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OFICINA PSICOTERAPÊUTICA DE VELAS: CUIDADO À MULHER QUE PERDEU A GUARDA DOS FILHOS. Miriam Tachibana Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

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1 OFICINA PSICOTERAPÊUTICA DE VELAS:

CUIDADO À MULHER QUE PERDEU A GUARDA DOS FILHOS

Miriam Tachibana

Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

Olhando para a mulher que perdeu a guarda do filho Há alguns anos, uma de nós

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vem atuando numa ONG, situada no interior do estado de São Paulo, que presta atendimento psicológico, jurídico e social à mulheres, adolescentes e crianças que sofrem violência doméstica. No decorrer deste período, surgiu o interesse em criar um espaço psicoterapêutico junto a mulheres que haviam perdido a guarda de seus filhos, fosse porque eram negligentes, fosse porque os agrediam física ou psicologicamente ou, ainda, compactuassem silenciosamente com a violência sexual à qual estavam sendo submetidos por seus pais/padrastos.

Este iniciativa clínica, que se configura como proposta de prática psicológica em instituição, pela via da utilização de um enquadre diferenciado, tem como ponto de partida nossa compreensão de que a vivência de abrigamento dos filhos, com o direito de visita eventualmente cassado, pode levar a mulher a vivenciar um sofrimento radical, que justifica a atenção psicológica clínica. Além disso, consideramos que a importância crucial que o vínculo entre pais e filhos tem para a criança justifica a realização de esforços no sentido de favorecer o desenvolvimento da capacidade de ser mãe.

Pudemos observar que são escassos, na literatura científica, os trabalhos voltados à mulher que perdeu a guarda dos filhos, enquanto é relativamente grande a produção de estudos acerca das crianças e adolescentes que vivem em abrigos, dentre os quais podemos destacar os de Nogueira e Costa (2002), Azevedo (2001), Arpini (2003) e Rotondaro (2002). Aparentemente, a comunidade científica volta-se mais facilmente para a dor vivida pela criança que é retirada de seu lar, o que se compreende já que vivemos um período histórico, em escala mundial, no qual as vítimas, felizmente, têm recebido atenção, se não das autoridades competentes, pelo menos dos pesquisadores (Wiviorka, 2005).

Por outro lado, é provavelmente bastante angustiante trabalhar clinicamente com mulheres que ferem o nosso ideal de mãe devotada, ficando, desse modo, emocionalmente mais fácil voltar-se para a parte “vitimizada” desta relação - “cuja

1 A pesquisadora que vêm atuando na instituição em questão é Miriam Tachibana.

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2 separação da mãe pode provocar cicatrizes emocionais profundas”, nas palavras de Nogueira e Costa (2005, p. 164) -, ao invés de olhar para a parte agressora. Entretanto, ainda que seja emocionalmente difícil olhar para mulheres que descuidaram de seus filhos, estamos, aqui, diante de problemática humana relevante que demanda cuidados clínicos, exigindo do psicólogo o esforço contínuo para evitar concepções preconceituosas e estereotipadas que possam comprometer, de maneira nem sempre evidente ou mesmo consciente, a ética e o respeito à singularidade de cada mulher.

Ao criar um espaço terapêutico para mães que perderam a guarda de seus filhos, seguimos delineamentos clínicos concebidos a partir de uma interlocução muito próxima e constante com a Psicanálise winnicottiana do self (Aiello-Vaisberg, 2004), que buscam favorecer o amadurecimento emocional dos pacientes, que podem, por esta via, tornarem-se menos dissociados e mais presentes à própria experiência. Outra é, entretanto, a concepção do Conselho Tutelar, bem como os demais órgãos da rede de apoio, uma vez que apostam em medidas reeducativas, como se as condutas de descuido materno fossem causadas por falta de informação. Sua expectativa era, assim, a de que as mulheres fossem rapidamente condicionadas a assumir comportamentos mais adaptados do ponto de vista social, tendo em vista a rápida retomada da guarda dos filhos, a partir da realização de uma avaliação psicológica verificatória. Sabemos que atividades deste tipo são aquelas mais frequentemente realizadas pelas entidades que atuam junto à Vara da Infância e ao Conselho Tutelar, mas, pensando diferentemente, destinamos o espaço psicoterapêutico que criamos ao acolhimento de mulheres que, em seu sofrimento, deveriam ser tomadas como pacientes no sentido preciso que o termo assume na clínica psicológica, evitando comprometermo-nos, de saída, com este ou aquele “resultado”, para nos concentrarmos no trabalho de favorecimento da superação de dissociações e da conquista de amadurecimento pessoal.

Criando um enquadre clinico diferenciado

Quando estabelecemos, como psicanalistas, objetivos que envolvem trabalho clínico em instituições, somos levados a buscar enquadres diferenciados cujas linhas mestras permitam o uso do método psicanalítico fora do dispositivo padrão, cunhado para atendimento individual do paciente neurótico em clínica privada. São diversos os psicanalistas contemporâneos que vêm discutindo as restrições da clínica convencional, seja por não dar conta da elevada demanda por psicoterapia - gerando

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3 as conhecidas filas de espera, para atendimento psicológico, nas instituições públicas -, seja pelo uso irrestrito de interpretações, que consistem numa intervenção desenvolvida por Freud em relação ao paciente neurótico, diagnóstico este que não condiz com as formas de sofrimento emocional com as quais lidamos atualmente, dentre as quais o sofrimento vivido por estas mulheres, cujas vidas ficam visivelmente “interrompidas” pelo episódio de abrigamento de seus filhos.

Desse modo, idealizamos um enquadre clínico diferenciado, inspirado nas oficinas psicoterapêuticas de criação, que vêm sendo realizadas e investigadas pelos

pesquisadores da Ser e Fazer, do instituto e Psicologia da Universidade São Paulo

2

. A oficina psicoterapêutica diferencia-se do dispositivo padrão freudiano em três principais aspectos, os quais se encontram articulados aos conceitos winnicottianos: 1) realização de um trabalho em grupo, 2) apresentação de uma materialidade mediadora e 3) intervenção de tipo não interpretativa.

No que concerne ao trabalho psicoterapêutico ser realizado em grupo, faz-se importante ressaltar que nossa opção não se relacionou, de maneira alguma, à concepção estereotipada de que a vantagem desta modalidade de trabalho seria a oportunidade de atender um número maior de pacientes em pouco tempo, o que seria conveniente para as instituições públicas. Embora reconheçamos, sim, que atender em grupo traz conseqüências vantajosas para os equipamentos de saúde pública, nossa escolha por esta estratégia de trabalho residiu, prioritariamente, em nossa compreensão de que esta é a situação natural em que transcorre a vida humana, já que o homem é essencialmente um ser social (Aiello-Vaisberg e Machado, 2003). Alguns autores, dentre os quais podemos destacar Mello Filho (2001), chegam inclusive a fazer uma comparação do grupo terapêutico ao grupo familiar, com o terapeuta desempenhando a função de “mãe suficientemente boa”, enquanto os demais integrantes corresponderiam aos membros da família, que, juntos, poderiam vir a fornecer sustentação emocional uns aos outros, enquanto grupo. Embora concordemos com a psicossociologia francesa, quando adverte quanto aos riscos de reduzirmos o social ao familiar, não deixamos de considerar que, quando lidamos com pacientes muito prejudicados emocionalmente, a constituição de um espaço grupal protetor, que possa cumprir funções de proteção como a que, em nossa formação social, está a carga da família, pode gerar efeitos altamente benéficos.

A apresentação de materialidade mediadora é um recurso inspirado no Jogo do Rabisco de Winnicott, que consistia num brincar através do qual Winnicott (1968)

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4 tentava proporcionar um espaço no qual seu paciente pudesse agir espontaneamente a partir de seu verdadeiro self. Desse modo, Winnicott inaugurou uma clínica gestual, que não usava o brincar como mero sucedâneo das associações verbais, que viabilizarem o acesso ao inconsciente do paciente, como fizera Klein (Aiello-Vaisberg, 2000), mas como atividade humana por meio da qual seria possível favorecer a ocorrência de experiências mutativas (Aiello-Vaisberg, 2004).

Afinada a esta concepção, no enquadre aqui criado, a psicóloga oferecia, enquanto materialidade mediadora, a parafina - embora pudesse ser qualquer outra materialidade com a qual tivesse afinidade -, com o intuito de criar um espaço através o qual as mulheres pudessem integrar determinados aspectos dissociados, recuperando o gesto espontâneo, o que, para Winnicott (1960), consiste na saúde mental do indivíduo.

A estratégia de uso de intervenções não interpretativas relaciona-se à perspectiva winnicottiana segundo a qual as mudanças existenciais não se devem exatamente àquilo o que o indivíduo aprende sobre si mesmo, através de uma interpretação, mas, sim, porque, não sendo interrompido, o sujeito retomará um contato fundamental consigo mesmo, o que lhe proporcionará a superação de dissociações. Desse modo, ao invés de centrarmos a atividade clínica sobre a enunciação de sentenças interpretativas, nosso enquadre privilegiou o holding, que poderíamos conceituar como a postura devotada do analista, voltada à sustentação emocional do paciente, de modo a favorecer-lhe movimentos de superação de dissociação, que trazem mudanças existenciais.

Assim, demos início à uma oficina psicoterapêutica de velas, para atendimento de mulheres que haviam sido encaminhadas pelo conselho tutelar, seja porque perderam a guarda de seus filhos, seja porque estavam às vias de perder, bem como de outras que haviam buscado espontaneamente pelo auxílio psicológico.

Os encontros eram semanais e duravam cerca de duas horas. O grupo era constituído por no máximo seis integrantes, número este que foi escolhido levando em consideração a experiência prévia e bem-sucedida de outros integrantes da Ser e Fazer em relação aos enquadres clínicos diferenciados por eles criados. Assim, à medida em que eram abertas vagas na oficina psicoterapêutica, entravam novas participantes, as quais passavam previamente por uma entrevista psicológica individual, para que o trabalho não convencional pudesse ser explicitado, bem como para verificar sua adaptação ao grupo. Aqui, cabe explicarmos que os critérios utilizados para verificarmos a possibilidade de uma mulher vir a tornar-se participante

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5 do grupo nada tinham a ver com os critérios psicopatológicos que por vezes são usados: uma vez que partimos de um ideal inclusivo, que visa primeiramente incluir o indivíduo, esta inclusão só não ocorria quando percebíamos, a partir da entrevista psicológica inicial, que isto poderia não ser benéfico para o grupo ou, até mesmo, para a própria paciente.

Como o objetivo científico deste trabalho era o de investigar, psicanaliticamente, a potencialidade mutativa deste enquadre clínico diferenciado, no atendimento a mulheres que perderam a guarda de seus filhos, fazia-se necessário comunicar o acontecer clínico, de maneira a viabilizar reflexões clínico-teóricas. Decidimos fazer uso de uma forma especial de escrita, denominada narrativa psicanalítica (Granato e Aiello-Vaisberg, 2004) - estratégia esta que vem sendo utilizada com bastante eficácia pelos pesquisadores do Grupo de Pesquisa Atenção Psicológica Clínica em Instituições: Prevenção e Intervenção, da PUC-Campinas, e pelos membros da Ser e Fazer, na Universidade de São Paulo, -, a qual era redigida pela pesquisadora que realizou a oficina propriamente dita, após a realização de cada sessão. Após sua confecção, as narrativas foram apresentadas ao grupo de pesquisadores, não com o intuito de uniformizar as percepções a respeito do acontecer clínico, mas, pelo contrário, com a finalidade de promover uma multiplicidade de olhares, enriquecendo nossa percepção relativa aos eventuais movimentos de superação da dissociação, que confeririam a eficácia clínica do enquadre.

Narrando um caso da oficina psicoterapêutica de velas Ingrid chamava a atenção com a sua beleza: era uma negra de vinte oito

anos, alta, magra, com os cabelos compridos e sempre bem cuidados,

assim como seus lábios estavam sempre maquiados e suas unhas sempre

pintadas. Quem se prendesse à sua bela aparência jamais poderia

imaginar como sua história de vida fora marcada por privações radicais, e

como a sua vida atual ainda era carregada de privações.

A história de Ingrid começa no presídio. Foi lá que sua mãe lhe deu à luz

e também foi de lá que foi transferida a um abrigo, que viria a constituir seu

“lar” por muitos anos. Quando tinha por volta de cinco anos de idade,

acabou sendo abusada sexualmente por um dos monitores do abrigo, o

que motivou sua fuga. Acabou passando sua infância e adolescência

morando alternadamente na rua e em abrigos diversos, tornando-se vítima

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6 chamasse muita atenção, talvez por manter uma postura mais erotizada,

comum em meninas que têm sua vida sexual iniciada precocemente.

Começou a prostituir-se quando, a partir dos dezoito anos de idade, não

era mais abrigada, para conseguir sustentar-se financeiramente, de modo

a não ter que morar nas ruas. Nesta época, acabou engravidando e, como

não tinha condições financeiras e emocionais para cuidar de um bebê,

entregou Diego,com oito meses de idade, a um abrigo. Passados dois

anos, marcados pelo uso de drogas, pela promiscuidade sexual e por

doenças sexualmente transmissíveis..., Ingrid conheceu um rapaz, com

quem acabou se casando e assumindo uma vida relativamente estável.

Nesta época, decidiu procurar Diego. Foi em todos os abrigos da cidade,

até que, num deles, reconheceu seu filho, que tinha então quase três anos

de idade, a despeito de ter se separado dele quando ainda tinha feições

de um bebê. Pediu para retomar a guarda de Diego, no que foi bem

sucedida.

Por um tempo, Ingrid sentiu-se num conto de fadas, e chegou a acreditar

que viveria daí “feliz para sempre”. Teve dois filhos com seu marido, Dênis

e Daniela, que se relacionavam bem com Diego. Mas seu conto de fadas

desmoronou quando, num certo dia, Dênis foi contar-lhe, secretamente,

que ele e seu irmão Diego estavam sendo abusados sexualmente por seu

pai. Ingrid viu seu “príncipe encantado” sair de sua vida, e teve que

novamente lidar com o fantasma da violência sexual, desta vez não com

ela mesma, mas em relação aos seus filhos.

Sem ninguém que a ajudasse financeiramente, e tendo três crianças

para criar, Ingrid voltou ao mundo da prostituição. Muitas vezes,

encarregava Diego, seu filho mais velho, de ficar cuidando de seus irmãos,

enquanto estivesse ausente. Viveu assim por um tempo.

Certo dia, chegou em casa e viu uma cena que mudaria para sempre a

história de sua vida: Diego, que na época contava com sete anos de

idade,abusava sexualmente de sua irmã, Daniela, de três anos. Ingrid

descontrolou-se perante aquela cena e acabou fazendo aquilo o que

culminaria no abrigamento de seus três filhos: espancou tanto Diego, que

acabou ficando internado, durante alguns dias, na UTI de um hospital da

região, correndo risco de vida.

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7 Daniela continuam abrigados até hoje, mas Diego está sob a guarda de

Ingrid, há cerca de um ano, após ter fugido de diversos abrigos e de ter

abusado sexualmente de algumas crianças que estavam abrigadas. Assim,

Diego voltou a viver com Ingrid porque a rede não sabia mais como lidar

com ele, e não porque acreditavam que Ingrid estava pronta para recebê-lo

novamente, bem como que voltar a residir com ela fosse o melhor para a

criança.

É neste ponto que começa a história de Ingrid na oficina psicoterapêutica

de velas artesanais. Como queria retomar a guarda de Dênis e Daniela, o

conselho tutelar encaminhou Ingrid para que fosse atendida na ONG,

dentro do programa psicoterapêutico voltado às mães cujos filhos

encontram-se abrigados.

Ingrid, entretanto, não ingressou na oficina psicoterapêutica tão logo foi

realizado o encaminhamento. Passaram-se mais de nove meses antes que

aderisse ao programa. Neste meio tempo, via que ela estava receosa, e

cheguei a telefonar-lhe, algumas vezes, no sentido de transformar o

encaminhamento áspero do conselho tutelar em algo mais convidativo, que

lhe fizesse mais sentido. Assim, explicava-lhe que o objetivo maior era o

de acolher seu sofrimento, e não o de avaliá-la enquanto uma mãe apta ou

não a retomar a guarda das crianças. Ingrid, entretanto, nunca assumia

que sua não adesão ao programa derivava de alguma dificuldade

emocional, sempre dando justificativas superficiais de sua ausência – ora a

chuva, ora a falta de tempo, ora uma gripe... -, finalizando a conversa com

falsas promessas de que compareceria, na semana seguinte.

Assim, passaram-se nove meses. Já não tinha mais expectativas de que

Ingrid viesse a participar da oficina, tanto que já não lhe telefonava mais. E

foi neste contexto emocional que, numa determinada sessão da oficina

psicoterapêutica de velas, Ingrid apareceu. Abriu a porta, no meio da

sessão, e sentou-se ao lado de uma das pacientes, como se aquele

episódio fosse corriqueiro. Todas as presentes silenciaram, tamanha era a

surpresa que sua presença ali causou. Não querendo tornar aquele

momento mais difícil para Ingrid, quebrei aquele silêncio pouco acolhedor,

dizendo-lhe que estava surpresa com a sua presença ali e perguntando-lhe

se estava tudo bem.

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8 bem! Eu vim aqui porque eu quero retomar a guarda dos meus filhos, e sei

que preciso vir aqui para o conselho tutelar deixar isto acontecer”.

Ao ouvir esta fala, pensei comigo mesma: “Bom, mais uma paciente que

chega à oficina com a concepção equivocada de que basta participar do

processo psicoterapêutico para, daí, retomar a guarda dos filhos”. Pensei

assim porque, de fato, era muito comum as pacientes chegarem ao

programa assumindo uma postura bem objetiva e prática, sem conceber a

oficina psicoterapêutica como uma forma de serem cuidadas ou de se

desenvolverem emocionalmente. Era comum, no entanto, que, ao longo

dos encontros, as pacientes se “desarmassem”, deixando de lado um

discurso dissociado, brincando com as velas, confiando seus segredos... Entretanto, este não foi o caso de Ingrid, que manteve, ao longo de

muitos encontros, uma postura dissociada. Assim, era comum que Ingrid

ficasse discorrendo, de forma intelectualizada, sobre todos os

comportamentos estipulados pelo conselho tutelar que já adquirira - como

os de ter parado de se prostituir ou de usar drogas; o de ter encontrado um

emprego; o de fazer faxina na casa; o de levar Diego na escola ou o de

não deixá-lo sozinho em casa; o de comprar brinquedos para ele, dentre

outros -, queixando-se intensamente do fato do juiz não lhe devolver a

guarda de seus outros dois filhos.

Por outro lado, Ingrid mostrava certa dificuldade para entrar em contato

com seus próprios sentimentos, tanto que falava de sua triste história de

vida como se estivesse se referindo à vida de outra pessoa. Além disso,

era evidente sua dificuldade em lidar com os sentimentos dos outros, tanto

que, quando alguma outra paciente trazia um episódio mais tocante de sua

vida, Ingrid punha os fones do walkman no ouvido, evitando a escuta. Esta dissociação de Ingrid não transparecia apenas em sua fala e no

modo como se relacionava com as demais. Quando fazia velas - atividade

que só começou a desenvolver dois meses após ter começado a participar

da oficina psicoterapêutica de velas, alegando falta de vontade -, queria

fazer várias velas ao mesmo tempo. Assim, diferente das demais

pacientes, que costumam fazer apenas uma ou duas velas por sessão,

investindo bastante tempo na escolha dos enfeites, na criação das cores...,

Ingrid fazia mais de cinco velas num único encontro, sem deter-se tanto na

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9 daquela criação. Era um fazer dissociado.

Numa determinada sessão, Ingrid trouxe seu filho Diego para participar

da oficina, alegando que, naquele dia, não havia ninguém que pudesse

cuidar dele na sua ausência. Apesar de sentir-me incomodada com a

presença de Diego - afinal, aquele ambiente, constituído de mães que

haviam perdido a guarda de seus filhos, poderia vir a ser extremamente

invasivo para ele -, como as pacientes ficaram felizes com a presença de

uma criança ali no grupo, e Diego olhava deliciosamente para as fôrmas de

velas, pronto para brincar, permiti que participasse daquela sessão.

Ao longo daquele encontro, pude notar, novamente, a dificuldade

emocional de Ingrid, desta vez em relação à Diego. Enquanto a criança

solicitava bastante a sua atenção, ora pedindo que o ajudasse a fazer sua

vela, ora abraçando-a enquanto ela fazia a própria vela, comunicando toda

a sua carência emocional, Ingrid parecia ficar irritada com a aproximação

do filho. Dava-lhe broncas, dizendo que a estava atrapalhando na sua

criação de velas, ou, ainda, brigava com ele por fazer erroneamente a sua

vela. Ficou irritada quando, no final do encontro, Diego pegou a vela que

fizera, em forma de estrela, e a pôs ao lado da vela em formato de estrela

que ela fizera na semana anterior, mas que ainda estava na estante da

oficina porque não ficara seca a tempo de ser levada embora. Disse,

irritada: “Pára de me imitar, menino!”

A primeira sessão em que senti Ingrid menos defendida foi justamente

em nosso primeiro encontro após a sessão da qual Diego participara.

Comentou que achava Diego pouco criativo, pois a imitava nas velas, no

vocabulário, nas comidas preferidas, no modo de caminhar..., e que

achava que o filho precisaria desenvolver sua criatividade. Concluiu que

sua irritação com ele devia-se, na verdade, à sua preocupação com o seu

desenvolvimento intelectual. Disse-lhe: “Eu também acho que deve ser

muito difícil ver o Diego ‘imitando’ a sua história de vida, vivendo em

abrigos desde bebê, sendo abusado por quem deveria ser cuidador... Esta

história ‘imitada’ dele deve te trazer muita preocupação, eu imagino...” Neste momento, o rosto de Ingrid se desfigurou. Aquele traço de braveza

que sempre caracterizava seu semblante cedeu lugar a um rosto sofrido,

marcado por algumas lágrimas que escorriam timidamente. Depois de

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10 triste? Eu olho para ele e vejo à mim mesma...”

Foi neste encontro que Ingrid começou a ouvir verdadeiramente o que as

outras pacientes do grupo traziam, deixando de pôr os fones de ouvido de

walkman. Assim, ficou tocada quando ouviu Mercedes, uma senhora de

sessenta anos, contando de sua dificuldade de relacionamento com sua

filha de trinta anos, a quem denunciara ao conselho tutelar por estar sendo

negligente com sua neta. Mercedes participava do grupo travando uma luta

consigo mesma para não exceder em seus cuidados maternos, deixando

que sua filha se desenvolvesse enquanto mãe, o que até então ela vinha

sabotando.

No final deste encontro, Ingrid pediu um abraço para Mercedes e falou:

“Eu queria que você fosse a minha mãe... Eu queria ter o cuidado que você

dá à sua filha...”

Refletindo a partir do acontecer clínico

Da desconfiança à confiança

O primeiro aspecto do acontecer clínico que gostaríamos de considerar diz respeito à entrada de Ingrid na oficina psicoterapêutica. Tal como pôde ser observado, a partir da apresentação da narrativa psicanalítica, a paciente mostrou-se extremamente resistente ao processo psicoterapêutico,, num movimento contrário ao que Winnicott (1970) observara em muitos de seus pacientes. Assim é que o enquadre das consultas terapêuticas foi cunhado, pelo psicanalista inglês, a partir da percepção de que um bom trabalho terapêutico poderia ser realizado em poucos encontros exatamente porque o paciente chegava cheio de esperança de vir a ser compreendido.

Nesta nossa oficina psicoterapêutica, entretanto, não apenas Ingrid, como a maioria das pacientes, chegava desesperançosa e sem confiança na possibilidade de encontrar uma ajuda efetiva. Podemos pensar que esta diferença - entre a confiança descrita por Winnicott e a desconfiança encontrada por nós - esteja relacionada ao fato das histórias de vida de nossas pacientes terem transcorrido, concretamente, em ambiente humanos bastante deteriorados e distanciados do que se poderia qualificar como suficientemente bom. Sendo assim, é razoável conjecturar que tenham tido pouca condição de viver experiências de ilusão onipotente, que são a base da possibilidade de “crer em” e, portanto, a esperança.

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11 Provavelmente, os pacientes de Winnicott poderiam sentir esperança de virem a ser compreendidos justamente porque, tendo vivido anteriormente experiências ilusórias de criar/encontrar o necessitado, poderiam, ao buscar espontaneamente sua ajuda, vivenciar a sensação de tê-lo criado, como um anjo da guarda que estava ali para ajudá-los (Tachibana, 2006). No nosso caso, diferentemente, as pacientes que eram encaminhadas “forçadamente”, à oficina psicoterapêutica de velas, tal como Ingrid, não vivenciavam a oficina como algo criado/encontrado, mas meramente encontrado. Desse modo, predominavam, compreensivelmente, o submetimento e a desconfiança. O espaço psicoterapêutico não era vivido como suficientemente bom, mas como invasivo.

Pudemos observar que, ao longo dos encontros, Ingrid foi apropriando-se do espaço, criando suas velas e deixando de sentir a fala das outras pacientes como algo de que se defender pelo uso do walkman. O que teria provocado este movimento mutativo de Ingrid e de tantas outras pacientes que, assim como ela, iniciaram o processo terapêutico extremamente resistentes? Podemos pensar que foi a postura fundamentalmente acolhedora e devotada da psicóloga, que buscou manter-se maximamente viva, presente e real. Por outro lado, também podemos refletir que o criar velas tenha sido essencial neste processo: talvez, ao escolher a cor de sua vela, ao definir o cheiro que ela teria, ao derreter a parafina e dar forma às suas escolhas, Ingrid possa ter conseguido vivenciar o processo de criar um encontro interhumano que, até então, não era vivido como uma criação sua, mas, sim, como algo alheio e invasivo. Desde esta perspectiva, a criação da vela teria sido um aspecto facilitador para que a paciente se apropriasse daquele espaço enquanto algo que se vinculava à ela.

Da fala intelectualizada às lágrimas

Um outro aspecto que observamos, a partir da narrativa psicanalítica, refere-se à passagem de Ingrid de uma postura mais dissociada para um viver mais integrado, no qual já poderia entrar em contato com seus sentimentos e conviver com eles criativamente. Trata-se de um movimento que Winnicott sempre buscava junto a seus pacientes, uma vez que criou uma teoria psicopatológica segundo a qual o cerne do sofrimento emocional é a incapacidade de se sentir vivo, real e capaz de gestualidade espontânea. Assim, Winnicott (1960) afirmava que, a despeito das defesas dissociativas de tipo falso self protegerem o indivíduo de entrar em contato com aquilo que estava despertando tanta angústia, acabavam, paradoxalmente, gerando

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12 sentimentos de inautenticidade e futilidade, a partir da quais não valeria a pena viver.

Aqui, consideramos importante refletir que, talvez, a postura dissociada de Ingrid não se devesse unicamente a uma tentativa de defender-se de sua triste história de vida. Cabe indagar até que ponto sua dissociação também estaria vinculada à maneira pela qual vinha sendo tratada pela rede que, como sabemos, tende a lidar com as mulheres que perderam a guarda de seus filhos desde uma perspectiva comportamentalista, avaliando-as em termos de habilidades socialmente desejáveis, e não em termos de suas condições de amadurecimento emocional e da avaliação do ambiente social, suficiente ou insuficientemente bom. Não é de se estranhar, desse modo, que Ingrid ficasse tão presa na esfera do fazer - de trabalhar, de comparecer fisicamente à oficina psicoterapêutica de velas, de fazer velas em série... -, deixando de lado toda a esfera do ser, isto é, do sentir, do entrar em contato.

É até interessante pensarmos que, quando pôde finalmente se aproximar dos próprios sentimentos, abandonando uma postura aparentemente fria e racional, mergulhou em sua carência emocional e pediu que uma paciente do grupo, conhecida por sua maternagem excessiva, cuidasse dela como mãe. Assumiu-se, naquele momento, não como uma mãe que não tinha habilidades maternas suficientemente boas, mas como uma menina que não foi bem cuidada pela própria mãe, e que estava sedenta por um colo, mesmo que invasivo.

Consideramos que o entrar em contato com os próprios sentimentos, bem como o movimento de confiar num espaço psicoterapêutico que fora, inicialmente, vivido como invasivo, atestam a potencialidade mutativa da oficina psicoterapêutica de velas, num sentido que entende que a eficácia clínica não consiste na aprendizagem de habilidades supostamente necessárias ao cumprimento da função materna, mas na retomada do processo de amadurecimento pessoal. Trata-se de uma perspectiva clínica que privilegia a capacidade – termo que, dentro da teoria winnicottiana, relaciona-se intimamente ao amadurecimento emocional do indivíduo, num movimento de integração da instintualidade e da capacidade de preocupar-se com o outro -, em detrimento da ótica positivista, assumida pelo conselho tutelar e pela vara da infância, que já valorizam a competência, traduzida e comportamentos socialmente desejáveis e que, no entanto, podem estar vinculados à um movimento de tipo falso self, tal como discutimos previamente.

Por fim, consideramos imprescindível encerrar nossa reflexão ressaltando que, a nosso ver, o amadurecimento emocional não consiste num movimento que se faz no vazio, independendo do ambiente social que cerca o indivíduo em questão. Isto

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13 significa por um lado que, para nós, o gesto de amadurecimento de Ingrid foi possível porque ela pôde vivenciar, na oficina psicoterapêutica de velas, um ambiente suficientemente bom, tão diferente daquele com o qual se deparava até então. Por outro lado, isto também significa que para que Ingrid, bem como as outras mulheres com dificuldades em exercer a função materna, possam vir a maternar suficientemente bem seus filhos, faz-se necessário que elas próprias sejam “maternadas” por um ambiente social mais saudável, solidário e capaz de respeitar o humano, não cabendo este trabalho exclusivamente ao campo da clínica.

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14 Referências bibliográficas

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Referências

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