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DESENVOLVIMENTO MORAL E LUDICIDADE: QUESTÕES

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Academic year: 2021

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DESENVOLVIMENTO MORAL E LUDICIDADE: QUESTÕES ENTRELAÇADAS NO COTIDIANO ESCOLAR

Lucineide Ribas L. Lima1 Resumo

Este artigo apresenta considerações sobre as relações entre ludicidade e desenvolvimento moral, com o intuito principal de analisar como a vivência de atividades lúdicas pela criança, no cotidiano escolar, e o trabalho pedagógico voltado para a construção da autonomia infantil se interligam. Por uma questão didática, a discussão busca, a principio, conceituar ludicidade e desenvolvimento moral separadamente para, posteriormente proceder a intercessão.

Palavras chaves: ludicidade; atividades lúdicas; desenvolvimento moral; autonomia.

Introdução

A relação entre ludicidade e desenvolvimento moral da criança é analisada, neste texto, a partir do que apresenta Carlos Cipriano Luckesi (2000; 2002) sobre ludicidade, e de práticas, estudos e discussões feitas no GEPEL2. As considerações sobre o desenvolvimento moral tomam por base os estudos realizados por Jean Piaget sobre juízo moral (PIAGET, 1994; 1996).

Ludicidade é um fenômeno que acontece no interior do indivíduo (LUCKESI, 2002). Ela proporciona momentos de bem-estar e encantamento, além de ter o potencial de exercer várias funções, como terapêutica (BETTELHEIM, 1987), educativa (KISHIMOTO, 1997) e a de contribuir no desenvolvimento cognitivo e afetivo (PIAGET apud LUCKESI, 2002).

Por ser uma experiência que permite ao individuo olhar melhor para si mesmo e para o outro, a ludicidade pode contribuir para que os seres humanos consigam conviver de forma mais harmônica. Esta é uma grande necessidade atual, pois a contemporaneidade exige uma educação que tenha mais preocupação com os princípios fundamentais para a vida coletiva saudável, uma vez que a ética, o amor, o respeito ao próximo, a generosidade, a honestidade e a fraternidade estão cada vez mais escassos, a

1 Pedagoga – Psicopedagoga - Professora da Creche/UFBA - lucineideribas@yahoo.com.br

2 Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade, vinculado ao Programa de Pesquisa e

Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFBA. Com publicações em 2000, 2002, 2004 e 2007.

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nossa sociedade capitalista, racionalista e competitiva tem nos afastado desses valores, nos impondo comportamentos fundamentados no individualismo e na competitividade.

Uma educação voltada para o desenvolvimento moral do educando busca resgata esses valores universais, pois, segundo Piaget (1994) a autonomia moral (última etapa desse desenvolvimento) só se desenvolve a partir de relações de cooperação, que se baseia no principio da reciprocidade. Assim, as relações de cooperação no cotidiano escolar é um exercício para a convivência de forma harmoniosa com o outro, independente de sua nação, credo, gênero, raça ou cor. Entretanto, a educação escolar a que fomos submetidos e que até hoje muitas de nossas crianças são submetidas, geralmente, não contribui para construção da autonomia, mas sim, para que o indivíduo torne-se um ser passivo diante dos acontecimentos que estão a sua volta e submisso a qualquer um que se imponha ou mostre poder sobre ele.

Apesar de as inúmeras discussões sobre uma educação para a autonomia, muitas vezes, isso não tem passado de discursos vazios. Muitos professores agem, frequentemente, de forma autoritária, influenciando na formação de sujeitos menos autênticos, menos livres, menos felizes e menos autônomos. Paulo Freire afirma que o professor autoritário “afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto.” (1996, p.66)

A necessidade de uma educação baseada no dialogo em que “sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo no respeito a ela” (PAULO FREIRE, 1996, p.67) faz-se imprescindível desde a educação infantil. As pesquisas realizadas por Ulisses Araújo acompanhando crianças que na educação infantil viveram em ambientes mais cooperativos e democráticos, mostraram que mesmo vivendo depois em ambientes escolares mais autoritários “a autonomia construída por esses sujeitos se manteve mais alta em relação aos sujeitos que sempre estudaram em escolas autoritárias.” (ARAÚJO, 2001, p.09). Assim, é preciso que os professores estejam preocupados com o desenvolvimento moral de seus alunos desde o inicio do processo escolar da criança.

Desenvolvimento moral e o ambiente escolar cooperativo

O desenvolvimento moral precisa ser um dos principais objetivos da educação. Assim como no desenvolvimento cognitivo, Piaget afirma que esse pressupõe uma

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construção interna, La Taille (1994, p.77) afirma que “no campo da moral, como naquele da inteligência, Piaget opõe-se às teorias que concebem a formação da consciência como sendo uma simples interiorização de modelos culturais impostos pelo meio.” Assim, a escola inconsciente ou conscientemente tem influência sobre a personalidade do educando, tendo o papel de prejudicar ou contribuir para o desenvolvimento do individuo em direção à autonomia.

Piaget em 1932, em seu livro “O Juízo Moral da Criança” levanta a questão: “Como a criança chegará à autonomia propriamente dita?” (PIAGET, 1994, p.155). A partir de suas pesquisas sobre as regras do jogo, ele afirma a “existência de duas morais: a moral da heteronomia e a moral da autonomia.” (FREITAS, 2003, p.305)

Na heteronomia, as regras do jogo, as que são relativas a hábitos e as sociais são vistas como exteriores ao indivíduo, determinadas por outros, que devem ser obedecidas, pois são sagradas e imutáveis. Na autonomia, etapa final do desenvolvimento moral, que é construída pelo sujeito, a partir das relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo físico, as regras são entendidas como construções sociais, o sujeito percebe que nem sempre essas são justas e que modificar uma regra não é necessariamente uma transgressão, assim ele entende que tem o poder de instituir normas, “... a descoberta do sujeito de sua capacidade normativa é a condição primeira de sua autonomia moral. Isso lhe permite compreender a diferença entre uma norma social e uma lei física e que as coisas nem sempre são como deve ser” (FREITAS, 2003, p. 93). A autonomia moral pode ser definida como a:

“capacidade racional de o sujeito compreender as contradições de seu pensamento, em poder comparar suas idéias e valores às de outras pessoas, estabelecendo critérios de justiça e igualdade que muitas vezes o levarão a se contrapor à autoridade e às tradições da sociedade para decidir entre o certo e o errado.” (ARAÚJO, 1996, p.109)

A palavra autonomia, analisada a partir de seu sentido etimológico3, o prefixo ‘auto’ revela a qualidade de próprio, si mesmo; ao passo que o sufixo ‘nomia’ nos remete a ‘regras’. É preciso, pois, compreender que o sujeito autônomo não é aquele que age conforme seus próprios desejos, pensamentos, suas próprias regras, pois as regras “para serem estabelecidas, necessitam de um acordo entre as partes envolvidas;

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necessitam, portanto, que o sujeito leve o outro em consideração” (ARAÚJO, 1996, p. 104).

Entretanto, faz-se necessário afirmar que inicialmente a criança pequena (até aproximadamente cinco anos) não segue regras, e sim, têm alguns hábitos, que segue com certa regularidade, mas que para ela não são obrigatórios. Segundo Piaget (1994), este é o período da anomia, fase em que há ausência de regras. É a partir das relações sociais, que o sujeito vai se desenvolvendo moralmente, pois as trocas interindividuais são condições necessárias para a construção de conceitos de regras e, consequentemente, construção da moral. Piaget afirma a existência de dois tipos de relações sociais: A coação e a cooperação.

A coação social é “... toda relação social na qual intervém um elemento de autoridade” (PIAGET, 1994, p.253), que predomina o respeito unilateral, em que as regras são impostas às crianças, onde é dito a elas o que fazer e o que não fazer, e muitas vezes, isso vem acompanhado de ameaças, punições e recompensas. Desse tipo de relação é que deriva a moral heterônoma.

A cooperação é qualquer relação social que não sofre intervenção de nenhum elemento de autoridade ou de prestígio (PIAGET, 1994). A partir desse tipo de relação, desenvolve-se a moral autônoma, pois o respeito mútuo pode constituir-se devido esse tipo de relação social. “A relação de cooperação impõe apenas a norma de reciprocidade que obriga cada um a se colocar mentalmente no lugar do outro” (FREITAS, 2003, p. 306). Distante de um ambiente onde as relações de cooperação e de tudo que acompanha esse tipo de relação, como o dialogo e o respeito, não se pode constituir uma moral autônoma.

“Nem a autonomia da pessoa que pressupõe o pleno desenvolvimento da personalidade humana, nem a reciprocidade, que evoca esse respeito pelos direitos e pelas liberdades de outrem poderão se desenvolver em uma atmosfera de autoridade e de opressão intelectuais e morais”(PIAGET 1948, p.76 apud ARAÚJO,1996, p.105)

Diante disso, o ambiente escolar que busca o desenvolvimento da autonomia infantil necessita que suas relações interpessoais estejam sustentadas na cooperação, onde são incentivadas trocas sociais por reciprocidade, o educando é respeitado e participa de decisões coletivas, sendo um construtor de regras. Segundo Ulisses Araújo o ambiente escolar cooperativo é um ambiente onde

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“a opressão do adulto é reduzido o máximo possível, e nela encontra-se as condições que engendram a cooperação, o respeito mútuo, as atividades grupais que favorecem a reciprocidade, a ausência de sanções expiatórias e de recompensas, e onde as crianças têm oportunidade constante de fazer escolhas, tomar decisões e de expressar-se livremente”. (1996, p. 111)

Isso não quer dizer que o ambiente democrático seja um ambiente que em nome da liberdade e da livre escolha, o aluno possa fazer o que quiser a ponto de exercer um papel autoritário em sala de aula. O professor tem um papel relevante no grupo, pois é mais experiente e conhece os objetivos da educação escolar. Assim, “o que está se chamando de ‘ambiente escolar cooperativo’ não abre mão da figura da autoridade moral e intelectual, não autoritária, do professor como coordenador do processo educacional” (ARAÚJO, 1996, p.112).

Na verdade, é impossível uma relação adulto-criança totalmente isenta de autoridade, mesmo porque a criança não consegue, muitas vezes, cuidar de si mesma de forma autônoma, como por exemplo, na escolha dos alimentos necessários a sua alimentação ou referente a cuidados e higiene com o corpo, precisando com muita freqüência da interferência do adulto como elemento de autoridade e/ou prestígio, mas essas interferências podem e devem ser feita sem tirania, sem arbitrariedade.

Essas relações de coação têm um papel necessário no desenvolvimento moral, pois é por meio delas que a criança tem os primeiros contatos com as regras. Entretanto, esse tipo de relação não pode pendurar por muito tempo, tendo que ser minimizado gradativamente, cedendo lugar às relações de cooperação. Piaget (1996) diz que o respeito unilateral deve caminhar para o respeito mútuo, que pais e professores devem fazer tudo o que for possível para converterem-se em colaboradores iguais à criança e que durante os primeiros anos, um elemento de autoridade deve se mesclar às relações que unem as crianças ao adulto.

O ambiente sócio-moral escolar, segundo DeVries e Zan, “é toda rede de relações interpessoais que forma a experiência da criança na escola” (1988, p.31). E além das relações estabelecidas entre os adultos e as crianças, outra relação muito importante é a relação entre as crianças, que para Piaget (1994) é essencial no desenvolvimento da autonomia, pois nesse tipo de relação não existe um elemento de autoridade, sendo precursor da cooperação.

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Ludicidade e atividades lúdicas

A ludicidade não é algo que vem de fora para dentro, mas pelo contrário, é algo produzido dentro de nós, a partir da nossa relação conosco mesmo, com o meio social e físico, e que se manifesta no nosso exterior.

Quando estamos envolvidos em uma atividade lúdica, estamos ali de forma integral, pois os múltiplos aspectos (corporal – emocional – cognitivo – espiritual) estão presentes. Segundo Luckesi, ludicidade é uma experiência interna que provoca um estado de plenitude. “Enquanto estamos participando verdadeiramente de uma atividade lúdica, não há lugar, na nossa experiência, para qualquer outra coisa além da própria atividade. Não há divisão. Estamos inteiros, plenos, flexíveis, alegres, saudáveis” (2000, p.21, grifo do autor).

A palavra “verdadeiramente” destacada por Luckesi no texto acima, pretende salientar que uma atividade, mesmo aquelas que se diz lúdica, só é lúdica para o sujeito se ele está realmente envolvido nela de corpo e alma. Utilizando as suas próprias palavras: “Brincar, jogar, agir ludicamente, exige uma entrega total do ser humano, corpo e mente, ao mesmo tempo.” (LUCKESI, 2000, p.21).

Nas atividades lúdicas, o sujeito envolve-se de forma tão plena que age apenas pelo agir, esquecendo-se do que está a sua volta. A brincadeira, que é uma atividade essencialmente lúdica, segundo Maturana e Verden-Zöller (2004, p.231), é “qualquer atividade humana praticada em inocência, isto é, qualquer atividade realizada no presente e voltada para ela própria e não para seus resultados.” Apesar de não estarem voltadas para os resultados o brincar e as outras atividades lúdicas, como o fazer artístico, trazem uma série de contribuições para o desenvolvimento humano e para construção de conhecimento. As atividades lúdicas têm a potencialidade de favorecer as relações sociais, a criatividade, o experimentar e conhecer as potencialidades do próprio corpo, a exploração e resolução de problemas, inclusive de conflitos internos.

Nesse sentido, uma educação lúdica não permite que o professor seja o centro do processo, pelo contrário, abre espaço para que as decisões sejam tomadas por meio do diálogo, para a independência e para participação ativa do aluno. Isso não quer dizer que o papel do professor seja de pouca importância, pois o professor é o mediador, ele é

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quem oferece as diferentes condições para as crianças vivenciarem experiências lúdicas e isso exige dele, além de uma base teórica significativa, sensibilidade e flexibilidade. O trabalho escolar em uma perspectiva lúdica, proporciona momentos de autoconhecimento, liberdade, contato e conhecimento do outro, livre escolha, lexibilidade, controle interno e afetividade.

Entrelaçando na discussão o que na prática é entrelaçado

A ludicidade e o desenvolvimento moral são temas interpenetrantes, pois quando trabalhamos voltados para a construção da autonomia infantil abrimos espaço para a atividade lúdica, pois essa é uma das principais busca da criança quando lhe é permitido agir sem influência de nenhum elemento de autoridade. Quando trabalhamos em uma perspectiva lúdica, contribuímos para o desenvolvimento moral da criança, pois as atividades lúdicas têm características essenciais para a construção da autonomia infantil. O objetivo de afirmar a existência de uma convergência teórica e prática entre ludicidade e desenvolvimento moral não significa dizer que basta ao professor que vise à construção da autonomia, trabalhar com atividades lúdicas, e nem o contrário, que o único intuito do trabalho com o lúdico no cotidiano escolar seja o desenvolvimento moral. Mas sim, que o professor ao trabalhar com o objetivo de construir a autonomia estará, automaticamente, permitindo a vivência da ludicidade. Da mesma forma, se estiver com o objetivo de propiciar a vivência lúdica estará, conseqüentemente, permitindo a construção da autonomia.

Para melhor fundamentar essas afirmações é preciso estabelecer alguns pontos de convergência entre desenvolvimento moral e ludicidade. É interessante começar refletindo sobre como se constrói a autonomia e como se constitui essa experiência lúdica, pois tanto uma quanto outra ocorrem a partir das relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo físico, ou seja, as relações que são estabelecidas pelo ser humano ao agir, constitui a base para que o sujeito desenvolva moralmente e vivencie momentos lúdicos. A experiência lúdica é “saboreada” no momento que é vivida e reflete no futuro, pois favorece vários aspectos do desenvolvimento humano, e a constituição da autonomia é exercitada e construída em cada momento vivido.

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Algumas características em comum confirmam a inter-relação entre ludicidade e desenvolvimento moral. Será comentado quatro delas: espontaneidade, flexibilidade e construção de regras, relações grupais e autoconhecimento.

Espontaneidade

Para que uma atividade se constitua lúdica, ela precisa ser de livre escolha, pois a ludicidade não admite imposição, autoritarismo. “Quando um evento é considerado essencialmente lúdico, a espontaneidade dos participantes pode ser expressa sem qualquer tipo de restrição” (OLIVEIRA, 2002, p.66), ou seja, as tomadas de decisões são da criança, ela decide, por exemplo, começar determinada brincadeira, usar determinados objetos, dançar de determinada forma, ler determinado livro, etc.

Quando é permitido que a criança haja espontaneamente, que ela tome pequenas decisões do dia-a-dia estamos, ao mesmo tempo, permitindo que ela se envolva ludicamente em algo e que construa sua autonomia, pois como afirma Vinha, “para que conquiste a autonomia é preciso que a criança tenha, desde pequena, a oportunidade de tomar pequenas decisões em seu dia-a-dia” (2000, p.179).

Flexibilidade e construção de regras

Em muitas atividades em grupo, nas quais o sujeito vivencia a ludicidade existem regras, mas essas, não são e não podem ser impostas e nem imutáveis, pelo contrário, precisam ser flexíveis, podendo mudar de acordo os desejos, necessidades e interesses do grupo, ou seja, o controle é interno, pois os que estão envolvidos determinam a seqüência dos acontecimentos. Para Kishimoto, “as crianças estão mais dispostas a ensaiar novas combinações de idéias e de comportamentos em situações de brincadeira do que em outras atividades não-recreativas” (1997, p.26). É possível ampliar a expressão “atividades não-recreativas” para atividades não-lúdicas.

A construção de regras e a flexibilidade para mudar essas regras nas atividades lúdicas são ensaios de autonomia, em que a criança está instituindo regras no plano da ação e aos poucos internalizando que tem essa capacidade normativa, que, como vimos, é a primeira condição para autonomia. Isso não quer dizer que em determinados momentos, o professor não possa apresentar às crianças um jogo com regras já

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construídas, mas sim, que ele deve permitir que elas decidam usar ou não essas regras e modificá-las quando quiser.

A criança faz essa mudança de regras na prática, mesmo quando estão na fase heterônoma, em que acredita que as regras são imutáveis. Piaget mostra que nessa fase, as regras permanecem exteriores à consciência do individuo não transformando o seu comportamento. “É por isso que a criança considera a regra como sagrada embora não a praticando na realidade” (1994, p. 58). A criança age dessa forma inconscientemente, por causa do seu egocentrismo, entretanto, a necessidade que surge no grupo de mudar as regras de forma que não privilegie ninguém, pois os envolvidos não aceitarão, força o indivíduo, aos poucos, descentrar. Isso nos remete ao próximo ponto.

Relações grupais

Apesar da ludicidade ser uma experiência interna e individual, a atividade, evento ou situação que proporciona essa experiência pode ser grupal. É mais fácil uma atividade verdadeiramente lúdica acontecer em grupo, pois segundo Luckesi, o grupo movimenta, estimula e puxa a atividade. “As atividades lúdicas poderão ser praticadas individualmente; não há dúvida quanto a isso; porém há muito mais força quando praticada coletivamente. Muitas delas, ‘não têm graça’, quando praticadas por um indivíduo isoladamente”. (2002, p.60)

As atividades grupais, inclusive as lúdicas, quando são cooperativas e não competitivas e quando não há intervenção de nenhum elemento de autoridade exterior, contribuem para a construção da autonomia, ajudando às crianças vencer o egocentrismo, com o qual não se pode constituir uma consciência autonomia. Egocentrismo, segundo Piaget (1994) é a incapacidade do individuo diferenciar seu eu do meio social. As atividades grupais ajudam superá-lo, pois além de propiciar a construção coletiva de regras, de forma que leve o outro em consideração, favorece a reciprocidade e a capacidade de resolver conflitos interpessoais.

Em atividades grupais, como no jogo, há necessidade de contanto intenso entre os jogadores, sendo assim, são “comuns conflitos entre pessoas, oposições de vontades, que devem resolver-se para o grupo continuar” (MENIN, 1996, p.92). Confrontar suas idéias e desejos com as idéias e desejos do outro, e a partir disso, tentar agir levando o outro em consideração contribuem para o desenvolvimento moral do indivíduo. Por

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isso, quando surgem conflitos em sala de aula como, por exemplo, na disputa por brinquedos, é necessário que o professor permita que as crianças tentem resolver esses conflitos, só interferindo quando for realmente necessário. O princípio da reciprocidade é uma exigência que acontece dentro do próprio grupo, quando a criança brinca com outras crianças, por exemplo, ela é estimulada pelo grupo a agir, por reciprocidade, na distribuição dos brinquedos, na hora de resolver o desenvolvimento da brincadeira, etc.

Autoconhecimento

A ludicidade proporciona momentos de olhar para si mesmo. Pereira, falando sobre a experiência lúdica, afirma: “Esses momentos de inteireza e encontro consigo mesmo gera possibilidades de autoconhecimento e de maior consciência de si.” (2002, p. 17).

Este ponto tem muita relação com o anterior, pois a criança precisa antes de cooperar, tipo de relação essencial para a construção da autonomia, identificar o seu eu, conhecer a si mesmo, para diferenciá-lo do meio social. Dessa forma identificar a si mesmo, faz parte da superação do egocentrismo infantil. Piaget afirma que: “Enquanto a criança não dissocia seu eu das sugestões do mundo físico e do mundo social, não pode cooperar porque para tanto, é preciso estar consciente do seu eu e situá-lo em relação ao pensamento comum.” (1994, p.81)

Por ora, algumas considerações finais

O professor ao privilegiar atividades lúdicas no seu fazer pedagógico, está atuando de forma positiva na construção da autonomia da criança. A relação entre ludicidade e desenvolvimento moral é tão próxima que Piaget construiu sua teoria sobre desenvolvimento moral baseando em experimentos com o jogo de bolinha de gude (uma atividade lúdica para a maioria das crianças).

Uma atividade para contribuir com o desenvolvimento moral precisa ser integral, pois precisa envolver não só uma mudança exterior ao individuo, em que as atitudes relacionadas a si mesmo e ao outro se constituem ações aceitáveis socialmente, pois mais importante do que os atos são as intenções. Assim, uma atividade que visa

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contribuir para a construção da autonomia precisa envolver o interior do individuo, ou seja, os conhecimentos e sentimentos relacionados a si mesmo e aos outros.

A atividade verdadeiramente lúdica é uma experiência integral. Luckesi mostra, a partir dos estudos de Ken Welber, que uma experiência para ser integral é preciso que ela envolva as quatro dimensões do ser humano: “1. individual/interior, 2. individual/exterior, 3. coletiva/interior, 4. coletiva/exterior.” (2002, p. 27). A atividade lúdica envolve essas quatro dimensões. Ela é individual e interna, pois é sentida, experienciada dentro de si, provocando um estado de plenitude. Essa dimensão é “onde se dá a ludicidade”(p.30). Ela é individual e externa, pois o indivíduo expressa o que está sendo vivenciado no seu interior através do corpo: de um sorriso, de um olhar brilhante, dos seus movimentos, da fala, etc. A atividade lúdica também se encontra na dimensão interior e coletiva, pois “permitirá vivenciar e desvendar os sentimentos comunitários” (p.30). E ainda, ela se encontra na dimensão externa e coletiva, no momento que esses sentimentos comunitários influenciarão na sua relação com o outro.

Nesse contexto, o desejo por uma sociedade, onde as pessoas se respeitem, sejam solidárias, cooperem uma com as outras, ou seja, onde as pessoas se amem (não estou falando do amor entre casais, amigos e parentes, estou falando do amor fraternal que entende o outro como seu semelhante e por isso, com os mesmos direitos) pode ser um grande estímulo para que o professor organize, no cotidiano escolar, espaços para brincadeiras, teatros, músicas, danças, etc., para atividades lúdicas.

Enfim, a ludicidade e o desenvolvimento moral caminham juntos, contribuindo na constituição do indivíduo, auxiliando-o a viver de forma mais criativa, livre e feliz, a ser mais ético e a conviver melhor com o outro.

Referências

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______. Moralidade e Indisciplina: Uma leitura possível a partir do referencial piagetiano. In: AQUINO, Júlio G. Indisciplina na escola: Alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1996.

BETTELHEIM, Bruno. Uma vida para seu filho. São Paulo: Círculo do Livro.1987 DEVRIES, Rheta; ZAN, Betty. A ética na educação infantil: O ambiente sócio-moral na escola. Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.(Coleção Leitura)

FREITAS, Lia. A moral na obra de Jean Piaget: Um projeto inacabado. São Paulo: Cortez, 2003.

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O jogo e a educação infantil. In: _______ (Org). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.

LA TAILLE, Yves de. A dimensão ética na obra de Jean Piaget. Série idéias n. 20. São Paulo: FDE, 1994. Disponível em:

PIAGET, Jean. O juízo moral da criança. (ed. Orig. 1948). São Paulo, Summus Editorial, 1994.

______. Os procedimentos da educação moral. ( ed. Orig. 1930) In MACEDO, Lino, Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do psicólogo, 1996. (Coleção Psicologia e educação).

LUCKESI, Cipriano Carlos. Educação, Ludicidade e Prevenção das Neuroses Futuras: uma Proposta Pedagógica a partir da Biossíntese. In: ______ (Org). Ludopedagogia – Ensaios nº1: Educação e Ludicidade. Salvador-Ba: UFBA/FACED/PPGE. Vol.1.2000. ______. Ludicidade e atividades lúdicas: uma abordagem a partir de uma experiência interna. In: PORTO, Bernadete de Souza (Org.). Ludicidade: o que é mesmo isto? Salvador: UFBA/FACED/PPGE/GEPEL, 2002.

MATURANA, Humberto e VERDEN-ZÖLLER. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. SP: Pallas Athenas, 2004.

MENIN, Maria Suzana de Stefano. Desenvolvimento moral. In: MACEDO, Lino(Org.). Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do psicólogo, 1996. (Coleção Psicologia e educação)

OLIVEIRA, Washington Carlos, Percebendo a ludicidadania na educação. In: PORTO, Bernadete de Souza (Org.). Ludicidade: o que é mesmo isto? Salvador: UFBA/FACED/PPGE/GEPEL, 2002.

PEREIRA, Lúcia Helena. Ludicidade: Algumas reflexões. In: PORTO, Bernadete de Souza (Org.). Ludicidade: o que é mesmo isto? Salvador: UFBA/FACED/PPGE/GEPEL, 2002.

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VINHA, Telma Pileggi. O educador e a moralidade infantil: Uma visão construtivista. Campinas, S.P.: Mercado de Letras/ Fapesp, 2000.

Referências

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