REVISTA DO CENTRO DE HISTÓRIA DA
UNIVERSIDADE DE lISBOA· VOl. 3 • 1981
Na capa:
Repensar o Património
REVISTA DO CENTRO DE HISTORIA
DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
VOLUME 3 -
1981
Direcção de
Francisco Salles Loureiro
João Medina
Victor Gonçalves
INSTITUTO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA Centro de História da Universidade de LIsboa
CLlO - REVISTA DO CENTRO DE HISTóRIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA - VOL. 3 -1981
,
J.IJjJ
REVISTA DO CENTRO DE HISTÓRIA
DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
VOLUME 3-1981
Direcção de
Francisco Salles Loureiro João Medina Victor Gonçalves
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Indice
---ABERTURA .
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. .
ESTUDOS & INTERVENÇõES
Vale do Boto: escavações de 1981 no
com-plexo árabe/medieval . . . . .
Helena Catarino, Ana Margarida Arruda
e Victor Gonçalves
Os testamentos régios (séculos XII a XV).
7
aspectos vários . . . . .
29
M.
Fernanda Maurício
O processo de António Fernandes. piloto da
Guiné. na inquisição de Lisboa. . . . .
37
Isaías da Rosa Pereira
O interesse por Samatra ( ... ). .
Luís de Albuquerque
Tratado do cerco de Mazagão e do que nele
49
(se) passou. . . . .
53
Manuela Mendonça
O problema do casamento do Cardeal-Rei.
67
Francisco Salles Loureiro
A Ilha da Madeira setecentista.
.
.83
M.a de Lourdes de Freitas Ferraz
O Zé Povinho durante a República
João
Medina
Acerca das eleições de 1911 .
António Pinto Ravara
RELATóRIOS DE ACTNIDADE
Anta dos Penedos de S. Miguel (Crato),
103
127
Campanha 1 (81). . . .
153
Victor Gonçalves, Françoise Treinen-Claustre
e Ana Margarida Arruda
Cerro do Castelo de Santa Justa (Alcoutim).
Campanha 2 (80). . . . . 165
Victor Gonçalves
Cerro do Castelo de Santa Justa (Alcoutim).
Campanha 3 (81).
.
. . . .
171
Victor Gonçalves
VÁRIA
Arqueologia do Algarve: sinopse
retrospec-tiva e perspecretrospec-tivas de mudança. . . . .
177
Victor Gonçalves
Nota acerca de alguns materiais da II Idade
do Ferro do complexo arqueológico dos
Vi-dais (Marvão). .
.
.,.. . .
.
. .
183
Ana Margarida Arruda e Helena Catarina
A Vigia (medieval) de Paio Peres Correia
189
Victor Gonçalves
Um soldado português fuzilado na Flandres
193
Aniceto Afonso e MariUa Guerreiro
Lembrança de Barradas de Carvalho.
201
Luís de Albuquerque
LIVROS NOVOS, LEITIJRAS NOVAS?
A dinâmica da Hominização .
Victor Gonçalves
As origens recuperadas?
.
Victor Gonçalves
205
207
A cerâmica medieval no mundo
mediter-rânico. . . . .
.
. . . .
.
. . .
210
Helena Catarino e Ana Margarida Arruda
Para uma nova História Urbana
A. A. Marques de Almeida
NOTICIA RIO
. .
. .
.
212
levalloiso-musteriense mais não faz que confirmar os indícios de inflexão então detectados.
Num vasto lapso de tempo, todavia muito mais curto que qualquer episódio técnico anterior, entre 36000 e 9 a 8 000 AC, durante os últimos fenómenos do Würm, temos quase 25 000 anos decisivos para a afirmação e enxamear do Homo Sapiens Sapiens. Neles, as comuni-dades do Paleolítico Superior desenvolvem as técnicas de lascagem laminar, iniciam o uso comum de artefactos talhados em osso de cervídeo e manifestam de forma específica indícios de uma complexa mentalidade sim-bólica. Enquanto isto, significativas alterações climáticas têm lugar: este período começa com o fim do inter--estádio Würm II-III, charneira do Würm artigo e do recente, e termina com as oscilações climáticas do fim dos tempos glaciares.
Ora, estudando o modelo aquitano, DS-B verifica que 'Sauf à la période terminale des Temps glaciaires ou disparaissent à la fois la grande faune froide et les so-cietés de chasseurs paléolithiques, ii n'y a jamais et nulle part en Europe coincidence chronologique, ni donc cor-rélation, entre les changements des industries et les modi-fications des climats et des milieux naturels' (p. 116).
O que é evidenciado pelo quadro anterior.
Ora, nos últimos anos tinha-se assistido à diminuição da credibilidade das teorias que se propunham explicar as mudanças culturais do Paleolítico Superior recor-rendo aos argumentos 'rácicos' que faziam coincidir o grupo de Cro-Magnon com o Aurignacense e o grupo de Chancelade com o Madalenense. Permaneciam com alguma vitalidade as explicações que insistiam na impor-tância das variações climáticas.
O modelo aquitano pulveriza, aparentemente, estas duas correntes interpretativas e insiste na especificidade da evolução tecnológica.
Eis, certamente, uma comunicação que terá uma se-quência particularmente agitada mas que, pela natureza das questões abordadas, bem justifica o destaque que lhe quisemos atribuir, na impossibilidade óbvia de co-mentar no espaço de que dispomos todos ou a maior parte dos importantes textos que integram este Colóquio. Não queríamos, porém, encerrar esta notícia sem sub-linhar o interesse, para períodos mais recentes, da comu-nicação de Garralda (L'évolution récente dans la
Pénin-sulc lbérique, pp. 207-212), onde o A., após analisar
dezasseis séries de populações, avança interessantes pro-postas. De sublinhar a homogeneidade da população peninsular durante o Neolítico e a Idade do Bronze, agora evidenciada, e o seu provável enraizamento nas comunidades epipaleolíticas ou mesolíticas do género da estudada em Muge.
Não obstante a argumentação desenvolvida e os dados tratados, gostaríamos, no entanto, que uma teoria com tantas implicações fosse apoiada por uma maior cópia de informação.
Que imagem irá guardar o leitor desta densa colecção de textos densos?
Sem dúvida a de que, após a fundamental reunião de Paris, em 1969, um longo caminho foi percorrido e evidente é a convicção generalizada da poliformia e dinâ-mica dos processos evolutivos que envolvem a nossa espécie.
Sobre a dinâmica da hominização cada uma das co-municações ora divulgadas (e a discussão que as acom-panha) é um outro passo em frente. O que é dizer: esta-mos perante um volume de leitura integral obrigatória e cujos desenvolvimentos estão ainda longe de poderem ser determinados.
Victor Gonçalves
As origens recuperadas?
Les premiers habitants de
l'
Europe (1 500 000
-- 100 000 an·s),
Laboratoire de Préhistoire du Musée
de rHomme, Muséum National d'Histoire
Natu-relle, Paris, 1981. (Catálogo e textos de apoio à
exposição com o mesmo nome, aberta ao público
entre 08.12.81 e 30.04.83).
Uma exposlÇao no Museu do Homem é sempre um acontecimento, ao mesmo tempo mundano e cientifico. E não se julgue que o primeiro destes aspectos é o menor: já não falando das grandes massas de simples curiosos atingidos por este tipo de manifestações (e se o Museu do Homem não é comparável a Beaubourg na latitude social e etária da população que mobiliza não deixa por isso de ter uma clientela vasta) há que ter em conta que todas as escalas de decisão referentes à planificação administrativa e financeira estão geralmente presentes e, por motivos óbvios, se não poderão queixar da não rentabilidade arqueológica.
Convém recordar aqui o absurdo das exposições tem-porárias de curta duração, tornadas norma nalguns Mu-seus Nacionais. O Museu do Homem, com uma notável equipa técnica a geri-lo, é certo, apresenta as suas colec-ções permanentes numa área ultra-maioritária do edifício mas contrapõe-lhe, sistematicamente, exposições tempo-rárias de cuidada preparação, apoiadas por sólidos textos e, consequentemente, duráveis.
Fig. 1 - Traços dos primeiros habitantes da Europa (1 50000 - 100000). 1 Chilhac (France); 2 Terrasses du Roussillon
(France); 3 Puig d'en Roca (Espagne), La Selva (Espagne); 4 Le Va/lonnet (France); 5 Soleilhac (France); 6 Sandalja
(Yougoslavie); 7 Stranska Skala (Tchécoslovaquie); 8 Pribice (Tchécoslovaquie); 9 Mlazice (Tchécoslovaquie); 10 Pinedo
(Espagne); 11 Aridos (Espagne); 12 EI Aculadero (Espagne); 13 Budiiio (Espagne); 14 Atapuerca (Espagne); 15 Abbeville
(France); 16 Saint Acheul (France), Cagny la Garenne (Fance); 17 Che/les (France); 18 Wimereux (France); 19 Saint
Colomban (France) 20 Le Pissot (France); 21 Treisseny (France); 22 Achenheim (France), Hangenbieten (France);
23 Aldene (France); 24 MOlltmaurin (France); 25 lsernia la Pineta (Italie); 26 Venosa (Italie); 27 Bibbona (Italie);
28 Realmonte (ltalie); 29 Ghiardo-Cave (Italie); 30 La Be/le Roche, Sprimont (Belgique); 31 Mauer (République fédérale
d'Allemagne); 32 Petralona (Grece); 33 Azykh (Union de République Socialistes Soviétiques); 34 Tautavel (France);
35 Terra-Amata (France); 36 Vertesso/los (Hongrie); 37 Lunel-Viel (France); 38 Port-Pignot (prance); 39 La Roche Geletan (France) 40 Montgri (Espagne); 41 Torralba (Espagne); 42 Ambrona (Espagne); 43 Cova Negra (Espagne); 44 Casal do Monte (Portugal); 45 Seixosa (Portugal) 46 Vale de Ateia (Portugal); 47 Torre in Pietra (Italie); 48 Ma-lagrotta (ltalie); 49 Castel di Guido (Italie); 50 Monte Conero (Italie); 51 Faro Rosse/lo (Italie); 52 Punta Grande
(Italie); 53 Casa Biorai (ltalie); 54 Mandrascata (ltalie); 55 Hoxne (Royaume-Uni); 56 Swanscombe (Royaume-Uni);
57 Yiewsley (Royaume-Uni); 58 Pontnewydd (Royaume-Uni); 59 Petit Spiennes (Belgique); 60 Mesvin (Belgique);
61 Steinheim (République fédérale d'Allemagne); 62 Bilzingsleben (République démocratique d'Allemagne); 63 Le Lazaret
(France); 64 Orgnac (France); 65 Grotte du Prince (Italie); 66 La Chaise (France); 67 Fontechevade (France); 68
Ver-granne (France); 69 Grainfollet (France); 70 Biache Saint Vaast (France); 71 Cotte Saint Bre/ade (Iles
Anglo-Norman-des); 72 Ehringsdorf (République démocratique d'Allemagne); 73 Kulna (Tchécoslovaquie); 74 Saccospastore (Italie)
040000 50000 60000 70000 80000 90000 100000 L.U Z W 150000 U O I-200000 V') W --' 300000 c.. 04QOOOO 500000 600000 700'" 800 . . . 900000 --' o...
~aaÊ
, AusmAlOPllHECUS AFRICANUS... ti • •• UI]I",'"
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Na verdade, um investimento destes num mundo em crise como o de hoje tem, necessariamente, de ser rentável e a rentabilidade consegue-se no médio prazo (se de médio prazo se pode falar em relação a uma exposição
tempo-rária com a duração desta - quase dezassete meses ... ).
Apesar desta nótula ser dedicada ao volume que foi editado para acompanhar esta exposição não consigo deixar de me referir a ela própria, registando um certo desconforto que senti ao visitá-la, poucos dias após a sua inauguração. Esse desconforto reflectiu, de início, o pró-prio espaço em que ela se insere, demasiado escasso para a quantidade e qualidade da documentação apresentada. As cabanas reconstituídas comprimem o visitante con-tra expositores e gráficos, o espólio exposto apresenta-se com uma densidade que desorienta o observador, inespe-radamente confrontado à numerosa fauna, à utensilagem lítica, aos gráficos (aliás completíssimos). Junte-se a sur-presa da lareira eléctrica dentro da cabana do Lazaret e compreender-se-á o desconforto que referi.
Mas a exposição não deve considerar-se negativa, bem pelo contrário, e a enumeração destes pontos críticos seria de omitir se ela se realizasse em Portugal, onde parece sobejar a museologia e escassear a investigação
equacio-nada também em termos de grande público. Uma
expo-sição como a que Henry de Lumley organizou tem uma leitura obrigatoriamente polivalente: nela encontra o in-vestigador uma panorâmica actualizada dos conhecimentos sobre um dado período, o estudante informações úteis, ainda ausentes da bibliografia disponível, o simples curioso imagens poderosamente formativas.
Acompanhando as realizações deste tipo,
periodica-mente promovidas pelo Museu (e entenda-se aqui
perio-dicamente em termos de tempo de investigação e não em
termos cronológicos simples), edita-se um volume geral-mente homónimo.
Convém sublinhar que, também neste domínio, a nossa reacção não foi imediatamente positiva, talvez por termos ainda demasiado presente o excelente texto que acom-panhava a exposição anterior (').
Com efeito, graficamente Les premiers habitants
d'Eu-rope é, de certo modo, uma desilusão. A cor surge
exac-tamente nas gravuras em que é desnecessária (excepção
feita, talvez, à escolhida para capear o texto). As
gra-vuras a preto e branco são de qualidade apenas suficiente e alguns dos desenhos, de tanto reduzidos, estão por vezes longe do que seria de esperar (caso dos excelentes mapas de Thévenin sobre a evolução da fauna do Gunz ao Würm e dos desenhos da utensilagem lítica de Tautavel).
Haverá ainda que dizer algo sobre a escassez de infor-mações sobre Portugal e sobre a bibliografia
verdadeira-mente pré-histórica utilizada na exposição e nem sequer
referida na listagem de textos designada por Élements de
Bibliographie. E isto apesar de um agradecimento formal
a Georges Zbyszewski e Delfim de Carvalho (p. 8). Por-tugal resume-se a uma referência sumaríssima a Casal do Monte, Seixosa e Vale de AteIa (pp. 114-115), onde se enumeram, sem comentário significativo, os sítios não estratificados de Porto de Lobos, os provavelmente estra-tigrafados dos terraços fluviais do Tejo e a praia fóssil de Porto Covo. Os seixos afeiçoados de Magoito são con-siderados velhos de 700 000 anos e aponta-se uma idade de 1 500000 para os de Seixosa.
Tudo isto, que parece muito, cabe em seis parágrafos, num total de escassas 28 linhas. Sem uma ilustração e com referência a uma identificação ocorrida em... 1909.
(') Origines de I'Homme, Musée de l'Homme, Edité sous la direction d'Yves Coppens, Paris, 1976.
210
Afora estas considerações, compreensíveis numa pers-pectiva localizada, a nossa, de portugueses, haverá que reconhecer a tentativa de abranger a totalidade do terri-tório europeu e a atenção concedida a novos achados. Texto equilibrado, ilustrações variadas, gráficos e mapas importantes. Para estudantes e não iniciados, um útil lé-xico em fim de volume. Importante a divulgação, fora dos notáveis textos de origem, dos desenhos de Eric Guerrier, Puech e Fournier.
E, jeremíadas findas, inevitável a expressão de um desejo profundo, o de que, e em tempo breve, seja pos-sível referir a edição por um Museu português, o dos Serviços Geológicos, que tão numerosas e excelentes co-lecções reúne, ou o Nacionau de Arqueologia, que alberga agora o único grupo que especificamente se dedica ao Paleolítico português, de um texto a acompanhar uma grande exposição deste tipo.
Com curiosidade e interesse ficamos à espera.
Victor Gonçalves