• Nenhum resultado encontrado

Fazer mulher, fazer lei: uma etnografia da produção de leis no Congresso Nacional Brasileiro

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Fazer mulher, fazer lei: uma etnografia da produção de leis no Congresso Nacional Brasileiro"

Copied!
263
0
0

Texto

(1)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Fazer mulher, fazer lei: uma etnografia da produção de leis

no Congresso Nacional Brasileiro

Bruna Potechi

São Carlos 2018

(2)

Bruna Potechi

Fazer mulher, fazer lei: uma etnografia da produção de leis

no Congresso Nacional Brasileiro

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos como requisito para obtenção do título de doutora

Orientador: Igor José de Renó Machado

São Carlos 2018

(3)
(4)
(5)
(6)

Agradecimentos

A tese é fruto de muitas trocas, encontros, aprendizagens, debates, leituras, sugestões, críticas e apoios emocionais, financeiros e técnicos. Os agradecimentos, além de saudar estes sujeitos, pretendem, assim como a tese demonstra em seu argumento central, visibilizar esses muitos sujeitos tão essenciais para os resultados alcançados.

Em primeiro lugar este trabalho não seria possível sem a formação fornecida, atenção, ajuda e auxílios ofertados pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar. Minha relação com o PPGAS-UFSCar é mais longa que este doutorado, assim como meu respeito e admiração pelos funcionários, docentes e discentes. Desses tantos nomeio Fábio Urban, Clarice Cohn e Geraldo Andrello que deram especial suporte ou disciplinas durante os anos de doutorado. Agradeço as colegas da turma de doutorado de 2013: Marina Pereira Novo, Luisa Maria Ferreira, Alessandra Stremel e Érica Rosa Hatugai. Foi um privilégio tê-las como companheiras de turma e transformá-las em amigas para a vida. Agradeço, além da amizade, os comentários e leituras desde o projeto de pesquisa.

Aos colegas do LEM (Laboratório de Estudos sobre Migrações) agradeço com a mesma atenção que tiveram para ler várias versões de capítulos, relatórios e artigos, nos nomes de Victor Hugo Kebbe, Gil Vicente Lourenção, Alexandra Gomes de Almeida, Iana Vasconcelos, Fabrício Barreti, Paula Sayuri, Juliana Carneiro, Alexandre Branco Pereira, Lize Marchi, Gabriel Jimenez e outros colegas que passaram algum tempo conosco.

Aos companheiros diários no LIDEPS, colegas de outros programas de pós-graduação e funcionários do nosso espaço de trabalho. Seria impossível nomear apenas alguns dos tantos colegas que por lá passaram para um café, um desabafo, ajudas ténicas e acadêmicas.

Aos generosos colegas de LE-E (Laboratório de Experimentações Etnográficas) pelas instigantes discussões. Em especial à Prof. Catarina Moraswka Vianna pela coordenação sempre ativa e atenta de todos os pesquisadores envolvidos. Agradeço ainda comentários e sugestões precisos sobre dados da pesquisa discutidos em várias ocasiões.

À professora Janet Carsten, por aceitar me supervisionar em período de doutorado sanduíche, pela recepção e comentários ao meu trabalho. À University of Edinburgh por me conceder espaço como

(7)

Visiting PhD Student. Aos colegas que tornaram o inverno escocês agradável, menos solitário e academicamente instigante: Lilian Kennedy, Catherine Whittaker, Resto Cruz, Diego Maria Malara e Alex Jason Gapud.

À professora Antónia Pedroso de Lima, por me aceitar em um segundo período de estágio no exterior, pela paciência, trocas e o sorriso sempre presente. Ao CRIA, em especial na figura da brilhante Mafalda Melo Souza. Aos colegas de ISCTE e batcaverna, minha melhor surpresa no inverno português, Aureliano Lopes, Thalles Amaral, Tathiane Mattos, Emiliano Dantas, Juliana Santos Pereira Moraes, Rita Costa, Cecília Luís, João Mineiro, Vanessa Amorim, Brenda Coelho. À Ana Elisa Santiago pela hospedagem em Brasília e pela leitura de versão da tese. À Lecy Sartori pela leitura de capítulos da tese e pela constante troca de ideias. À Amanda Guerreiro pela ajuda e amizade em Lisboa. À Lara Stahlberg pela amizade e pelo sofá em Brasília. À Cristina Rodrigues da Silva pela amizade e constantes estímulos acadêmicos.

A Olof Ohlson, meu amigo, leitor, crítico, entusiasta e amor. Obrigada pela parceria fundamental para tantas casas, universidades, países, congressos, campos e capítulos.

A meus pais pela confiança e suporte. E a meus irmãos por estarem sempre dispostos a me ajudar em todas as minhas aventuras.

Ao meu orientador, Igor José de Renó Machado, pela paciência, estímulo, leituras e ajuda incondicional. Foi um prazer dividir minhas pesquisas e escrita com você.

Aos professores Piero Leirner e Cimea Bevilaqua pelas atentas leituras na banca de qualificação, e aos professores Luiz Henrique de Toledo e Danilo César Souza Pinto por aceitarem compor a banca de defesa.

À FAPESP pelas bolsas de doutorado e de estágio no exterior concedidas, sem as quais o presente trabalho não seria possível.

À CAPES pela bolsa de estágio sanduíche no exterior, que possibilitou trocas imensuráveis. E, finalmente, a todas as mulheres que lutaram um dia por mais direitos para todas nós. Muito obrigada.

(8)

POTECHI, Bruna. 2018. Fazer mulher, fazer lei: uma etnografia da produção de leis no Congresso Nacional Brasileiro. 262f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.

Resumo

Esta etnografia da produção de leis explora a tramitação de documentos e seus registros na Câmara dos Deputados em Brasília referentes a discussões acerca da categoria jurídica mulher. A tese tem como foco a tramitação do Projeto de Lei (PL) 1399 de 2003 que propõe um Estatuto da Mulher, remetido à Comissão Especial de mesmo nome criada em 2004 para proferir parecer ao projeto de lei durante o “Ano da Mulher” na Câmara dos Deputados. Para analisar os documentos e registros das comissões e projetos de lei que eu acompanhava, precisei multiplicar meus locais de acesso ao campo, fossem estes através de diferentes registros de uma mesma reunião, ao assistir cenas de outras comissões, ao comparar discursos em diferentes comissões ou ao conectar cenas de fora do Congresso Nacional com aquelas que ocorriam em seu interior. Estas manobras tornavam visíveis o que chamei de lacunas, tanto aquelas dos documentos jurídicos quanto aquelas do processo legislativo. Enquanto as primeiras lacunas denunciam incongruências nos direitos das mulheres na legislação brasileira e uma espécie de multiplicidade de formas de ser mulher nos debates legislativos; as segundas denunciavam faltas de informações em documentos, pontos de vistas intencionais em registros, cenas completamente distintas daquelas que eu observava e comparava em registros e assistia presencialmente. Ao entrelaçar ambas lacunas no sujeito mulher, sobressaía um novo sujeito: as mulheres que fabricam leis. Estas acabavam por ser aquelas que vivenciavam os direitos garantidos a elas em seu processo de fabricação, processo este que acabava por direcioná-las a lugares e momentos específicos no processo legislativo, eclipsando-as enquanto políticas e marginalizando comissões e tópicos sobre mulheres no legislativo.

(9)

Abstract

This ethnography on the law-making process explores woman as a legal category through documents and public records from the Chamber of Deputies in Brasília. The thesis focuses on the running of Bill 1399 from 2003 that proposed a Statute of the Woman, which was later handed over to a Special Committee—the Special Committee of the Statute of the Woman—created in 2004 during the “Year of Woman” in the Chamber of Deputies. In order to analyse documents and public records of the Committees and bills I was following I had to widen my gaze by looking at different records of the same meetings, by attending several committees, comparing speeches in different meetings or even by connecting scenes outside of the Congress with the ones inside it. This approach made visible what I call “gaps”, found in legal documents and the law-making process. Looking at such gaps in legal documents reveal contradictions in women´s rights in Brazilian law and the multiple ways of describing woman as a legal subject, while gaps in the law-making process point to the lack of information in documents, intentional perspectives in records, and diverging descriptions of the same scenes. In this, the role of female deputies stood out, who as women could experience their own law-making process. This double and feminine position would, I argue, eclipse them as politicians and marginalize Committees and topics on woman´s issues inside Brazil´s legislative process.

(10)

Lista de Figuras

Figura 1: Organograma da Câmara dos Deputados...51

Figura 2: Despacho que cria a Comissão Especial do Estatuto da Mulher...83

Figura 3: Termo de Reunião...86

Figura 4: Placa entrada do Anexo III da Câmara dos Deputados...110

Figura 5: Aviso de suspensão de visita na entrada da chapelaria do Congresso Nacional...121

Figura 6: Aviso de Visitação Suspensa...122

Figura 7: Justificação do Projeto de Lei 1399 de 2003...149

Figura 8: Ato da presidência para criar Comissão Especial...151

Figura 9: Ato da Presidência para constituir Comissão Especial...152

(11)

Lista de Abreviaturas e Siglas

AC - Acre

AGENDE - Ações e Gênero, Cidadania e Desenvolvimento AL – Alagoas

AP – Amapá AM - Amazonas

ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações BA - Bahia

CAPADR – Comissão de Agricultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CCTCI – Comissão de Ciência e tecnologia, Comunicação e Informática

CCJC – Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania CCP – Coordenação de Comissões Permanentes

CCULT – Comissão de Cultura CD – Câmara dos Deputados

CDC – Comissão de Defesa do Consumidor

CDEICS – Comissãoo de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços CDU – Comissão de Desenvolvimento Urbano

CDHM – Comissão de Direitos Humanos e Minorias CE - Ceará

CE – Comissão de Educação

CEC – Comissão de Educação e Cultura CESPO – Comissão do Esporte

CF – Constituição Federal

CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria CFFC – Comissão de Fiscalização Financeira e Controle CFT – Comissão de Finanças e Tributação

(12)

CIDOSO – Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa

CINDRA – Comissão de Integração nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia CLP – Comissão de Legislação Participativa

CMADS – Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável CME – Comissão de Minas e Energia

CMulher – Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher CNDM - Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

CONADE - Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência COPER – Coordenação de Comissões Permanentes

CPD – Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência CPMI – Comissão Parlamentar Mista de Inquérito

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

CREDN – Comissão de relações Exteriores e de Defesa Nacional CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia

CSPCCO – Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado CSSF – Comissão de Seguridade Social e Família

CTASP – Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público CTUR – Comissão de Turismo

CVT – Comissão de Viação e Transporte DCD – Diário da Câmara dos Deputados DEM – Democratas

DF – Distrito Federal

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EMC – Emenda na Comissão

ES – Espírito Santo

FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FBPF - Federação Brasileira pelo Progresso Feminino

(13)

MA - Maranhão

MESA – Mesa Diretora da Câmara dos Deputados MG – Minas Gerais

MP – Medida Provisória MS – Mato Grosso do Sul MT – Mato Grosso

ONG – Organização Não Governamental ONU – Organização das Nações Unidas PA – Pará

PB – Paraíba

PCdoB – Partido Comunista do Brasil PDT – Partido Democrático Trabalhista

PDSE – Programa de Doutorado Sanduíche no Exterio PE - Pernambuco

PEC – Proposta de emenda constitucional PEN – Patriota

PFL – Partido da Frente Liberal

PHS – Partido Humanista da Solidariedade PI – Piauí

PL – Partido Liberal PL – Projeto de Lei

PLC – projeto de lei com origem na Câmara dos Deputados PLEN – Plenário da Câmara dos Deputados

PLP – projeto de lei complementar

PLS – Projeto de Lei com origem no Senado Federal PMDB – Partido Movimento Democrático Brasileiro PR – Paraná

(14)

PP – Partido Progressista

PPB – Partido Progressista Brasileiro PR – Partido da República

PRB – Partido Republicano Brasileiro

PROS – Partido Republicano da Ordem Social PSB – Partido Socialista Brasileiro

PSC – Partido Social Cristão PSD – Partido Social Democrático

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PSOL – Partido Socialismo e Liberdade

PSL – Partido Social Liberal PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro PTdoB – Partido Trabalhista do Brasil PTN – Partido Trabalhista Nacional PV – Partido Verde

REQ – Requerimento

RICD – Regimento Interno da Câmara dos Deputados RJ – Rio de Janeiro

RN – Rio Grande do Norte RO – Rondônia

RR - Roraima

RS – Rio Grande do Sul SC – Santa Catarina SD - Solidariedade SE – Sergipe SP – São Paulo

(15)

SPM – Secretaria de Políticas para as Mulheres STF – Supremo Tribunal Federal

TO - Tocantins

TSE – Tribunal Superior Eleitoral

UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UnB – Universidade de Brasília

(16)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 17

A PROPOSTA 18

COMO TUDO COMEÇA 22

O CAMPO 26

ETNOGRAFIA DO PROCESSO LEGISLATIVO 28

BAGAGEM 30

VISÕES PARCIAIS 32

COMPARAÇÃO 35

ABISMOS 37

O FAZER COMO UM CAMPO ETNOGRÁFICO 40

OS PARTIDOS POLÍTICOS 41

OS CAPÍTULOS 43

CAPÍTULO 1 - A PARTE LEGISLATIVA 46

O LEGISLATIVO 54

MULHERES EM LEIS 58

NAS CONSTITUIÇÕES 58

DAS RUAS PARA O FAZER LEIS 62

FAMÍLIA COMO IMPASSE JURÍDICO 65

ESTATUTOS 67

LEIS COMO BAGAGEM 71

CAPÍTULO 2 - ENTRE LEIS E DOCUMENTOS 74

NAS TRILHAS 76

PRODUZIR LEIS, PRODUZIR DOCUMENTOS 81

OS DISCURSOS 84

AS REUNIÕES DE INSTALAÇÃO 87

AS PRIMEIRAS LACUNAS 90

TEXTOS E DISCURSOS 94

DO OUTRO LADO DO DOCUMENTO: CENAS, DISCURSOS E DOCUMENTOS 98

FORA DO DOCUMENTO, FORA DO CONGRESSO 101

DAS DESARMONIAS DO LEGISLAR 103

CAPÍTULO 3 - ESPAÇOS, PROCESSOS E PESSOAS 106

ACESSO 110

(17)

NO ANO DO IMPEACHMENT 114

COMISSÕES FECHADAS, VISITAS SUSPENSAS 118

OLHANDO PARA AS LACUNAS: OS ECLIPSAMENTOS 124

“NÃO SE PODE FALAR PELO SENADOR” 124

LISTAS CHEIAS,PLENÁRIOS VAZIOS 131

SOBRE ACESSO E ECLIPSAMENTO 135

CAPÍTULO 4 - O ESTATUTO DA MULHER E SUAS MULHERES 138

O ESTATUTO DA MULHER EM DOCUMENTOS 139

OPRIMEIRO ESTATUTO DA MULHER 139

OPL1399/03 143

OESTATUTO DA MULHER 144

A TRAMITAÇÃO DO PL1399/03 150

AS EMENDAS 154

ACOMISSÃO ESPECIAL 159

SOBRE FAZER MULHER 173

MULHER NOS DISCURSOS 173

FAZER MULHER 177

CAPÍTULO 5 - NO ANO DA MULHER DE FAMÍLIA 181

NO ANO DA MULHER 184

ANO DE QUAL MULHER? 194

OS LUGARES DAS PARLAMENTARES 195

BANCADA FEMININA 197

ACOMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER 202

FAZER E SER MULHER NO LEGISLATIVO BRASILEIRO 211

CONCLUSÃO 213

ANEXOS 221

ANEXO 1 – COMISSÕES PERMANENTES 52ª LEGISLATURA 221

ANEXO 2 - COMISSÕES DA 55ª LEGISLATURA (2015-2018) ATÉ 25/07/2018 224

ANEXO 3 – PARLAMENTARES DE COMISSÃO ESPECIAL DO ESTATUTO DA MULHER 230

ANEXO 4 - PARLAMENTARES DA COMISSÃO ESPECIAL DO ANO DA MULHER 232

ANEXO 5 - PARLAMENTARES DA COMISSÃO PEC 181/15 – LICENÇA MATERNIDADE BEBÊ

PREMATURO 233

ANEXO 6 - PARLAMENTARES DA COMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER 234

(18)

Introdução

A SRA. AVELINA IMBIRIBA HESKETH – Boa tarde a todos. Sra. Presidenta, antes de tudo gostaria de desculpar-me, pois não sabia que teria de fazer alguma exposição. Fui informada de que se tratava de um debate em torno do Estatuto, do qual estou tomando conhecimento neste exato momento. De qualquer maneira, gostaria de louvar a iniciativa desta Casa de trazer à discussão tema da mais alta relevância e prioridade para a sociedade. Sempre digo que nós, mulheres, no processo histórico de evolução das conquistas dos nossos direitos, conseguimos igualdade jurídica. No momento em que uma ordem jurídica interna, ou até mesmo internacional, assegura que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, colocando esse posicionamento social num mesmo plano, poderia dizer que nada mais nos restaria a fazer. Conquistamos essa igualdade jurídica. Em razão disso todos deveriam curvar-se em respeito à ordem interna e até mesmo à ordem externa, representada por acordos, tratados internacionais, inclusive ratificados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, entre a realidade da lei, que é posta juridicamente, e a vida, existe um fosso quase intransponível. E é exatamente sobre essa realidade da vida que vou fazer algumas considerações. [...] (BRASIL, 2004)

Esta fala foi proferida em plenário no Anexo II da Câmara dos Deputados, em audiência pública da Comissão Especial do Estatuto da Mulher, em dezoito de maio de 2004. A fala da depoente, convidada após requerimentos apresentados por parlamentares com sugestões de convites, é registrada em Discursos1 contendo os registros taquigráficos daquela audiência pública.

(19)

Estas notas taquigráficas são preparadas por taquígrafos, funcionários do Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados que se posicionam a frente dos plenários, geralmente na lateral da bancada ocupada pela presidência da Comissão. O Discurso estava disponível no portal eletrônico da Câmara dos Deputados, juntamente com outros registros da comissão a qual ele pertence, como lista de presença, ata, pauta, termo, áudio. Entre os registros, estavam organizadas todas as reuniões daquela Comissão dispostas cronologicamente e contendo, além de registros de falas e ações que foram tomadas, documentos apresentados à Comissão Especial criada para proferir parecer ao projeto de lei 1.399 de 2003 dispondo sobre um Estatuto da Mulher, como o próprio requerimento de sugestão da senhora que profere o trecho que abre esta tese. A fala registrada em Discursos, em audiência pública da Comissão Especial do Estatuto da Mulher da “presidente da Comissão Nacional da Mulher e Advogada do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil” Avelina Imbira Hesketh, abre esta tese ao pontuar o problema jurídico da igualdade da mulher como resultado do desnível entre dois polos, lei e realidade. Ao separar o polo jurídico do que aqui chamarei de polo contextual, Hesketh permite-nos avançar e situar o lugar de encontro entre leis e o contexto do qual emergem e devem regular. Nesta tese, textos jurídicos e contextos se misturam, sendo melhor analisados em seu momento de encontro: durante sua fabricação no Congresso Nacional. É através dos documentos que são produzidos e que registram as ações e eventos no Congresso Nacional que começo a desbravar o campo da produção de leis no legislativo brasileiro.

A proposta

Esta tese analisa a produção de leis no Congresso Nacional a partir de uma categoria específica, mulher2. Esta categoria, jurídica, desenha esta tese apontando primeiramente para como uma categoria jurídica é produzida dentro do legislativo brasileiro, olhando para as discussões legais durante o processo de fabricação de leis. Com isto, aparecem as primeiras pistas de como se constrói uma noção de mulher. Este seria o ponto de partida, ao analisar como se fabrica uma lei e como se formula uma categoria jurídica. Inicialmente, a pesquisa tentava conectar categorias jurídicas, suas formulações e contradições semânticas e jurídicas vistas a partir da sua formulação

(20)

em documentos e discursos no Congresso Nacional. Outros autores já haviam se debruçado sobre fabricações de conceitos jurídicos na disciplina, principalmente questionando a divisão legal de tradição romana entre “pessoa” e “coisa”, em que novas concepções e formas de se conceber pessoas e coisas, como o acesso a novas tecnologias reprodutivas, reordenaram a divisão, tornando a dualidade da lei mais fluída (POTTAGE, 2004; BEVILAQUA, 2010).

No entanto, logo no início, o campo começa a redirecionar meu olhar e a redefinir os rumos da pesquisa. Ao olhar para essa categoria jurídica através de discursos em Comissões Temáticas na Câmara dos Deputados percebi uma lacuna, que era de fato evidente, entre as leis produzidas e a “real efetividade” ou “aplicabilidade” das leis propostas e discutidas. Esta questão, visível no trecho que abre esta tese e tão evidente na sociedade brasileira, não apenas no quesito “mulher”, era recorrente nas falas das Comissões que eu acompanhava. A periódica menção a este empecilho evidenciava o que poderíamos chamar de primeira lacuna que se colocava entre lei e realidade, impedindo a aplicabilidade da lei para e nos contextos em que esta é produzida. Esta crítica seria tanto sobre a aplicabilidade da lei quanto sobre de que forma a lei de fato dialoga com a realidade e com os contextos locais nos quais ela deve se inserir. Olhando para o processo legislativo brasileiro uma primeira coisa se sobressai: a análise de uma categoria jurídica mulher não pode então estar deslocada do contexto que produz tanto uma categoria jurídica, e legislações pra essa condição de ser mulher, quanto da realidade vivenciada por mulheres no processo de discussão e fabricação de leis. Que seria, portanto, o Congresso Nacional. Nesse sentido, esta pesquisa olha para mulher não apenas como uma categoria jurídica, mas também como um sujeito que fabrica essa própria lei.

Temos, então, ao menos duas mulheres principais que começarão a tomar forma nas páginas que seguem. Uma enquanto categoria jurídica, que possui um histórico de formulação e emancipação, e outra enquanto sujeito político, sendo que sua história de inserção na política acaba se misturando com as conquistas jurídicas.3 Disto decorre uma mulher jurídica4 que a mulher

enquanto legisladora está produzindo e que, inclusive, a produz de uma forma muito específica.

3Algo precisa ser agora considerado. É fato que parte desta tese aponta para outras mulheres que vão aparecer na

pesquisa, tão cruciais quanto legisladoras no processo de fabricação de leis. Falo das funcionárias da Câmera dos Deputados, que aparecem de forma muito singela, confesso, nesta tese. No entanto, o lugar delas no processo legislativo não é negligenciado na pesquisa, mas ressaltado, o que inclusive permite pensar futuros projetos que possam contemplá-las enquanto sujeitos principais de análise.

(21)

São observados os conteúdos dos documentos de tramitação de propostas legislativas e as formas que estes documentos e conteúdos tomam nos registros burocráticos, como as notas taquigráficas das reuniões de Comissões. Ambos, conteúdo e forma, passam a compor o campo de análise da pesquisa.

A pesquisa se inicia com uma análise de documentos que começam a aparecer como projetos de lei, pareceres, votos, relatórios, listas. Vários outros documentos são, então, acoplados aos primeiros; documentos que indicavam uma possível futura lei ou modificações nessa lei, ou documentos contendo ações que vão sendo tomadas nesse decorrer. Recolher estes documentos, organizá-los e classificá-los consistiram-se nas primeiras tarefas e no primeiro contato com o campo de pesquisa. Esta multiplicidade de documentos reunidos, e que passam a se proliferar cada vez mais, indica que apresentar um projeto de lei no Congresso Nacional e acompanhar a sua tramitação é, na verdade, acompanhar uma constante produção de vários destes documentos, que por um lado registram a ação nesse processo, mas que também, e não apenas, são a ação em si próprios. Se por um lado são documentos de ação, por outro são documentos que registram cenas, descrevem situações, arquivam historicamente o acontecimento de tramitação dentro do Congresso Nacional. Nesta segunda categoria de documentos temos notas taquigráficas, arquivos de áudio e vídeo, pautas, listas, termos. Além de vários outros que vão aparecendo e se juntando nesse quebra-cabeça de refazer os passos burocráticos de uma proposição legislativa na Câmara dos Deputados. Estes documentos, ou então a possibilidade de olhar para um campo de pesquisa a partir de documentos, proporcionam uma entrada a campo que fornece uma multiplicidade de ações, registros e caminhos da tramitação de um projeto de lei. Todo este material começa a ser observado criticamente, questionando ou evidenciando formas de analisá-lo etnograficamente. Esta mirada etnográfica parte de um ponto de vista que entende que documentos, registros, informações, vídeos5 são parte do processo constitutivo do legislativo, mas que não devem ser, de certa maneira, descontextualizados. O capítulo dois desta tese vai tentar situar o leitor para os movimentos de

5 Os documentos destacados em itálico têm ou o nome atribuído a ele no seu arquivo, sendo este virtual ou não, ou

ainda os nomes comumente utilizados dentro da Câmara dos Deputados para se referir a determinado documento ou trecho de documento. Por exemplo, nota taquigráfica é o nome oficial do documento que contém os registros

taquigráficos de uma reunião, ele fica registrado no portal da Câmara dos Deputados enquanto discursos, podendo

ser encontradas ainda referências a eles enquanto notas; já parte do conteúdo das notas pode ser chamado de

discurso ou fala, podendo ser esta referência tanto ao conjunto de falas como a uma determinada fala em específico.

Aqueles que não entrem na condição de serem documentos, ou, como as pessoas envolvidas no processo legislativo chamariam estes documentos ou trechos dos mesmos, são mantidos sem destaque na escrita desta tese. Este é o caso de informação no trecho.

(22)

contextualização desses documentos, movimentos constantes e necessários para a realização desta pesquisa e das reflexões que são aqui apresentadas.

A pesquisa aflora com a apresentação de um projeto de lei específico, o Estatuto da Mulher, apresentado em 2003 na Câmara dos Deputados, que continha em seu artigo 2º uma definição do que seria mulher juridicamente, ainda que apenas para aquele projeto de lei. Para se discutir como mulher vinha sendo construída na legislação brasileira, nada melhor do que uma entrada por um projeto de lei em que ele próprio já definia especificidades da mulher a serem alcançadas por uma lei em vigor. No entanto, esse projeto de lei havia tramitado em 2003 e 2004, sendo que a pesquisa que aqui se apresenta só vai ser iniciada de fato em 2014, ou seja, cerca de 10 anos depois. Este gap, ou deslocamento histórico,6 permite ou só é possibilitado quando eu faço dois movimentos. Um primeiro movimento de deslocar esses documentos do contexto em que de fato eles foram produzidos7 e analisá-los anos depois; e um segundo movimento de comparação com situações e dinâmicas internas da produção legislativa dentro do Congresso Nacional. Este movimento de comparação foi executado tanto com os documentos produzidos contemporaneamente àqueles que começo a analisar como com documentos anteriores, além também de documentos que estão sendo produzidos concomitante à realização da pesquisa que resulta nesta tese. Trazer à cena documentos produzidos atualmente permitiu que eu vivenciasse os momentos em que eles se tornam documentos, através das reuniões nos plenários das Comissões temáticas na Câmara dos Deputados. É exatamente no movimento de constante comparação de documentos produzidos anteriormente com atuais e suas cenas observadas presencialmente que percebemos dinâmicas, espaços, momentos, documentos e pessoas que escapam dos registros desses documentos. Este movimento de esconder, ou “eclipsar”, passa a ser lido como movimento interno da dinâmica do Congresso Nacional (capítulo 3). Desbravar estas lacunas é meu movimento primeiro e constante enquanto etnógrafa com documentos e do processo de formulação de leis e categoria jurídicas no Congresso Nacional Brasileiro.

6Ou “flashback” nas palavras de Latour (1987, p. 2).

7Note que este deslocamento não é de nenhuma maneira um exercício de descontextualização, mas parte do

(23)

Como tudo começa

Em março de 2003 era apresentado um Projeto de Lei (PL) de número 1.399 (PL1399/03) dispondo sobre um “Estatuto da Mulher”. Dez anos depois, em Março de 2013, eu tomava conhecimento do PL 1399/03, naquele momento arquivado. Sem ainda saber como aquele projeto de lei ganharia centralidade na pesquisa, começo a seguir sua tramitação na Câmara dos Deputados, entre documentos produzidos e registros das sessões da Comissão, criada para dar parecer ao projeto de lei. Eu havia tomado conhecimento daquele projeto de lei, que chegou a tramitar na Câmara dos Deputados com atividades por dois anos, apenas após fazer um levantamento de todas as proposições sobre mulher na Câmara dos Deputados. Isto quer dizer que o projeto de lei do Estatuto da Mulher não era assunto do momento, não estava na mídia, e eu mesma nunca havia tomado conhecimento de sua existência. Ainda que outros “estatutos” fossem de conhecimento público, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e o Estatuto do Índio, o Estatuto da Mulher, no entanto, não o era. Até que uma busca online no portal eletrônico da Câmara dos Deputados o revelava para mim: “PL 1399/03 dispõe sobre um Estatuto da Mulher – situação: arquivado”.

O site da Câmara dos Deputados, como depois passo a perceber, funciona como um portal que armazena informações, notícias, proposições legislativas, leis, regimentos, histórico de matérias, arquivos de comissões, atividade de deputados, biografia de parlamentares, contatos de setores e gabinetes. É possível encontrar quase tudo sobre a atividade legislativa daquela Casa8 online. A princípio eu achava que aquilo fazia parte da Lei do Acesso à Informação (Lei no 1.257/11), sancionada em 2011, que garante o acesso a qualquer documento ou informação produzido ou custodiado pelo Estado Brasileiro sem caráter pessoal ou sigiloso. Depois fui vendo que não era apenas para o público em geral, mas o portal da Câmara dos Deputados era um grande arquivo, em constante mutação, usado principalmente pelos funcionários da Casa. Por outro lado, esse “tudo” estava ali de uma forma própria. “PL 1399/03”. “Autor Renato Cozzolino”. “Situação: Arquivado”. Mais à frente: “Arquivado nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno. DCD 01 02 07 PAG 180 COL 01 SUPLEMENTO 01 AO No 21”. E tudo isto era feito, registrado e

declamado nesse linguajar específico, técnico, burocrático. Registros cheios de códigos que muitas

8 Casa é como a Câmara dos Deputados e o Senado Federal são chamados, verbalmente, ou mesmo oficialmente em

(24)

vezes dificultavam ou até mesmo impediam meu entendimento do seu conteúdo. Durante esta pesquisa, tive que ler e reler leis, regimentos, além de todas as legislações citadas, e aprender a interpretar os códigos. Depois de quase cinco anos e um curso a distância9 do Senado Federal sobre Processo Legislativo, se poderia dizer que comecei a me familiarizar com os termos, mas ainda, é verdade, muito me escapa e escapou nesses infinitos documentos. Eu passei a considerar que a dificuldade que eu sentia para ler os documentos, conectá-los, ter acesso a eles era parte da forma como eles se apresentavam a mim. Se eram mais acessíveis por estarem online, eram menos acessíveis por estarem “em códigos”. Se eram mais acessíveis por estarem em formatos compatíveis com meu computador (isto nem sempre acontecia), alguns documentos faltavam, outros pareciam faltar ou deixar uma aparente lacuna em sua tramitação.

Assim, o começo da pesquisa, ou a maior parte dela, consistia em ir pesquisar de página em página nos portais eletrônicos das Casas, de documento em documento, tentando refazer o caminho das proposições, entender os códigos das ações que iam sendo tomadas. Eu ia da Câmara ao Senado, que possuem sistemas independentes de tramitação de proposições, e do Senado à Câmara. Buscava materiais publicados na época pelas duas Casas. Fazia um levantamento de outras proposições citadas, a situação, por onde tramitavam, quem tinha apresentado. Tentava entender como funcionavam ações e como elas eram descritas. Como funcionava a cota partidária em Comissão, a eleição de presidência de mesas, a relatoria. Onde naquilo ficavam ou apareciam os funcionários das Comissões, ou então os funcionários dos gabinetes, ou os assessores legislativos.

Para a tramitação do PL 1399/03, o Estatuto da Mulher propriamente dito, fora criada Comissão para dar parecer a ele, “coisa de projeto importante” pensei. No ano em que ele é encaminhado para Comissão para emitir parecer sobre ele, outra Comissão se reunia paralelamente àquela e também sobre mulher na Câmara dos Deputados, a Comissão do Ano da Mulher. Esta era resultado de um projeto de lei que propunha que aquele ano, o ano de 2004, fosse “Ano da Mulher” na Câmara dos Deputados. Além destas duas, também estava em exercício naquele ano a Comissão Mista (da Câmara dos Deputados e Senado Federal) de Feminização da Pobreza. Três Comissões Temporárias para mulher, num “Ano da Mulher” na Câmara dos Deputados10.

9 Concluí apenas um curso online do Senado Federal, ainda que tenha começado outros, tanto do Senado quanto da

Câmara dos Deputados.

10 Nesta tese são expostas apenas a Comissão Especial do Estatuto da Mulher e a Comissão Especial do Ano da

(25)

Parecia um ano importante para mulher na Câmara dos Deputados, ou mesmo no Congresso Nacional. Mas é preciso recapitular de que mulher e em que situação estamos a falar. Em relação a estatísticas mundiais, o Brasil aparece em dois polos que denunciam problemas ainda enfrentados por mulheres em nossa sociedade: altas taxas de violência contra a mulher e baixíssima porcentagem de mulheres em espaços de poder, como o da política. O Brasil ocupa a 5ª posição entre os países com maior número de homicídios de mulheres, segundo dados da Organização Mundial de Saúde.11 São 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres, dados inferiores apenas à El

Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa. Já a baixa representatividade de mulheres na política brasileira continua sendo um fato (PINTO, 2004; MIGUEL; FEITOSA, 2009; MIGUEL, 2000; GROSSI; MIGUEL, 2001). Segundo o Mapa Mundial de Mulheres na Política, divulgado pela ONU Mulheres em janeiro de 2017, o Brasil ocupa a 154º colocação num total de 193 países, nunca tendo a porcentagem de mulheres no Congresso Nacional ultrapassando 11% de representantes femininas. No quesito avanços legislativos no período pós-Constituição de 1988 temos a aprovação da Lei no 9.029 de 1995, “que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho”, da Lei no 10.224 de 2001, que dispõe sobre o crime de assédio sexual,

da Lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que cria mecanismos contra a violência doméstica e familiar contra a mulher, da Lei no 9.504 de 1997 atribuindo a Lei de Cotas para máximo e mínimo de candidatos por sexo por partido (SOW, 2009) e, mais recentemente, a Lei do Feminicídio, Lei no 13.104, aprovada em 2015. Além disso, Sow (2009, p. 29) pontua o Novo Código Civil, a Lei no 10.406, de 10/1/2002 que,

[...] introduz avanços significativos referentes à proteção dos direitos civis da mulher, sob a perspectiva da igualdade entre os gêneros.- exclui da norma jurídica a chefia masculina da sociedade conjugal, o pátrio poder e a administração dos bens do casal pelo marido, inclusive dos particulares da mulher, a anulação do casamento pelo homem pelos motivo do conhecimento da defloração da mulher antes do matrimônio e a deserdação da filha desonesta que viva às expensas

comissões com tramitação na Câmara dos Deputados e a Comissão em questão era mista, ou seja, com participação conjunta das duas Casas.

11Ver também “Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil”. Disponível em:

(26)

paternas; introduziu o poder familiar compartilhado, permitiu ao homem adotar o sobrenome da mulher e estabeleceu que a guarda dos filhos passa a ser do cônjuge com as melhores condições para exercê-la.

Nesse contexto jurídico, em 2015, quando eu já realizava a pesquisa, doze anos após a apresentação do Estatuto da Mulher na Câmara dos Deputados, começava o processo de Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, primeira e única mulher eleita (ainda que ela tenha sido eleita e reeleita) para a presidência da República no Brasil.12 O Congresso Nacional teve papel fundamental no processo de impeachment, sendo o local em que a denúncia contra Rousseff tramitou e foi julgada pelo legislativo, sendo, durante a pesquisa desta tese, debatida, votada e remetida de uma Casa à outra. Assim como outras proposições que eu acompanhava, ela foi apresentada como denúncia na Câmara dos Deputados para abertura do processo de impeachment no Supremo Tribunal Federal (STF). Esta tem tramitação como proposição, em regime especial. Para sua tramitação fora criada uma Comissão Especial para dar parecer sobre crime de responsabilidade. A partir do relatório produzido pela Comissão Especial, esta fora a votação no Plenário da Câmara dos Deputados para a abertura do processo no STF. A votação teria que passar pelas duas Casas, como qualquer outra proposição, e então ser remetida ao Supremo Tribunal Federal para julgamento. A princípio, quando o processo de impeachment começa a ser discutido na Câmara dos Deputados, tento ao máximo evitar que isso influenciasse a pesquisa. Entretanto, a pesquisa de campo, ainda que não acompanhasse o processo de impeachment de perto, de seus bastidores, começa a sentir seu efeito. Durante a tramitação da denúncia no Congresso Nacional alguns locais permitidos passaram a ser proibidos, além disso, essa dificuldade de acesso ao Congresso começava a se expandir para seus arredores, vista pelas grades e muros alocados em toda a Esplanada dos Ministérios. Eu tentei durante algum tempo estar alheia às movimentações do processo de impeachment, evitando me envolver demais ou então não deixar que aquilo me afetasse de alguma forma em campo. O processo de impeachment acabou afetando os espaços a que eu tinha acesso no Congresso Nacional, e com isto evidenciou uma dinâmica do legislativo se

12 Existem várias discussões sobre o uso do termo “presidenta” ou “presidente” atualmente no Brasil. Sem entrar

neste debate, eu opto pelo uso “presidenta” respeitando o histórico de inserção de mulheres na política, onde muitas tiveram que exigir a inclusão de cargos políticos no feminino, como por exemplo o caso de Eni Fernandes para a inclusão de vereadora descrito em Grossi e Miguel (2001).

(27)

permitir ser acessado, dinâmica explorada no capítulo 3, mas que percebemos perpassar o encontro com pessoas, documentos e espaços durante outros momentos do campo no Congresso Nacional.

O campo

Esta pesquisa resulta de inserção etnográfica realizada entre 2014 e 2018. Neste período, foram feitos levantamentos de documentos, arquivos, materiais informativos, pesquisas realizadas pelo Congresso Nacional e incursões a campo. Os documentos levantados, organizados e analisados eram referentes à tramitação do PL 1399 de 2003 (Estatuto da Mulher), na Câmara dos Deputados, incluindo os documentos de tramitação, a legislação citada na proposição principal, estando esta anexa a sua tramitação ou não, e documentos de tramitação em Comissão Especial. Os documentos de mesmo tipo foram acrescentados aos primeiros, agora referentes ao PL 192 de 2003, o projeto de lei do Ano da Mulher, na Câmara dos Deputados e Senado Federal. Foram também feitos levantamentos e acompanhamento da tramitação de outros projetos de lei propondo “estatutos”, principalmente daqueles que tramitavam no mesmo período que o Estatuto da Mulher. Estes eram o PL 3638/00 propondo um Estatuto do Portador de Necessidades Especiais, o PL 3198 de 2000 sobre o Estatuto da Igualdade Racial, o PL 4874 de 2001 sobre um Estatuto do Desporto e o PLP (projeto de lei complementar) 167 de 2000 dispondo sobre um Estatuto da Terra.13 Foram também analisados os documentos de tramitação do PL 736 de 1937, propondo um Estatuto da Mulher de 1937, sendo estes documentos diferentes de todos os demais, pois possuíam outro formato e foram todos fornecidos pelo Arquivo da Câmara dos Deputados e pelo Museu Virtual Bertha Lutz.14

Foram realizadas incursões intermitentes ao Congresso Nacional, em 2015, 2016, 2017 e 2018. Nos primeiros momentos dentro do Congresso, tentei perceber o processo legislativo acontecendo por ali, passando dias caminhando entre corredores, conversando com pessoas, perguntando coisas muito provavelmente óbvias e estranhas para pessoas que se sentavam ao meu lado, com quem eu dividia a mesa (que é compartilhada) em um dos restaurantes no Anexo IV da Câmara dos Deputados, ou que me solicitavam informações quando julgavam que eu saberia,

13No entanto, os dados sobre estes outros projetos de lei foram reduzidos no corpo final da tese. 14 Agradeço a ambos pela disponibilidade e envio dos materiais.

(28)

geralmente nos plenários da Comissões temáticas na Câmara dos Deputados. Esta informalidade em parte dos diálogos que eu travava ou ouvia permitia que parte de meu diário de campo rascunhasse espécies de fofocas, que já fora percebida como forma de acesso a dados em contextos de pesquisa no legislativo, “Gossip is far from trivial in organisations – often it is when people talk about what is really going on, rather than what is supposed to be happening in the idealised version of politics” (CREWE, 2017, p. 6). Este último caso acontecia geralmente nas reuniões das Comissões temáticas na Câmara dos Deputados, onde, por fim, decidi permanecer pela maior parte do tempo em que estive em Brasília. Quando fui ao Congresso Nacional pelas primeiras vezes, eu julgava que teria dois locais de acesso ao interior do processo legislativo: as comissões temáticas e os gabinetes dos parlamentares. Como não consegui contato que me permitisse um campo mais consistente dentro de nenhum gabinete,15 acabei por estar voltada às dinâmicas “públicas”, ou abertas ao público, das Comissões Temáticas no Anexo II da Câmara dos Deputados.

Estar ali me permitia observar parte dos documentos que eu analisava, aqueles de registros de reuniões, por um outro lado. Eu me sentava ao lado de câmeras, conversava com assessores, observava os taquígrafos sentados, sempre em silêncio, eles e eu, todos fazendo seu trabalho. Todos estes funcionários, invisíveis nos registros que eu lia, eram os primeiros a chegar e os últimos a sair das reuniões. Eles as organizavam, carregavam as pautas, traziam requerimentos, emendas a serem apresentadas, resumiam parte das reuniões aos parlamentares quando estes se encontravam no recinto e, por fim, eles registravam aquelas reuniões nos documentos que eu constantemente acessava. A dinâmica das Comissões Temáticas, assim como minha dinâmica de comparar cenas com documentos e refletir sobre a invisibilidade dos personagens que tumultuavam reuniões é visível na maior parte das páginas e reflexões aqui apresentadas.

Também foram realizadas entrevistas com secretarias, departamentos, funcionários e ex-funcionárias. A maioria das entrevistas efetivamente realizadas aconteceu quando eu me dirigia ao local e pedia por uma conversa mais informal. Nestas condições, parte das entrevistas não foram gravadas, ou aconteceram sem muito planejamento prévio. Tentativas “mal-sucedidas” tanto de

15 Eu entrei em contato com todas as parlamentares em exercício que tinham participado das duas Comissões que

eu analisava, assim como com outras ex-parlamentares que possuíam contato como gabinetes em estados, ou páginas pessoais, e com o senador Paulo Paim (PT), por ser autor de vários projetos de lei em formato de “estatutos”. A maioria dos contatos não era retornado, entrevistas foram agendadas e desmarcadas, e eu não consegui nenhuma inserção de fato junto aos gabinetes durante o início da pesquisa, o que me fez mudar a abordagem no Congresso Nacional.

(29)

entrevistas como de contatos, ou de acompanhamento de sessões, também fazem parte do campo no Congresso Nacional e são descritas em trechos nesta tese. Essas constantes frustrações diante de um campo que constantemente negava minhas investidas tomam a forma de dados em alguns trechos, e, por fim, auxiliam na construção do argumento da tese.

Etnografia do processo legislativo

O legislativo, em suas muitas e variáveis formas, já apareceu em outros trabalhos como local de estudo e inserção etnográfica (ABREU, 1999; COSTA, 1980; LOPES; FROIS; MINEIRO; CARVALHEIRA; MOREIRA; BENTO, 2017; CREWE, 2017, ABÉLÈS, 2000). No entanto, a maioria dessas etnografias no país mantinha o seu foco nas relações políticas nesses espaços (ABREU, 1999; COSTA, 1980). O fazer legislativo não era, portanto, o foco das análises que se situaram no Congresso Nacional Brasileiro. Contudo, minha pesquisa também se posiciona no Congresso Nacional brasileiro, e eu, assim como parte destes autores, também relato dificuldades de inserção neste campo (ver capítulo 3). O acesso ao interior da instituição legislativa também aparece em autores fora do contexto brasileiro. Crewe (2016), ao refletir sobre suas manobras em campo no parlamento britânico, defende que a etnografia deveria se ajustar ao campo, devendo dar sentido a lacunas existentes naquele espaço. Para a autora, um dos locais onde as lacunas aparecem de forma evidente seria entre o que as pessoas dizem sobre seus trabalhos e sobre o que elas realmente fazem (CREWE, 2017, p. 11).

No Congresso Brasileiro, essas lacunas e contradições apontadas por Crewe (2017) sobressaíam ao campo principalmente quando eu observava os documentos legislativos. Documentos, ainda que pudessem aparecer em alguns desses trabalhos, não ganhavam a centralidade das análises, assim como o fazer legislativo me parece secundário nestas análises que preferiam a parte política das Casas. Etnografias de documentos têm ganhado mais atenção por parte da antropologia (RILES, 2006; GUPTA, 2012; LOWENKRON; FERREIRA, 2014; NAVARO-YASHIN, 2007; FELDMAN, 2008; BRENNEIS, 2006), e tais abordagens e formas de construção do campo permitem que o processo legislativo seja observado não apenas pelos seus atores, mas por aquilo que eles produzem, fazem e transformam nas leis. Enquanto inicialmente as investidas em documentos como objetos de atenção etnográfica os observavam a partir de seu

(30)

conteúdo, percebemos outros olhares para tais objetos, sejam estes vistos pela sua forma, pelo efeito que produzem ou ainda por uma conexão entre conteúdo e forma.

Este enfoque na forma permite que documentos ganhem espaço nas análises não apenas por aquilo que descrevem, mas acabam virando eles próprios objetos etnográficos, dignos de um campo de pesquisa. Mais especificamente sobre o estudo de leis, Riles (2005) aponta que enquanto antropólogos atuantes no campo estavam voltados para análises de seu conteúdo, dos significados legais dos textos ou ainda para o lugar da lei nos locais onde ela se aplica, eles deveriam se atentar para algo central nesse campo: suas tecnicidades. Para a autora, esta virada para uma análise da forma em contraste com as análises que se voltavam para imersões sobre conteúdo seria crucial, visto que (1) ignorar um ponto central no campo da lei marginalizaria uma imersão naquele campo, (2) as técnicas da lei são precisamente onde as questões que os antropólogos buscam estão sustentadas, visto que são nessas técnicas que as políticas do campo ficam encapsuladas, e, por fim, (3) nossos métodos são capazes de produzir tal imersão no campo. Leis, assim como documentos, podem e serão transformadas em artefatos, porém seu conteúdo não será marginalizado neste texto. A forma acaba por ser tão crucial nesta análise por se posicionar no processo de fabricação de leis e documentos, o que justamente, como aponta Riles, percebe políticas do campo em forma de documentos (capítulo 3).

O termo documentos, no entanto, precisou ser melhor explorado e diferenciado no contexto a que esta tese se aplica (capítulo 2). Estamos aqui lidando com uma multiplicidade de artefatos, que ainda que sejam documentados e documentáveis, não são homogêneos entre si, e como percebemos ao longo da pesquisa, muito menos com as cenas que os contextualizam e fabricam. Com isto, a dinâmica dos locais de discussão, registro e produção destes documentos começou a ganhar espaço na pesquisa aqui apresentada. A pesquisa se insere numa interlocução com etnografias do legislativo e prioriza o fazer leis ao fazer política, percebendo no fazer leis, maneiras de produzir nosso objeto de investigação, mulher, em documentos legislativos. No entanto, documentos aparecerão nesta tese como formas de fazer ver a tramitação de proposições legislativas seja pelos percursos, votações, pareceres, debates, discursos, seja ainda, e talvez mais importante, por aquilo que fica de fora destes documentos, que, como veremos nesta tese, acabam por eclipsar informações, locais e pessoas do processo legislativo. Passo portanto a compreender que tal dinâmica de produzir leis e produzir documentos, ou ainda de garantir acesso ao interior do

(31)

processo legislativo, deve ser observada como parte constitutiva do processo legislativo brasileiro, assim como Nuijten (2003) argumenta que determinados “desvios” em instâncias burocráticas devem ser primeiro percebidas como constitutivas do campo analisado.

As análises metodológicas de forma de inserção em um campo de estudos sobre lei (Riles) e de uma etnografia do legislativo (Crewe) apresentam questões centrais que perpassaram a etnografia realizada para esta tese, embora nenhuma delas esteja se debruçando sobre o processo de fabricação de leis. Enquanto eu almejava descrever os processos de fabricação de leis no Congresso Nacional Brasileiro a partir da tramitação do PL 1399/03, as lacunas também apontadas por Crewe (2017) começam a transformar o campo e as minhas manobras de inserção nele. É assim que a forma dos documentos começou a ganhar espaço na etnografia, assim como técnicas burocráticas passam a ser melhor analisadas. Foram em parte as contradições entre os documentos legislativos que fizeram com que o método de inserção a campo fosse sendo ajustado conforme o campo ia se abrindo nesta pesquisa. Os próximos itens trazem algumas questões levantadas e a forma como fui me ajustando ao campo para conduzir uma etnografia com documentos no legislativo brasileiro.

Bagagem

Em princípio, o mesmo poderia ser feito no exercício envolvendo a comparação de culturas, pois não se pode assumir que os "seus" contextos, os contextos de outras culturas, e o "nosso" venham a ser equivalentes de alguma forma reconhecível. O que precisa ser analisado são precisamente "seus" contextos de ação social. Este é o objeto das monografias holísticas que apresentam tais mundos como encerrados em si mesmos, auto-referidos. Para ir além delas, é preciso proceder da única maneira possível, esclarecer as "nossas' próprias estratégias de auto-referência. (STRATHERN, 2006 [1988], p. 35).

Esta tese traz um exercício de contextualização que poderia ser transcrito como um exercício de “esclarecer “nossas” próprias estratégias de auto-referência” (STRATHERN, 2006, p.

(32)

18). Neste sentido, a elaboração desta tese esteve focada em esclarecer tanto o que tenho chamado de contexto do objeto pesquisado como as reflexões teóricas que embasam as análises apresentadas (STRATHERN, 1991). No texto que segue estes dois pontos estão, é claro, conectados. Mulher, como categoria jurídica, é a bagagem desta tese. No Brasil, mulher como categoria jurídica passa por inúmeras, ou infelizmente apenas algumas, transformações. Ela vai, e não linearmente, de um conceito de não cidadão para o conceito atual de igualdade sem distinção de sexo com a Constituição atual. Onde finalmente o termo (jurídico) atingiria um patamar de igualdade. Igualdade esta questionável, o que é praticamente óbvio para um brasileiro (e outros) ao ler esta passagem. A colocação jurídica da mulher na legislação brasileira anterior à Constituição atual, como veremos melhor no capítulo 1, estava condicionada principalmente a dois fatores: homem e família. Homem seria visto em figuras de marido ou pai, que detinham direitos que pudessem recair sobre a mulher, como, por exemplo, o direito de herança. Família, por outro lado, aparece como aquilo que enclausura mulher da vida pública, política e de direitos. Atribuir direitos “masculinos” a mulheres poderia romper com o modelo tradicional de família, modelo este que pressupunha um lugar de mulher no interior da família e da casa (ver capítulo 1). Ambos fatores, homem e família, estão de fato conectados entre si, e também por isso a transformação16 de mulher em sujeito de direitos na legislação brasileira é muitas vezes descrita como uma emancipação da família.

A Constituição Federal de 1988 é tida como marco na conquista para mulheres, como sujeitos de direitos, e pelas mulheres. É assim que a literatura que trata dos avanços jurídicos e políticos vai analisar o movimento de mulheres que culminou no formato da Constituição atual e a categoria mulher como ser emancipado da família e igualitário. A forma como mulheres avançam em leis faz parte dessa bagagem, servindo tanto como referencial para contextualizar a pesquisa que se colocaria anos depois da promulgação da Constituição quanto também aparecendo como referência em parte dos documentos analisados sobre “mulher”. Do meu lado persistia a questão: se mulher conquistou a igualdade jurídica com a Constituição atual, por que continuavam coexistindo legislações que reafirmavam direitos desta mesma categoria enquanto “cidadã”? Esta primeira questão, que inicia esta pesquisa em 2013, nos leva ao projeto de lei do Estatuto da Mulher de 2003. Aparentemente ele seria, como seriam outros “estatutos”, uma legislação para garantir a igualdade generalizada proclamada com a Constituição (ver capítulo 1). Olhar mais a fundo nos

(33)

permitiu ver outros problemas que apareciam referentes à noção de igualdade da categoria jurídica mulher. Estes debates sobre a categoria jurídica mulher retomavam o processo histórico e político de conquista da Constituição atual, sendo esta muitas vezes considerada como um fim do processo de busca de igualdade jurídica. Acerca disso, as parlamentares e convidadas concluíam em suas falas que o problema da igualdade jurídica recaía sobre a “prática”, a “realidade”, e na “falta de aplicabilidade da lei”. Esta aplicabilidade da lei nos levou nesta tese a tomar a forma de se produzir leis no Congresso Nacional como uma dessas práticas em que a lei, além de ser produzida, poderia ser vista em seu processo de aplicabilidade. Afinal, seriam as parlamentares sujeitos de direito em pleno exercício de seu direito de igualdade durante o processo de legislar? Esclarecida a bagagem, voltemos para nossa forma de olhar para o campo.

Visões parciais

Analisar o processo de fabricação de leis no Congresso Nacional, como já pontuei nesta introdução, induz a uma análise de diversos tipos de documentos. Com isso, analisar como leis são produzidas reflete em observar como cada documento vai tomando sua forma e como cada um destes descreve a tramitação de projetos de lei, ou de um mesmo acontecimento do processo legislativo. Estas formas de descrição, no entanto, começam a ser percebidas como diferentes descrições de um mesmo evento. Isso implica em diferentes descrições que devem ser consideradas descrições parciais de um objeto ou evento. Strathern (1991), utilizando reflexões a partir de Haraway (1988), chama atenção para estas visões parciais, refutando tanto uma ideia de totalidade do objeto estudado (visões holísticas) quanto evidenciando que seu oposto poderia produzir limitações ao objeto.

Bodies and machines are systems in themselves. And like bodies, we need to like machines enough to know their sensory capabilities: how from a camera on a space satellite one derives color photographs that can be assembled by the eye as planetary bodies - very detailed and very partial visions. (STRATHERN, 1991, p. 32).

(34)

Reconhecer a parcialidade de descrições seria um dos resultados da complexidade dos objetos de investigação do antropólogo. Reconhecê-las, e seus limites, permitiria utilizá-las de forma consciente, sempre enquanto parcialidades de um objeto. Estas descrições parciais, para Strathern, seriam sempre visões perspectivas.

My account also imitates that move; the realization of the multiplier effect produced by innumerable perspectives extends to the substitutive effect of apprehending that no one perspective offers the totalizing vista it presupposes. It ceases to be perspectival. (STRATHERN, 1991, p. XVI).

Reconhecer parcialidades de descrições ou visões começa a nos apresentar limites da nossa própria narrativa teórica. Notas taquigráficas, áudio e vídeo apresentam os três registros da mesma história que passa a ser contada de formas específicas, partindo do ponto de vista de cada documento. Os taquígrafos ficam a frente da sala, se revezando em quartos, e com múltiplas mãos para datilografar as falas, estas que podem ser revisadas pela presidência da comissão onde a fala acontece. Já os vídeos surgem das câmeras localizadas ao fundo dos recintos onde ocorrem as reuniões, às vezes nas laterais, apontando na maior parte do tempo para a mesa da presidência da Comissão. Enquanto câmeras secundárias podem apontar eventualmente, principalmente em momentos de fala, para os parlamentares sentados nas primeiras bancadas no plenário, logo em frente à mesa da presidência. Os áudios são gravados pelos microfones dos políticos presentes – já que são apenas os parlamentares que detêm um microfone. Estes microfones são ligados e desligados conforme os pedidos de fala dos parlamentares. E às vezes escapam por eles cochichos, falas entre parlamentares e funcionários ou entre parlamentares e parlamentares. Cada um desses documentos apresenta um ponto de vista parcial de uma mesma cena. Reconhecer a parcialidade dessas descrições nos impede de tentar trazer, ou produzir, uma reconstrução de uma história linear e única. Os documentos que compõem esta tese são parciais e produzem versões que podem inclusive contradizer outras versões.

Estas parcialidades nos levam a pensar que tais descrições multiplicam os locais de observação e narrativa de um evento. Para Mol (1999) esta multiplicidade deveria ser levada mais a sério, multiplicando não apenas os olhos de quem as vê, mas também a realidade que é descrita.

(35)

Para a autora, isto seria perceber que estes múltiplos pontos de vista multiplicam as realidades, que para a autora seriam performadas. Enquanto a autora está descrevendo formas que a doença (anemia em um dos casos) é performada e reconhecida como doença de diferentes maneiras, estas formas como a doença se manifesta de fato poderiam ser descritas como diferentes sintomas performados e reconhecidos. Em relação à produção legislativa utilizar esse mesmo raciocínio parece nos soar perigoso. Permitir que o evento seja multiplicado seria autorizar que determinadas manobras presentes nos documentos em registros sejam percebidas como realidades, enquanto elas podem esconder intencionalmente versões reais do evento. Os documentos não parecem multiplicar a realidade, mas evidenciar outro ponto que a mesma autora chama atenção: o fato que estas parcialidades evidenciam escolhas em suas performances. Veja que parcial toma o sentido não apenas de fragmento, mas de intencional. Esses pontos de vista plurais transformam escolhas, como diria Mol (1999), em fatos, evidenciando determinados pedaços das reuniões, por exemplo. Mais do que pensar, como o faz Mol (1999), que são múltiplas as realidades, eu prefiro pensar que são múltiplos fatos de uma mesma realidade intencionalizada. Para o meu campo de pesquisa, esta transformação de escolhas em fatos é extremamente pertinente. Mais do que pontos de vistas, teríamos múltiplas versões de uma reunião descritas, múltiplos registros transformados em documentos oficiais. Documentos oficiais, parciais e intencionais.

Outro lado, ou ponto de vista, acaba por ser quando eu mesma me coloco em cena: como um dos olhares a descrever cenas em meu diário de campo. Meu diário de campo, das reuniões que assisti presencialmente, acaba destacando uma outra posição de observação das cenas, uma adicional descrição da reunião. Entretanto, e acho importante chamar atenção para este fato, muitos poderiam considerar que estar na reunião e descrevê-la seria suficiente. Eu insisto em pensar meu caderno de campo como uma das possibilidades. Possibilidade de descrição que apenas através da comparação, que aqui majoritariamente é feita com outros pontos de vista de mesmas cenas ou outras cenas, permite que consigamos descrever como reuniões acontecem. Insisto em chamar meu caderno de campo em um ponto de vista porque enquanto ele muito me mostrava da cena física, de detalhes indescritíveis, de momentos antes e após os microfones serem ligados e desligados, os documentos traziam detalhes dos oradores, os nomes, partidos, números de requerimentos. Às vezes notas taquigráficas corrigiam detalhes errados em informações prestadas. E sem dúvida, eles me apresentavam os discursos imortalizados em palavras escritas, ouvidas ou assistidas de forma que eu poderia compará-los, selecioná-los, recortá-los.

(36)

Não quero dizer que estas seriam versões opostas, que se contradizem, mas reforçar que são visões parciais. Admiti-las nos permite ir além e não tomá-las como única forma de descrição da realidade. Se as versões produzidas em documentos, cenas, descrições são múltiplas, juntar tais visões não nos remete a compreender uma descrição fiel, ou alcançar uma totalidade “real”. Reconhecer a parcialidade delas e suas intencionalidades permite que juntá-las extrapole uma única descrição. Com isto em mente, temos que ir além da descrição dada como fato. Defendo que todas estas descrições devam ser percebidas como formas de acesso. Acesso que aqui possibilita perceber como leis são fabricadas em Comissões na Câmara dos Deputados. O meio de fazer isso é através da comparação.

Comparação

[…] yet the very act of comparing also constitutes a making of connections, and evokes a metaphorical relationship (STRATHERN, 1991, p. 51).

Quando eu recolho os diferentes documentos, registros, e analiso as cenas descritas em meu diário de campo, começo a perceber contrastes entre tais descrições. Ali eu mesma já estava comparando, mas era apenas a forma como eu quase que automaticamente utilizava uma descrição como “bagagem” para analisar outra. Elas iam se compondo, mas ao invés de criarem uma cena total de uma mesma reunião, elas apresentavam suas parcialidades intencionais. Comparo tais descrições a partir das questões apontadas por Strathern (1991), em que a comparação permitiria ao antropólogo evitar a questão de uma descrição a partir de sua própria sociedade, crítica que ela faz mais detalhadamente em trabalho anterior (STRATHERN, 1988). Assim, comparar traz à luz o referencial do antropólogo, que não necessariamente implica trazer em foco questões intrínsecas a sua própria “sociedade”. Questões surgem na escrita do antropólogo a partir do referencial de comparação17. Comparar diferentes termos ou escalas nos permite saltar de um a outro e

conectá-los através de suas similaridades e diferenças (STRATHERN, 1991).

(37)

Foi apenas a partir da comparação que a categoria “mulher” apareceu como uma questão quando eu analisava o Projeto de Lei 1.399/03 sobre um Estatuto da Mulher (capítulo 4). Ao contrário do que eu esperava, nada ali falava de “mulher” como categoria jurídica, não se discutia se os direitos relativos à pessoa física18 da mulher eram assegurados. Aquilo, é bem verdade, me

frustrara quando eu recolhia e analisava meu material nos primeiros momentos da pesquisa. Sobre o que falava todos aqueles documentos se não eram sobre a condição de pessoa e, consequentemente, da mulher ter igualdade como sujeito de direitos? Eu precisei comparar. Fui a outros documentos e passei a analisar a tramitação do projeto de lei (PL 192/03) do Ano da Mulher e, consequentemente, da Comissão Especial criada como atividade do projeto de lei quando aprovado. Ali eu começo a notar que uma reunião era mais aceita que outra. Mas aquilo, ainda que aparecesse em algumas falas, ficava mais claro nas entrelinhas – em reuniões canceladas, em reuniões curtas, que eu apenas as percebia quando comparava com atividades de outra reunião com praticamente as mesmas integrantes. Foi ali, nas notas taquigráficas da Comissão Especial do Ano da Mulher que me dei conta que o Estatuto da Mulher não era algo tão bem aceito. E, se parte daquelas que pareciam aceitá-lo tentavam de alguma maneira debatê-lo, outra parte parecia esvaziar reuniões ou evitá-las a fim de acabar com o debate.

Mas eu ainda não entendia como não eram discutidos os direitos relativos à categoria mulher juridicamente. Minha bagagem me levava a concluir que o problema da igualdade jurídica da mulher já estava resolvido, e parte das falas nas duas comissões dizia isso, mas elas diziam sempre que existia um problema na aplicabilidade das leis, ou da efetivação da igualdade: o que chamaram de “abismo entre a lei e da realidade”. Esse abismo, conforme eu me permitia observar em passagens do meu diário de campo, acontecia nos espaços ocupados por mulheres na Câmara dos Deputados, pela seriedade (ou falta dela) dada pelos demais presentes às reuniões em que elas eram assunto e comandavam. Quando tomo conhecimento de um projeto de lei sobre um Estatuto da Mulher apresentado em 1937 e comparo os documentos e discursos com aqueles do projeto de lei do Estatuto da Mulher em 2003 me espanto: se houve um avanço em documentos escritos, os

18 Partindo, então, da ideia de Pessoa para a Constituição, temos que esta pode ser vista de duas maneiras: a Pessoa

Física e a Pessoa Jurídica. Enquanto a primeira corresponde aos seres humanos dotados de vida em sua singularidade, a segunda expressa grupos ou coletivos de seres humanos – sendo estes também dotados de vida.

Aos seres humanos dotados de vida – ou seja, à Pessoa Física - são devidos três tipos de direitos: os direitos de existência – que englobam o corpo humano e a vida humana-, os direitos de personalidade - relativos aos atributos de liberdades e direitos pessoais intransferíveis, específicos àquela única pessoa, como o direito de liberdade e honra - e a individuação - como nome, domicílio e documentação civil (PINHO; NASCIMENTO, 1981).

Referências

Documentos relacionados

São eles, Alexandrino Garcia (futuro empreendedor do Grupo Algar – nome dado em sua homenagem) com sete anos, Palmira com cinco anos, Georgina com três e José Maria com três meses.

transformador da sociedade oferecendo momentos de descontração ao trabalhador de forma a compensar a insatisfação provocada pela mecanização das ações profissionais e contribuindo

Um exemplo prático do Balanced Scorecard encontra-se em Lima (1999), aplicado à indústria de comunicação em Santa Catarina, onde o autor aborda as quatro diferentes perspectivas

E assim como no uso das pontas TT e XR, o método por difração laser apresentou DMV inferiores aos mensurados pelo uso dos papéis hidrossensível e alternativo

Não houve interação (P>0,05) entre os níveis de cálcio e as relações cálcio/fósforo para nenhuma das variáveis, porém os níveis de cálcio promoveram efeito (P<0,05)

Artigo 20 - A Assembleia Geral será convocada, a qualquer tempo, pela ADMINISTRADORA, podendo também ser convocada diretamente por cotistas que detenham, no

9º Orientado pelo traçado e diretrizes oficiais, quando houver, o projeto, contendo desenhos, memorial descritivo e cronograma de execução das obras com duração máxima de

Principais mudanças na PNAB 2017  Estratégia Saúde da Família/Equipe de Atenção Básica  Agentes Comunitários de Saúde  Integração da AB e Vigilância 