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Depois do Gelo

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Academic year: 2021

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DEPOIS DO GELO

Uma História Humana Global

20000 - 5000 a.C.

Steven Mithen

Tradução

Marcos Santarrita

IMAGO

(3)

SUMÁRIO

Prefácio 7 O COMEÇO

1.O Nascimento da História 17

Aquecimento global, indícios arqueológicos e história humana

2.O Mundo em 20000 a.C. 22

Evolução humana, causas de mudança do clima e a datação por radiocarbono

ÁSIA OCIDENTAL

3.Fogos e Flores 35

Caçadores-coletores e a estepe florestal, 20000-12300 a.C.

4.Vida na Aldeia na Floresta de Carvalhos 45

Primeiras comunidades caçadoras-coletoras natufianas, 12300-10800 a.C.

5.Nas Margens do Eufrates 56

Abu Hureyra e o surgimento do sedentarismo dos caçadores-coletores, 12300-10800 a.C.

6. Mil Anos de Seca 62

Economia e sociedade durante o Jovem Dryas 10800-9600 a.C.

7.A Fundação de Jericó 72

Arquitetura neolítica, enterro e tecnologia do vale do Jordão, 9600-8500 a.C.

8.Pictogramas e Colunas 78

Ideologia, simbolismo e comércio neolíticos, 9600-8500 a.C.

9.No Vale dos Corvos 88

Arquitetura, têxteis e domesticação de animais, 8500-7500 a.C.

10. A Cidade dos Espectros 96

Ritual, religião e colapso econômico, 7500-6300 a.C.

11.Céu e Inferno em Çatalhöyük 105

Florescimento do neolítico na Turquia, 9000-7000 a.C.

12. Três Dias em Chipre 114

Extinções, colonização e estase cultural, 20000-6000 a.C.

EUROPA

13. Pioneiros nas Terras do Norte 129

A recolonização do noroeste da Europa, 20000-12700 a.C.

14. Com Caçadores de Renas 142

Economia, tecnologia e sociedade, 12700-9600 a.C.

15. Em Star Carr 154

Adaptações às primeiras florestas do Holoceno no norte da Europa 9600-8500 a.C.

16. Os Últimos dos Pintores das Cavernas 163

Mudança econômica, social e cultural no sul da Europa, 9600-8500 a.C.

17. Catástrofe Litorânea 171

Mudança do nível do mar e suas consequências, 10500-6400 a.C.

18. Duas Aldeias no Sudeste da Europa 179

Caçadores-coletores sedentários e agricultores imigrantes, 6500-6200 a.C.

19. As Ilhas dos Mortos 189

(4)

20. Na Fronteira 200

A disseminação da agricultura na Europa Central e seu impacto na sociedade mesolítica, 6000-4400 a.C.

21. Um Legado Mesolítico 210

O neolítico no sul da Europa, 6000-4000 a.C.; debates de linguística e genética históricas

22. Um Enviado Escocês 219

Colonização, estilos de vida mesolíticos e a transição para o neolítico no oeste da Escócia, 20000-4300 a.C.

AS AMÉRICAS

23. Em Busca dos Primeiros Americanos 235

A descoberta de colonização da era do gelo, 1927-1994 d.C.

24. O Passado Americano no Presente 246

Testemunho dentário, linguístico, genético e esquelético para o povoamento das Américas

25. Nas Margens do Chinchihuapi 254

Escavação e interpretação de Monte Verde, 1977-1997 d.C., 12500 a.C.

26. Exploradores numa Paisagem Agitada 261

Fauna, evolução da paisagem e colonização humana norte-americanas, 20000-11500 a.C.

27. Caçadores Clovis em Julgamento 272

Extinção da megafauna e estilos de vida Clovis, 11500-10000 a.C.

28. Virgindade Reconsiderada 284

Caçadores-coletores da Terra do Fogo e no Amazonas 11500-6000 a.C.

29. Pastores e o "Menino Jesus" 292

Domesticação animal e vegetal nos Andes, e forrageiros litorâneos, 10500-5000 a.C.

30. Um Duplo Olhar ao Vale de Oaxaca 300

A domesticação de milho, abóbora e feijões no México, 10500-5000 a.C.

31. Rumo a Koster 312

Estilos de vida caçadora-coletora na América do Norte, 7000-5000 a.C.

32. A Pesca do Salmão e a Dádiva da História 322

Complexos caçadores-coletores da costa noroeste, 6000-5000 a.C.

A GRANDE AUSTRÁLIA E O LESTE ASIÁTICO

33. Revelação de um Novo Mundo 331

Caçadores-coletores tasmanianos, 20000-6000 a.C.

34. Escultura Corporal no Pântano Kow 339

Enterro e sociedade no sudoeste da Austrália, 14000-6000 a.C., e extinções da megafauna

35. A Travessia do Árido Deserto 346

Adaptações dos caçadores-coletores ao Deserto Central Australiano, 30000 a.C-1966 d.C.

36.Combatentes e o Nascimento de uma Serpente 354

Arte, sociedade e ideologia no norte da Austrália, 13000-6000 a.C.

37. Porcos e Pomares nas Montanhas 364

A criação da horticultura tropical nas montanhas da Nova Guiné, 20000-5000 a.C.

38.Solitário em Sundaland 375

Caçadores-coletores nas florestas tropicais do sudeste asiático, 20000-5000 a.C.

39. Yangtsé Abaixo 386

A origem do cultivo do arroz, 11500-6500 a.C.

40. Com o Jomon 398

Complexos caçadores-coletores no Japão e a mais antiga cerâmica, 14500-6000 a.C.

41. Verão no Ártico 410

(5)

SUL DA ÁSIA

42. Passagem pela Índia 427

Arte rupestre indiana e aldeias na planície do Ganges, 200000-85000 a.C.

43. Uma Caminhada Pelo Hindu Kush 438

Agricultura inicial no sul e centro da Ásia; a domesticação do algodão, 7500-5000 a.C.

44. Abutres das Zagros 451

As raízes da civilização mesopotâmia, 11000-9000 a.C.

45. Surge a Civilização na Mesopotâmia 461

O desenvolvimento das cidades e do comércio, 8500-6000 a.C.

ÁFRICA

46. Peixe Assado à Margem do Nilo 475

Caçadores-coletores do norte da África e do vale do Nilo, 20000-11000 a.C.

47. Na Colina Lukenya 486

O desenvolvimento das paisagens e faunas do leste africano após 20000 a.C.

48.Patas de Rã e Ovos de Avestruz 495

Caçadores-coletores no deserto de Kalahari, 12500 a.C.

49.Uma Excursão pelo Sul da África 502

Mudanças ambientais, dieta e vida social, 12500-7000 a.C.

50. Raios nos Trópicos 516

Caçadores-coletores na África Central e Ocidental; mudança ambiental na África Oriental, 7000-5000 a.C.

51. Carneiro e Gado no Saara 523

O desenvolvimento do pastoralismo no norte da África, 9600-5000 a.C.

52. Agricultores no vale do Nilo e Além 532

A chegada da agricultura de cereais ao norte da África, 55000-4000 a.C.

Epílogo: "A Bênção da Civilização" 537

(6)

PREFÁCIO

Este livro é uma história do mundo entre 20000 e 5000 a.C. Foi escrito para aqueles que gostam de pensar no passado e desejam saber mais sobre as origens da agricultura, das cidades e da civilização. E também para os que pensam no futuro. O período em discussão foi o de aquecimento global, durante o qual surgiram novos tipos de plantas e animais — espécies domésticas que sustentaram a revolução agrícola. Essas novas variantes genéticas de espécies selvagens têm uma incrível ressonância com os organismos geneticamente modificados que hoje se fabricam, enquanto o aquecimento global também recomeçou. Aqueles que se preocupam com o impacto com a maneira como os OGMs (Organismo Geneticamente Modificado) e a mudança do clima afetarão nosso mundo talvez desejem saber como novos tipos de espécies e aquecimento global já afetaram nosso passado.

Por si só, o passado é digno de estudo independente de qualquer lição que encerre para os dias atuais. Este livro faz as simples perguntas sobre a história humana: o que aconteceu, quando, onde e por quê? Oferece respostas entremeando uma narrativa histórica com argumentos causais. Ao fazê-lo, atende também aos leitores que perguntarão: "como sabemos disso?" — muitas vezes uma pergunta muito apropriada quando os indícios arqueológicos parecem tão escassos. E Depois do Gelo faz outro tipo de pergunta sobre o passado: como era viver em tempos pré-históricos? Qual era a experiência do dia-a-dia daqueles que viveram o aquecimento global, uma revolução agrícola e a origem da civilização?

Tentei escrever um livro que torne acessível a um vasto público os indícios da pré-história, mantendo ao mesmo tempo os mais altos níveis de erudição acadêmica. A popularização da arqueologia na TV e em muitos livros recentes às vezes adota uma atitude condescendente para com seus espectadores e leitores, oferecendo versões superficiais e imprecisas de nosso passado. Por outro lado, muitos dos fatos mais notáveis da pré-história permanecem ocultos de todos, com exceção de uns poucos acadêmicos e leitores especializados em obras eruditas, de prosa impenetrável e carregada de jargão. Tentei tornar o conhecimento arqueológico mais facilmente disponível, atendendo também aos que desejam avaliar criticamente minhas afirmações e empreender maiores estudos eles próprios. Para isso, incluí uma abrangente bibliografia e extensas notas de rodapé que especificam fontes primárias, discutem questões técnicas e oferecem opiniões alternativas. Há, porém, extra-opcionais: meu principal objetivo foi produzir uma "boa leitura" sobre um espantoso período da história humana.

Este não foi um livro fácil de escrever. Tendo começado o trabalho há vários anos, a composição seguiu aos arrancos, devido às exigências da vida acadêmica e familiar. Novos temas viviam surgindo: a história do pensamento acadêmico, a (im)possibilidade de compreender outras culturas, a viagem como metáfora para leitura e escavação. O fato de ter podido completar Depois do Gelo deveu-se apenas ao apoio generoso da família, amigos e colegas.

Como se baseia na pesquisa e no ensino feitos na última década, devo inicialmente agradecer a meus colegas do Departamento de Arqueologia da Universidade de Reading, por proporcionarem um ambiente estimulante e solidário durante todo esse tempo. Desses colegas, sou particularmente grato a Martin Bell, Richard Bradley, Bob Chapman, Petra Dark, Roberta Gilchrist, Sturt Manning e Wendy Matthews, que responderam a perguntas específicas ou forneceram opiniões pertinentes. Também sou grato a Margaret Matthews, por seus conselhos e ajuda na preparação das ilustrações em cores, e a Teresa Hocking, pelo meticuloso cuidado na verificação do meu texto. O departamento

(7)

de empréstimos interbibliotecas da Biblioteca da Universidade merece especial agradecimento por atender com tanta eficiência aos meus copiosos pedidos.

Vali-me muitíssimo da bondade de arqueólogos de todo o mundo, que me forneceram conselhos, trabalhos inéditos, excursões em suas escavações e visitas a sítios arqueológicos. Além dos mencionados acima, gostaria de agradecer em particular a Soren Andersen, Ofer Bar-Yosef, Bishnupriya Basak, Anna Belfer-Cohen, Peter Rowley-Conwy, Richard Crosgrove, Bill Finlayson, Dorian Fuller, Andy Garrard, Avi Gopher, Nigel Goring-Morris, David Harris, Gordon Hillman, Ian Kuijt, Lars Larsson, Paul Martin, Roger Matthews, Edgar Peltenburg, Klaus Schmidt, Alan Simmons, C. Vance Haynes e Trevor Watkins.

Outros responderam generosamente a perguntas específicas — muitas das quais acabei sendo incapaz de usar. E assim gostaria de agradecer a Douglas Anderson, Françoise Audouze, Graeme Barker, Gerhard Bosinski, James Brown, o Projeto Çatalhöyük, Jacques Cinq-Mars, Angela Close, Creswell Crags Heritage Trust, John Curtis, Rick Davis, Tom Dillehay Martin Emele, Phil Geib, Ted Goebel, Jack Golson, Harald Hauptmann, Ian Hodder, Keiji Imamura, Sibel Kusimba, Bradley Lepper, Curtis Marean, Paul Mellars, David Meltzer, Andrew Moore, J. N. Pai, John Parkington, Vladimir Pitufko, John Rick, Lawrence Robbins, Gary Rollefson, Michael Rosenberg, Daniel Sandweiss, Mike Smith, Lawrence Straus, Paul Taçon, Kathy Tubb, François Valia, Lyn Wadly e João Zilhão.

Agradeço a meu irmão Richard Mithen pelos conselhos sobre práticas agrícolas, genética de plantas e desenvolvimento de colheitas. Sou imensamente agradecido aos que leram e comentaram um ou mais dos meus capítulos: Angela Close, Sue Colledge, Tom Dillehay, Kent Flannery Alan James, Joyce Marcus, Naoko Matsumato, David Meltzer, James O'Connell, Anne Pirie e Lyn Wadley. Dois desses — Anne e Sue — merecem agradecimentos especiais por lerem mais que seu justo quinhão e aconselharem sobre o conteúdo e estilo do livro em geral. Também gostaria de agradecer a Toby Mundy, que encomendou este livro quando estava na Weidenfeld & Nicolson, e a Tom Wharton, que ofereceu detalhado conselho editorial sobre todo o texto, para imenso benefício deste.

Quatro outros arqueólogos merecem menção especial: Robert Braidwood, Jacques Cauvin, Rhys Jones e Richard MacNeish. Todos foram destacados arqueólogos e morreram quando eu me achava nos estágios finais da composição da obra. Suas escavações e ideias estão documentadas em Depois do Gelo, e desejo agradecer a seminal contribuição deles à nossa compreensão do passado.

A conclusão deste livro antes do fim de 2002 tornou-se possível pela Academia Britânica, cujo prêmio de Leitura de Pesquisa em outubro de 2001 proporcionou a folga necessária de meus deveres acadêmicos normais. Antes disso, grande parte da composição, porém, foi feita em tempo roubado. Roubado de meus alunos, quando devia estar cuidando de suas redações e preparando aulas; de meus colegas, quando devia ser mais pontual nas reuniões do departamento; de minha equipe de campo em Wadi Faynan, quando devia estar escavando. Mas, acima de tudo, roubado de minha família.

É a eles que apresento minhas desculpas e maiores agradecimentos. Agradeço em especial a Heather pela tarde em que voltou para a casa direto da hora de alfabetização na escola e me lembrou de "usar verbos e substantivos, assim como adjetivos", em meu livro. Também a Nicholas pela sugestão do título "Atolado na Lama" — que deve resumir sua infeliz experiência com a arqueologia. E a Hannah por ter sido a primeira a reconhecer que "O livro de papai é na verdade um projeto de família". De fato era, um projeto que não poderia ser completado sem o apoio deles. E com Sue, minha esposa, que tenho a maior dívida simplesmente por estar no centro do meu mundo.

(8)

O COMEÇO

1

O Nascimento da História

Aquecimento global, indícios arqueológicos e história

humana

A história humana começou em 50000 a.C. ou por aí. Talvez 100000 a.C., mas certamente não antes. A evolução humana tem um pedigree bem mais longo — pelo menos 3 bilhões de anos se passaram desde a origem da vida, e 6 milhões desde que nossa linhagem se cindiu à do chimpanzé. A história, desenvolvimento cumulativo de fatos e conhecimento, é assunto recente e surpreendentemente curta. Pouca coisa de importância aconteceu até 20000 a.C. — as pessoas apenas continuaram vivendo como caçadores-coletores, exatamente como vinham fazendo seus ancestrais por milhões de anos. Viviam em pequenas comunidades e jamais permaneciam muito tempo em um assentamento. Pintaram-se algumas paredes de cavernas e fizeram-se algumas armas de caça mais ou menos excelentes; mas não houve fatos que influenciassem o curso da história futura, que criassem o mundo moderno.

Então vieram uns espantosos 15 mil anos que testemunharam a origem da agricultura, das cidades e da civilização. Em 5000 a.C., as fundações do mundo moderno já se haviam estabelecido, e nada do que veio depois — a Grécia clássica, a Revolução Industrial, a era atômica, a Internet — jamais se igualou ao significado desses fatos. Se 50000 a.C. assinalou o nascimento da história, 20000-5000 a.C. foi a sua maioridade.

Para que a história começasse, as pessoas precisavam da mente moderna — uma mente bem diferente da de qualquer ancestral humano ou de outras espécies hoje vivas. É uma mente com poderes de imaginação, curiosidade e invenção aparentemente ilimitados. A história de suas origens é a que contei — ou pelo menos tentei contar — em meu livro The Prehistory of the Mind [A Pré-história da Mente], de 1996. Se a teoria que propus— de que múltiplas inteligências especializadas se fundiram para criar uma mente "cognitivamente fluida" — é inteiramente correta, errada ou alguma coisa intermediária, isso não constitui problema para a história que vou contar agora. O leitor tem apenas de aceitar que há 50 mil anos evoluiu uma mente singularmente criativa. Este livro trata de uma questão simples: que aconteceu depois?

O auge da última era do gelo ocorreu por volta de 20000 a.C. e é conhecido como o último máximo glacial, ou LGM (na sigla inglesa). Antes dessa data, as pessoas eram escassas na Terra e lutavam com um clima em deterioração. Sutis mudanças na órbita do planeta em redor do Sol haviam feito com que enormes camadas de gelo se expandissem por grande parte da América do Norte, norte da Europa e Ásia. O planeta foi inundado pela seca; o nível do mar baixara, deixando à mostra vastas planícies costeiras, muitas vezes estéreis. As comunidades humanas sobreviveram às mais severas condições retirando-se para refúgios onde ainda se podiam encontrar lenha e alimentos.

(9)

Logo após 20000 a.C., começou o aquecimento global. Inicialmente, foi meio lento e desigual — muitas pequenas subidas e descidas na temperatura e chuva. Em 15000 a.C., as grandes camadas de gelo começaram a derreter-se; em 12000 a.C., o clima começara a flutuar, com impressionantes ondas de calor e chuva seguidas por súbitos retornos de frio e seca. Logo depois de 10000 a.C., houve um assombroso surto de aquecimento global que pôs fim à era do gelo e introduziu o mundo do Holoceno, em que vivemos hoje. Foi durante esses 10 mil anos de aquecimento global e seu resultado imediato que o curso da história humana mudou.

Em 5000 a.C., muita gente em todo o mundo vivia da agricultura. Novos tipos de animais e plantas — espécies domesticadas — haviam aparecido; os camponeses habitavam aldeias e cidadezinhas permanentes, e sustentavam artesãos especializados, sacerdotes e chefes. Na verdade, pouco diferiam de nós; cruzara-se o Rubicão da história — de um estilo de vida de caça e coleta para o da agricultura. Os que continuaram como caçadores-coletores também viviam de maneira bastante diferente da de seus ancestrais no LGM. O objetivo desta história é examinar como e por que ocorreram tais fatos — se levaram à agricultura ou a novos tipos de caça e coleta. É uma história global, de todas as pessoas que viviam no planeta Terra entre 20000 e 5000 a.C.

Não foi a primeira vez que o planeta passou por um aquecimento global. Nossos ancestrais e parentes — o Homo erectus, H. heidelbergensis e o H. neanderthalensis da evolução humana — haviam atravessado períodos equivalentes de mudança de clima quando o planeta ia e vinha de eras de gelo a cada 100 mil anos. Eles reagiam fazendo em grande parte o mesmo que sempre haviam feito: as populações expandiam-se e contraíam-se, adaptavam-se a ambientes diferentes e ajustavam as ferramentas que fabricavam. Em vez de criarem história, simplesmente empenhavam-se numa interminável ronda de adaptação e readaptação a seu mundo instável.

Tampouco foi a última. No início do século XX d.C., o aquecimento global começou de novo e hoje continua à toda. Mais uma vez, criam-se novos tipos de plantas e animais, desta vez por meio de engenharia genética intencional. Como esses novos organismos, nosso atual aquecimento global é um produto apenas da atividade humana — queima de combustíveis fósseis e desflorestamento em massa. Isso aumentou a extensão de gases de estufa na atmosfera e pode elevar as temperaturas globais muito além do que poderia fazer a natureza sozinha. Os futuros impactos de um novo aquecimento global e organismos geneticamente modificados em nosso ambiente e sociedade são inteiramente desconhecidos. Um dia, se escreverá uma história de nossos tempos futuros para substituir a multidão de especulações e previsões com as quais nos debatemos hoje. Mas antes disso temos de ter uma história do passado.

As pessoas que viveram entre 20000 e 5000 a.C. não deixaram cartas nem diários descrevendo suas vidas e os fatos que geravam e testemunhavam. Era preciso que houvesse cidades, comércio e artesãos para que ocorresse a invenção da escrita. Assim, em vez de usar registros escritos, esta história examina o lixo que as pessoas deixaram para trás — pessoas cujos nomes e identidades jamais serão conhecidos. Nossa história se apoia em instrumentos de pedra, vasos de cerâmica, detritos de alimentos, moradas abandonadas e muitos outros objetos de estudo arqueológico, como monumentos, túmulos e arte rupestre. Usa indícios de mudança ambiental passada, como grãos de pólen e asas de besouro presos em antigos sedimentos. De vez em quando, ganha alguma ajuda do mundo moderno, porque os genes que trazemos e as línguas que falamos podem nos falar do passado.

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O risco de ter de depender de tais indícios é que a história resultante pode tornar-se pouco mais que um catálogo de artefatos, um compêndio de sítios arqueológicos ou uma sucessão de ''culturas" espúrias. História mais acessível e atraente é a que oferece uma narrativa sobre as vidas das pessoas; que trata da experiência de viver no passado e reconhece a ação humana como causa de mudança econômica e social. Para conseguir tal história, este livro conduz alguém dos tempos modernos aos pré-históricos: alguém para ver os instrumentos de pedra sendo feitos, os fogos ardendo nos lares e as moradas ocupadas; alguém para visitar as paisagens do mundo da era do gelo e vê-las mudar.

Escolhi um rapaz chamado John Lubbock para essa tarefa. Ele visitará cada um dos continentes, começando no oeste da Ásia e seguindo pelo mundo afora: Europa, as Américas, Austrália, leste da Ásia, sul da Ásia e África. Viajará da mesma forma como os arqueólogos escavam — vendo os mais íntimos detalhes das vidas das pessoas, mas incapaz de fazer qualquer pergunta e com sua presença inteiramente desconhecida. Farei comentários para explicar como os sítios arqueológicos foram descobertos, escavados e estudados; as formas como contribuem para nossa compreensão de como surgiram a agricultura, as cidades e a civilização.

Quem é John Lubbock? Ele vive em minha imaginação como um rapaz interessado no passado e com medo do futuro — não o seu próprio, mas o do planeta Terra. Tem o mesmo nome de um polímata vitoriano que, em 1865, publicou seu próprio livro sobre o passado e intitulou-o Prehistoric Times [Tempos pré-históricos].

O John Lubbock vitoriano (1834-1913) era vizinho, amigo e seguidor de Charles Darwin. Foi um banqueiro que instigou reformas financeiras-chave, um membro liberal do Parlamento que apresentou a primeira legislação para proteção de monumentos antigos e férias em bancos (públicos), um botânico e entomologista com muitas publicações científicas em seu nome. Prehistoric Times tornou-se um livro didático padrão e best-seller, com a sétima e final edição publicada em 1913. Foi uma obra pioneira, uma das primeiras a rejeitar a cronologia bíblica que dizia que o mundo teria uns meros 6 mil anos: introduziu os termos paleolítico e neolítico, Velha e Nova Idades da Pedra, hoje reconhecidas como períodos-chave do passado pré-histórico.

Mas as intuições do John Lubbock histórico eram igualadas por uma pavorosa ignorância. Ele pouco sabia da data e duração da Idade da Pedra: seus indícios de estilos de vida e ambientes antigos eram escassos: jamais ouvira falar de Lascaux, da Jericó pré-histórica e de inúmeros outros sítios hoje conhecidos como marcos milenares do passado humano. Quando planejava este livro, pensei em mandar o John Lubbock vitoriano a tais sítios, como gratidão por ele ter escrito Prehistoric Times. Mas o tempo dele passou; mesmo com a experiência de Lascaux e Jericó, julguei improvável que abandonasse a atitude vitoriana padrão de que todos os caçadores-coletores eram selvagens com mentes de criança.

Um beneficiário mais adequado de uma viagem pré-histórica é alguém que ainda não deixou sua marca no mundo. E assim vou mandar um John Lubbock dos dias de hoje para os tempos pré-históricos, levando um exemplar do livro de seu xará. Lendo-o em remotos cantos do mundo, ele apreciará tanto os feitos do John Lubbock vitoriano quanto o notável progresso que os arqueólogos fizeram desde a publicação de Prehistoric Times menos de 150 anos atrás.

Uso John Lubbock para assegurar que esta história é mais sobre vidas de pessoas que apenas os objetos que os arqueólogos encontram. Meus próprios olhos não podem escapar do presente. Sou

(11)

incapaz de ver além dos descartados instrumentos de pedra e detritos de alimentos, das ruínas de casas vazias e lareiras frias ao toque. Embora as escavações ofereçam portas para outras culturas, essas portas só podem ser entreabertas à força, jamais atravessadas. Posso, porém, usar a imaginação e espremer John Lubbock por entre as frestas, para que ele veja o que é negado a meus olhos, e tornar-se o que o escritor de narrativas de viagem Paul Theroux descreveu como um "estranho em terra estranha".

Theroux escrevia sobre seu desejo de experimentar a "alteridade até o limite"; o fato de tornar-se um estranho permitia-lhe descobrir quem era e o que representava. É isso que a arqueologia pode fazer por todos nós hoje. À medida que a globalização conduz a uma delicada homogeneidade cultural em todo o mundo, a viagem imaginativa a tempos pré-históricos talvez seja a única forma de podermos agora obter essa extrema alteridade por meio da qual nos reconhecermos. E foi a única forma que encontrei de traduzir os indícios arqueológicos no tipo de história humana que desejo escrever.

Quando olho as moradas desertas descobertas por minhas escavações, muitas vezes partilho os pensamentos de outro grande escritor de narrativas de viagem, Wilfred Thesiger. Em 1951, ele viveu com os árabes do pântano do sul do Iraque. Ao voltar lá no ano seguinte, chegou ao amanhecer e viu os vastos capões de juncos silhuetados contra o nascer do Sol. Lembrou a primeira visita — as canoas nos ribeirões, o grasnar dos gansos, casas vermelhas construídas sobre a água, os búfalos molhados, meninos cantando na escuridão, o coaxar das rãs. "Uma vez mais senti", escreveu depois, "o anseio de partilhar aquela vida, e ser mais que um mero espectador."

As técnicas da arqueologia possibilitaram-nos tornar-nos espectadores da vida pré-histórica — embora através de lentes embaçadas. Como Thesiger, anseio por ir além: experimentar a própria vida pré-histórica, e usar essa experiência para escrever história humana. Thesiger podia partir em sua canoa; tenho apenas a imaginação, informada por um meticuloso e exaustivo estudo de indícios arqueológicos. E assim, nas páginas deste livro, Lubbock realiza meu desejo de tornar-me mais que um mero espectador. Por meio dele, torno-me igual a Theroux e Thesiger, um estranho viajando por terras estranhas — no meu caso, as dos tempos pré-históricos.

(12)

2

O Mundo em 20000 a.C.

Evolução humana, causas de mudança do clima e a datação

por radiocarbono

O mundo em 20000 a.C. é inóspito, um planeta frio, seco e ventoso, com frequentes tempestades e uma atmosfera coberta de poeira. O baixo nível do mar juntou algumas massas de terra e criou extensas planícies costeiras. Tasmânia, Austrália e Nova Guiné são uma só; também o são Bornéu, Java e Tailândia, que formam cadeias de montanhas dentro da maior extensão de floresta tropical do planeta Terra. O Saara, Gobi e outros desertos de areia aumentaram muito de tamanho. A Grã-Bretanha não é mais que uma península da Europa, o norte soterrado sob o gelo, o sul um deserto polar. Grande parte da América do Norte está abafada sob um gigantesco domo de gelo.

As comunidades humanas foram obrigadas a abandonar muitas regiões que habitavam antes do último máximo glacial, ou LGM; outras regiões têm condições de assentamento, mas permanecem desocupadas, porque todas as rotas de colonização foram bloqueadas por secos desertos e muralhas de gelo. As pessoas sobrevivem onde podem, enfrentando temperaturas congelantes e seca persistente. Pensem, por exemplo, nas que vivem num lugar da Ucrânia de hoje que se tornará conhecida dos arqueólogos como Pushkari.

Nesse período, cinco moradias formam mais ou menos um círculo na tundra. Dão para o sul, longe do frio mordente e perto do meandro de um rio semicongelado. As casas parecem iglus, mas foram construídas com osso e couro de mamute, em vez de blocos de gelo. Cada uma tem uma entrada imponente, formada por duas presas desse animal, com as pontas para cima formando um arco. As paredes têm enormes ossos como suportes verticais, entre os quais se empilharam mandíbulas para criar uma densa barreira ao frio e ao vento. Outras presas foram empregadas no telhado, para prender no lugar couros e torrões de turfa sustentados por uma estrutura de ossos e galhos. A fumaça sai suavemente pelo telhado de uma casa; os gritos de um bebê varam o grosso couro de outra.

Adiante da aldeia, um trenó carregado de imensos ossos é puxado do rio. Os que trabalham têm os rostos envoltos em nuvens de quente respiração, por trás das quais bastas barbas e cabelos compridos pouca pele deixam à mostra. Vestem roupas forradas de peles. Não simples invólucros de couro, mas roupas costuradas com arte. E meados do inverno, e essa aldeia fica não mais de 250 quilômetros ao sul das geleiras. A temperatura pode cair a 30°C negativos, e são nove meses disso para suportar. O rio fornece materiais de construção: ossos de animais que morreram no norte e as carcaças foram arrastadas corrente abaixo.

A vida é dura: puxar os ossos, construir e consertar casas, cortar e quebrar presas em partes para que os artesãos da aldeia possam fazer utensílios, armas e joias. A luz do Sol é preciosa — apenas umas poucas horas por dia, e depois longas horas na escuridão, contando histórias em torno das fogueiras. Uma pequena fogueira arde constantemente entre as choupanas, a chama fornecida por um único toro nodoso. Isso oferece um foco para meia dúzia de homens e mulheres que se

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sentam muito juntos, joelhos encolhidos contra o peito e braços cruzados, minimizando a exposição ao vento enquanto costuram novas roupas.

Perto da fogueira, mata-se um animal, e o ar recende a carne e sangue. Era uma rena, encontrada a vagar isolada do rebanho — uma bem-vinda surpresa para um grupo que fora buscar pedras de um afloramento próximo. Mataram-na e agora podem comer carne sem esgotar a caça guardada no congelador — um buraco no chão. Nada se perderá da carcaça. A carne será dividida entre as cinco famílias que vivem em Pushkari nesse inverno. Da galhada se farão cabos de faca e arpões, roupas e sacos do couro, os tendões fornecerão linha e corda. O coração, pulmões, fígado e outros órgãos serão comidos como pitéus, os dentes brocados para fazer pingentes decorativos, o osso guardado para combustível.

Uma das moradas tem o interior iluminado pela pequena chama de uma lâmpada de gordura animal. É quente, abafado e encardido lá dentro. O piso é macio, atapetado com couros e peles que cercam uma lareira central cheia de cinzas. Crânios e ossos de pernas de mamutes provêm os móveis; uma variedade de sacos de couro, vasos de osso e madeira, instrumentos de galhada e pedra espalham-se pelas paredes e pendem dos caibros — uma cena de bagunça doméstica da Idade da Pedra. A luz tremulante mostra o rosto de um homem. Parece velho, mas pele e osso envelhecem depressa no mundo da era do gelo. Esse homem usa o cabelo em trancas, tem pingentes de marfim e dentes furados em torno do pescoço. Os dedos trabalham rápido com uma agulha e um fio de tendão.

Do lado de fora da morada, um homem e algumas mulheres sentam-se juntos batendo nódulos de pedra apoiados nos joelhos. Tiram lascas, cujas maiores são cuidadosamente postas de lado; outras são deixadas onde caíram ou jogadas ao acaso entre as lascas espalhadas em volta. Há conversas e uma ou outra risada; algum xingamento quando um golpe atinge um polegar, em vez da pedra.

O interior de outra morada não tem sinal algum de vida doméstica. O piso é coberto de densas peles; um crânio de mamute particularmente grande domina o aposento, pintado com listras vermelhas. Junto a ele, baquetas e flautas feitas de ossos de pássaros. Numa laje de pedra, duas estatuetas de marfim, cada uma de não mais que alguns centímetros de altura. Fora isso, a morada está inteiramente vazia. É aí que se fazem as reuniões especiais; quando chegam visitantes, quase toda a aldeia se reúne aí dentro para ouvir as notícias e trocar presentes. Torna-se muito quente e malcheiroso; e também barulhento, quando todos se põem a cantar.

Mas por enquanto, o único barulho é o da vida diária no LGM: o estalar de pedra contra pedra, a suave conversa de vozes humanas, os arquejos do trabalho pesado. Esses sons são levados tundra afora pelo vento gelado e implacável, que ganhará força com o uivo dos lobos ao cair a escuridão. Quando isso acontece, as pessoas de Pushkari se amontoam em redor da fogueira. Carne assada foi dividida, histórias contadas. A temperatura cai outra fração e cruza um tácito patamar que faz as pessoas dispersarem-se para suas moradas e o conforto das peles.

Os que vivem em Pushkari são Homo sapiens — seres humanos modernos, anatômica e mentalmente iguais a vocês e eu. Em 20000 a.C., todas as outras espécies humanas já se extinguiram, de modo que esse é o único tipo que John Lubbock vai encontrar em suas viagens. Uma breve explicação de quando e por que isso aconteceu é portanto um útil prelúdio à história que está para começar.

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O registro fóssil da evolução humana começa 7 milhões de anos atrás, com um espécime descoberto em 2002 d.C. no Chade, no centro-norte da África, uma das mais importantes descobertas de todos os tempos, e designado como Sahelanthropus tchadensis. Após 4,5 milhões de anos atrás, várias espécies de criaturas semelhantes a macacos, que andavam sobre duas patas e usavam instrumentos de pedra, são conhecidas pelo registro fóssil da África. Logo após 2 milhões de anos atrás, apareceu a primeira espécie semelhante à humana, que os arqueólogos chamam de Homo ergaster. Foi o primeiro dos nossos ancestrais que se espalharam pela África, Fez isso com extraordinária rapidez, alcançando o sudeste asiático talvez há 1,6 milhão de anos.

O Homo ergaster teve pelo menos dois descendentes, H. erectus no leste da Ásia e H. heidelbergensis na África. O último dispersou-se na Europa e deu origem aos Neandertais — Homo neanderthalensis — por volta de 250 mil anos atrás. Os Neandertais foram um beco sem saída evolucionário, como o foi o H. erectus na Ásia. Mesmo assim, os dois foram espécies de extremo êxito, que atravessaram grandes oscilações do clima.

Foi durante um período glacial especialmente severo, à 130 mil anos atrás, que o Homo sapiens evoluiu na África — sendo o primeiro espécime descoberto em Omo Kibish, na Etiópia. Essa nova espécie comportava-se de maneira bastante diferente das que a antecederam: o registro arqueológico começa a mostrar vestígios de arte, ritual e numa nova gama de tecnologia, refletindo uma mente mais criativa. O H. sapiens logo substituiu todas as espécies humanas existentes, empurrando os Neandertais e o H. erectus para a extinção.

Logo após 30000 a.C., o Homo sapiens era o único tipo de humano que restava no planeta; foi descoberto em toda a África, Europa e grande parte da Ásia. Uma admirável sede de viagem levou alguns de seus membros aos extremos limites sul da Australásia, que se tornariam a futura ilha da Tasmânia. A essa altura, porém, o clima se encaminhava para as profundezas da última era do gelo: a temperatura despencava; as secas eram persistentes; geleiras, camadas de gelo e deserto expandiam-se; o nível do mar baixava. Plantas, animais e pessoas tinham que se adaptar onde e como viviam ou ser extintos.

Quantas pessoas havia vivas no planeta no LGM? Levando-se em conta as grandes áreas de regiões inabitáveis, as severas condições climáticas que levavam à mortalidade precoce, e o fato de que a moderna genética sugeriu que apenas 10 mil seres humanos modernos estavam vivos 130 mil anos atrás, podemos supor uma cifra de em torno de 1 milhão. Mas trata-se de fato de uma suposição; tentar estimar tamanhos de populações passadas é uma das mais difíceis tarefas que enfrentam os arqueólogos.

Enquanto os caçadores de Pushkari constroem suas moradas e lascam suas pedras, um enorme rebanho de mamutes procura comida do outro lado do mundo, na América do Norte, numa vizinhança do que se tornaria conhecido como Hot Springs, em Dakota do Sul. É uma tarde de inverno, e a luz do Sol se vai enquanto os grandes animais reviram a neve com as presas para encontrar o mato embaixo. Dirigem-se para matagais mais extensos e pequenas moitas que cercam as águas fumegantes de um lago próximo. Em 20000 a.C., as Américas continuam inteiramente desprovidas de assentamento humano, embora suas paisagens sejam ricas em caça, de modo que esses animais não temem caçadores humanos.

O aquecimento global a caminho irá não apenas condicionar a história humana que John Lubbock experimentará, mas a de todas as outras espécies, algumas das quais — como os mamutes — serão extintas antes que ele complete suas viagens. Ao contrário do aquecimento global que

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enfrentamos hoje, o que veio após 20000 a.C. foi inteiramente natural. Foi apenas a mais recente virada de um período "quente e úmido" para outro ''seco e frio" na história da Terra — de um estado "glacial" para um "interglacial". A última causa de tal mudança climática está nas alterações regulares da órbita da Terra em torno do Sol.

O cientista sérvio Milutin Milankovitch avaliou pela primeira vez o significado dessa mudança orbital na década de 1920. Com base em suas teorias, os cientistas estabeleceram que a cada 95800 anos a órbita da Terra muda de mais ou menos circular para elíptica. Quando isso acontece, o Hemisfério Norte desenvolve maior sazonalidade, e o contrário acontece no Sul. Isso provoca o surgimento de camadas de gelo no Norte. Quando retorna a órbita circular, reduzem-se os contrastes norte-sul na sazonalidade, ocorre o aquecimento e as camadas de gelo se derretem.

As alterações na inclinação da Terra durante sua órbita também têm implicações climáticas. A cada 41 mil anos, a inclinação da Terra muda de 21,39 para 24,36 graus e retorna. Quando esse ângulo aumenta, as estações se tornam mais intensas: verões mais quentes, invernos mais frios. A Terra também tem uma oscilação regular em seu eixo de rotação, com seu próprio ciclo de 21 mil 700 anos. Isso influencia o ponto na órbita em torno do Sol em que a Terra se inclina com o Hemisfério Norte dirigido para o Sol. Se isso se dá quando a Terra está relativamente próxima do Sol, os invernos são curtos e quentes; e o contrário, se a Terra se acha relativamente distante do Sol quando assim inclinada, os verões são mais longos e mais frios.

Embora essas mudanças na forma, inclinação e oscilação da órbita da Terra alterem o clima, os cientistas pensam que não são suficientes, em si, para responder pela imensa magnitude e rapidez de mudanças climáticas do passado. Processos que acontecem no próprio planeta devem ter amplificado substancialmente as leves mudanças que elas produziram. Vários são conhecidos: mudanças em correntes oceânicas e atmosféricas, acúmulo de gases de estufa (sobretudo dióxido de carbono) e o aumento das próprias camadas de gelo (que refletem cada vez mais radiação solar quando crescem de tamanho). O impacto combinado de mudança orbital e mecanismos de ampliação tem sido o vaivém do clima de glacial para interglacial e vice-versa a cada 100 mil anos, muitas vezes com uma mudança extraordinariamente rápida de um estado para outro. Uma das mais impressionantes dessas mudanças ocorreu em 9600 a.C., resultante de 10 mil anos de altos e baixos em precipitação pluvial e temperatura desde o extremo climático do LGM.

A linha dentada no gráfico anterior mede a mudança de temperatura global entre 20000 a.C. e o tempo atual. Baseia-se em mudanças na composição química do gelo de um núcleo retirado da Groenlândia, como uma medida por '"procuração" — uma medida indireta da temperatura global. Mais especificamente, as proporções entre dois isótopos de oxigênio, 16O e 18O, são registradas

como desvios relativos de um padrão de laboratório (180%o). Quando esse valor é alto, significa que o planeta estava relativamente quente e úmido; quando baixo, frio e seco. Como se vê no gráfico, a linha que mede esse valor e aumenta irregularmente aos poucos de um ponto baixo em 20000 a.C. até 12700 a.C. é alcançada; nessa data, dispara para cima, assinalando o início de um período de relativo calor e umidade conhecido como interestadial glacial tardio. Há vários pequenos picos nesse período, sendo o primeiro conhecido como Bolling e o segundo Allerod, mas só na Europa eles podem ser distinguidos. O traço-chave a notar é simplesmente o período geral de calor entre 12700 e 10800 a.C.

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O grande mergulho seguinte é chamado de Jovem Dryas, e desempenha um grande papel na história humana no Hemisfério Norte, mas também nesse caso não pode ser notado no Sul. Suas condições muito frias e secas tiveram um fim súbito em 9600 a.C., quando houve um segundo aumento impressionante de temperatura; isso assinala o verdadeiro término da última era do gelo. Na verdade, assinala a transição entre dois grandes períodos na história da Terra, o Pleistoceno e o Holoceno. Após essa grande elevação, a linha continua a flutuar, chegando aos poucos a um pico em 7000 a.C. e dando um visível mergulho em 6200 a.C. Fora isso, o clima do Holoceno na Terra tem sido notavelmente estável — embora esta estabilidade possa agora chegar ao fim, pois começou recentemente um novo período de aquecimento global causado pelo homem.

A construção de moradas de ossos de mamute, a costura de roupas, a feitura de instrumentos de pedra e a aquisição de comida não eram as únicas atividades humanas em andamento no LGM. Os artistas trabalham nas cavernas do sudoeste da Europa. Um conjunto de lâmpadas alimentadas a gordura animal arde no chão da caverna que se tornará conhecida como Pech Merle na França. Outra lâmpada é segura no alto por um menino para oferecer iluminação aos rápidos movimentos da mão de um pintor. Este é um homem velho mas lépido, de compridos cabelos grisalhos, nu mas com a pele pintada. Faz parte de uma comunidade que vive da caça de renas na tundra do sul da França. Em meio às lâmpadas estão suas pinturas. Torrões de ocre-vermelho foram reduzidos a pó e depois misturados numa gamela com água de poças no chão da caverna. Outra gamela contém um pigmento negro; bastões de carvão espalham-se entre elas, junto com pedaços de couro e pele, bastões esfiapados e pincéis de pêlos. Um cheiro gostoso paira no ar; ervas fumegam sobre um fogo. Aos poucos, o artista se ajoelha e inala profundamente, para renovar a visão em sua mente.

Na parede, dois cavalos foram pintados de perfil, costa com costa e traseiros sobrepondo-se. O pintor cria grandes manchas dentro da silhueta; toma bocados de tinta na boca e cospe-a através de um decalque de couro para fazer círculos na parede. Sua respiração é o elemento-chave para fazer os cavalos ganharem vida. Depois volta às ervas, troca o pigmento e agora põe a mão na parede para cuspir e deixar a silhueta dela.

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O artista trabalha hora após hora, parando apenas para trocar o pigmento ou o decalque, o pincel ou a esponja, tornar a pôr gordura dentro das lâmpadas e intoxicar a mente. Fala e canta para os cavalos, cai de quatro e empina como um garanhão. Faz novas manchas e decalques com a mão. As cabeças e pescoços dos cavalos são pintados de preto. Quando chega ao fim, o artista está fisicamente exausto e mentalmente esgotado.

Os arqueólogos só ficaram sabendo da data em que as moradas de osso de mamute foram construídas em Pushkari e as pinturas feitas em Pech Merle com o uso de seu mais precioso instrumento científico — a datação por radiocarbono. Sem essa técnica, seria inteiramente impossível escrever uma história humana dos tempos pré-históricos, pois os arqueólogos não saberiam pôr os sítios que escavam — os assentamentos vivos que John Lubbock vai visitar — na ordem cronológica certa. E assim, como um prelúdio final à história que se segue, convém oferecer um breve resumo dessa notabilíssima técnica da ciência arqueológica.

O princípio por trás é bastante direto. A atmosfera contém três isótopos de carbono: 12C, 13C e 14C. São átomos de carbono com diferentes números de nêutrons (seis, sete e oito respectivamente).

As coisas vivas absorvem os isótopos de carbono no corpo na mesma proporção que eles existem na atmosfera. Com a morte, o 14C dentro do corpo começa a decompor-se, enquanto os outros

permanecem inteiramente estáveis. Pode-se estabelecer a data em que ocorreu a morte medindo-se a proporção de 12C para 14C e sabendo-se o ritmo em que o 14C se decompõe.

Para ser datado, um objeto tem de conter carbono, o que significa que deve ter sido vivo um dia. Os instrumentos de pedra, a descoberta pré-histórica mais ubíqua, não podem ser diretamente datados eles próprios, nem as paredes ou vasos de barro. Em vez disso, os arqueólogos precisam depender da descoberta de artigos em estreita associação com material datável, como ossos de animais ou restos de plantas, sendo o ideal o carvão. Também tem de restar 14C suficiente na

amostra. Infelizmente, isso não ocorre em qualquer amostra anterior a 40000 a.C., o que estabelece o limite cronológico para a datação por radiocarbono.

Há mais duas complicações. A primeira é que a data por radiocarbono jamais é um valor exato, mas apenas uma estimativa definida por uma média e um desvio-padrão, como, por exemplo, em 7500 ± 100 AP. "AP" é o termo usado pelos arqueólogos para referir-se a "Antes do Presente" (tendo-se combinado que o presente é 1950). Neste exemplo, o 7500 oferece a média e o 100 o desvio-padrão para a distribuição de datas dentro das quais se situa a verdadeira data. Isso nos diz que há 68% de possibilidade (i. e., duas possibilidades em três) de que a verdadeira data se situe dentro de um desvio-padrão da média, neste caso entre 7400 e 7600, e uma possibilidade de 95% de que se situe entre dois desvios-padrão, i.e., entre 7300 e 7700 AP. Prefere-se, claro, o menor desvio possível. Mas como é improvável que isso caia abaixo de 50 anos, as datas de acontecimentos passados permanecerão sempre aproximadas.

A segunda complicação é que os anos do radiocarbono não têm a mesma extensão dos do calendário, e na verdade não têm a mesma extensão uns dos outros. Um artefato que o radiocarbono data de 7500 AP não é 100 anos de calendário mais velho que um artefato com uma data de 7400 AP. Isso se dá porque a concentração de 14C na atmosfera decresceu com o tempo, o que faz o ano

parecer mate longo. Felizmente, pode-se resolver esse problema "calibrando-se" a data de radiocarbono com a dendocronologia, também conhecida como datação por anéis de idade das árvores.

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Com os anéis das árvores, pode-se contar para trás no passado anos de calendário individuais. Ligando madeiras de diferentes idades, estabeleceu-se uma sequência contínua de árvores pelos últimos 11 mil anos. A madeira de qualquer um desses círculos pode ser datada por métodos de radiocarbono, e daí derivou o desvio entre a data do calendário real e a do radiocarbono. Assim, quando se adquire uma data por radiocarbono de um sítio arqueológico, pode-se levar em conta esse desvio e estabelecer uma data nos anos do calendário. Quando as datas são calibradas, são também muitas vezes convertidas de AP (antes de 1950) para a.C. (antes de Cristo, i.e. "0"; às vezes, isso é expresso como AEC, "Antes da Era Comum"). Assim, após a calibração, a data por radiocarbono de 7500 ± 100 AP indica que a verdadeira data tem 68% de possibilidade de se situar entre 6434 e 6329 a.C. Não se dispõe de anéis de troncos de árvores de antes de 11 mil anos atrás, mas os arqueólogos descobriram novos meios de calibrar suas datas. Isso mostrou que a distância entre os "anos do radiocarbono" e os "anos do calendário" alarga-se aos poucos (embora de forma irregular) à medida que se recua no tempo. Em 13 mil anos atrás, há uma diferença de mais de 2 mil anos entre uma data proporcionada pelo método do radiocarbono e sua verdadeira idade em anos do calendário. Todas as datas que se seguem neste livro são em anos a.C. do calendário; minhas notas finais oferecem as próprias datas de radiocarbono junto com seus valores exatos calibrados segundo um desvio-padrão.

Enquanto as pessoas de Pushkari costuram suas roupas e o artista pinta dentro de Pech Merle, outros caçam cangurus nos matagais da Tasmânia, antílopes nas savanas do leste africano e pescam no Mediterrâneo e no Nilo. Esta história visitará esses e outros caçadores-coletores, e depois examinará como o aquecimento global mudou as vidas de seus descendentes. Começa, porém, no Crescente Fértil — um arco de montanhas ondulantes, vales fluviais e bacias lacustres hoje coberto pela Jordânia, Israel, Palestina, Síria, sudoeste da Turquia e Iraque. É onde surgirão os primeiros camponeses, cidades e civilizações.

Um sítio de acampamento de caçadores-coletores floresce na margem oeste do lago Tibérias, também conhecido como mar da Galileia. Quando escavado por arqueólogos, o sítio será chamado de Ohalo e reconhecido como um dos assentamentos mais bem preservados do LGM. Localizado longe das camadas de gelo e paisagens de tundra, a floresta de carvalho não fica distante. As moradas são feitas de galhos de arbustos, as pessoas usam roupas de couro e fibras vegetais. Uma nova choupana está em construção: arbustos cortados foram enfiados no chão e são trançados para formar um domo. Montes de galhos folhudos e couros de animais foram preparados para ser usados como material para o telhado. Esse trabalho de construção envolve muito menos esforço que o necessário em Pushkari; na verdade, a vida em Ohalo parece mais atraente em todos os aspectos.

Muita gente se espalha ao longo da margem do lago: alguns grupos conversam sentados, crianças brincam, velhos dormitam ao sol da tarde. Uma mulher aproxima-se das choupanas, vindo da beira d'água, com uma cesta de peixes recém-pescados, e outras penduram redes sobre barcos recobertos de couro para secar. A mulher chama os filhos para entrar com ela em sua moradia, onde os peixes serão enfiados em cordões e pendurados para secar.

Duas mulheres saem da mata trazendo raposas e lebres recém-abatidas. Seguem-se vários homens com uma gazela amarrada numa vara. Aparecem mais mulheres, e depois crianças, com sacos e cestos carregados de todas as formas imagináveis — na cabeça, arrastados pelo chão, pendurados nos ombros, amarrados na cintura. As carcaças são postas junto de uma fogueira e sacos e cestos esvaziados em couros. Caem montes de frutas, sementes, folhas, raízes, cascas e talos de

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plantas. Haverá um banquete esta noite. Um rapaz está parado no meio dessa movimentada cena aldeã, inteiramente despercebido pelos que trabalham e brincam. É John Lubbock, e Ohala em 20000 a.C. é onde começam suas viagens pela história humana.

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Fogos e Flores

Caçadores-coletores e a estepe florestal,

20000 - 12300 a.C.

Incapaz de dormir, John Lubbock fica sentado à beira do lago, vendo os morcegos em ação e desfrutando a brisa noturna. Do outro lado da água, silhuetas de gamos que pastam recortam-se ao luar na borda da mata. Ele tem às suas costas as choupanas de Ohalo, a alguns metros da beira d'água e agora inteiramente vazias, pois as pessoas dormem sob as estrelas, em torno da fogueira fumegante. Os pisos da choupana foram deixados sujos — alguns com lascas de pedra espalhadas, outros com os detritos de uma refeição recente. Fieiras de peixes e feixes de ervas pendem dos caibros lá dentro, cestos de vime e gamelas amontoam-se contra as paredes.

Alguém suspira e se vira, uma criança chora e é consolada. As árvores farfalham quando uma brisa forte sopra entre as choupanas de Ohalo; a fogueira emite um estalo e uma faísca fulgente eleva-se no ar. Sobe em espiral e depois desce flutuando, não na fogueira, mas adiante, no mato seco que cobre o telhado de uma choupana.

Fumaça de madeira. Lubbock inspira-a fundo, supondo que vem como uma fagulha do fogo que morre. Mas a fumaça continua e aumenta; torna-se uma nuvem pungente, visível. Tossindo e voltando-se, ele vê a choupana em chamas. As pessoas acordaram e a desmontam, abafando o fogo com os pés e correndo em busca de água. Mas a brisa suave derrota com facilidade tais esforços frenéticos — levanta uma dezena de talos, folhas e galhos ardentes e espalha-os por toda a volta. Uma segunda e uma terceira choupana estão agora em chamas. As pessoas se retiram. Protegendo os rostos e apertando com força as crianças, juntam-se à beira do lago para ver arder seu acampamento.

O incêndio em Ohalo pode não ter levado mais de alguns minutos para reduzir um grupo de choupanas a círculos de tocos calcinados. Se começou dessa forma ou por outro meio, não se sabe em absoluto — talvez fosse um incêndio deliberado das choupanas infestadas de pulgas e piolhos. Mas o que pode ter sido trágico para as pessoas de Ohalo foi uma bênção para os arqueólogos do século XX. Dentro de poucos anos, a água do crescente nível do lago inundou o sítio, protegendo-o da decomposição. Ohalo perdeu-se da vista e da memória humanas até que uma seca em 1989 causou uma queda de 9 metros no nível da água e deixou à mostra círculos de carvão onde antes havia as moradas feitas de arbustos.

Dani Nadel, da Universidade de Haifa, iniciou a meticulosa escavação de um sítio realmente notável; ele e arqueólogos de todo o mundo ficaram pasmos com a diversidade de plantas e animais que haviam sido usados pelas pessoas de Ohalo no LGM. Após a imensa excitação dessa primeira temporada de escavação, seguiu-se uma espera de 10 anos até os níveis da água ficarem de novo suficientemente baixos para Nadei continuar. Por muita boa sorte, eu estava lá quando ele começou a fazê-lo em 1999. Foi a escavação mais idílica que já vi — sol quente, água azul reluzente, valas sombreadas revelando os detritos de vidas antigas.

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De manhã, as pessoas de Ohalo vasculham as cinzas quentes e os restos ainda fumegantes de seu acampamento. Pegam uns poucos artigos valiosos — um cabo de faca de osso com lâmina de pedra encaixada, um tapete tecido que escapou às chamas, um arco queimado que pode ser consertado. Com essas coisas, partem para a floresta de carvalho, em busca de outro lugar para acampar.

Fossem eles camponeses, em vez de caçadores-coletores, o incêndio teria destruído mais que choupanas de arbustos; com muita probabilidade, moradas feitas de madeira, currais de animais, cercas e grãos armazenados; seus rebanhos poderiam ter fugido ou mesmo morrido nas chamas. Em vez de abandonar o sítio à natureza, os camponeses teriam tido de permanecer e reconstruir, por causa de seu investimento na Terra em volta: abertura de clareiras na floresta, construção de cercas e plantio de safras. Mas as pessoas de Ohalo podem simplesmente desaparecer na mata, dirigindo-se para a planície costeira mediterrânea a oeste. Lubbock decide que a mata pode esperar e parte para contornar o lago, meter-se no matagal e entre as árvores, rumo às baixas colinas a leste.

A estepe florestal — uma paisagem de matagais, arbustos e flores que crescem exuberantes sob árvores muito esparsas — foi crítica para o curso da história humana. Isso se deu porque a imensa diversidade de alimentos vegetais que ofereceu aos caçadores-coletores incluía os parentes selvagens das primeiras safras domesticadas: trigo, cevada, ervilha, lentilha e linho. Comunidades de plantas comparáveis dificilmente existem hoje, e certamente não mais se encontram nas Colinas de Golan, nome de hoje das colinas a leste do lago Tibérias.

A reconstituição da capa de vegetação de paisagens pré-históricas é uma exigência para compreender o passado. Muitas vezes consegue-se isso pela análise de grãos de pólen: as células reprodutivas masculinas, ou gametas, de sementes de plantas cujo objetivo é alcançar a parte fêmea da flor, onde ocorre a fertilização. Felizmente, muitas não conseguem e caem inutilizadas no chão. Se recuperada pelos cientistas, talvez muitos milhares de anos depois que as flores morreram, podem cumprir um papel diferente — o de dizer-nos que planta floresceu um dia nas paisagens em evolução do mundo da era do gelo.

Os grãos de pólen de diferentes espécies de plantas são bastante distintos. São minúsculos ciscos a olho nu, mas parecem únicos quando vistos sob um microscópio binocular. Os grãos de pólen de pinheiro, por exemplo, têm duas bolsas laterais, enquanto os de carvalho parecem granulares, com três cortes em torno de cada borda. Quando ampliados com um microscópio eletrônico, apresentam uma exótica gama de esferas espinhosas em três dimensões e outras formas maravilhosas.

Os grãos de pólen caem aos montes das flores de capins, arbustos e árvores, e muitas vezes se entranham na lama de um poço ou lago. São enterrados quando mais lama se acumula, com seu próprio pólen. Quanto mais lama, mais pólen, talvez vindo de um conjunto de plantas inteiramente diferente que começaram a brotar perto. E assim por diante, talvez durante milhares de anos, até o lago ser completamente coberto de aluvião.

Pode-se extrair um "núcleo" desses sedimentos, uma fina coluna da muda ou turfa, cada centímetro da qual nos leva de volta no tempo. Os palinologistas — os que se especializam no estudo de grãos de pólen — fatiam esses núcleos como salame. Retiram os grãos de pólen de cada fatia separada e descobrem quais plantas davam na vizinhança quando aquela camada particular de lama se achava na superfície. Comparando o pólen de sucessivas fatias, reconstroem como a vegetação

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mudou no correr do tempo. E obtendo datas de radiocarbono de fragmentos de talo, folha ou semente presos dentro do núcleo, podem estabelecer a história da mudança da vegetação.

Enquanto Lubbock viaja pela Europa, terá muitos "núcleos de pólen" para examinarmos. Eles mostram como suas tundras viraram florestas e retornaram ao primeiro estado. Mas o oeste da Ásia tem muito poucos núcleos, e dificilmente algum desses estará muito fundo ou terá pólen bem preservado. Um núcleo, porém, é de imenso valor, pois foi extraído dos sedimentos da bacia de Hula, 20 quilômetros ao norte do lago da Galileia. Com 16,5 metros de extensão, remonta aos sedimentos deitados no LGM, quando as pessoas de Ohalo acampavam à margem do lago; poderá nos dizer que pólen flutuava no ar.

O indício do pólen deixa claro que quando os caçadores-coletores se mudaram para leste, afastando-se das terras costeiras mediterrâneas, a floresta desapareceu, deixando algumas árvores espalhadas dentro de matagais, arbustos e ervas — uma estepe florestal. Assim que se cruzava o Jordão, as árvores se tornavam menos abundantes, embora sobrevivendo nas encostas que levavam ao planalto; e quando se andava mais para leste, os próprios matagais e arbustos diminuíam até vir o deserto — exatamente como existe hoje. Mas dentro desse deserto havia oásis, notadamente em Azraq, onde lagos interiores atraíam não apenas muitos pássaros e animais, mas também caçadores e coletores. E é para Azraq que Lubbock se dirige agora, após um descanso em meio a um campo de vibrantes papoulas vermelhas na estepe.

O indício do pólen por si só não é capaz de oferecer um quadro exato da estepe na era do gelo. Diferentes espécies de mato — incluindo o cereal selvagem — não podem ser facilmente distinguíveis por seus grãos de pólen, e quaisquer plantas polinizadas por inseto ficariam sub-representadas, devido à limitada quantidade de pólen que produzem. Assim, os arqueólogos examinaram as poucas áreas restantes de estepe no oeste da Ásia, sobretudo as que escapam da forte pastagem de carneiros e cabras, como reservas naturais e terrenos de treinamento militar. Essas áreas proporcionam intuições sobre antigas comunidades de plantas que não podem ser recolhidas apenas dos indícios arqueológicos.

Gordon Hillman, do Instituto de Arqueologia de Londres, é um dos mais destacados "arqueobotânicos" do mundo. Durante mais de 30 anos, ele vem estudando modernas comunidades de estepes, e influenciou toda uma geração de alunos a fazer o mesmo. Mostrou que a estepe pré-histórica teria sido composta de arbustos perenes à altura dos joelhos, com pequenas folhas carnosas, conhecidas dos botânicos como losna e quenópodes (membros da família dos pés-de-pato), e uma rica mistura de matos. Alguns destes se haveriam transformado em pequenas moitas rijas, enquanto o mato emplumado mais alto produzia — nas palavras de Hillman — um mar de plumas prateadas ondulando ao vento. Toda primavera a estepe explodia em cores e cheiros — o desabrochar de cardos centáureas, funcho silvestre e miríades de outras plantas.

Os arqueobotânicos estudaram não apenas as comunidades de estepes sobreviventes, mas também como as pessoas de sociedades tradicionais, como os nativos americanos e os aborígines australianos, exploraram essas plantas para obter alimento. Mostraram que a estepe estaria transbordando de comidas básicas e petiscos para os que tinham conhecimento botânico sobre o que comer. Plantas como gerânio, pelargônio e pastinaga selvagens podiam oferecer raízes densas e bulbosas; as quenópodes dariam abundantes quantidades de sementes; e os matos selvagens forneceriam grãos.

Uma compreensão do valor nutritivo dessas plantas é vital para reconstituir a vida pré-histórica na estepe. Infelizmente, são muito limitados os indícios sobre quais plantas específicas se

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colhiam. Ao contrário dos artefatos de pedra, os restos de plantas se decompõem quase na mesma hora quando jogados fora, a não ser que isso seja inibido por extrema aridez, inundação ou intenso calcina-mento — como aconteceu em Ohalo. Mas mesmo dentro dos restos queimados desse sítio não havia vestígios de legumes e folhas carnosos, os mais prováveis de terem sido colhidos.

Com a visão retrospectiva da história, sabemos que os cereais selvagens eram as plantas mais importantes a dar na estepe florestal. A diferença-chave entre as variedades selvagens e domesticadas está nas espigas de grãos. Nas formas selvagens, elas são muito quebradiças, de modo que, quando maduras, se rompem espontaneamente e o grão se espalha pelo chão. As formas domesticadas não fazem isso; as espigas permanecem intatas e o grão precisa ser retirado na debulha. Assim, sem cuidado humano, as formas domesticadas não sobrevivem, pois elas próprias são incapazes de se reabastecer de sementes.

O mesmo ocorre com ervilhas, lentilhas, ervilhaca e grão-de-bico — os outros grãos domesticados primeiro. Como explicou certa vez Daniel Zohary, especialista em genética de cereais selvagens e domesticados da Universidade Hebraica em Jerusalém, as formas domesticadas de cereais e legumes "esperam pelo comedor". Ele revelou que a mudança de uma para outra depende da mutação de um único gene. Outra consequência é a mudança no padrão de germinação. Diferentes indivíduos dentro de um bosque de plantas selvagens germinam e amadurecem em tempos ligeiramente diferentes — isso garante que alguns deles pelo menos amadureçam e forneçam semente para o ano seguinte em condições de chuva imprevisíveis. As variedades domésticas, porém, germinam e amadurecem todas ao mesmo tempo; não apenas esperam pelo colhedor, mas também tornam muito mais fácil a vida dele — ou provavelmente dela.

A origem da agricultura está intimamente ligada ao surgimento dessas variedades domesticadas de cereais e legumes, assim como do linho usado para produzir os primeiros tecidos dessa fibra. Como veremos, isso só poderia ter acontecido com a intervenção humana no ciclo vital das plantas — as pessoas estão no ramo de modificação genética dos alimentos há muito tempo mesmo.

Mas não as pessoas de Ohalo e seus contemporâneos. Eles colhiam cereais selvagens batendo nas plantas com paus para que o grão caísse em cestos seguros embaixo. Esse era o método usado por muitos povos recentes, como os índios norte-americanos, quando colhiam sementes de mato selvagem. Para ser eficiente, deve-se fazer a colheita no tempo certo — se os cereais não amadureceram, poucos dos grãos cairão nos cestos; ao contrário, se os cereais passaram do ponto, muito do grão já terá caído no chão. Alguns entravam em fendas, eram mantidos aquecidos, regados pela chuva, e forneciam novos brotos na primavera; outros grãos — na certa a grande maioria — seriam avidamente devorados pelos pássaros e roedores.

As plantas eram importantes para as pessoas de Ohalo; também o eram os animais que viviam na mata e estepe. A presa favorita delas em toda a região era a gazela, presente em várias espécies diferentes, cada uma adaptada a um diferente habitat: a gazela montanhesa na zona mediterrânea, as dorcas nas regiões pedregosas, a persa na estepe oriental. O gamo pastava nas regiões montanhosas do Líbano, o jumento selvagem na estepe e a cabra selvagem entre os penhascos das áreas altas. Bisões (bois selvagens), alcéfalos e javalis foram descobertos dentro das matas, junto com muitos mamíferos menores, pássaros e répteis.

Os ossos de animais escavados de Ohalo nos dizem que várias dessas espécies eram caçadas. Pegava-se peixe no mar da Galileia, e talvez no Mediterrâneo. A linha costeira pode ter oferecido

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muitas variedades, junto com caranguejos, algas e moluscos. Mas se estes eram coletados, podemos apenas especular: muito antes de os arqueólogos poderem trabalhar, a linha costeira foi inundada e quaisquer assentamentos costeiros que tivesse foram varridos pelo nível ascendente do mar, causado pelas águas derretidas das grandes camadas de gelo no norte.

Azraq, o lugar que T. E. Lawrence chamou de rainha dos oásis, aparece quando John Lubbock sobe o último cume de pedregulhos de lava. Ele viajou 100 quilômetros desde o mar da Galileia, grande parte deles estéril deserto com temperaturas noturnas enregelantes. Agora olha o outro lado por cima das águas do lago, que reluzem aos primeiros raios do sol matinal. Gazelas atravessam delicadamente o pântano em volta; o que fora uma simples mancha roxa adiante transforma-se em folhagem, uma rica seleção de verdes, amarelos e marrons, à medida que as árvores ganham forma; o novo dia é recebido por pássaros de doce canto e minúsculos fiapos de fumaça de fogueiras nos muitos acampamentos que cercam o lago.

São de caçadores que se reuniram em Azraq para os meses de inverno, depois de passarem o verão dispersos por toda a estepe e o deserto. Agora tornam a juntar-se para trocar notícias, renovar amizades e talvez celebrar um casamento. Também trazem artigos de comércio; conchas das margens do mar Vermelho e do Mediterrâneo, gamelas de madeira escavada e peles.

Lubbock passa o dia explorando os pântanos, vendo as aves andar e nadar no lago. Quando descansa, folheia seu exemplar encadernado em couro e meio esbagaçado de Tempos pré-históricos, impressionado com os elegantes desenhos de artefatos e tumbas. O título completo é bastante revelador: Tempos pré-históricos ilustrados com restos antigos e as maneiras e costumes de selvagens modernos. Grande parte do livro é dedicado aos últimos, com descrições de povos tribais como os aborígines australianos e os esquimós (Inuit) como representantes vivos da Idade da Pedra. Lubbock escolhe um capítulo para ler ao acaso, e descobre que embora o autor vitoriano achasse que as pessoas pré-históricas tinham mentes infantis, apreciou as habilidades delas na fabricação de instrumentos, sobretudo no trabalho em pedra,

No fim da tarde, Lubbock chega a um pequeno acampamento logo abaixo do afloramento de basalto e ao lado de um poço de água doce que brota de uma fonte. Tem um abrigo simples: couros de gazela amarrados com tendões e apoiados num pau de cumeeira e estacas mantidas eretas por calços de pedra. Nada desse abrigo restará para os arqueólogos descobrirem, em contraste com as atividades do lado de fora, onde um homem e uma mulher geram uma enorme quantidade de lascas de pedra enquanto fazem instrumentos. Sentam-se de pernas cruzadas, usando colares feitos de conchas tubulares conhecidas por nós como dentálio. Uma criança sentada ali perto brinca com nódulos de pedra, e sem o saber aprende as artes de fazer instrumentos. Uma outra muito mais jovem dorme à sombra do abrigo, onde uma velha mói devagar sementes num pilão de basalto. Uma lebre pende do pau de cumeeira.

Outro membro do grupo empenha-se numa tarefa crucial para a sobrevivência humana em todo o mundo pré-histórico: fazer fogo. Uma jovem agachada prende um pedaço de madeira no chão com os dedos dos pés. Tem nas mãos uma fina vareta de madeira mais mole, que gira com muita rapidez num pequeno buraco na madeira mais dura, tendo acrescentado alguns grãos de areia para aumentar o atrito. Dentro de poucos instantes, acumula-se um montinho de pó, que depois arde. Ela põe uns fiapos de mato seco e logo tem fogo para uma fogueira próxima. Lubbock verá essa técnica usada repetidas vezes em todo o mundo; uma técnica que ele próprio vai aperfeiçoar. Também verá outra: fazer fagulhas batendo pedras quebradiças uma na outra. Mas no momento, seu interesse é

Referências

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