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Ad argumentandum tantum: um olhar antropológico acerca do processo criminal da morte do cacique Xicão Xukuru

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Academic year: 2021

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(1)1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - CFCH PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA - PPGA. MARIANA CARNEIRO LEÃO FIGUEIROA. AD ARGUMENTANDUM TANTUM: um olhar antropológico acerca do processo criminal da morte do cacique Xicão Xukuru. RECIFE, 2010..

(2) 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - CFCH PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA - PPGA. MARIANA CARNEIRO LEÃO FIGUEIROA. AD ARGUMENTANDUM TANTUM: um olhar antropológico acerca do processo criminal da morte do cacique Xicão Xukuru. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa. de. Pós. Graduação. em. Antropologia, da Universidade Federal de Pernambuco. Trabalho orientado pela Prof. Dra. Vânia R. Fialho de Paiva e Souza e coorientado. pela. Prof.. Dra.. Judith. Chambliss Hoffnagel, para obtenção de título de Mestre em Antropologia.. RECIFE/ 2010.

(3) 3. Figueiroa, Mariana Carneiro Leão Ad argumentandum tantum: um olhar antropológico acerca do processo criminal da morte do cacique Xicão Xukuru / Mariana Carneiro Leão Figueiroa . - Recife: O Autor, 2010 117 folhas: il., fotos. Dissertação (mestrado) ± Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Antropologia. 2010. Inclui: bibliografia, apêndice e anexos. 1. Antropologia. 2. Povos indígenas. 3. Índio ± Morte (Cacique Xicão Xukuru). 4. Processo judicial. 5. Aspectos sociais. I. Título. 39 390. CDU. (2.. ed.) CDD (22. ed.). UFPE BCFCH2010/101.

(4) 4.

(5) 5.

(6) 6. A Luiz Fernando Lapenda Figueiroa, painho, que não teve tempo para participar desse momento..

(7) 7 AGRADECIMENTOS. Nomear pessoas poderia ser injusto com aquelas que não sejam mencionadas. Não nomear, ingratidão com as que devem ser lembradas. Entre justiça e gratidão, no Direito, ficamos com a justiça, mas moralmente, com a gratidão. Porém, como agradecimentos não são encontrados em ordenamentos jurídicos, mas em preceitos PRUDLVHFRPRDJRUDVRXXPD³DGYRSyORJD´opto aqui por ser grata com aqueles que merecem essa gratidão. Jamais poderia concluir esse trabalho e não agradecer àqueles que em mim sempre acreditaram e colaboraram direta ou indiretamente nisso tudo. Então, primeiramente, gostaria de agradecer a minha amiga-orientadora, Vânia Fialho, pelo carinho, solidariedade, confiança, amizade e atenção comigo e com a dissertação. Aproveito para expressar minha profunda tristeza por não tê-la fisicamente na minha banca, mas sei que conto com seu apoio para além dessas formalidades. Agradeço também a minha coorientadora Judith Hoffnagel, pela ajuda, motivação e disciplina necessária para que esse trabalho fosse concluído. Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ± CAPES, pela bolsa concedida durante os anos do mestrado. Agradeço também, ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal de Pernambuco, na pessoa do Prof. Antônio Motta - coordenador, pela acolhida e a todos os professores que contribuíram para o meu interesse pela pesquisa antropológica ao longo da minha formação acadêmica. Agradeço ainda, aos funcionários do PPGA, principalmente, a Regina pela boa vontade de sempre e presteza em ajudar. Agradeço ao Povo Indígena Xukuru do Ororubá, pelo interesse no trabalho e pelo acolhimento nas visitas a terra indígena, em especial ao cacique Marcos Xukuru e o vice-cacique Zé de Santa pelas entrevistas concedidas. Agradeço também aos meus familiares, amigos e amigas, pelo apoio e paciência durante todo este período, mas em especial, ao meu colega Hugo Lacerda, por dividir as angústias nesses anos de mestrado, pelas LGpLDV H ³HPSUpVWLPRV´ DFDGrPLFRV; ao ³JUXSLQKR GR 1($-´ - Núcleo de Estudos de Antropologia Jurídica ± pelas valiosas GLVFXVV}HVTXHPHDMXGDUDPDGHVHQYROYHUHVVHHVWXGRDPLQKDDPLJDH³PmH-DGRWLYD´ Mônica Gusmão pelo apoio incondicional selado com o nosso reencontro e, claro, à Palloma Cavalcanti que, com todo seu fascínio pelos povos indígenas, contribuiu.

(8) 8 ativamente na minha inserção nesse campo. As minhas melhores amigas, Juliana e Giselle, simplesmente por existirem na minha vida: muito obrigada! Meu dindo-primoirmão querido Luís Felipe ± ³OXOD´± pela ajuda, solidariedade e atenção, fundamentais nesses dois últimos anos. Agradeço, de forma muito carinhosa, a atuação de minha mãe no período de construção e escrita deste trabalho. Sua ajuda e a crença absoluta na capacidade de realização a mim atribuída foram, indubitavelmente, um dos elementos propulsores desta dissertação. Voinha também, sem palavras!!! À minha querida tia-madrinha-mãe, TXHGR³YHOKR PXQGR´ FRP WRGR FDULQKRH DWHQomRWHFHXYDOLRVDVFRQVLGHUDo}HVPH ajudou nas traduções e se fez presente ao seu modo neste período, muito obrigada. Tina, minha irmã querida... você é fundamental na minha vida, para sempre. Mas meu maior agradecimento é dirigido ao meu companheiro-amigo-marido Pedro Alexandre, que por vezes deve ter detestado a mim e a este trabalho, pois sacrificou muitos momentos que poderíamos ter desfrutado juntos, mas sempre incentivou, apoiou e, o melhor de tudo, me cobrou para que eu continuasse e concluísse mais esta etapa de nossas vidas que estamos construindo ao longo desses anos. TE AMO!.

(9) 9. ³¬SDUWHGLVVRWHQKRHPPLPWRGRVRV VRQKRVGRPXQGR´ Fernando Pessoa.

(10) 10. RESUMO. A dissertação consiste em um estudo de caso sobre o processo criminal que tramitou na 16ª Vara Criminal da Justiça Federal do Estado de Pernambuco e teve como escopo a apuração das circunstâncias e a autoria da morte do cacique Xicão Xukuru. Seu objetivo é compreender como a máquina judiciária estatal opera diante da diversidade cultural existente na nossa sociedade. Francisco de Assis Araújo ± cacique Xicão Xukuru, foi assassinado mediante disparos de arma de fogo na manhã do dia 20 de maio de 1998, no bairro Xukurus, na cidade de Pesqueira, interior do estado de Pernambuco. Líder indígena atuante, respeitado regional e nacionalmente, devido a sua importância na luta do povo Xukuru e das demais etnias do Nordeste brasileiro pelo reconhecimento de seus direitos, em especial aqueles referentes à demarcação da terra indígena. Sua morte causou grande comoção e revolta, repercutindo nacional e internacionalmente, chamando a atenção de entidades de defesa dos Direitos Humanos. Os acusados pelo homicídio, fazendeiros locais, faleceram antes de o processo chegar ao seu final, tendo sido o mesmo arquivado. No intuito de perceber que tipo de cultura jurídica tem predominado nas contendas que envolvem direitos indígenas e como se dá esse diálogo intercultural, foram privilegiados nessa análise, fundamentalmente, os dados que constituem os autos processuais, tomando como método a análise crítica do discurso, para compreender o processo criminal como uma grande narrativa, a fim de evidenciar como o Estado-Juiz articula seus argumentos acerca da questão e quais os aspectos culturais são revelados. Os referenciais da antropologia jurídica, a partir dos princípios relativistas do pluralismo jurídico enquanto paradigma teórico para pensar esse diálogo intercultural possibilitaram a interpretação dos dados; que passa pela necessidade de tentar conjugar a lógica normativa do Estado de Direito com o respeito à diversidade étnico-cultural. Tal conjugação torna-se fundamental, principalmente em processos criminais que envolvam sujeitos coletivos de direitos, assim reconhecidos pela nova ordem constitucional brasileira e normas de acordos internacionais no cenário mundial.. Palavras-Chave: Diálogo Intercultural; Processo Judicial; Povos Indígenas; Sujeitos Coletivos..

(11) 11. ABSTRACT. The present thesis reports a case study about a criminal suit held in the 16th Criminal Court of the Federal Justice in Pernambuco State, Brazil, aiming to clarify the FLUFXQVWDQFHVDQGDXWRUVKLSRIWKHPXUGHUHURI;XFXUX¶VLQGLDQWULEDOOHDGHU;LFmR7KH objective is to comprehend how the judicial machinery works given the cultural diversity existent in our society. Francisco de Assis Araújo ± knowQ DV ,QGLDQ OHDGHU ³;LFmR ;XNXUX´ ZDV murdered by gunshots on May 20th of 1998, in the town of Pesqueira, interior of the state of Pernambuco. A prominent indigenous leader, respected regionally and nationally, because of his importance in the Xucuru´s, and several other Indian ethnic groups of Northeastern Brazil, struggle for the recognition of their rights concerning the delimitation of Indian lands. His death caused great commotion and resentment, with national and international repercussions, attracting the attention of Human Rights entities. Local farmers who were accused of being the leaders of the murder plot died before the criminal prosecution was concluded, thus the criminal suit was archived before its completion. With the intent of understanding what kind of juridical culture has prevailed in the legal cases that involve indigenous rights and how this intercultural dialogue developed were privileged in this analysis. Using the method of critical discourse analysis, the data that compose the Law suit, taken to be a long narrative is analyzed aiming to evidence how the State-Judge articulates its arguments over the question and which cultural aspects are revealed. The references to juridical anthropology, starting from the relativisim of judicial pluralism is used as a theoretical paradigm to reflect on this cultural dialogue, and made possible the data interpretation, which surpasses the necessity to conjugate the normative logic of the State of Law with respect to the ethnic-cultural diversity. Such conjugation becomes fundamental, especially in criminal Law suits that involve subjects of collective rights, recognized by the new Brazilian constitutional order and international regulations and agreements.. Keywords: Intercultural dialogue; Law suit; Indigenous people; Collective subjects..

(12) 12 LISTA DE SIGLAS. BB - Banco do Brasil BNB ± Banco do Nordeste do Brasil CDDPH ± Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana CEF ± Caixa Econômica Federal CFB/88 ± Constituição da República Federativa do Brasil CIMI ± Conselho Indigenista Missionário COMPESA ± Companhia Pernambucana de Saneamento CP ± Código Penal Brasileiro CPC ± Código de Processo Civil Brasileiro CPP ± Código de Processo Penal Brasileiro DETRAN ± Departamento de Trânsito Nacional FUNAI ± Fundação Nacional do Índio GAJOP ± Gabinete de Assistência Jurídica às Organizações Populares IBGE ± Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IML ± Instituto Médico Legal INSS ± Instituto Nacional de Seguro Social IP ± Inquérito Policial JF ± Justiça Federal MPF ± Ministério Público Federal OAB ± Ordem dos Advogados do Brasil OIT ± Organização Internacional do Trabalho ONU ± Organização das Nações Unidas PDAD - Presídio Des. Augusto Duque (Pesqueira/PE) PSDB ± Partido da Social Democracia Brasileira PF ± Polícia Federal RELAJU ± Red Latinoamericana de Antropología Jurídica SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas SESI - Serviço Social da Indústria SRPF ± Superintendência Regional da Polícia Federal SRF ± Secretaria da Receita Federal TRF ± Tribunal Regional Federal.

(13) 13 SUMÁRIO. Introdução_ ________________________________________________________ 12. Parte I Pluralismo Jurídico: manifestação da interculturalidade ___________________ 16 1.1. Antropologia Jurídica enquanto campo de saber _________________________ 17 1.2. O Pluralismo Jurídico: do olhar jurídico ao antropológico __________________ 22 1.3. As experiências Latino-Americanas ___________________________________ 29. Parte II Reflexões Metodológicas ______________________________________________ 34 2.1 ± Estratégia adotada: análise crítica do discurso como método _______________ 35 2.2. - 2³FDPSR´QRVRIiGDVDODBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBB_ 40. Parte III ³3RUXPDGHVFULomRGHQVD´XPHVWXGRGHFDVR ___________________________ 45 3.1. Descrevendo o processo criminal _____________________________________ 45 a) Inquérito Policial _____________________________________________ 50 b) Ação Penal __________________________________________________ 58 c) Apelação ____________________________________________________ 64 d) Do Desarquivamento do Processo ________________________________ 67. Parte IV Nas entrelinhas do processo ____________________________________________ 68 4.1. Ad Argumentandum Tantum _________________________________________ 69 4.2. O Sujeito Coletivo Xukuru __________________________________________ 79 4.3. (Des) Plantado? A exumação de Xicão _________________________________ 84.

(14) 14 Considerações Finais__________________________________________________ 93. Referências _________________________________________________________ 96. APÊNDICE________________________________________________________ 101. ANEXOS__________________________________________________________ 103 Registros Fotográficos da Exumação_______________________________ 103 Peças Processuais ______________________________________________ 108.

(15) 15 Introdução. Nunca imaginei que um dia fosse estudar índios! Parecia muito distante dos meus referenciais. Mas, quando percebi que as questões indígenas são paradigmáticas para se pensar o trato da diversidade no campo do Direito, me senti contemplada. Antes de me deter a uma apresentação do que é o argumento central desta dissertação, gostaria de comentar como me surgiu a idéia do título Ad Argumentandum Tantum: um olhar antropológico acerca do processo criminal da morte do cacique Xicão Xukuru. Em primeiro lugar, eu buscava algo que remetesse ao formalismo do Direito, mas que ao mesmo tempo pudesse ser relativizado pelo fazer antropológico. Depois de muito tempo pensando, relendo meu diário de campo e revendo o processo, veio-me a lembrança dessa expressão em latim, que, por sinal, estava sempre presente QDVPLQKDVSHoDVMXUtGLFDVFXMRVLJQLILFDGRp³somente para argumentar´RX³a título GH DUJXPHQWDomR´. No âmbito jurídico, é comumente utilizada como um pedido de ³OLFHQoD´ IHLWD DR DGYHUViULR D ILP GH UHIXWDU VHX DUJXPHQWR FRP PDLV VHJXUDQoD Assim pensei: vários olhares se debruçaram sobre esse processo criminal; desde os profissionais do direito1 que nele atuaram, passando pela mídia com a cobertura dada ao caso, a sociedade civil organizada por meio das entidades de defesa dos direitos humanos, os próprios índios Xukuru também fizeram a sua leitura da questão, então, por que não apresentar a minha? Uma leitura que busca trazer o argumento antropológico para perceber, no Direito, a justiça enquanto prática social, somente para argumentar. A escolha do meu objeto de pesquisa se deu a partir de uma conversa com a minha orientadora sobre o assassinato do cacique Xicão Xukuru, importante liderança indígena do nordeste brasileiro, em um encontro de Antropologia Jurídica na Colômbia2. Um fato me chamou atenção de imediato: a exumação do corpo do cacique Xicão para fins de colheita de provas, como foi negociado isso com o povo indígena Xukuru e o clamor que causou entre eles.. 1. 1HVWH WUDEDOKR HQWHQGR SRU ³SURILVVLRQDLV GR GLUHLWR´ WRGRV RV DWRUHV VRFLDLV TXH DWXDP QR kPELWo do poder judiciário, em todas as esferas e em todos os graus de hierarquia. 2 VI Congresso da Red Latinoamericana de Antropologia Jurídica (RELAJU), que aconteceu em Bogotá na Colômbia, nos dias 28 a 31 de outubro de 2008..

(16) 16 Fiquei muito instigada com tudo que me foi narrado e o fato de ser um processo criminal ± que é minha área técnica jurídica ± despertou minha curiosidade. Curiosidade enquanto profissional do direito (advogada), pelo processo em si e como antropóloga SDUD FRQKHFHU D YHUVmR GR ³RXWUR´ 3URFHVVR FULPLQDO HX Mi FRQKHoR GXUDQWH PLQKD formação em direito estagiei em varas criminais e tive contato com vários autos processuais; manejei vários tipos de inquéritos, de ações e recursos criminais, elaborei peças, participei de Júris, mas esse eu não conhecia, e agora, na pós-graduação, pude ter DFHVVRD³RXWUDYHUVmR´GRVDXWRVSRLVPHSURSRQKRDID]HUXPD³OHLWXUDDQWURSROyJLFD´ do mesmo. Com o propósito de refletir acerca da diversidade cultural, minhas preocupações se voltaram para perceber, no âmbito do poder judiciário estatal, através dos agentes sociais envolvidos nesse processo, como se estabeleceu a relação com o culturalmente diferente. Como se constituiu esse diálogo entre o poder judiciário federal no estado de Pernambuco e o povo indígena Xukuru no caso da morte do seu cacique Xicão? O Estado-Juiz3 considera os elementos advindos da cultura Xukuru na condução do processo criminal? O contexto diferenciado, do ponto de vista étnico-cultural, foi considerado na compreensão do crime e da sua dimensão? Assim, surgiu a idéia de fazer do presente estudo de caso4 a minha dissertação de mestrado, no intuito de perceber como foi travado esse diálogo intercultural do povo indígena Xukuru com o poder judiciário federal local no caso do homicídio do cacique Xicão Xukuru. Nesse desiderato, procurei fazer uma etnografia desse processo criminal, adotando como método a análise crítica do discurso5TXHLPSOLFDHP³ROKDU´RSURFHVVR na sua complexidade para poder entender a questão como um todo, qual seja, como se dá a aplicação do Direito-Estatal6 pelo Estado-Juiz em contextos interculturais, como é. 3. 2WHUPR³Estado-Juiz´H³poder judiciário´VmRWRPDGRVFRPRVLQ{QLPRVQHVWDGLVVHUWDomR. O modelo federativo do Estado brasileiro caracteriza-se pela tripartição dos poderes; o poder judiciário é um deles, responsável pela aplicação da lei e resolução dos conflitos, nesse sentido, o Estado-Juiz pode ser HQWHQGLGRFRPRXPGRV³EUDoRV´GR(VWDGREUDVLOHLURHQTXDQWRRSRGHUUHJXODGRUGDYLGDHPVRFLHGDGH segundo este modelo de Estado-Nação. 4 ³2WHUPRµFDVR¶GHYHVHUHQWHQGLGRDTXLGHXPDIRUPDEDVWDQWHDPSOD3RGH-se adotar, como tema de uma análise de caso, pessoas, comunidades sociais (por exemplo, famílias), organizações e instituições (por exemplo, uma casa de repouso)´ )/,&.S

(17)  5 A decisão de usar análise do discurso impõe uma mudança epistemológica radical (BAUER e GASKELL, 2008, p.251). 6 1DSUHVHQWHRWHUPR³'LUHLWR-(VWDWDO´VHUiHQWHQGLGRFRPRR'LUHLWR normativo produzido e positivado pelo Estado Brasileiro em sentido lato..

(18) 17 o caso em questão. Para tantR WRPR FRPR ³LQWHUFXOWXUDOLGDGH´ D SURSRVWD GH )LGHO Tubino, antropólogo peruano: Ser intercultural significa no cerrarse en lo próprio, sino abrirse desde lo prorpio a lo ajeno para incorporalo creativamente. (...) La idea central del concepto de interculturalidad es crear relaciones más sensatas de convivencia sobre la base de relaciones más equitativas, de respeto y aprovechamiento de la diversidad cultural (TUBINO, 1999, p.33).. Também para guiar minhas análises, tomo a ³VHQVLELOLGDGHMXUtGLFD´ nos moldes de Geertz (2001), que consiste, ainda que de forma acanhada, reconhecer que cada ³saber local´ WHP XP GLUHLWR XPD VHQVLELOLGDGH MXUtGLFD GLIHUHQFLDGD GR SRVLWLYLVPR MXUtGLFR HVWDWDO H TXH GHYH VHU OHYDGR HP FRQVLGHUDomR ³o direito recebe distintos sentidos conforme as sensibilidades jurídicas em que se aplica´ *((57=  p.254). Diante da emergência dos sujeitos coletivos que se definem e são auto-definidos pelo Estado-Juiz por critérios de identidade étnica e diversidade cultural, há uma necessidade que os intérpretes do Direito-Estatal passem a compreender a dinâmica desse processo, que se apresenta de forma complexa, quando da aplicação desses direitos. ( QHVVH VHQWLGR R FRQFHLWR GH ³hermenêutica diatópica´ GDGR SHOR VRFLyORJR português Boaventura de Souza Santos (2003) acerca da concepção multicultural dos direitos humanos na pós-modernidade, também se apresenta como um instrumental teórico útil para compreensão desse diálogo intercultural; segundo essa idéia, todas as culturas são incomplHWDV HP FHUWD PHGLGD D SDUWLU GR GLiORJR HQWUH HODV p TXH ³essas incompletudes avançam desenvolvendo uma consciência de suas imperfeições´ (SANTOS, 2003, p.48) 7. Desse modo, na primeira parte desse estudo proponho uma discussão teórica acerca desse novo paradigma jurídico-antropológico, o pluralismo jurídico dentro do contexto latino-americano, pois foi a partir do contato com esse marco teórico que voltei meu olhar sobre o processo criminal da morte do cacique Xicão Xukuru e defini meu ³FDPSR´GHDWXDomR na antropologia jurídica; na segunda parte, pretendo trazer algumas. 7. %RDYHQWXUD 6DQWRV DVVLP DVVHYHUD ³Vistos a partir da perspectiva (topos) do dharma, os direitos humanos são incompletos porque falham em estabelecer o vinculo entre a parte (indivíduo) e o todo (...)´ (SANTOS, 2003, p.48)..

(19) 18 reflexões de ordem metodológicas, desde a entrada em campo até os métodos empregados nesta pesquisa, fundamentalmente a análise crítica do discurso, vez que a pesquisa é essencialmente documental, mas que conta também com a observaçãoparticipante e entrevistas, no sentido de tornar possível o contato mais próximo com o ³QDWLYR´QDWHUFHLUDSDUWHDSUHVHQWRXPDGHVFULomRGRSURFHVVR-criminal, dos autos em si, com algumas explicações técnico-jurídicas, que entendo ser de suma relevância para a compreensão desse estudo de caso e também para possibilitar que aqueles leitores que nunca tiveram acesso a autos processuais, possam conhecer um pouco dessa lógica a SDUWLU GHVVH PHX ³UHFRUWH´ Mi QD quarta e última parte, apresento minha análise propriamente dita do processo do ponto de vista antropológico, levando em conta todo o contexto extra-autos, minha experiência enquanto advogada, mas fundamentalmente, meu diálogo com a antropologia jurídica e minha aproximação com a disciplina antropológica..

(20) 19 I Capítulo ± Pluralismo Jurídico: manifestação da interculturalidade: (...) o pluralismo jurídico es una manifestación de la interculturalidad, donde se refiere que un mismo hecho, conducta, acción se encuentra o pueden encontrarse regulada de manera diferente por los diferentes ordenes jurídicos que conviven y interactúan em um mismo espacio geopolítico. (CASTRO, 2001, p.04). Segundo Geertz (2001), o Direito é apenas uma maneira de imaginar o mundo em meio a tantas outras, entretanto, é pautado numa determinada maneira de imaginar como as coisas devam ser (a lei) e como elas são (o fato), desenvolvendo com isso, um VHQWLGRGHMXVWLoDTXHpVHPSUHHVSHFtILFR³ORFDO´$VVLPpSRVsível dizer que o Direito emerge da sociedade como um processo dinâmico no qual os grupos sociais criam normas para gerir a vida em coletividade, que não passam, necessariamente, pelo modelo jurídico estatal. A relação entre Direito, Estado e os povos indígenas, vem, desde o final do séc. XX, apresentando grandes avanços, a partir do reconhecimento de determinados direitos fundamentais, com vistas a proteger o direito desses povos a uma cultura própria no contexto das sociedades que integram e, assim, garantir o respeito à sua integridade étnica. Vários países da América Latina, inclusive o Brasil, reconheceram constitucionalmente esses direitos relativos aos povos indígenas que implicam e exigem dos próprios Estados o respeito e a aplicação prática dos mesmos. A Convenção 169 da OIT ± Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes ± dispõe em seu artigo 8º que, ao se aplicar aos povos indígenas a legislação nacional, devem ser levados em consideração seus costumes e seu direito consuetudinário8. No âmbito nacional, a CFB/88 foi um marco de visibilidade do ³RXWUR´QRVHQWLGRGHUHFRQKHFHUDGLYHUVLGDGHFXOWXUDOGHIRUPDLQVWLWXFLRQDOWRGDYLD a garantia legal de direitos por si só, não garantem a sua efetivação política. 8. $ FRQYHQomR  GD 2,7 GHILQH HP VHX DUWLJR ž TXH ³Ao aplicar a legislação nacional dos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário deverão ser estabelecidos procedimentos para solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação desse princípio´.

(21) 20 Desse modo, o foco do presente capítulo é tentar explicitar a dificuldade que um Estado de tipo monista9 tem em perceber a justiça enquanto prática social. E, então, nesse contexto, como lidar com a alteridade? Como se processa a alteridade entre os ³GLIHUHQWHV´HPSUiWLFDVVRFLDLVTXHHQYROYHPUHODo}HVGHSRGHU". 1.1 Antropologia Jurídica enquanto campo de saber. É possível dizer que o surgimento do campo da antropologia jurídica confundese com o surgimento da própria disciplina antropológica enquanto área autônoma do conhecimento científico. No final do século XIX, pós-revolução industrial e durante o SURFHVVR GH FRORQL]DomR GD ÈIULFD H GD ÈVLD ³QDVFH´ R REMHWR GH HVWXGR GD $QWURSRORJLD -XUtGLFD R HVWXGR GR 'LUHLWR GH SRYRV WLGRV FRPR ³SULPLWLYRV´ GH culturas não-ocidentais, que posteriormente, passa a contemplar também o estudo do próprio sistema jurídico ocidental (COLAÇO, 2008). Assim, desde seu surgimento, já havia uma preocupação em distinguir entre lei e costume, para saber se nas sociedades WLGDVFRPR³SULPLWLYDV´WHULDPGLUHLWRVQRVHQWLGRGHQRUPDVGHFRQWUROHVRFLDOFRPR QDVVRFLHGDGHV³FLYLOL]DGDV´ Um dos primeiros antropólogos a demonstrar tal interesse foi Malinowski. A partir de suas análises das relações de troca entre os trobriandeses, o Kula, ele procura discutir as implicações dessas relações para o Direito em seu livro Crime e Costume na Sociedade Selvagem. Malinowski (2003) argumentava que em todas as sociedades, LQFOXLQGR DV ³SULPLWLYDV´ WLQKDP GLUHLWRV RX VHMD QRUmas reguladoras da vida em FROHWLYLGDGHGLVWLQWDVGRVFRVWXPHVWDOFRPRQDVVRFLHGDGHVGLWDVFRPR³FLYLOL]DGDV´H TXHFDEHULDDRDQWURSyORJRGLVWLQJXLUHQWUH³OHL´H³FRVWXPH´GHIRUPDDHQFRQWUDUDV normas jurídicas dessas sociedades:. 9. O monismo jurídico foi instituído na sociedade ocidental por volta dos séc. XVII e XVIII, sob a influência do absolutismo monárquico e da burguesia revolucionária européia; postula que dentro de um Estado só cabe um Direito, no sentido de legitimidade. Essa concepção se respalda em políticas de homogeneização cultural e centralização jurídico-política no modelo de Estado-Nação de cunho liberal. (WOLKMER, 2003)..

(22) 21 A lei e a ordem permeiam os usos tribais das raças primitivas, regem o curso monótono da existência cotidiana e também os atos mais importantes da vida pública, sejam estes estranhos e sensacionais ou importantes e vulneráveis. Entretanto, de todos os ramos da antropologia, a jurisprudência primitiva tem recebido a menor e menos satisfatória atenção. (MALINOWSKI, 2003, p.10). Para tal intento, Malinowski sugeriu um método que não dependia dos conceitos elaborados pelos juristas ocidentais para encontrar normas jurídicas onde não existiam leis escritas ou tribunais formais. Em oposição, Radcliffe-Brown, defendia que os conceitos desenvolvidos por juristas ocidentais para estudar seus próprios tribunais e normas, poderiam ser utilizados por antropólogos em seus trabalhos em sociedades ditas ³SULPLWLYDV´ KDMD YLVWD TXH DR FRQWUiULR GH 0DOLQRZVNL SDUD 5DGFOLIIH-Brown, as sociedades sem governo centralizado e sem tribunais, não teriam direito, mas apenas costumes (COLLIER, 1995). Segundo a antropóloga norte-americana Jane Collier (1995), as distintas definições de direito implicam em diferentes métodos para estudar o mesmo e mudam de acordo com o contexto que se inserem; por isso, ao fazer uma reflexão acerca do desenvolvimento teórico e metodológico da antropologia jurídica nos Estados Unidos, dedica parte de seu texto a apresentar um histórico desse campo de estudo na América do norte, com o objetivo de apontar as mudanças de concepções. Desse modo, toma como primeira referência E. A. Hoebel ± The Law and Primitive Man ± que segundo a referida autora, foi um dos primeiros antropólogos a centrar seu interesse nas decisões tomadas por homens em postos de autoridade para distinguir entre lei e costume; propôs uma definição de direito que combinava a ênfase dada por Radcliffe Brown às sanções GHQDWXUH]DFRHUFLWLYDVFRPD³KDELOLGDGHGH0DOLQRZVNLSDUDHQFRQWUDUOHLVHPWRGDV DV VRFLHGDGHV´ H DGRWRX FRPR PpWRGR R ³estudio de caso´ SDUD HVWXGDU QRUPDV jurídicas de qualquer sociedade: (Q VX OLEUR GH  +RHEHOFRQWUDVWD HO ³PpWRGR GH FDVR´ con los dos métodos prévios caracterizados como inferiores: un método desciptivo, asociado con el enfoque de Malinowski sobre los procesos jurídicos y un método ideológico, asociado com el enfoque de Radcliffe-Brown sobre las reglas. Hoebel criticó ambos métodos como incapaces de distinguir las normas jurídicas de las costumbres. (COLLIER, 2003, p.61)..

(23) 22 Outros antropólogos anglo-saxões também estudaram a tomada de decisões para entender como os juízes ou homens em posição de autoridade decidiam as contendas, como exemplo, temos o que ficou conhecido na antropologia jurídica norte-americana FRPRR³GHEDWH*OXFNPDQ-%RKDQQDQ´0D[*OXFNPDQ 

(24) HVWXGRXHQWUHRVBartose da Rodésia, um tipo de etnia africana, constituída por 25 grupos tribais; seu argumento central é que as idéias essenciais do direito Bartose têm seus paralelos nos estágios iniciais do direito romano, europeu. Essas similitudes apontadas por Gluckman levamno a concluir que os homens que detêm legitimidade para decidir sobre conflitos de interesses, utilizam ferramentas similares para chegar às suas decisões, pois para ele, os juízes Bartose recorriam aos mesmos mecanismos que os juízes estadunidenses - em sentido valorativo: costumes, ética, moral - na hora de fazer um julgamento (COLLIER, 1995). Diferente da posição notadamente evolucionista adotada por Gluckman, o inglês Paul Bohannan (1973) depois de estudar os Tiv na Nigéria, defendeu que os juízes Tiv não pensavam iguais aos ocidentais, logo se baseavam em conceitos e valores específicos de sua cultura para decidir sobre os conflitos que lhes eram apresentados. Com isso, Bohannan argumentava que os antropólogos não deviam se utilizar de ³FRQFHLWRV RFLGHQWDLV´ SDUD HVWXGDU RV SURFHVVRV HFRQ{PLFRV SROtWLFRV H MXUtGLFRV GH povos WLGRV FRPR ³QmR-RFLGHQWDLV´ RX ³QmR-FLYLOL]DGRV´ &2//,(5 

(25)  3RVLomR esta que me parece mais acertada. Se for para tomar partido neste debate, ao contrário de Jane Collier, fico com Bohannan, por assumir uma postura menos etnocêntrica ao relativizar a definição do Direito. No início da década de 1970, a antropóloga Laura Nader impulsiona uma mudança no enfoque da antropologia jurídica nos Estados Unidos, ao propor uma descentralização das análises antropológicas e incluir os litigantes, além dos juízes, no TXH HOD FKDPRX GH ³SURFHVVRV GH GLVSXWDV´ &2//,(5 

(26)  $ SDUWLU GDt PXGD R enfoque teórico-metodológico e o Direito passa a ser visto como mais um mecanismo de dominação, que não diz respeito apenas a solucionar problemas, mas também à formação GHLGHRORJLDVH³os antropólogos subestimaram sistematicamente o papel das LGHRORJLDV MXUtGLFDV QD HVWUXWXUDomR RX GHVHVWUXWXUDomR GD FXOWXUD´ (NADER, 1969, p.10). Assim, no campo da antropologia jurídica norte-americana, passa a haver uma preocupação em estudar de que maneira o poder e a história modelam os sistemas jurídicos e as relações entre eles. Seguindo esta orientação, a antropóloga Jane Collier,.

(27) 23 em sua tese de doutorado (1973), dedica-se a estudar o direito consuetudinário do povo indígena Zinacantán, em Chiapas - México, mas especificamente, a relação entre os processos de disputa e as formas de contrair matrimônio. Ela argumenta que sendo o direito mais um mecanismo de dominação, não pode este ser estudado à margem de outros mecanismos de dominação, como a família, a religião e a economia, por exemplo. Para a referida antropóloga, em lugar de supor que o direito e os processos de disputa beneficiam a todos de um modo geral, cabe ao antropólogo jurídico supor que os processos jurídicos e institucionais beneficiam mais a uns que a outros, pois se SUHVWDP D PDQWHU R ³VWDWXV´ GDV HOLWHV GRPLQDQWHV 6XUJH D SDUWLU GHVVD QRYD perspectiva, a crítica jurídica, um movimento intelectual que ganhou força na década de 1980 nas escolas de direito dos Estados Unidos e, recentemente, os antropólogos que HVWXGDP ³PLQRULDV pWQLFDV´ SRU H[HPSOR GHWrP VHX LQWHUHVVH HP SHUFHEHU FRPR DV normas e os processos jurídicos constroem as identidades desses indivíduos na sociedade (COLLIER, 1995). Já no que tange a América Latina, a Antropologia Jurídica enquanto campo de conhecimento começa a se firmar face às modificações impostas pela nova ordem constitucional pós-regimes ditatoriais. Com o processo de (re) democratização das nações latino-americanas no final do século XX³QDVFH´KLVWyULFDHLQVWLWXFLRQDOPHQWH um novo modelo de Estado-Nação, orientado a valorizar e fortalecer as diferenças, assim argumenta o antropólogo holandês André Hoekema: El reconocimento constitucional de la configuración multiétnica y pluricultural de sus poblaciones por parte de una serie de Estados Latinoamericanos, reforzado por las ratificaciones del Convenio 169 de La Organización Internacional del Trabajo (OIT), constituye un notable rompimiento simbólico con el pasado. (HOEKEMA, 2002, p.95) ± Grifo meu.. Desde então, todas as Constituições latino-americanas, em maior ou menor escala, prevêem direitos e garantias específicos para povos culturalmente diferenciados (PINTO, 2008). Esse reconhecimento implica numa mudança de paradigma no que concerne à relação do Estado com esses povos e com a sociedade nacional que o integram. Em 1997, no 49º Congresso Internacional de Americanistas realizado na cidade de Quito, no México, surge a Red Latinoamericana de Antropología Jurídica ±.

(28) 24 RELAJU, vinculada a Commission on Folk Law and Legal Pluralism, que faz parte da União Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas (IUAES), que, por sua vez, integra a Associação Internacional de Ciências Legais (IALS) do escritório da UNESCO. Desde então seus membros se reúnem em congresso e cursos pré-congresso a cada dois anos, na tentativa de impulsionar os estudos das relações entre cultura e direito nas sociedades plurais, o uso de ferramentas metodológicas interdisciplinares e o desenvolvimento de teorias críticas no Direito e na Antropologia. Esta Red vem trabalhando com temas relativos à diversidade sócio-cultural e a pluralidade de sistemas normativos, identidades, gênero, participação política, direitos indígenas, conflitos em torno dos novos contextos da globalização, entre outros. Assim, pautada no respeito à diversidade, a antropologia jurídica na America Latina, não restringe suas preocupações à função política e legal do Estado-Nação, mas também com a natureza pluriétnica dos grupos sociais que nele vivem e se relacionam em seu interior. O material da investigação antropológica é o fenômeno jurídico como variedade do fenômeno sócio-cultural e os sistemas jurídicos nas suas várias composições (SÁNCHEZ, 2008). Nesse sentido, compreende, dentre outras coisas, a análise de processos de resolução de disputas e de situações de conflito em diferentes sociedades e/ou contextos culturais específicos; a apreciação das abordagens normativas e processualistas das instituições de Direito na sociedade contemporânea e seus GHVGREUDPHQWRV R ³GLiORJR LQWHUFXOWXUDO´10 entre sistemas de Direito, o local, o nacional e o internacional, com a mediação do antropólogo; além da interpretação do Direito ocidental em atenção às normas garantidoras da diversidade cultural. No Brasil, com o advento da Constituição Federal Brasileira de 1988, o país assume pela primeira vez na história que ser indígena não uma condição temporária - ao FRQWUiULR GD LGpLD TXH YLJRUDYD DQWHULRUPHQWH TXH R LQGtJHQD GHYHULD ³LQWHJUDU-VH´ D sociedade nacional11 - com isso, inaugura uma nova categoria jurídica de povos indígenas, agora legítimos sujeitos de direitos diferenciados no que diz respeito à sua 10. (QWHQGR SRU ³GLiORJR LQWHUFXOWXUDO´ D GHILQLomR GDGD SHOR -XULVWD )HUQDQGR 'DQWDV ³O diálogo intercultural se configura como um espaço e um instrumento da nova cidadania indígena, diferenciada, multicultural, dinâmica, criativa e participativa no sentido de construir e reconstruir os direitos diferenciados indígenas e, como conseqüência, criar, também, contextos institucionais plurais e heterogêneos onde a convivência democrática possibilite o desenvolver das ações da vida sem a RSUHVVmRVHPH[FOXVmR´(DANTAS, 2002, p. 6248) 11 Antes da CFB/88, as Constituições Brasileiras tratavam dos direitos dos povos indígenas de forma residual, reportando-se ao Código Civil de 1916 e o Estatuto do Índio (lei 6001/73), pelos quais eram WLGRVFRPR³UHODWLYDPHQWHLQFDSD]HV´SDUD RH[HUFtFLRGRVDWRV GD YLGD FLYLO GHYHQGRVHUWXWHODGRVDWp sua integração com a sociedade nacional, quando então deixariam de ser índios e passariam a ser cidadãos brasileiros e capazes..

(29) 25 cultura, tradição e costumes. Como bem assevera o antropólogo Roberto Cardoso de 2OLYHLUD ³os índios atualmente passaram a assumir tal condição étnica com foros de uma nova cidadania que até então lhes era praticamente negada´ &$5'262 '( OLIVEIRA, 2005, p.24). A partir daí, os antropólogos, com mais freqüência, passam a ser instados a dialogar com o aparelho jurídico estatal, através de laudos e perícias antropológicas, principalmente no que concerne aos povos e minorias étnicas, o que realça a necessidade de repensar as relações entre o Estado e esses povos. Outrossim, para colocar em prática as garantias constitucionais12, bem como os acordos internacionais13, em especial a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007 - o Estado brasileiro deve assumir práticas pluralistas para a lidar com a diversidade concretamente e, neste sentido, a antropologia jurídica pode fornecer conhecimentos específicos para compreender os significados e sentidos culturais próprios desses grupos, bem como possibilitar o entendimento cultural de determinados fatos, práticas, normas e procedimentos em que se inserem um sujeito coletivo, como é o caso dos povos indígenas, ou simplesmente sujeitos individuais, mas que detêm características que implicam um olhar e tratamento diferenciado por parte do Estado-Juiz.. 1.2. O Pluralismo Jurídico: do olhar jurídico ao antropológico. Assim como a Cultura o Direito também é dinâmico, enquanto produto dos grupos sociais e reflexo dessas relações (LYRA FILHO, 1999). A Antropologia trata da alteridade, preocupada com os valores socialmente construídos e chamando a atenção para moralidades diferentes que (co) existem na sociedade. Já o Direito trata de uma 12. A CFB/88 dedica uma parte para tratar do direito dos índios ± Capítulo VIII - , trago à colação os seguintes artigos: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. E Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legitimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. 13 Atualmente, os documentos internacionais mais específicos que abordam o direito dos indígenas e de outras minorias são: Convenção para a Prevenção e Punição do Delito de Genocídio (1948); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965); Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas (1997); Convênio 169 da OIT (1989) e a Declaração sobre Direitos das Populações Indígenas (2007)..

(30) 26 moralidade jurídica, a partir da justiça enquanto instituição de poder que regula a vida em sociedade; daí a necessidade de interlocução entre esses dois campos de conhecimento, principalmente quando o Estado-Juiz e sua moralidade, emite, OLWHUDOPHQWHXPMXt]RGHYDORUVREUHR³RXWUR´ As características comuns existentes entre o Direito e a Antropologia são retratadas de forma singular por Geertz em O Saber Local (2001), no texto que trata dos IDWRV H OHLV HP XPD SHUVSHFWLYD FRPSDUDWLYD VHP ROYLGDU TXH ³de uma forma muito pouco útil, colocou-se em campos opostos o enfoque forense e o enfoque etnográfico das análises jurídicas´ SURS}H XP ³ir e vir hermenêutico entre os dois campos, olhando primeiramente em uma direção, depois na outra, a fim de formular as questões morais, políticas e intelectuais que são importantes para ambos´ *((57=  p.253). Nesse sentido, o olhar antropológico ajuda a perceber o direito em sua dinamicidade, fundamental para um Estado Democrático e plural; já o enfrentamento jurídico, se apresenta como uma arena privilegiada para refletir acerca das relações de alteridade entre sujeitos coletivos étnicos diferenciados e o direito-estatal. Nas relações sociais estão inseridos conflitos que necessitam ser encaminhados e, se por um lado, o monismo jurídico14 fortalece a idéia do Poder Judiciário Estatal como único sujeito responsável em resolvê-los, por outro, observa-se uma dificuldade de exercício de direitos através dos mecanismos estatais. A estrutura normativa do direito positivo estatal, por vezes, mostra-se ineficaz por não atender ao universo complexo e dinâmico das sociedades plurais, tornando-se imperiosa a construção de um novo paradigma de regulamentação que priorize o reconhecimento da diversidade no bojo da sociedade (WOLKMER, 1997). Daí a QHFHVVLGDGH TXH R (VWDGR ³ROKH GH PRGR GLIHUHQWH´ SRU H[HPSOR SDUD RV SRYRV indígenas, no sentido de proteger e respeitar a diversidade étnica e cultural, levando em conta suas especificidades, principalmente na hora de emitirem um juízo de valor, por meio de uma decisão estatal que possa atingi-los direta ou indiretamente. Para o jurista DUJHQWLQR5D~O=DIIDURQL³na realidade social existem condutas, ações, que significam conflitos que se resolvem de forma geral de modo institucionalizado, mas que isoladamente considerados possuem significados culturais completamente diferentes´. 14. Na perspectiva Kelsiana (1953), só existe um sujeito legitimo para criar e dizer o que é Direito: o Estado, que se confunde com o próprio Direito..

(31) 27 (ZAFFARONI, 2004, p.57) e isso deve ser levado em consideração num diálogo intercultural. 6HJXLQGR R FRQVHOKR GH *HHUW]  S

(32)  TXH ³o pluralismo jurídico interessa ao advogado porque é jurídico e, ao antropólogo, porque é plural´WRPRHVWH FRPRR³JUDQGH´PDUFRWHyULFRGDPLQKDGLVVHUWDomR NR³PXQGRMXUtGLFR´RVWHyULFRVOLEHUDLVIRUWDOHFHPDLGpLDGR(VWDGRFRPRR único sujeito legítimo para a elaboração de normas de conduta e de soluções de conflitos na sociedade, pois defendem a tese da centralização política e jurídica da produção do Direito apenas no Estado - monismo jurídico (KELSEN, 1953). Em oposição, teorizações acerca do pluralismo jurídico partem da constatação de que ao lado do direito-HVWDWDO³RILFLDO´HYLJHQWHH[LVWHPIRUPDVGLYHUVDVGHMXULGLFLGDGHTXH detêm validade, eficáFLD H FRHUFLELOLGDGH RQGH VH DSOLFDP FRP LVVR ³URPSH´ FRP R modelo monista e positivista dominante que reproduz uma cultura jurídica de homogeneização. Sob um prisma jurídico, o pluralismo jurídico se aproxima da concepção apresentada nesse trabalho quando pode ser visto como um novo paradigma de regulamentação que não nega o direito estatal, mas que tem como escopo propor um exercício de alteridade: a convivência entre as várias formas de direito que se observam QD VRFLHGDGH RX ³um uso contra-hegemônico do direito como instrumento de emancipação de povos marginalizados´ 3,172S

(33)  Um dos primeiros defensores do pluralismo jurídico emancipador no Brasil foi o MXULVWD5REHUWR/\UD)LOKRTXHDRUHVSRQGHU³O que é Direito"´QmRVHOLPLWRXDXPD vLVmR OHJDOLVWD H SRVLWLYLVWD DILUPDQGR TXH ³R GLUHLWR QmR p XPD FRLVD µIL[D¶ SDUDGD definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente´ /<5$),/+2 S

(34) 2³Pluralismo Jurídico de teor Comunitário-Participativo´SURSRVWRSHORMXULVWD EUDVLOHLUR$QW{QLR&DUORV:RONPHU S

(35) FRQVLVWHQXP³projeto democrático de emancipação dos sujeitos coletivos emergentes´ TXH SDVVD SRU GDU OHJLWLPLGDGH D ³novos atores sociais´ RV ³novos movimentos sociais´ H QR UHFRQKHFLPHQWR SOHQR GD sociedade brasileira enquanto plural. Para Wolkmer: A proposta do pluralismo jurídico de teor comunitárioparticipativo para espaços institucionais periféricos passa, fundamentalmente, pela legitimidade instaurada por novos atores sociais e pela justa satisfação de suas necessidades na sociedade plural e democrática (WOLKMER, 1997, p.100)..

(36) 28. (QWUHWDQWR VHJXQGR HVVH MXULVWD SDUD TXH XPD QRUPD ³H[WUD-HVWDWDO´ WHQKD validade, no sentido de legitimidade jurídica, ela deve atender a dois critérios de efetividade: a efetividade formal que diz respeito ao processo de elaboração das normas - devem ser criadas a partir de discussões coletivas onde todas as pessoas do grupo tenham a oportunidade de se expressar, a partir de mecanismos de participação popular; já na efetividade material devem ser observados o sujeito elaborador das normas e o conteúdo dessas normas. Quanto aos sujeitos, Wolkmer (1997) reconhece nos novos movimentos sociais os sujeitos legítimos para elaboração de norma jurídica não oriunda do Estado, com as seguintes características: ser coletivo, se dar com participação política, além de ser minimamente institucionalizados. E quanto ao conteúdo da norma, este deve ter como objetivo o atendimento das necessidades fundamentais, previstas na Carta Política da nação. 2VRFLyORJRSRUWXJXrV%RDYHQWXUDGH6RX]D6DQWRV 

(37) WRPDQGRR³HVSDoR´ FRPR FDWHJRULD DQDOtWLFDSURS}HXPD³FDUWRJUDILDVLPEyOLFDGR GLUHLWR´ QRLQWXLWRGH descanonizar o mesmo, avançar para o pluralismo jurídico e pensar o direito na pósmodernidade. Para ele, o direito, as leis, as normas, os costumes e as instituições jurídicas, são apenas um modo específico de imaginar a realidade que guardam muitas semelhanças com os mapas, pois as várias formas de direito têm em comum o fato de serem mapas sociais, ainda que metaforicamente (SANTOS, 1991). Nesse desiderato, para uma visão pós-PRGHUQD GR GLUHLWR R UHIHULGR DXWRU IL[D R ³FRQFHLWR-FKDYH´ GH interlegalidade na tentativa de dar conta da dimensão fenomenológica do pluralismo jurídico, nos seguintes termos: Trata-se, outrossim, da sobreposição, articulação e interpretação de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas nossas atitudes, como nos nossos comportamentos, quer em momentos de crise ou de transformação qualitativa nas trajetórias pessoais e sociais, quer na rotina morna do cotidiano sem história. Vivemos em tempos de porosidades e, portanto, também de porosidade ética e jurídica. (SANTOS, 1991, p.165).. Quem também oferece alternativas de intercomunicação e diálogo entre diferentes culturas numa perspectiva interdisciplinar, mesmo sem mencionar o tema específico do pluralismo jurídico, é o criminologista argentino Eugénio Raúl Zaffaroni..

(38) 29 Suas análises acerca do sistema penal brasileiro, com fulcro na criminologia crítica radical15, WUD]HP IXQGDPHQWRV H HODERUDo}HV TXH GmR FRQWD GR ³SUREOHPD´ GD diversidade cultural e da coexistência de diferentes ordens jurídicas, para o direito positivo estatal na esfera criminal. Um bom exemplo quanto à questão do indígena é a doutrina do erro de compreensão culturalmente condicionado16, que ocorre quando um indivíduo, mesmo conhecendo a ilicitude do fato, não internaliza os valores contidos na norma jurídica estatal, porque desconhecidos ou incompatíveis com aqueles que pertencem a sua cultura. Zaffaroni (2004) argumenta que o respeito à diversidade cultural e aos valores das diferentes culturas humanas, garantem o direito de não se GHL[DU ³FRQWDPLQDU´ SRU YDORUHV FXOWXUDLV TXH QmR VHMDP RV VHXV TXLoi REULJDU VRE D ameaça do sistema penal, internalizar valores diferentes e/ou incompatíveis com a sua cultura. Juristas brasileiros, como Gulherme Rezende (2009), defendem que o erro de compreensão culturalmente condicionado não é direcionado especificamente à questão indígena, podendo ser aplicado em qualquer situação em que haja um conflito cultural. Posição com forte traço relativista e em consonância com o argumento antropológico. 9H]TXHKRMHDVFXOWXUDVTXHHUDPFRQVLGHUDGDV³GLVWDQWHV´VHJXQGRXPDSHUVSHFWLYD ocidental, não se encontram mais tão GLVWDQWHVDVVLP R³Oi´HR³DTXL´HVWmRFDGDYH] mais próximos), passam a dialogar e negociar seus direitos no âmbito do Estado-Juiz e ³essa relação dialógica entre membros de comunidades culturalmente distintas introduz certas especificidades que merecem um exame mais detido´ &$5'262'( OLIVEIRA, 2000, p.177). Sob o prisma antropológico, a questão do pluralismo jurídico também é um tema de grande complexidade, afinal o direito recebe distintos sentidos conforme as ³VHQVLELOLGDGHV MXUtGLFDV HP TXHVHDSOLFD´ *((57=

(39) 1RILQDO GRVpF;;DV análises antropológicas começaram a ver o direito consuetudinário e o direito estatal não mais como sistemas paralelos, mas como esferas legais distintas que coexistem na sociedade e devem ser reconhecidos e respeitados de igual modo (SÁNCHEZ, 2008).. 15. Para essa corrente da criminologia, que tem como principais defensores Foucault, Hulsman e Zaffaroni, qualquer lei penal é seletiva, na medida em que ela já surge com uma função: selecionar grupos vulneráveis e marginalizá-los. Por isso, defendem a abolição do sistema penal no ordenamento jurídico e apontam como alternativa a resolução de conflitos na esfera cível. 16 O erro de compreensão culturalmente condicionado foi expressamente acolhido pelo Código Penal peruano de 1991, que em seu art. 15 estabelece que aquele que em razão da sua cultura ou se seus costumes, comete um fato punível sem compreender o caráter delituoso do fato ou determinar-se de acordo com este entendimento será eximido da responsabilidade penal estatal, ou ainda, terá sua pena atenuada se, pelas mesmas razões tiver diminuída sua possibilidade de compreensão ou autodeterminação (REZENDE, 2009)..

(40) 30 Com isso, inaugura-VHR³QRYR´SURMHWRGDDQWURSRORJLDMXUtGLFDQRFRQWH[WRPXQGLDO 3DUDDDQWURSyORJD5LWD6HJDWR³a tarefa do antropólogo consiste em estudar como os discursos normativos baseados nos direitos humanos e garantias fundamentais são produzidos, traduzidos e materializados em uma variedade de contextos sociais, culturais e jurídicos´UHVVDOWDDLQGDTXHpSUHFLVRSHUFHEHUDLPSRUWkQFLDSHGDJyJLFDGR GLVFXUVR MXUtGLFR SRLV HVWH p FDSD] GH GHVHQYROYHU ³novas sensibilidades jurídicas´ (SEGATO, 2006, p.16). ( QR TXH GL] UHVSHLWR j ³VHQVLELOLGDGH MXUtGLFD´ HVWD QRV PROGHV GH *HHUW] (2001), consiste em, ainda que de forma acanhada, reconhecer o pluralismo jurídico, ao perceber que cada saber local tem um direito, uma sensibilidade jurídica diferenciada do positivismo jurídico estatal e que deve ser levado em conta na tomada de decisões por parte dos órgãos estatais. Na antropologia da America Latina é possível perceber grandes contribuições em relação ao desenvolvimento teórico do pluralismo jurídico. Uma delas é a da antropóloga e jurista colombiana Esther Sanchéz Botero (2008, p.76). Para esta autora: o pluralismo jurídico é a convivência de diferentes formas de direito que se relacionam entre si, geralmente de modo assimétrico. Ela defende que os sistemas jurídicos próprios são válidos para uma população determinada segundo sua origem cultural e devem ser respeitados pelo sistema jurídico estatal, haja vista que nas sociedades indígenas, por exemplo, o direito próprio em geral é paralelo ao direito positivo estatal. E, nesse sentido, o conceito de direito próprio ou costume jurídico se refere a um universo de normas e sanções legais de tipo tradicional, não escrita nem codificadas, mas que são reconhecidas e partilhadas por uma coletividade e cuja fonte são os costumes ou usos sociais, que permitem a reprodução e coesão sócio-cultural de determinado grupo social. Esse tipo de direito se distingue do direito positivo, que codifica por escrito normas e sanções e tem sua origem no Estado, que garante o seu cumprimento através de organizações burocráticas e coercitivas, como o judiciário e a polícia (SÁNCHEZ, 2008). Como é possível perceber, o questionamento acerca da centralidade do Estado na elaboração de normas jurídicas também é o cerne das discussões antropológicas sobre o pluralismo jurídico. A advogada e antropóloga mexicana Elisa Rueda (2008) opta por um conceito metodológico de pluralismo jurídico, no sentido de reconhecer que tanto o direito positivo estatal como o direito indígena são sustentados por valores sociais distintos. Para ela, o conceito de pluralismo jurídico é válido para explicar duas.

(41) 31 idéias: a) que o direito, está longe de ser um produto exclusivo de determinadas sociedades, por exemplo, daquelas que tem Estado, mas pode encontrar-se em outros tipos de sociedade; b) que no interior do Estado é possível dar conta de diversas manifestações de direito. Vejamos: Para este apartado, he optado por el concepto de pluralismo jurídico, entendido como sistemas jurídicos relacionados entre si en un mismo campo social ± que permite documentar el sentido em que el sistema normativo em las comunidades indígenas se construye en relación estrecha com el sistema jurídico del Estado. (RUEDA, 2008, p.34). Dentre as grandes contribuições teóricas em matéria de pluralismo jurídico, atualmente, é a do jurista holandês André Hoekema que, partindo do pressuposto de reconhecimento estatal do pluralismo jurídico nas sociedades indígenas, define-o em dois tipos distintos: a) o pluralismo jurídico formal de tipo unitário, o qual caracterizase pela subordinação dos outros sistemas de direito em relação ao direito positivo estatal, ou seja, o pluralismo jurídico só é reconhecido em casos específicos, podendo ser suprimido pela jurisdição estatal e; b) o pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, TXH³rompe el Estado hegemónico´QDPHGLGDTXHDVVRFLHGDGHVLQGtJHQDV deixam de ser governadas e administradas à luz dos princípios e valores da sociedade evolvente e, nesse ponto, há um reconhecimento pleno de outras formas de juridicidade em conjunto com a estatal (HOEKEMA, 2002). O pluralismo jurídico de tipo igualitário apresenta-se como um caminho para a construção de uma sociedade efetivamente mais justa e igualitária ao passo que, ao respeitar a diversidade sem hierarquizar culturas, deixa de ser etnocêntrica. Destarte, o diálogo entre a antropologia e o direito se coloca como uma SRVVLELOLGDGH GR GLUHLWR ³LU SDUD FDPSR´ H ³XVDU´ GD DQWURSRORJLD FRPR LQVWUXPHQWDO pDUD WUDQVIRUPDU D ³VHQVLELOLGDGH MXUtGLFD HVWDWDO´ QR VHQWLGR GH SHUFHEHU ³VHQVLELOLGDGHV MXUtGLFDV GLYHUVDV´ QD VRFLHGDGH SOXUDO $ILQDO SDUD VH DSOLFDU devidamente os mandamentos constitucionais, as normas de acordos e tratados internacionais, no que tange o reconhecimento e o respeito à diversidade étnico-cultural, é preciso conhecer essa diversidade concretamente, com suas especificidades ± pois.

(42) 32 como diz Ester Sanchez17 ³não se pode falar em reconhecimento jurídico pleno sem conhecimento cultural´ KDja vista que não se pode reconhecer aquilo que não se conhece.. 1.3.. As experiências Latino-Americanas. Na América Latina, no final do séc. XX, por volta das décadas de 80 e 90, a partir dos processos de (re) democratização, as Constituições dos Estados nacionais começaram a reconhecer alguns direitos específicos para as minorias étnico-culturais, ou povos culturalmente diferenciados, em especial os povos indígenas, movimento que ILFRXFRQKHFLGRFRPR³multiculturalismo constitucional´18. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 apresenta importantes progressos, principalmente no que tange o discurso normativo, mas o reconhecimento pleno da diversidade cultural está longe de ser completo e ainda é tratado de forma incipiente pela máquina estatal. No Brasil, conforme assevera Arruti (2000): 2 UHVXOWDGR IRL XPD &RQVWLWXLomR DSHOLGDGD GH µFLGDGm¶ H tomada como exemplo da possibilidade de reais avanços institucionais em direção da plena consolidação democrática. Mas (...), seu texto continuou tratando da diferença cultural como algo residual. (ARRUTI, 2000, p.116).. Atualmente, as Constituições do Equador, da Colômbia, da Guatemala, da Bolívia e Venezuela, são os documentos mais elaborados em matéria de direitos indígenas, adotam o sistema jurídico pluralista e reconhecem a administração indígena GD MXVWLoD 3,172 

(43)  2 ³DYDQoR´ PDLV VLJQLILFDWLYR QR TXH WDQJH D TXHVWmR GR pluralismo jurídico é, precisamente, o reconhecimento da jurisdição especial indígena 17. Em uma de suas falas no VI Congresso Latino-Americano de Antropologia Jurídica ± Bogotá/Colômbia ± De 28 à 31 de outubro de 2008. 18 Movimento que se difundiu na América Latina a partir da Constituição da Guatemala (1986), desde então todas as constituições latino-americanas em maior ou menor escala prevêem direitos e garantias específicos para povos culturalmente diferenciados (PINTO, 2008)..

(44) 33 ou do direito consuetudinário indígena e o da livre (auto) determinação dos povos indígenas, estabelecidos no artigo 246 da Constituição Colombiana, no artigo 191 da Constituição Equatoriana e no artigo 119 da Constituição Venezuelana. Nestes países, o diálogo entre jurisdição indígena e jurisdição estatal está em processo de construção, pois é imprescindível que se estabeleça quais os parâmetros para esse diálogo intercultural, haja vista que o reconhecimento constitucional do pluralismo jurídico feito pelo Estado, requer a formulação de legislação complementar, ou infra-constitucional, a fim de estabelecer as formas de coordenação e compatibilidade entre distintos sistemas legais com o sistema jurídico estatal (ASSIES; VAN DER HAAR; HOEKEMA; 2002). A Colômbia19 vem se destacando no contexto latino-americano como uma das principais referências no estudo dos direitos indígenas devido ao amplo reconhecimento dado pela Constituição de 199120 e, em especial, a vasta jurisprudência da Corte Constitucional, acerca da questão indígena, demonstrando que o conteúdo material dos direitos não está limitado apenas ao normativo, mas a sua interpretação com base na diversidade étnica e cultural. Assim, destaca Esther Sánchez Botero, principal referência acerca da questão: Colombia no solamente reconoció la existência de culturas ditintas y, con éstas, del pluralismo jurídico, sino que las valoro al punto de convertir estas expresiones diversas em constitucionales, legales y oficiales. (SÁNCHEZ, 2008, p.120). A Corte Constitucional Colombiana21, na qualidade de intérprete autorizado da referida Carta Magna firmou entendimento no seguinte sentido: La proteción que la Carta extiende a la anotada diversidade se deriva de la aceptación de formas diferentes de vida social cuyas manifestaciones y permanente reproducción cultural son imputables a estas comunidades como sujetos colectivos autóctonos y no como simples agregados de sus membros que, precisamente, se realizan a través del grupo y asimilan como suya la unidad de sentido que surge de las distintas vivencias comunitárias. La defensa de la diversidad 19. Na Colômbia, os povos indígenas contam com Tribunais Indígenas plenamente reconhecidos pelo Estado e podem optar se recorrem ao Tribunal Indígena ou ao Estatal para solucionar seus conflitos. 20 O artigo 7º da Constituição Colombiana reconhece a diversidade étnica e cultural da nação e, no artigo 246 dispõe acerca de uma jurisdição especial indígena, ampla, em todas as matérias, para o exercício da autoridade indígena. (SÁNCHEZ, 2008). 21 Para conhecer algumas decisões da Corte Constitucional colombiana vide o Anexo I, que traz uma lista da jurisprudência deste órgão..

(45) 34 no puede quedar librada a uma actitud paternalista o reducirse a ser mediada por conducto de los miembros de la comunidad, cuando ésta como tal, puede verse directamente menoscabada en su esfera de intereses vitales y debe por ello, asumir con vigor su propia reinvindicación y exhibir como detrimentos suyos los perjuicios o amenazas que tengan la virtualidad de extinguirla. (apud SÁNCHEZ, 2008). Como se pode perceber, esse controle de constitucionalidade, expressa um fortalecimento da etnicidade e da diversidade cultural, pois apontam um avanço no sentido de formalizar algumas regras que podem representar o ponto de partida para (re) pensar o contexto latino-americano. Para André Hoekema (2003), a análise de algumas sentenças da Corte Constitucional colombiana podem servir de contra-ponto para alguns países latino-americanos: La Corte de Colombia es el único lugar jurídico en el mundo donde se delibera y decide tan intensa y frecuentemente sobre casos de conflitos multiculturales muy concretos. Por ende, tal análisis tiene un valor edificante para todos quienes, en la lucha social diária o desde la distancia académica, se interesan por un futuro donde se respete la diversidad cultural sin dejar desintegrar la sociedad como tal. (HOEKEMA, 2003 apud SÁNCHEZ, 2003, p.03).. No Peru também existe uma situação de pluralismo cultural, lingüístico e legal, reconhecido pela Carta Constitucional de 1993. Para a advogada e antropóloga peruana, Raquel Fajardo (2001), a introdução dos artigos 2, 19 e 14922 na carta política de 1993, combinada com a ratificação do Convênio 169 da OIT no mesmo ano, possibilitam superar o modelo monista e etnocêntrico sustentado pelas Constituições republicanas para a construção de um modelo constitucional pluralista. Não obstante, ressalta que, PHVPR FRP HVVHV ³DYDQoRV´ QRUPDWLYRV QHP R SRGHU MXGLFLiULR YHP DSOLFDQGR DV normas garantidoras, nem o Executivo vêm desenvolvendo políticas públicas de respeito à diversidade e o legislativo tampouco elabora normas de compatibilidade constitucional naquele País (FAJARDO, 2001). O mesmo acontece no Brasil, o Estado. 22. 2DUWLJRGD&RQVWLWXLomRSHUXDQDDVVLPGLVS}H³Las autoridades de las comunidades campesinas y nativas com el apoyo de las Rondas Campesinas, puedem ejercer las funciones jurisdiiccionales dentro de su ámbito territorial de conformidad com el derecho consuetudinario siempre que no violem los direchos fundamentales de la persona. La ley estabelece las formas de coordinación de dicha jurisdicción especial com los Juzgados de Paz y com las demás instancias del Poder Judicial´.

(46) 35 assume esse papel contraditório: garantidor e ao mesmo tempo violador dos direitos das minorias étnicas. Já a Venezuela, traz um exemplo singular, o processo legislativo constituinte da atual Carta Magna venezuelana foi composto por indígenas também, que garantiram um capítulo na Constituição dedicado aos povos indígenas, reconhecendo o direito à livre ou auto determinação desses povos; que deste decorre o direito ao território tradicional, a uma cultura e língua própria, dentre outros. Na Venezuela há hoje cerca de 2.854 comunidades indígenas identificadas, segundo a Ministra de Assuntos Indígenas 23 da referida nação e, desde que assumiu o poder, o Presidente Hugo Chávez, implementou uma política pública de atenção aos povos indígenas, denominada Misión Guaicaipuro, bem como em 2005, promulgou a Lei Orgânica dos Povos e Comunidades Indígenas GDTXHOH3DtVTXH³UHJXOD´HVVHGLiORJRLQWHUFXOWXUDO Na Guatemala, a maioria da população indígena é de origem Maia e, no que tange a luta pelos seus direitos, contam com uma ONG ± conhecida por Defensoría .¶LFKp - constituída por líderes indígenas que em seu passado tiveram alguma vinculação com organizações guerrilheiras e hoje apóiam a reconstrução do tecido social da Guatemala a partir da capacitação e do empoderamento das autoridades indígenas tradicionais (PADILLA, 2008). Segundo o pesquisador mexicano, Guillermo 3DGLOOD 

Referências

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