• Nenhum resultado encontrado

Matemáticas de formas de vida rurais: a unidade de medida TAMINA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Matemáticas de formas de vida rurais: a unidade de medida TAMINA"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

26

Matemáticas de formas de vida rurais: a unidade de medida

TAMINA

Sabrina Silveira de Oliveira Mestre em Educação

Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS binaoliveira10@hotmail.com

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar, a partir de uma releitura, excertos de entrevistas realizada em 2006, que objetivava descrever e analisar os saberes matemáticos presentes nas práticas dos pequenos agricultores do município de Santo Antônio da Patrulha, situado no estado do Rio Grande do Sul, na obtenção do crédito rural1. A intenção da investigação foi verificar as estratégias de cálculo e os modos de operar com conhecimentos matemáticos na decisão do empréstimo agrícola feita pelos agricultores. O material empírico que é aqui discutido foi constituído por entrevistas semi-estruturadas realizadas com trabalhadores rurais amparados pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF. As ferramentas teóricas do estudo advêm da Etnomatemática em seus entrecruzamentos com as teorizações de Michel Foucault e as ideias de Wittgenstein em sua obra Investigações Filosóficas. A análise do material de pesquisa mostrou que os jogos de linguagem efetivados pelos agricultores na medição do terreno a ser cultivado e suas relações com os jogos de linguagem presente na matemática escolar. Como resultados preliminares, identifiquei a utilização, por parte dos agricultores, de uma unidade de área de medida diferenciada: A TAMINA. Além disso, analisei as etapas para obtenção do crédito agrícola e os cuidados que os pequenos agricultores observavam para tirar melhor proveito do benefício e, dessa forma, garantir a sua sobrevivência.

Palavras-chave: Educação matemática. Etnomatemática. Agricultores.

Abstract: The paper aims to analyze, from a rereading excerpts from interviews conducted in 2006, which aimed to describe and analyze the present mathematical knowledge in the practices of small farmers in the municipality of Santo Antônio da Patrulha, located in Rio Grande do Sul, in obtaining credit rural. The intent of this investigation was to verify the calculation strategies and modes of operating with mathematical knowledge in agricultural loan decision made by farmers. The empirical material that is discussed here consisted of semi-structured interviews with rural workers supported by the National Program to Strengthen Family Agriculture- PRONAF. The theoretical tools in this study stem from Ethnomathematics in its crossings with the theories of Michel Foucault and Wittgenstein’s ideas presented in his book Philosophical Investigations. The analysis of this data suggests that the language games effected by farmers in the measurement of land to be cultivated and their relationships with this language games in school mathematics. As preliminary results have identified the use by farmers in an area unit of measure different: The TAMINA. In addition, I reviewed the steps for obtaining agricultural credit and the care that small farmers looked to take best advantage of the benefits and thus ensure their survival.

Keywords: Mathematics Education. Ethnomathematics. Farmers.

1 Este trabalho de investigação foi desenvolvido em 2006 no curso de graduação em Licenciatura Matemática da Faculdade Cenecista de Osório- FACOS/RS, na disciplina de Tópicos em Educação e Trabalho sob a orientação da Prof. Dra. Claudia Glavam Duarte.

(2)

27

Introdução

Entre quem dá e quem recebe, entre quem fala e quem escuta, há uma eternidade sem consolo. (JUARROZ apud LARROSA, 2004, p.15)

Este texto tem por objetivo analisar, a partir de uma releitura, excertos de entrevistas que foram produzidas no ano de 2006, quando realizei a parte empírica de uma investigação intitulada: Saberes matemáticos produzidos por pequenos agricultores na obtenção de crédito rural: um estudo de inspiração etnomatemática2. A pesquisa, de cunho qualitativo e com inspirações advindas da etnografia envolveu um grupo de agricultores que estavam vinculados ao PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).

Ao debruçar-me novamente sobre os excertos que foram produzidos naquela época, identifiquei a multiplicidade de sentidos que são disponibilizados por tais materiais, ou seja, experimentei a “eternidade sem consolo” que se dá “entre quem fala e quem escuta” de que adverte Juarroz. E é justamente esta eternidade que se abre que me permite atribuir novos significados ao que foi produzido anteriormente.

Desta forma, este trabalho emerge a partir de um outro olhar sobre algumas entrevistas que realizamos durante a investigação. Os fios teóricos que nos possibilitam esta nova intenção são provenientes das ideias de Wittgenstein, mais especificamente, aquelas produzidas em sua obra intitulada Investigações Filosóficas3 e algumas das teorizações de Michel Foucault.

2 A primeira versão desse trabalho foi apresentada no III Congresso brasileiro de Etnomatemática ocorrido no ano de 2008 em Niterói, RJ.

3 A obra de Wittgenstein apresenta duas filosofias radicalmente diferentes. A primeira está representada em sua obra Tractatus Lógico-Philosophicus (1921), na qual o autor procura, segundo Condé (1998, p. 42), “traçar um limite para o pensar, ou melhor, para a expressão dos pensamentos, pois, como esclarece, ainda no prefácio, este limite é possível de ser traçado na linguagem [...]”. Wittgenstein examina, através dos seguintes questionamentos, a essência da linguagem: “O que é a linguagem? Qual sua essência, função e estrutura?” (1998, p. 49). A segunda filosofia wittgensteiniana encontra-se principalmente desenvolvida na obra Investigações

Filosóficas (1991). Neste estudo, o autor muda radicalmente suas concepções sobre a linguagem.

”Não devemos perguntar o que é a linguagem, mas de que modo ela funciona. Não nos cabe buscar uma suposta essência oculta na linguagem, mas tão somente compreender os diversos usos da linguagem” (1998, p. 86).

(3)

28 De forma específica, a investigação foi realizada com trabalhadores rurais do município de Santo Antônio da Patrulha, situado no litoral norte do estado do Rio Grande do Sul. Estive interessada em evidenciar os jogos de linguagem que foi possível identificar, por suas semelhanças de família, com a matemática acadêmica, no momento em que os agricultores amparados pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF decidem se farão uso do empréstimo agrícola. Tais decisões fazem parte do cotidiano dos habitantes de tal região, quando os agricultores debatiam sobre os supostos “benefícios” ou “perigos” de tal empreendimento. Nestes debates os agricultores relatavam sobre as dificuldades que encontravam para a obtenção do crédito rural, com também para participarem do programa e assim poderem gerar renda e não ter prejuízos com o plantio. Isso ficou evidenciado nos depoimentos:

Tem que rezar pra dar um bom ano, pois se inventa chover muito, bá, daí a gente pode perder tudo os aipim, mas se perder não interessa tem que paga igual, né?

Pra consegui o empréstimo tem que fazer tudo certinho, né? Mas até que venha o dinheiro (...) porque às vezes demora né? Então o que sobra pra nós é esperar eles [o sindicato] nos avisar.

Pra participar [do programa] não dá pra ser sozinho, tem que participar de um grupo ou pode ser de dois, e aí tem que confiar no amigo, porque se ele não paga, eu tenho que paga a minha parte e a dele também.

Assim, tal programa foi criado pelo Governo Federal em 1995, para atender, de forma diferenciada, o pequeno produtor rural mediante apoio financeiro para o desenvolvimento de suas atividades. Assim, seu objetivo estaria vinculado ao fortalecimento e a valorização do agricultor familiar, visado integrá-los a cadeia de agricultores, proporcionar-lhes aumento de renda e agregação de valor ao produto e à propriedade, mediante sua profissionalização e modernização do sistema produtivo.

(4)

29 Dada a intenção governamental, é possível perceber o quanto a agricultura familiar apresenta-se como alternativa para o desenvolvimento brasileiro, gerando renda, alimentos e o desenvolvimento da área rural. É neste cenário que percebemos que os agricultores desenvolviam estratégias próprias de sobrevivência e de produção, visto que tinham de responder a constantes desafios. Nosso interesse estava exatamente na análise de tais estratégias.

Engendrando a pesquisa

A pesquisa de cunho qualitativo e com inspirações advindas da etnografia fez uso de técnicas tais como: observações diretas, entrevistas semi-estruturadas, diário de campo, gravador e fotos. A investigação contou com o depoimento de três agricultores. O agricultor Elmo Dias Amaral de Oliveira, um senhor de 59 anos plantador de aipim, cana de açúcar e amendoim, o senhor Renato Silveira Cônsul de 39 anos e sua esposa Maria Nair Portal Cônsul, de 33 anos que se dedicam há aproximadamente 12 anos a agricultura.

Elaborei para as entrevistas um roteiro. No entanto, à medida que íamos conversando acrescentava outros questionamentos resultantes das dúvidas que iam surgindo no decorrer das entrevistas. Desta forma, refleti sobre o quanto, mesmo próxima desta realidade, desconhecia a riqueza de seus detalhes.

Os fios teóricos que possibilitaram analisar os resultados encontrados ao longo da parte empírica da pesquisa são provenientes das ideias de Ludwig Wittgenstein da obra Investigações Filosóficas (1991) e teorizações de Michel Foucault.

As ideias propostas por Wittgenstein têm contribuído, para problematizar o caráter universal pretendido pela matemática acadêmica e, em efeito, alicerçar as afirmações a respeito da existência de diversos jogos de linguagem que guardam maior ou menor semelhança de família com a matemática acadêmica.

A afirmação de que não há uma essência da linguagem pode ser entendida por meio da concepção de uso, apresentada na obra Investigações Filosóficas (1991). Tal

(5)

30 concepção é "totalmente contrária à concepção essencialista da linguagem" (CONDÉ, 1998, p.90), pois a significação não contém em si uma "essência invariável"; a significação é obtida pelo uso que dela fazemos, sendo modificada, portanto, a cada novo uso (Ibidem, p. 90). Dessa forma, para o filósofo, não cabem perguntas por determinadas "essências metafísicas" e, sim, analisar a utilização de determinadas expressões, em diferentes contextos e situações (Ibidem, p.91). Ainda, segundo Condé (1998), foi esse "aspecto pragmático" contido nos usos de expressões do dia-a-dia que conduziu Wittgenstein à noção de jogos de linguagem.

Com isso, Wittgenstein aborda a linguagem como um jogo, que compreende não só o "conjunto de linguagens”, mas também as "atividades com as quais está interligada" (WITTGENSTEIN, 1991, p.12). Ao abordar o termo jogos de linguagem, Wittgenstein exemplifica vários jogos, como "[...] Inventar uma história; ler; representar teatro; cantar uma cantiga de roda; resolver enigmas” (Ibidem, p.19), no entanto não define o que sejam os jogos de linguagem (como também não se ocupa de qualquer tipo de definição). Considerando que os jogos de linguagem são múltiplos e variados, Wittgenstein propõe a noção de semelhanças de família que denota que as únicas conexões existentes entre os jogos de linguagem são como "semelhanças que existem entre os membros de uma família" (Ibidem, p.53), pois tais jogos se articulam entre si ou com outros jogos de outras formas de vida. Nesta pesquisa, utilizo para a análise do material de pesquisa produzido a perspectiva Etnomatemática, cujo entendimento se dá como uma caixa de ferramentas teóricas que possibilita:

estudar os discursos eurocêntricos que instituem a matemática acadêmica e a matemática escolar e seus efeitos de verdade; discutir questões da diferença na educação matemática, considerando a centralidade da cultura e as relações de poder que a instituem; e examinar os jogos de linguagem que constituem as diferentes matemáticas produzidas por distintas formas de vida (KNIJNIK, 2009).

A autora, servindo-se das ideias presentes na obra de maturidade de Wittgenstein, destaca a possibilidade de questionar as "pretensões de universalidade" da matemática, "especialmente no que diz respeito à não existência de uma única matemática, essa que chamamos “a” matemática, com suas marcas eurocêntricas, do formalismo e da abstração" (KNIJNIK & WANDERER, 2006, p. 57). Tais ideias, provenientes da obra de Wittgenstein, colaboram para inferir acerca das diferentes

(6)

31 formas existentes de pensar matematicamente, o que possibilita afirmar a existência de diferentes matemáticas.

em síntese, com o apoio das idéias do “segundo Wittgenstein”, se pode conceber a existência de distintas matemáticas - como a matemática acadêmica, a matemática escolar, a matemática camponesa etc - com o fundamento de que a cada uma corresponde uma forma de vida, pondo em ação jogos de linguagem, cada um deles constituído por regras específicas que conformariam sua gramática. Cada um desses jogos teria sua especificidade mas também guardaria, em diferentes graus, semelhança com outros jogos (quer seja os produzidos pela forma de vida à qual está associado ou por outras formas de vida) ( KNIJNIK, 2008a, p. 140).

Foi a partir destes entendimentos que lancei um olhar para o material de pesquisa produzido. Pretendi analisar e refletir sobre os diferentes jogos de linguagem que estiveram presentes quando realizei a parte empírica da pesquisa e, construir, desta forma, a possibilidade de tecer outros fios para a análise, que não se pretendem melhores ou piores, mas simplesmente outros...

Verifiquei primeiramente as etapas para obtenção do crédito agrícola e os cuidados que os pequenos agricultores observavam para tirar melhor proveito do benefício e dessa forma garantir a sua sobrevivência.

Para calcular o valor do empréstimo referente à área destinada ao plantio os entrevistados punham em ação algumas estratégias. Segundo o depoimento do senhor Renato:

Quando a gente vai ao sindicato, têm que levar a escritura de

nossas terras, daí eles [o sindicato] faz os cálculos e nos dão o valor do empréstimo. Aqui no contrato diz 0,78 ha [hectares] de terras pra plantá o aipim, então me deram R$509,70.

Percebi então que o cálculo do valor estipulado para o crédito ficava sob responsabilidade do Sindicato Rural e da Emater do município. Isto evidenciava, para nós, a fragilidade a que estavam expostos muitos dos agricultores, pois estes dependiam dos cálculos efetuados pelo “pessoal do sindicato”. No entanto, estava interessada em compreender o que eles entendiam por cálculo da área destinada ao plantio. Após uma “provocação” Seu Elmo foi me explicando:

(7)

32 Em 1.000m2 cabe 2 taminas e mais um pouquinho, ah! a tamina é 20 braças [medida do meio rural] por 10 braças e a braça tem 2 m e 22 cm,[calculando a área a tamina mede 444 m2) então em 10.000 m2 que é igual a 1 ha cabe umas 22 taminas.

É possível inferir que a unidade de medida Tamina praticada pelos agricultores entrevistados está inserida na perspectiva de que:

Tanto a matemática quanto a lógica constroem um espaço de verdades necessárias sobre o que é possível na comunicação entre os homens. Elas proporcionam os parâmetros de medida e portanto são anteriores a qualquer classe de correspondência entre o que se diz e a realidade (RIVERA, 1996, p.140)

De acordo com Rivera a utilização de um sistema de medida está ancorado em regras normativas que implicam uma determinada conduta por aqueles que a aceitam. Desde essa perspectiva não caberia perguntar de antemão se tais unidades de medida são verdadeiras ou falsas porque essas é que vão determinar uma maneira de ver e lidar com o mundo, ou seja, essas imprimem “a estrutura formal” que permitirá posteriormente decidir sua validade ou não. Os parâmetros para essa decisão estariam segundo a autora, alicerçados, na resposta à seguinte questão: essa “responde aos fins práticos para o qual foi criada?” (RIVERA, 1996, p. 141). A partir dessa resposta é que uma determinada forma de vida poderia justificar a utilização de um determinado sistema de medida, como a Tamina, por exemplo. Assim, segue a autora:

Ao imaginarmos sistemas alternativos não entramos em contradição com verdade alguma, já que nenhuma verdade preexiste a inferência lógica, senão que é essa atividade de inferência a que permite estabelecer toda a verdade. (Ibidem, p. 141)

Foi no sentido de perceber as inferências que eram realizadas é que os questionei sobre os modos que utilizavam para calcular seus lucros, tendo essa unidade medida como padrão. Segundo um dos entrevistados: em uma tamina “dá para

colher 2.000 kg de aipim, sendo que a área destinada ao plantio cabe 17,5 taminas, então pode-se dizer que vamos colher 35.000 kg de aipim, pois 2.000 x 17,5 = 35.000 kg. Em seguida ele complementou sua explicação com a seguinte

(8)

33 relação:Pra vê se dá lucro é só multiplicar: este ano vai dá uns 2.000kg de aipim, eu

sei que o quilo custa R$ 0,50 (centavos), se fosse 200 kg x R$ 0,50 = R$ 100,00, então 2.000 kg é R$1.000.

Assim, a partir das explicações é possível inferir que as seguintes relações foram

estabelecidas: uma tamina corresponde uma área de 20 x 10 braças. Cada braça corresponde a 2,22 metros, então uma tamina tem 200 braças, ou seja, 444 m2. Um hectare mede 10.000 m2, como uma tamina mede 444 m2, cabem 22,5 taminas em hectare, pois 10.000: 444 = 22,5.

No entanto, a gramática presente nos jogos de linguagem de uma forma de vida não se constitui em um sistema hermético. Esta não é própria ou exclusiva de uma dada forma de vida. Inversamente, a gramática constitui-se em um sistema aberto, flexível e dinâmico. Tal característica permite que ocorram, em uma linguagem wittgensteiniana, semelhanças de família entre diferentes jogos de linguagem. Dito de outra maneira;

[...] a gramática de uma forma de vida não é fechada e é a partir desse aspecto que ela possui, em medidas diversas, ramificações que se constituem como “semelhanças de família”, podendo interconectar-se com gramáticas de outras formas de vida. Essas eventuais semelhanças entre gramáticas distintas não são possibilitadas por nenhuma “super gramática” nem mesmo por nenhum elemento transcendental, mas pelas semelhanças no modo de atuar dessas formas de vida (CONDÉ, 2004, p. 29-30)

Neste sentido, a gramática enquanto um conjunto de regras constituídas nas práticas sociais está aberta às múltiplas conexões, apresentando interfaces – semelhanças de família - com outras gramáticas que correspondem a outras formas vida. Foi através de semelhanças de família identifiquei os jogos de linguagem postos a operar pelos agricultores com aqueles desenvolvidos pela matemática acadêmica

Além destas contribuições, para melhor entender o objeto de estudo, busquei as teorizações de Michel Foucault, especialmente as que dizem respeito à noção de

(9)

34 saberes sujeitados, isto é, “saberes locais, singulares” que foram deixados de lado “pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências” (FOUCAULT, 2005, p.12).

De forma mais específica, para esse filósofo (1999, p.170) os saberes sujeitados compreendem um conjunto de saberes que foram rechaçados ou dissimulados “em coerências funcionais ou em sistematizações”. Entretanto, a eminência de novos fundamentos históricos tornou possível verificação de confrontos, de modo que se tornaram visíveis aqueles saberes que haviam sido desqualificados em virtude da presumida insuficiência na elaboração quando comparados à condição requerida pelo conhecimento considerado cientifico. Desenvolveram-se então pesquisas que possibilitaram “a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais” (ibidem, p.171). Essas pesquisas não consistiram em se opor às teorias abstratas em beneficio dos fatos concretos, mas à condição teórica que tinha a pretensão de tornar os saberes locais hierarquizados e classificados tendo como parâmetro um suposto conhecimento que seria válido. Seguindo Foucault (2005, p. 200) diríamos que tais pesquisas não pretendem “fazer nem a

história dos reis nem a história dos povos, mas a história daquilo que constitui, um em face do outro, esses dois termos, dos quais um nunca é infinito e o outro nunca é zero.”

É possível inferir que estes jogos de linguagem praticados pelos agricultores façam parte dos saberes marginalizados, excluídos e menosprezados.

Resultados preliminares

Este artigo baseou-se em uma pesquisa qualitativa e contou com um grupo de pequenos agricultores da cidade de Santo Antônio da Patrulha. Teve como objetivo identificar e analisar os saberes matemáticos presentes para obtenção do crédito rural. Foram realizadas observações, entrevistas, fotos para que nós pudéssemos apreender de forma mais densa esta prática social.

Para a análise dos dados obtidos foi utilizado, como referencial teórico, a vertente da Educação Matemática, denominada Etnomatemática em suas vinculações com as

(10)

35 idéias desenvolvidas por Ludwig Wittgenstein na obra Investigações Filosóficas e algumas das teorizações de Michel Foucault no que diz respeito a noção de saberes sujeitados. Através deste estudo percebi o quanto é importante, para os agricultores, o incentivo do Governo Federal para que sejam garantidas condições de subsistência para os agricultores.

Como resultados preliminares, identifiquei a utilização, por parte dos agricultores, de uma unidade de área denominada: A TAMINA. Esta corresponde a uma medida por 20 braças (medida do meio rural) por 10 braças. Além disso, analisei as etapas para obtenção do crédito agrícola e os cuidados que os pequenos agricultores observavam para tirar melhor proveito do benefício e, dessa forma, garantir a sua sobrevivência. No entanto, o cálculo do valor estipulado para o crédito ficava sob responsabilidade do Sindicato Rural e da Emater do município, visto que a unidade de medida de área utilizada para calcular este valor levava em conta a unidade “padrão” hectare. Duas análises foram feitas a partir dessa constatação. A primeira diz respeito a fragilidade a que estavam expostos muitos dos agricultores e a segunda referente a existência de jogos de linguagem diferentes daqueles que pertencem a matemática escolar.

A partir dessas análises podemos inferir que “olhar” para situações cotidianas, para situações já vividas e atribuir-lhes novos sentidos implica escapar da captura de discursos hegemônicos no campo da Educação Matemática. Como afirma Wittgenstein

O ideal está fixado em nossos pensamentos de modo irremovível. Você pode sair dele. Você tem que voltar sempre de novo. Não existe um lá fora; lá fora falta o ar vital. – Donde vem isto? A idéia está colocada, por assim dizer, como óculos sobre o nosso nariz, e o que vemos, vemo-lo através deles. Não nos ocorre tirá-los. (WITTGENSTEIN, 1991, p. 69).

É com os óculos da Matemática acadêmica que tem sido construído este suposto “ideal”. No entanto, é preciso considerá-la como uma lente, uma possibilidade, uma linguagem que não é o reflexo do mundo, mas que, ao “dizer sobre o mundo”, acaba por construí-lo e o faz de uma maneira bastante peculiar. Neste sentido, a pesquisa desenvolvida insere-se na árdua tarefa dos trabalhos que buscam desestabilizar o solo fixo das possibilidades de lidar com o conhecimento matemático, com a

(11)

36 Educação Matemática e, principalmente, com modos de ser e tornar-se professor de matemática.

Referências

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm Editora, 2004.

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein Linguagem e Mundo. São Paulo: Annablume, 1998.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KNIJNIK, Gelsa.Educação matemática e diversidade cultural: matemática camponesa na luta pela terra. In: PALHARES, Pedro (Org.). Etnomatemática: um olhar sobre a diversidade cultural e a aprendizagem matemática. 1.ed. Ribeirão: Edições Húmus, 2008a. v. 1. p.131-156.

KNIJNIK, Gelsa. Pesquisa em Etnomatemática: apontamentos sobre o tema. In: Etnomatemática: novos desafios teóricos e pedagógicos. Niteroi: Editora da UFF, 2009b, v.1, p. 133-140.

KNIJNIK, Gelsa; WANDERER, Fernanda. “A vida deles é uma matemática”: regimes de verdade sobre a educação matemática de adultos do campo. Revista Educação Unisinos. São Leopoldo, volume 4, n.7, jul/dez 2006. p.56-61.

LARROSA, Jorge. Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MORENO, Arley R. Wittgenstein através das imagens. Campinas: ed. da UNICAMP, 1995.

(12)

37 RIVERA, Silvia. Ludwig Wittgenstein: Matemática y Etica. Cuadernos de Etica, Buenos Aires, n, 21/22, 1996.p 140-141.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. (Coleção Os Pensadores.) São Paulo: Nova Cultural, 1991.

Referências

Documentos relacionados

Ficou com a impressão de estar na presença de um compositor ( Clique aqui para introduzir texto. ), de um guitarrista ( Clique aqui para introduzir texto. ), de um director

Todavia, há poucos trabalhos sobre interferência de herbicidas no crescimento da cultura; portanto, visando avaliar os efeitos de amicarbazone e diuron + paraquat, estes foram

Para Souza (2004, p 65), os micros e pequenos empresários negligenciam as atividades de planejamento e controle dos seus negócios, considerando-as como uma

Our contributions are: a set of guidelines that provide meaning to the different modelling elements of SysML used during the design of systems; the individual formal semantics for

In this study clay mineral assemblages, combined with other palaeoenvironmental data, were studied in a core recovered from the outer sector of the Ria de Vigo, a temperate

Dessa forma, a partir da perspectiva teórica do sociólogo francês Pierre Bourdieu, o presente trabalho busca compreender como a lógica produtivista introduzida no campo

Mesmo com suas ativas participações na luta política, as mulheres militantes carregavam consigo o signo do preconceito existente para com elas por parte não somente dos militares,

Como o predomínio de consumo energético está no processo de fabricação dos módulos fotovoltaicos, sendo os impactos da ordem de 50 a 80% nesta etapa (WEISSER,