e n c i o n i c e s que enganam, s ã o e l a b o r a d o s . A G r a ç a , que todas as c o i s a s a g r a d á v e i s engendra para os m o r t a i s , t r a z e n d o - l h e s honra, também o i n c r í v e l f a z s e r c r í v e l muitas vezes" (v. 29-32)
Para t r a n s m i t i r a inspiração de C h a r i s , sem engano, o p o e t a sabe que
" C o n v é m ao homem
d i z e r dos deuses c o i s a s b e l a s , p o i s menor é a censura"
(v. 35)
É com e s t e saber que Píndaro m o d i f i c a o m i t o de Pélope, começando j u s t a m e n t e p o r d i z e r :
" F i l h o de T â n t a l o , de t i de modo d i f e r e n t e de meus p r e d e c e s s o r e s f a l a r e i "
(v. 36)
Segundo Píndaro, a versão t r a d i c i o n a l do m i t o - a dos p r e d e c e s s o r e s - é pouco r e s p e i t o s a com os deuses. Por e l a , a h y b r i s de Tântalo en v o l v i a os deuses num banquete em que f o r a m a n t r o
pófagos e a i n d a p o r cima glutões, p o i s comeram Pélope como um p r a t o que se a c r e s c e n t o u a o u t r o s m a n j a r e s ( v . 4 6 - 5 2 ) .
Píndaro p r e f e r e a versão do amor: numa f e s t a que Tântalo o f e r e c e u aos deuses em r e t r i b u i ção, Posidão se enamorou de Pélope e o r a p t o u , l e v a n d o - o p a r a o Olimpo ( v . 3 7 - 4 2 ) . E l a não ex c l u i a h y b r i s de Tântalo, mas não d e n i g r e os deu ses.
Tântalo não s e r v i r a o f i l h o como refeição aos deuses - a f e s t a f o r a " p e r f e i t a " ( v . 38)
e, p o r t a n t o , não p o r i s s o f o r a condenado, mas "porque, dos i m o r t a i s t e n d o roubado, p a r a seus s e m e l h a n t e s , c o n v i v a s seus, s e r v i u o néctar e a ambrosia com que em i m o r t a l o haviam t r a n s f o r m a do" ( v . 6 0 - 6 4 ) .
No início do século V a . C , Píndaro r e c u s a c e r t o s dados da tradição mítica, compondo se gundo sua s a b e d o r i a .
Essa tradição literária de a l t e r a r m i t o s c e r t a m e n t e remonta a séculos a n t e r i o r e s , a pró p r i a composição mítica o r a l , e se e s t e n d e até h o j e , sempre conforme a s a b e d o r i a de cada p o e t a ou crenças e i d e o l o g i a s .
A i n d a no século V a.C. temos vários exem p i o s de modificações na tragédia g r e g a , como as
que se v e r i f i c a m nas composições de Ésquilo e Eurípedes baseadas no m i t o de O r e s t e s - E l e c t r a
(Coroneu, ElzctAa) a que já nos r e f e r i m o s .
E p a r a chegar mais p e r t o de nós, a Antigo m de A n o u i l h pode manter o édito de C r e o n t e e a resistência de Antígona da Tragédia de Sõfocles, mas uma f i l o s o f i a d i f e r e n t e n o r t e i a a composi,
ção. De t a l modo m o d i f i c a - s e o m i t o que, basean do-nos na t e o r i a de A l b i n L e s k y , enquanto em Sófocles se compõe um c o n f l i t o trágico c e r r a d o , em A n o u i l h se e v i d e n c i a uma visão c e r r a d a m e n t e trágica do mundo ( 3 ) .
F a l a - s e em permanência do m i t o na l i t e r a t u r a , do m i t o que e x p r e s s a p a r a o homem o s i g n i f i _ cado de t o d o s os f e i t o s , mesmo os atléticos. P r o v a v e l m e n t e o m i t o permaneça graças a essa dinâm_i ca da l i t e r a t u r a que v e r t e os m i t o s de geração em geração, segundo a s a b e d o r i a do p o e t a ou se gundo sua i d e o l o g i a .
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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