• Nenhum resultado encontrado

Jogos de sombras : evocar o salazarismo nas comemorações do 25 de Abril

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Jogos de sombras : evocar o salazarismo nas comemorações do 25 de Abril"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)Jogos de sombras.

(2)

(3) Jogos de sombras Evocar o salazarismo nas comemorações do 25 de Abril Por Jorge Fernandes Alves. 1. Comemorar é sempre exprimir afectividade e identificação. Mas nem assim a tarefa se torna fácil para se abordar uma qualquer temática sobre o 25 de Abril. Na realidade, a avalanche informativa que nos últimos tempos se tem desenvolvido nos meios de comunicação, a propósito desta efeméride redonda que são os 25 anos, torna complexa qualquer opção, tanto mais que alguma desta informação se desenvolve com meios sofisticados e se tem criado alguns produtos de inegável qualidade. Direi mesmo que, para efeitos informativos, bastará por agora "ver, ouvir e ler para não ignorar", se me permitem glosar um poema célebre do cancioneiro da resistência. Mas o 25 de Abril é para muitos de nós um tema de história ainda quente, falar dele é sempre falar de nós. Vinte e cinco anos após a revolução de Abril ainda não é sem sentimento que se atribuem sentidos e significados à revolução, em parte institucionalizada. Temos de reconhecer, porém, que estes tempos também foram propícios a revisitações do salazarismo, umas dotadas de maior preocupação investigativa, outras deslumbradas e amnésicas, algumas mesmo veiculadas por memorialismos anedóticos. Ora é bom lembrar que vinte e cinco anos constituem uma fracção muito significativa na memória do homem comum. Memória que se torna pouco fiável na cadeia lógica dos acontecimentos e necessariamente reduz o sentimento de implicação social e de percepção da mudança. É, por isso, natural que surjam tentativas de reconstrução da história e de reposicionamentos de protagonistas desse tempo. Por acréscimo, a juventude actual nasceu já depois da revolução ou pouco antes. Se considerarmos os nascidos até dez anos antes do 25 de Abril, podemos dizer que, para a grande fatia populacional actualmente com menos de 35 anos, toda esta discussão e aparato comemorativo em torno da revolução do 25 de Abril decorre, em grande medida, num espaço de exterioridade, que o mesmo é dizer, de afastamento, de alheamento. E, se as comemorações anuais têm sido importantes no domínio da memória social, como estratégia para bloquear o esquecimento, não podemos esquecer que elas se desenvolvem inevitavelmente de uma forma económica, isto é, procuram necessariamente condensar o máximo de sentidos num mínimo de signos, o que as torna distantes das pessoas não directamente implicadas, as afasta do povo. Porque propiciam as grandes frases, os slogans, as ideias abstractas, os gestos pessoais e grupais de apropriação da revolução, a construção de. 1. Texto-base da conferência proferida nos Paços do Concelho de Barcelos, em 25.4.1999, por ocasião das comemorações dos 25 anos da revolução do 25 de Abril. Ao publicá-lo no volume de homenagem ao Professor Doutor João Francisco Marques, por ocasião da sua jubilação, procuro sublinhar também o seu papel de cidadão eleitor, que presidiu à primeira Assembleia Eleitoral em condições livres, no concelho da Póvoa de Varzirn, e desempenhou posteriormente funções autárquicas..

(4) Estudos em homenagem a João Francisco Marques. heróis (que, de resto, existem, uns mais do que outros). E com isso corre-se o risco de desvalorizar a resistência calada, feita de pequenos e grandes gestos no quotidiano popular (no campo, na fábrica, na escola, na sociabilidade dos cafés ou das igrejas, no interior da família, no vasto movimento da emigração ou no recolhimento da leitura ou do trautear da canção), gestos que engrossaram um grande caudal de sofrimento colectivo que veio a desaguar no mar de alegria de 25 de Abril de 1974. Valerá a pena recuperar aqui essa redundância da expressão tão popular na época de "liberdade livre", pleonasmo que exprime bem um sentimento de amplitude de liberdade para a qual não havia então vocabulário suficiente ou mais adequado. Esvaziando estes protagonismos populares, em vez de evocarmos uma revolução vivida, irmanada, corremos o risco de termos uma revolução que nos é narrada, em que apenas podemos ter sido espectadores! Corremos o risco de reduzir uma revolução a um golpe de estado. Daí que a comemoração do 25 de Abril deva ser sobretudo uma grande festa popular, mas com informação (comemorar o quê, porquê?). Um pouco de meditação não fará mal a ninguém e, eventualmente, poderá esclarecer um ou outro menos atento, contribuindo para que nos posicionemos como cidadãos de corpo inteiro, activos e não passivos. E certo que o calendário não parou a 25 de Abril, e logo a 26 passaram a existir divergências sobre a forma de construir o futuro. Mas o mito da ideia única sobre o futuro era exactamente o que acabava de se derrubar! Abria-se agora, como disse António Barreto, um livro em branco para se escrever a História. A partir daqui só podia surgir a pluralidade, que o mesmo é dizer, a divergência e a oposição de ideias e de interesses clara e livremente exteriorizados. Divergindo no que se desejava, para a grande maioria era claro o consenso sobre o que se rejeitava - o regime do Estado Novo, vulgarmente designado por ditadura, dado que os dispositivos principais da ditadura militar do 28 de Maio de 1926, tendentes a sufocar a opinião política livre, a limitar a participação política e a secundarizar a acção parlamentar, acabaram por ser institucionalizados no novo regime, que assim se manteve como um prolongamento dessa situação autoritária que deveria ser transitória. Em verdade, na prática, o Estado Novo representou a censura intelectual, a segregação política, a prisão ou exílio dos oposicionistas activos, a interdição das manifestações e do associativismo livre, a marcação do pensamento único, a guerra colonial, o isolamento internacional, o atraso económico e social e, sobretudo, o medo, o medo de falar e de ouvir, o medo de nós próprios. 2. Não vou então falar sobre o 25 de Abril como ponto de partida, nas portas que então se abriram e que permitiram confrontos de ideias e de ideais, novas formas de viver a cidadania e de sentir a política. Não vou falar dos caminhos posteriores, que ficaram ao encargo de todos nós, numa luta criativa de opiniões e de afirmações, com múltiplos campos de expressão, de que o poder local renascido é um bom exemplo. Procurarei, em breves minutos, mudar o registo e marcar a diferença, evocando alguns aspectos do passado anterior ao 25 de Abril, para o perspectivar como ponto de chegada. Na impossibilidade de nestes breves minutos evocar o percurso que conduziu à revolução pacífica e consensual de 1974, permitam-me recuperar apenas uma das conquistas mais importantes do pós-25 de Abril: a implementação de eleições livres, como base de um sistema representativo, que confere ao poder legitimidade para governar de forma renovada..

(5) Jorge Fernandes Alves. "Farsa eleitoral", "eleições livres", como sentimento de repúdio e exigência de cidadania, foram certamente, durante o período salazarista, das frases mais usadas no campo da opinião pública. Não é, naturalmente, tarefa fácil explicar como se jogava eleitoralmente no salazarismo! Usando uma retórica com ressaibos de oratória sacra, que jogava abundamente em recursos antinómicos (mentira/verdade; desordem/ordem; nada/tudo) e que propiciava julgamentos lineares de exclusão, Salazar soube captar inicialmente a confiança tanto de vários grupos da direita política como de sectores significativos da população, enredada na depressão económica mais grave da história (anos 30) e na conflitualidade político-social dela emergente, para além de cansada da agitação de rua e da inconsequência governativa dos tempos republicanos. Com o apoio do exército, que estava comprometido numa aventura ditatorial a que não sabia dar saída, Salazar, passo a passo, construiu um regime com características orgânicas mas de forte pendor pessoal, onde o Estado (leia-se poder do governo) devia ser forte e de acção. O passado liberal e republicano resumia-se, para Salazar, a "desordem" e "desorganização", devendo ceder o lugar a uma "nova ordem de coisas", que passaria pelo fortalecimento do Estado. Este fortalecimento seria conseguido através da libertação do poder executivo em relação ao poder legislativo, secundarizando este, esvaziando-o da sua função legisladora e fiscalizadora, para lhe atribuir uma função vagamente orientadora das "grandes bases das grandes leis", em relação a um poder executivo de nomeação directa do Chefe do Estado, "sem dependência de quaisquer indicações parlamentares". Esta negação/inversão do princípio tradicional da divisão de poderes, era articulada com o estratagema retórico de trazer a "Nação para o Estado", consubstanciada na família e nas corporações morais e económicas, em detrimento dos partidos, considerados por Salazar uma ficção, enquanto organizações de cidadãos. Condenava, assim, o cidadão, considerando-o como uma criação do liberalismo do século XIX para aí se radicar a fonte da soberania nacional, princípio que Salazar desprezava: enquanto "indivíduo desmembrado da família, da classe, da profissão, do meio cultural, da agremiação económica", eu, tu, ele, nós éramos uma "abstracção, um conceito erróneo ou insuficiente" (Discursos, I vol, p. 85). Remetia mesmo o campo de intervenção do cidadão para a representação do papel de chefe de família, com o "direito de eleger os vogais dos corpos administrativos, pelo menos da freguesia [...] é aí que, de preferência, encontramos o cidadão com fundamento para os direitos políticos", segundo afirma. Vale a pena reflectir sobre o reparo que o próprio Salazar levanta, quando expõe estas ideias numa reunião que prepara o aparecimento da União Nacional (discurso de 30.7.1930) e diz: "em tão longo discurso, exclusivamente sobre matéria política, pouco se fala de liberdade, de democracia, de soberania do povo, e muito ao contrário, de ordem, de autoridade, de disciplina, de coordenação social, de Nação e de Estado". E, antecipando-se a eventuais objectores, explica que "há palavras e conceitos gastos sobre os quais nada de sólido se pode edificar já". Arredada estava, pois, qualquer esperança de normalização democrática, através do retorno ao parlamentarismo, como alguns participantes da ditadura acalentavam, convencido como estava Salazar de que a democracia parlamentarista tinha findado a sua época. E, em 1934, afirmou-se mesmo convencido "de que dentro de vinte anos, a não se dar qualquer retrocesso na evolução política, não haverá na Europa assembleias legislativas"..

(6) Estudos em homenagem a João Francisco Marques. 3. Como evoluiu, neste domínio, a ditadura? Não houve, assim, retorno à situação parlamentar tradicional, solução que muitos apoiantes da ditadura advogavam, porque o poder instalado decidiu, sob a batuta de Salazar, institucionalizar o regime, dar curso à ditadura como "forma de resolver o problema político português" (Discursos, I vol. p. 65), retirando-lhe o carácter provisório que tinha até aí. As ditaduras, então emergentes na Europa, não eram encaradas por Salazar como "parêntesis dum regime, mas elas próprias um regime, se não perfeitamente constituído, um regime em formação", segundo as suas próprias palavras. A institucionalização do Estado Novo, dotando-o da Constituição de 1933 (e de outros documentos básicos, como o Acto Colonial, o Estatuto do Trabalho Nacional, a Carta Orgânica do Império), foi a solução salazarista para a continuação da política ditatorial, no pressuposto da necessidade de continuar a criação de uma "mentalidade nova", segundo o léxico do regime que usava e abusava da antinomia velho/novo. Fomentava para esse efeito uma doutrina corporativa que nunca passou de uma caricatura discursiva, usada como expediente ideológico de recurso ou como cortina para a cristalização da representação de interesses económicos. Nos finais dos anos 50, ou seja, trinta anos após a eclosão da ditadura, ainda se buscava formalizar e consubstanciar o aparelho corporativo. Institucionaliza-se, assim, um regime claramente auto-proclamado desde o início como antiliberal, antip ar lamentar e antidemocrático, numa solução autoritária com aproximações e recuos aos totalitarismos da época, segundo a toada mais conveniente à "arte de saber durar" (na feliz expressão de Fernando Rosas). Com o decorrer do tempo, esta preocupação de conservar o poder tornou-se no grande objectivo de Salazar, que acabou por esquecer a obsessão da "originalidade da experiência portuguesa" tão invocada nos primeiros anos. A originalidade parece resumir-se à capacidade de gestão dos diferentes interesses da direita política, com o Estado Novo de Salazar a "entrosar uma ideologia nacionalista de origem integralista e um corporativismo social de inspiração católica numa ditadura constitucionalizada e administrativa, civil e policial, do chefe do Governo", segundo a síntese formulada por Manuel Braga da Cruz. Mas não conseguiu prescindir de uma Assembleia Nacional, de funções restritas, que funcionava apenas de 15 de Novembro a 15 de Dezembro e de 15 de Janeiro a 30 de Abril, ou seja, pouco mais de 4 meses no ano. Nem se eximiu a recorrer a eleições para os diversos fins (legislativos, presidenciais, administrativos). 4. Nestas circunstâncias, que papel desempenhavam as eleições? "Politicamente só existe o que o público sabe que existe", diz Salazar num discurso de 26.10.1933, na inauguração do Secretariado da Propaganda Nacional. Esta máxima é para ser encarada à letra. As eleições resolviam-lhe alguns problemas internos (renovavam o pessoal dirigente, captavam algumas novas adesões, procuravam relegitimar periodicamente o regime, procedia-se a jogos de equilíbrio entre várias facções) e tinham a vantagem de produzir algumas imagens de normalidade institucional para o exterior. Mas havia apenas um partido - a União Nacional, a que se recusava oficialmente esse estatuto de partido, sendo considerado apenas como organização cívica, quer para dar.

(7) Jorge Fernandes Alves. coerência ao discurso inicial anti-partidos, quer para legitimar a proibição de outros partidos. Note-se que também não foram autorizadas "organizações cívicas" à oposição, só sendo possível desenvolver alguma acção política no âmbito da União Nacional, considerada declaradamente por Salazar como uma "espécie de padrão por onde se hajão de aferir a inteligência e o patriotismo dos homens". No que toca aos opositores políticos, àqueles que não se pautavam pelo padrão nacionalista, Salazar foi claro: "no que respeita a uma actuação política efectiva, levá-los-emos pelo melhor modo possível a que não nos incomodem demasiadamente" (discurso de 23.11.1932). Esta frase tornou-se depois mais clara com o carácter policial crescentemente imprimido ao Estado - com a polícia política e a repressão, a censura prévia, a justiça a cassar direitos políticos, a confusão do partido com o Estado, com a acção política a ser confiada aos agentes administrativos (é o Ministério do Interior que organiza a União Nacional, o recenseamento é controlado legal e administrativamente, manobrado por dirigentes locais...). E, confrontado com as violências da polícia política, dizia, na célebre entrevista a António Ferro, que "uns safanões" só fariam bem aos agitadores, tal como o pai tradicional educa os seus filhos. Enfim, criou-se uma atmosfera de cerco, de intimidação e de suspeição que retirava qualquer credibilidade a resultados eleitorais derivados de uma situação que não contemplava liberdade de pensamento e de associação, nem dava garantias individuais de acção política. Em vez de retirar ilações da opinião pública, o salazarismo sempre procurou produzir, condicionar e amoldar a opinião pública aos seus desígnios políticos. Por isso até 1945, ou seja, ao final da Segunda Guerra, só concorreram listas únicas emergentes da União Nacional, pelo que as eleições só assumiam algum carácter referendado. 5. E depois de 1945, no findar da 2? Guerra? Depois, com a vitória militar das democracias sobre as ditaduras, a situação tornou-se embaraçosa e Salazar viu-se obrigado, para efeitos externos e para descomprimir a pressão interna derivada da expectativas na sua eventual queda política na sequência da derrota do Eixo, a prometer "eleições livres como na livre Inglaterra". Apenas mais um sofisma, pois embora atenuadas as condições de repressão imediata, o pano de fundo não se alterou, permitindo a Salazar exercitar as jogadas em que era mestre, prometer e escrever garantias e depois criar condições de excepção por despacho que esvaziavam essas garantias (como acontecia com os direitos individuais consagrados na Constituição), recuperando a repressão e os saneamentos políticos depois de baixar a cortina eleitoral. Depois da Guerra, assistiu-se, no entanto, a alguma agitação política em alturas eleitorais, com a oposição, sem actividade normalizada, a organizar-se quase espontaneamente, mas de forma suficiente para avaliar a disposição popular e realizar algumas acções de massas que criavam pânico nas hostes salazaristas (como aconteceu com as movimentações do MUD, em 1945, e com as eleições presidenciais, particularmente em 1949, com Norton de Matos, e depois, em 1958, com Humberto Delgado). O objectivo oposicionista só podia ser de facto o do aproveitamento da pequena abertura eleitoral para garantir a afirmação da existência política, desistindo à boca das urnas,.

(8) Estudos em homenagem a João Francisco Marques. como forma de evidenciar a falta de condições políticas e denunciar a "farsa eleitoral", embora com o efeito negativo de evidenciar os oposicionistas à polícia política, não só os candidatos mas também os simples participantes em acções públicas, que depois se viam perseguidos nomeadamente nos empregos. Note-se que os recenseamentos eleitorais raramente abrangiam mais de 15% da população, estavam frequentemente desactualizados, afastando deste modo a inscrição da população mais jovem e assegurando a inscrição de defuntos e ausentes. Como termo de comparação, no campo da representatividade política, sublinhe-se que, para uma população total de cerca de nove milhões de habitantes, o recenseamento de 1973 abrangia 2096 milhares de eleitores (o que representou já na altura um salto qualitativo), mas o de 1975 (já depois da revolução do 25 de Abril de 1974) apresentava 6177 milhares (considerando em ambos os casos o Continente e Ilhas). Ou seja, em 1973, votaram apenas cerca de 1.391.990 portugueses, contra 5.666.696 no ano de 1975. É claro que com uma situação destas, em que os potenciais opositores eram afastados, a União Nacional obtinha regularmente cerca de 70% de votos favoráveis, embora não obtivesse o pleno reconhecimento da legitimidade pela via eleitoral. As eleições eram, assim, um elemento de perturbação num regime político que não gostava de perder tempo nem de se incomodar com a designada "política", um dispositivo manifestamente desajustado no sistema. 6. As eleições presidenciais de 1958 destacaram-se neste insípido ritual de ida às urnas Estas eleições, marcadas pela candidatura de Humberto Delgado, tiveram efeitos devastadores para o Estado Novo, não pelos resultados, que estavam controlados, mas pelas consequências das movimentações políticas operadas. Desde logo o facto de surgirem duas candidaturas iniciais, que depois se unem para enfrentar o regime, mostra uma vontade de mudança política assinalável, que teve a respectiva tradução em movimentações de massas populares, com Delgado a suscitar entusiasmo em amplos sectores da população, muitos deles anteriormente próximos do salazarismo. Houve, com a candidatura de Delgado, um dissidente do Estado Novo (ex-cadete do 28 de Maio e importante quadro do regime), a evidência de profundas fracturas no regime dominante, com a oposição a lembrar ao exército o seu necessário papel no eventual retorno à normalidade constitucional. Em documentos oficiais produzidos pelo governador civil e presidentes da Câmara de então, no distrito do Porto, que recentemente publiquei num pequeno trabalho (O Furacão Delgado e a ressaca eleitoral de 1958 no Porto), vislumbra-se um sistema acossado, em que os poderes periféricos (governo civil e presidentes de câmara) tremem perante o fenómeno eleitoral, revelam medo quer da vontade de mudança da população, quer do governo central e das suas eventuais retaliações. Incapazes de garantirem vitórias, pedem mesmo a suspensão do dispositivo eleitoral para a presidência, revelando que Salazar não estava sozinho nas suas decisões. E os números, sabendo-se da manipulação havida e aqui reconhecida, mostram que o sistema não consegue controlar tudo: se Tomás ganha nos centros urbanos, onde houve maior "cuidado", perde em pequenas e obscuras freguesias de concelhos afastados da.

(9) Jorge Fernandes Alves. cidade, onde era suposto isso não acontecer. O Estado Novo era já, como se reconhece nessa documentação, um "slogan estafado", enfim, um barco a meter muita água. Assim, o aparelho salazarista foi obrigado a desnudar-se politicamente, havendo uma potenciação pública na visibilidade dos vícios tradicionais próprios das eleições em tempos salazaristas (recenseamento controlado, falsificação na contagem de votos, prisão de oposi tores antes e depois das eleições), suscitando a indignação e criando novas linhas de oposi ção ainda que informais, como foi o caso de alguns sectores da Igreja que se inquietaram, com o bispo do Porto a assumir os ditames da sua consciência, escrevendo a Salazar uma carta que correu publicamente. Mais ainda, é o próprio Estado Novo que, ao perceber que pode perder as eleições mesmo em situação pretensamente controlada, toma a decisão de terg\ minar com as presidenciais por sufrágio directo e recorrer a um colégio eleitoral restrito. E, desta forma, mostrou à oposição que não havia mais nada a esperar de actos eleitorais para eventuais alternativas de regime, que essa esperança estava decididamente arredada, sendo necessário recorrer a outros meios. O regime, a partir de 1958, vai endurecer, num processo prolongado de agonia, que a emergência da gueixa colonial talvez tenha atenuado no curto prazo, para se revelar fatal a médio prazo, já no frustante consulado marcelista, na medida em que sobre ele recaíram fortes expectativas de renovação. Com a revolução de 25 de Abril de 1974 e a franca adesão popular que suscitou, confirmou-se apenas que o Estado Novo estava, de facto, velho. Precisamente um ano depois, após alguma conflitualidade inicial (que, curiosamente, levou de novo certas forças a invocarem a "originalidade da revolução portuguesa", um slogan tipicamente salazarista dos primeiros tempos), celebravam-se as primeiras eleições livres, segundo os padrões das democracias ocidentais, com liberdade de organização política e de expressão individual, garantindo uma ampla base de recenseamento onde não existem discriminações de sexo, idade ou condição social. Cumprem-se também hoje 24 anos sobre essa data, e, como certamente todos se lembram, foi um dia eloquente no que se refere à dominação de um dispositivo central no conceito de democracia parlamentar: o direito individual de voto em eleições livres. Conseguiu-se, pois, a recuperação do velho conceito de cidadão, agora rejuvenescido, o retorno ao princípio democrático da representação política, garantida e legitimada através da expressão eleitoral dos cidadãos, como elementos centrais da ideia de liberdade, condição de base para equacionar os outros direitos individuais e colectivos. Se me permitirem parafrasear o vocabulário da teoria económica, direi que a grande lição de história que percorreu o quase meio século de interdição da liberdade, que o salazarismo representou, conjugado agora com a sua destruição no clímax do 25 de Abril, se explicita pelo reconhecimento de que a liberdade é um bem com valor de uso, que se consome como quem respira, um elemento da natureza como o ar ou a água, indispensável à vida e para a qual não se encontra valor de troca..

(10)

Referências

Documentos relacionados

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de

6 Consideraremos que a narrativa de Lewis Carroll oscila ficcionalmente entre o maravilhoso e o fantástico, chegando mesmo a sugerir-se com aspectos do estranho,

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Seja o operador linear tal que. Considere o operador identidade tal que. Pela definição de multiplicação por escalar em transformações lineares,. Pela definição de adição

Este texto é uma reflexão em torno da necropolítica, a partir de Achille Mbembe, e das esculturas de Niemeyer, de como estas obras artísticas representam a enunciação e