• Nenhum resultado encontrado

Viva o povo brasileiro : um caminho dramatúrgico para o romace de João Ubaldo Ribeiro

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Viva o povo brasileiro : um caminho dramatúrgico para o romace de João Ubaldo Ribeiro"

Copied!
732
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

Viva o povo brasileiro

Um caminho dramatúrgico para o romance de João Ubaldo Ribeiro

André Felipe Arguelles Betim Paes Leme

Orientadora: Professora Doutora Maria Helena Zaira Diniz de Aiala Serôdio

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos Artísticos na especialidade de Estudos de Teatro.

(2)
(3)

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

Viva o povo brasileiro

Um caminho dramatúrgico para o romance de João Ubaldo Ribeiro

André Felipe Arguelles Betim Paes Leme Orientadora: Professora Doutora Maria Helena Zaira Diniz de Aiala Serôdio

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos Artísticos na especialidade de Estudos de Teatro.

Júri:

Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Vogais:

- Doutora Christine Mathilde Thérèse Zurbach, Professora Associada com Agregação da Escola de Artes de Évora;

- Doutora Clara Maria Abreu Rowland, Professora Associada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;

- Doutora Maria Helena Zaira Diniz de Aiala Serôdio, Professora Catedrática Aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, orientadora; - Doutora Maria João Oliveira Carvalho de Almeida, Professora Auxiliar da

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

- Doutor Rui Manoel Pina Coelho, Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

(4)

Resumo

Ao propormos o desafio de ser concebida uma versão dramatúrgica para o romance

Viva o povo brasileiro, do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, essa investigação atravessa uma fronteira entre a literatura e o teatro que está em constante demarcação. Há séculos que espectáculos de origem romanesca povoam os palcos, mas é sabido que as transformações ocorridas no teatro a partir do século XIX causaram uma significativa turbulência nessa convivência. As complexas relações sociais de um novo tempo colocaram em cheque os mecanismos da forma dramática e parecem ter reconhecido na narrativa do romance uma capacidade mais apurada para tratar das questões do homem no mundo moderno. O surgimento da figura do encenador e as pesquisas do teatro épico de Berltolt Brecht também foram alguns dos factores que impulsionaram um processo de esvaziamento do drama. Mas fica a pergunta: como realizar a transposição dramatúrgica de um romance? Na procura por pistas para concretizar a nossa tarfefa, fomos, inicialmente, em busca de compreender as novas acepções para o termo dramaturgia e os diferentes estados do texto teatral na escrita contemporânea. Depois fizemos uma breve aproximação com informações norteadoras acerca do surgimento, do conteúdo da representação e da linguagem do romance, através, respectivamente, das teorias de Hegel, Georg Lukács e Mikhail Bakhtin. Em seguida, com o foco no trabalho prático do encenador/dramaturgo, identificamos as diferentes modalidades de apropriação da obra literária e as operações que, em geral, podem ser efectuadas no texto original. Complementam essa fase da pesquisa a proveitosa visita ao processo de trabalho realizado por três experientes encenadores: João Brites, Luiz Arthur Nunes, e Aderbal Freire-filho. Munidos de valiosos exemplos, partirmos para a análise detalhada do romance de Ubaldo Ribeiro e iniciamos o processo dramatúrgico. O resultado foi ao encontro de uma dramaturgia que não eliminasse o traço épico e que conservasse, ao máximo, a escrita original e a força imagética do romance. Viva o povo brasileiro, nesta proposta teatral, terá a forma de uma trilogia: A Irmandade, Dafé e Os segredos da

canastra.

(5)

Abstract

In proposing the challenge of conceiving a dramatic version for the novel Viva o Povo

Brasileiro, by the Brazilian writer João Ubaldo Ribeiro, this research crosses a boundary between literature and theater that is in constant demarcation. For centuries romanesque shows populate the stages, but it is well known that the transformations that took place in the theater starting in nineteenth century caused a significant turbulence in this coexistence. The complex social relations of a new time have questioned the mechanisms of the dramatic form and seem to have recognized in the narrative of the novel a more refined capacity to deal with the issues of the modern world man. The emergence of the role of director and the researches of the epic theater of Berltolt Brecht were also some of the factors that drove a process of drama emptying. But the question remains: how to carry out the dramaturgical transposition of a novel? In searching for clues to accomplish our task, we were initially seeking to understand the new meanings for the term dramaturgy and the different states of the theatrical text in contemporary writing. We then briefly approximated guiding information about the emergence, the content of the representation and the language of the novel, through, respectively, the theories of Hegel, Georg Lukács and Mikhail Bakhtin. Then, focusing on the practical work of the director / playwright, we identify the different modalities of appropriation of the literary work and the operations that, in general, can be carried out in the original text. Complement this phase of the research the fruitful visit to the work process carried out by three experienced directors: João Brites, Luiz Arthur Nunes, and Aderbal Freire-Filho. Armed with valuable examples, we start the detailed analysis of Ubaldo Ribeiro's novel and begin the dramaturgical process. The result was a play that did not eliminate the epic trait and which preserved, to the maximum, the original writing and the force of the images of the novel. Viva o Povo Brasileiro, in this theatrical proposal, will take the form of a trilogy: A Irmandade, Dafé and Os Segredos

da Canastra.

(6)
(7)

Dedico à minha querida esposa Patrícia Paes Leme e à minha maravilhosa família, brasileira e portuguesa, que, com muito carinho e companheirismo,

sempre apoiaram incondicionalmente a minha formação e o meu ofício teatral.

(8)
(9)

AGRADECIMENTOS

Inicialmente, quero agradecer ao generoso trabalho de orientação da Profª Drª Maria Helena Serôdio que soube trazer, sempre no momento certo do percurso, aconselhamentos precisos e palavras de entusiasmo. Esse reencontro, depois do mestrado, foi uma oportunidade de estar novamente próximo da sua sensibilidade e do seu profundo conhecimento sobre o teatro. Quero agradecer ainda aos professores do Centro de Estudos de Teatro que, mais uma vez, me acolheram com grande afeto e estiveram sempre disponíveis em colaborar com a minha investigação. Quero também agradecer aos professores do Curso de Direção Teatral da UNIRIO que colaboraram para que eu pudesse passar algum tempo em terras portuguesas e, assim, mais concentrado nesse desafio. Não poderia deixar de agradecer aos tantos parceiros da vida profissional que nesta trajectória artística trouxeram questionamentos e provocações.

Dos que estão do lado de lá do Atlântico, eu não poderia deixar de agradecer ao apoio da minha amada família brasileira. A minha querida mãe Delma, meu irmão Francisco e minhas irmãs Patrícia e Adriana são, e serão sempre, um exemplo para a minha vida e as suas palavras de incentivo, somado ao carinho de sobrinhas e sobrinho, representaram energias importantes para que eu concluísse esse trajecto.

Dos que estão do lado de cá do Atlântico, quero agradecer ao apoio da minha família portuguesa, especialmente dos meus sogros que não mediram esforços para me proporcionar as melhores condições para que eu não perdesse o foco nos estudos. António e Lúcia, muito obrigado por tudo.

Um agradecimento especial eu quero fazer à minha esposa Patrícia que esteve sempre me incentivando e que é um exemplo para mim pela sua perseverança e pelo entusiamo com que percorre a vida. Eu serei grato por toda a vida por ter ao meu lado o seu amor e a sua alegria.

(10)

ÍNDICE

PRÓLOGO………Pág. 14 INTRODUÇÃO……….Pág. 18 CAPÍTULO 1 – A ACEPÇÃO DO TERMO DRAMATURGIA NO TEATRO CONTEMPORÂNEO: UM TECIDO COM MUITAS

PONTAS……….Pág. 23 1.1 Interrogar o conceito de dramaturgia: Joseph Danan,

Jean Pierre Sarrazac e Bernard Dort………Pág. 26 1.1.1 A escrita teatral sob a óptica aristotélica………...Pág. 26 1.1.2 Novos ventos. A figura do dramaturgista……….Pág. 27 1.1.3 Os dos sentidos da dramaturgia,

segundo Joseph Danan………...Pág. 33 1.1.4 O século XX e a mutação do drama………..Pág. 37

1.2 Os diferentes estados do texto no teatro contemporâneo………...Pág. 45 CAPÍTULO 2 – O ROMANCE COMO PRINCÍPIO

ESTRUTURANTE DA DRAMATURGIA ………...Pág. 51 2.1 Sobre o surgimento, o conteúdo de representação e a linguagem

do romance………...Pág. 61

2.1.1 O surgimento do romance na teoria de Hegel………...Pág. 62 2.1.2 As formas da grande épica na visão de Lukács………..Pág. 67

2.1.3 O romance como um género em devir e um

fenómeno plural, segundo Bakhtin………..Pág. 76

2.2 Especificidades do romance histórico, segundo Fredric Jameson…… Pág. 80 2.3 Sobre as diferenças e semelhanças entre o romance

e a peça de teatro………..Pág. 84

CAPÍTULO 3 - O ENCENADOR COMO AGENTE DO PROCESSO

DRAMATÚRGICO………...Pág. 92

3.1 Modalidades da apropriação……….Pág. 95 3.2 Operações da escrita………...Pág. 100

(11)

3.3 Dramaturgias distintas……….Pág. 104 3.3.1 O texto dramático a partir do

romance Passagem para Índia………...Pág. 105 3.3.2 O romance combinado com a dança: Orlando,

por Sara Carinhas e Hugo Pontes………...Pág. 107

3.3.3 O relato deslocado em A História que eu

não devia contar………...Pág. 113

3.3.4 O primeiro fragmento de Viva o povo brasileiro

na forma dramática………..………...Pág. 119

3.4 A prática dramatúrgica de três diferentes encenadores………..Pág. 122

3.4.1 A Dramatografia do Teatro O Bando – João Brites………..Pág. 123 3.4.2 O actor rapsodo do Núcleo Carioca de

Teatro – Luiz Arthur Nunes………...Pág. 136 3.4.3 O Romance-em-cena – Aderbal Freire-Filho………Pág. 141

CAPÍTULO 4: UMA ESCRITA TEATRAL PARA O ROMANCE

VIVA O POVO BRASILEIRO.

4.1 João Ubaldo e o romance histórico Viva o povo brasileiro……….Pág. 147

4.1.1 A pulsão teatral da obra………Pág. 158 4.2 A análise do romance e o processo dramatúrgico a desenvolver….Pág. 161 4.2.1 Uma proposta metodológica de transposição………Pág. 163

4.2.1.1 Quadro de acontecimentos……….Pág. 166 4.2.2 Etapa de aproximação: os eixos de oposição………Pág. 169 4.2.3 Etapa de análise……….Pág. 195 4.2.3.1 Os elementos constitutivos da história…………...Pág. 196 4.2.3.2 As personagens principais………...Pág. 200 4.2.3.2.1 Fluxograma das personagens…………...Pág. 210 4.2.3.3 A espacialidade e a temporalidade………...Pág. 211 4.2.3.4 As principais características do discurso…………Pág. 218 4.2.3.5 O romance dividido em fragmentos………...Pág. 233 4.2.4 Coordenadas iniciais e os elementos

condicionantes extratextuais……….Pág. 279 4.2.5 Etapa de articulação………...Pág. 281

(12)

4.2.5.2 Articulação: fragmento 19………..Pág. 289 4.2.5.3 Articulação: fragmento 33………..Pág. 308 4.2.6 Etapa de manipulação………...Pág. 315 4.2.6.1 Manipulação: fragmento 1A………Pág.316 4.2.6.2 Manipulação: fragmento 19………...Pág. 323 4.2.7.3 Manipulação: fragmento 33……….. Pág. 341 4.3 A concepção final para a cena………..Pág. 349

4.3.1 O primeiro texto da trilogia: A Irmandade………Pág. 352 4.3.2 O segundo texto da trilogia: Dafé……….Pág. 450 4.3.3 O terceiro texto da trilogia: Os segredos da canastra……..Pág. 568

CONCLUSÃO………..Pág. 709 BIBLIOGRAFIA……….Pág. 718

(13)

Índice de ilustrações

1) Ilustração 1 – Espectáculo Orlando………... pg. 111 2) Ilustração 2 – Espectáculo Histórias que não deviam ser contadas…………...pg. 115 3) Ilustração 3 – Espectáculo Histórias que não deviam ser contadas…………...pg. 116 4) Ilustração 4 – Espectáculo A divina Comédia – Inferno……….pg. 128 5) Ilustração 5 – Espectáculo A vida como ela é……….pg. 137 6) Ilustração 6 – Espectáculo A mulher carioca aos 22 anos………..pg. 146 7) Ilustração 7 – João Ubaldo Ribeiro no carnaval do Rio de Janeiro……….pg.150

Índice de quadros e tabelas

1) Tabela comparativa entre o romance e o drama………pg. 88/89 2) Quadro das etapas de trabalho da escrita dramatúrgica………..pg. 165/166 3) Quadro de fragmentos………..pg. 167/169 4) Quadro com os núcleos dramáticos……….pg. 209 5) Quadro de espacialidade ….………..………..pg. 217 6) Quadro de importância dos fragmentos………..pg. 282 7) Quadro de personagens do primeiro texto………...pg. 353 8) Quadro de personagens do segundo texto………...pg. 452 9) Quadro de personagens do terceiro texto………pg. 570

(14)

PRÓLOGO

O leitor pode ter uma certeza: nada mais certo do que o antigo ditado que diz que de tanto repetirmos uma frase ela poderá virar uma realidade. Esta pesquisa é fruto de uma determinação que, com outras características, já se apresentava no momento de uma escolha profissional; na luta por empreender uma vida na arte, que, como todos sabem, não é nada fácil; no atrevimento em demonstrar, ainda jovem, alguma segurança para um grupo de actores, também obstinados, que era capaz de encenar um espectáculo teatral; na coragem em contactar renomados artistas e convidá-los para integrar uma equipa de criação; na desenvoltura de se colocar diante de outros, ainda mais jovens, e tentar ensinar aquilo que mal havia aprendido, enfim, na obstinação de levar até o fim a concretização de um sonho.

Esta pesquisa não seria possível sem os encontros artísticos que os corredores do destino nos provocam, sem o aprendizado que os mais experientes generosamente nos transmitem, algumas vezes sem nem perceber, sem o exemplo de persistência que alguns criadores nos dão, sem a parceria de artistas dedicados que compram as nossas ideias, sem a crítica paciente e firme de observadores atentos, e finalmente, sem o carinho e o entusiasmo, com que aqueles que nos amam vivem as nossas realizações. Esta pesquisa, que só foi possível graças à experiência adquirida, parece encurtar o tempo dessa mesma experiência e abrir caminhos para um constante recomeçar.

O encontro entre um percurso artístico e uma investigação acadêmica.

Foram muitas às vezes, nestas quase três décadas como encenador, que li alguma obra literária, especialmente os romances, e pensei: “adoraria tentar levar isto ao palco”. Quase como um vício, até hoje, não deixo de ter esses pensamentos. Acredito que com muitos colegas de ofício deve acontecer a mesma situação.Tenho a fantasia de que algumas obras já estão quase prontas para o palco, basta um “empurrãozinho”, e é aí que eu entro em cena. Mas a verdade é que não é tão simples assim. O tal “empurrãozinho” é uma tarefa complexa e delicada.

(15)

Eu sou de uma geração de encenadores do Rio de Janeiro que deram os seus primeiros passos dentro de um contexto teatral que apresentava uma forte tendência da criação de espectáculos a partir de textos não dramáticos. Certamente, fui influenciado por este movimento e já nas minhas primeiras incursões profissionais me aventurei, em 1993, com uma paródia medieval, do séc. XIII, intitulada Alcassino e Nicoleta, e a seguir, 1994, com um conto licencioso do século XVIII, sem nome, que intitulei

Baunilha e Trioleta, os nomes do casal de enamorados do conto. De autores anônimos, estas duas obras me proporcionaram um riquíssimo exercício cênico, e, no texto original, lembro que, praticamente, não fiz intervenções. Ao olhar para trás, não tenho dúvidas em afirmar que o forte impacto visual alcançado nos dois espectáculos foi uma consequência directa dos materiais dramatúrgicos adoptados, que geravam uma liberdade entusiasmante.

Entre algumas dessas experiências nesse ambiente narrativo, considero que apenas uma tenha representado o meu grande desafio em transpor para o palco uma obra de ficção literária. Foi a minha experiência, em 2002, com a obra Asfalto Selvagem –

Engraçadinha seus amores e seus pecados, de Nelson Rodrigues. Junto com outro encenador, Luiz Arthur Nunes, idealizamos um projeto em que fiquei responsável por encenar a primeira parte do romance, Engraçadinha, dos doze aos dezoito anos, enquanto ele ficou responsável pela segunda parte, Engraçadinha depois dos trinta. Cada parte era apresentada alternadamente, em separado, de quarta a sábado, e no domingo, num único espetáculo de quase cinco horas, as duas partes eram apresentadas em sequência. Para que essa lógica de temporada pudesse acontecer sem maiores percalços, os dois espectáculos tinham na sua equipa de criadores o mesmo cenógrafo e o mesmo iluminador. Cabe referir que o encenador Luiz Arthur Nunes também é um grande apreciador dos romances levados à cena. Como veremos no corpo da pesquisa, ele é um estudioso reconhecido da prática rapsódica no teatro. Este encenador, dramaturgo, pesquisador e professor, por quem tenho um enorme apreço e admiração, foi, inclusive, um dos principais responsáveis por eu ter desenvolvido um gosto especial pelo teatro narrativo. Eu devo a ele a minha primeira aproximação com um espectáculo teatral originário de uma obra de ficção literária, já que fui o seu assistente de direção na montagem de Cândido, ou o Otimista, de Voltaire, em 1982, no início da minha formação.

(16)

Naquela experiência com o romance de Nelson Rodrigues confirmei o meu interesse pela prática dramatúrgica. Não tenho interesse pelo ato de criar o texto original, mas tenho por identificar a potência teatral de uma obra literária e depois experimentar os caminhos possíveis para a sua materialização no palco. Tenho interesse por uma tarefa que transforma algo que está escrito em realidade. Reescrever para realizar. Tenho a clareza que são dois trabalhos de naturezas absolutamente distintas. Não invento palavras ou personagens. As minhas interferências nos textos literários foram até aqui praticamente intuitivas e tinham o objetivo de realinhar a escrita literária de forma que o espectador do teatro, o pleonasmo é intencional, ficasse inteiramente amarrado à escrita cênica. Vou fazer uma breve descrição de um dos procedimentos cénicos usados no espectáculo Engraçadinha que servirá, acredito, para exemplificar o que afirmo. Duas atrizes eram, simultaneamente, responsáveis por interpretar a personagem protagonista e outras duas atrizes assumiam a antagonista. Sem nenhum constrangimento, todas as quatro atrizes conviviam em cena observando e interagindo o tempo todo, mesmo que uma delas não estivesse necessariamente com a “fala”. Esta opção gerava obviamente um estranhamento na cena e contribuía muito para o aproveitamento das partes narrativas e descritivas da obra, que não eram poucas. As narrativas e os diálogos se alternavam entre as duas atrizes que viviam cada uma das personagens e, simultaneamente, sem esvaziamentos, todas buscavam preencher a expectativa de ação que pedia a situação dramática em que se encontravam. Em vários momentos as quatro atrizes participavam intensamente da mesma cena. É claro que Nelson Rodrigues não escreveu as personagens duplicadas. Esta multiplicação foi uma opção da encenação na tentativa de explorar os elementos da narrativa e evitar o risco de uma paralisia da ação. Com certeza, na época, a minha reflexão sobre aquela experiência não dimensionava com precisão a complexidade do desafio e a sua implicação em tantas outras questões do fazer teatral contemporâneo. Só com o passar dos anos, com o natural amadurecimento artístico, consequência de uma intensa atividade profissional, é que fui capaz de identificar um conjunto de perguntas que, hoje, com esta investigação mais detalhada, espero encontrar alguma resposta.

Uma importante etapa desse amadurecimento ocorreu com o meu ingresso no Mestrado em Estudos de Teatro, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, entre 2006 e 2008. Neste período investiguei, sob a orientação da crítica, professora e ensaísta Drª Maria Helena Serôdio, por quem carrego

(17)

grande admiração e estima, e por quem tenho enorme prazer em reencontrar neste processo, o espetáculo D. Quixote (2002) realizado pela companhia teatral portuguesa Chapitô. A companhia do Chapitô vem mantendo, desde a sua criação, em 1996, um ininterrupto processo de produção de espectáculos nos quais a comédia, o improviso, a gestualidade, o clown e o épico se encontram entre as linhas primordiais das suas criações. O meu interesse no estudo do espectáculo D. Quixote era, em alguma medida, refletir sobre a importância e o lugar do texto escrito no processo de construção daquela criação, que era intensamente marcada pela pesquisa do teatro gestual empreendida pela companhia. Apesar de me ocupar mais especificamente da análise cénica não deixei de me interrogar atentamente sobre a forma como a obra de Cervantes foi empregada no espectáculo.

Após o mestrado, na continuidade das minhas atividades como encenador, outros projetos de características literárias cruzaram o meu caminho. Uns provenientes de crónicas, outros de contos, mas o certo é que até conhecer a obra Viva o povo

brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, nenhum outro romance, desde a minha experiência com a Engraçadinha, havia me despertado uma vontade tão forte de revisitar este papel do encenador/dramaturgo. Duas outras experiências com a literatura também alimentaram o desejo por realizar esta pesquisa. A primeira com o conto A hora e vez de

Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, realizada em 2007, e a segunda, bem recente, com contos do brasileiro Rubens Fonseca e do português João de Mancelos, que resultou no espectáculo Histórias que não deviam ser contadas (2015) e a que farei referência mais à frente. Entendi que seria proveitoso expor nessa investigação, ainda que sinteticamente, as características do processo dramatúrgico empreendido nesse último trabalho, pois a sua realização já continha, pelo menos em parte, alguma reflexão sobre as hipóteses aqui levantadas e, que, reexaminá-las, certamente, serviria para o meu melhor aparelhamento na difícil empreitada de construir uma dramaturgia para o romance histórico de Ubaldo Ribeiro, e, para o leitor, acredito que esta breve exposição possa ter colaborado para definir, com mais clareza, as provocações que fizeram um desejo artístico se transformar numa instigante investigação acadêmica.

(18)

INTRODUÇÃO

O objetivo final desta pesquisa teórico-prática é conceber uma dramaturgia teatral para o romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014). Uma dramaturgia que possa servir de suporte cénico, de forma coerente e nítida, para uma encenação que, possivelmente, possa vir a ser realizada nos próximos anos. Para alcançar este fim duas questões básicas, que devem ser pensadas do ponto de vista dramatúrgico, se apresentam: por que e como encenar um romance?

A partir deste questionamento, esta investigação foi organizada em três partes. A primeira, que inclui os capítulos um e dois, mais contextual, em que buscarei: compreender, do ponto de vista dos géneros literários, algumas características do romance que atraem e interseccionam a escrita teatral; definir em que conjuntura da dramaturgia contemporânea esta prática que se propõe manipular um material estranho ao drama encontra as suas bases; identificar quais foram as principais mudanças na dramaturgia teatral que tornaram admissível um romance ser levado à cena.

Na segunda parte farei uma observação da prática dramatúrgica na tentativa de identificar as diferentes modalidades de apropriação e os tipos de operação feitas pelo dramaturgista. Visito uma experiência ligada ao processo de “adaptar” e outras realizadas por encenadores mais próximas da construção de um espectáculo. Acabo também por relembrar uma breve vivência que tive recentemente neste campo, ainda que tímida, com contos. Na terceira parte da investigação, que considero o objectivo final deste trabalho, será realizada uma análise do romance de Ubaldo Ribeiro e a formulação uma proposta dramatúrgica para a obra.

Uma vez conhecida esta trajectória, não seria incorrecto afirmar que esta tese instaura um processo de encenação. Inicialmente, cheguei a pensar em realizar a última fase desta pesquisa numa sala de ensaio, já com a presença dos actores e da equipa de criação, com a intenção de compor materialmente a cena do espectáculo, mas, conduzido pela minha orientadora, entendi que essa opção poderia, em parte, me desviar das questões cruciais ligadas ao transporte do texto literário para a cena e me colocar, mais intensamente, apenas diante das decisões mais exteriores da cena, já que naturalmente eu estaria pressionado pelo “aqui e agora” tão envolvente de um processo de ensaio. Isto não quer dizer que eu não tecerei, até mesmo pela própria natureza da

(19)

escrita que estou me propondo, relações com as soluções de cena, com os procedimentos de criação, com os aspectos da actuação, e com outros elementos constitutivos do espectáculo teatral. Assim, para evitar um desvio do objecto pretendido, decidi por um trabalho solitário, ou melhor, somente com João Ubaldo Ribeiro ao meu lado. Um romance histórico, extenso como não poderia deixar de ser, que descreve a viagem de quatro séculos de uma “almazinha brasileira”, que é uma espécie de representação do povo brasileiro, pode ser conduzido, como facilmente podemos prever, por infinitos caminhos até chegar aos palcos. Tantos caminhos quantos forem os encenadores obstinados e apaixonados por este desafio. Portanto, deve ficar claro que não espero que o caminho criativo que percorrerei seja considerado “o correto” ou “o melhor”. Será apenas um deles, até porque a arte não possui um valor absoluto. Neste sentido, como uma boa referência desta multiplicidade de sentidos da arte literária, cabe lembrar a visão do crítico Roland Barthes apresentado no seu artigo “Da obra ao texto”:

O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, masque realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável), o texto não é uma coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação. (BARTHES 2002: 68)

Para além dos objetivos gerais já apresentados, o meu interesse nesta pesquisa também busca compreender de que forma esta obra de João Ubaldo apresenta uma potência teatral, uma “intensidade luminosa e espectacular”, e que razões me levam a destacar esta inclinação. Por que razões o meu interesse artístico se desloca para um romance e não para alguma outra dramaturgia tradicional? Por que escolho este romance como objecto dramatúrgico de uma futura encenação. Por que razões eu elejo algumas características da narrativa como teatrais e outras nem tanto? Por que eu selecciono este ou aquele fragmento, este ou aquele personagem, e de que forma uma visão prévia da concepção da cena deverá condicionar a visão dramatúrgica? Que grau de narrativização poderá ser alcançado e quais serão os elementos romanescos imprescindíveis para esta encenação? No diálogo com o teatro contemporâneo, seria pertinente convocar para este processo as noções de sujeito épico, cunhado por Peter Szondi, e a de devir rapsódico e de devir cénico, elaboradas pelo ensaísta e dramaturgo Jean PierreSarrazac?

(20)

O devir cênico não poderia ser confundido com o que nos habituamos a designar como a “fortuna cênica” de uma peça. Não nos interessamos aqui pelo conjunto das encenações efetivas nem mesmo “possíveis” de uma obra dramática, mas sim pela força e pelas virtualidades cênicas dessa obra. Pelo que num texto – que pode ser não dramático – solicita o palco e, numa certa medida, reinventa-o. (SARRAZAC 2012:66)

Para a realização desta tarefa me colocarei assumidamente na função de um encenador-dramaturgo. No que diz respeito ao processo de análise da obra literária, utilizarei nesta pesquisa a contribuição valiosa do dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra na sua prática de “teatralização da textualidade originária”. Sinisterra apresenta uma proposta de trabalho que utiliza as ferramentas analíticas com o objectivo “de tentar elucidar a textualidade dos relatos como forma de indagar sobre a teatralidade que essa textualidade contém.” (SINISTERRA 2016:25)

Nessa pesquisa, portanto, assumirei o perfil de um pesquisador/criador que tendo em mente a percepção cénica de um romance buscará criar o seu correspondente dramatúrgico, mas também, como não poderia deixar de ser, de natureza literária, uma vez que ainda estará no papel, não no palco. Podemos dizer que será uma “versão teatral” ou “versão dramatúrgica” do romance que, por mais que pretenda fazer indicações de elementos da cena, deverá espelhar, prioritariamente, aspectos globais de um possível espectáculo. Para situar o leitor, também será valioso resgatar o contexto em que surge o encenador, as tensões vividas entre o autor e esta nova figura, que na verdade já não é tão nova assim, e, avaliar em que medida um processo desta natureza não exige a contribuição de um dramaturgista, ou se este não é, na verdade, o meu papael, um dramaturgista/encenador. Nesse caso refiro-me ao dramaturgista como um colaborador que teria a tarefa específica de operar as mudanças no texto.

Planejo detalhar de que forma se operará esta apropriação, transposição, transcriação ou adaptação, recriação, ou ainda outro conceito que possamos cunhar para esta tradução da obra literária. Espero conhecer um pouco mais de perto as tensões que são criadas na relação entre a literatura e o teatro quando se opta por encenar um romance. Uma relação maracada por um antagonismo e para qual, inclusive, o autor e tradutor português José Maria Vieira Mendes, no seu recente ensaio de título provocativo – Uma coisa não é outra coisa –, busca “fornecer uma alternativa aos discursos que realçam tensões, compromentimentos, afastamentos e aproximações entre as duas artes ou coisas”. (MENDES 2016: 185)

(21)

Para resolver pois o problema da preponderância da relação antinómica entre teatro e literatura, há que se olhar para a disciplina e para o espectáculo com uma outra vontade. Já não apenas com a vontade de fixar uma identidade, mas também de lidar com a mutabilidade e com a imprevisibilidade de uma identidade. (MENDES 2016:228)

Pretendo também enxergar quais são os limites que devem ser respeitados por esta “recriação”, ou seria mais apropriado dizer, sem constrangimentos, criação? Seria correcto falarmos em autoria? Sobre essa dimensão vale lembrar o filósofo Michel Foucault quando afirma, respeitando as variações conforme o tipo de discurso, que “o que faz do indivíduo um autor é apenas a projecção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efectuamos.” (FOUCAULT 2015:51). Uma pergunta, com certeza, percorrerá todo o processo: existem limites para esta estrutura-texto se afastar da obra original? Poderíamos, por aproximação, admitir, de acordo com as teorias sobre a tradução do pensador russo Roman Jakobson (1985) apresentadas no seu artigo Aspectos linguísticos da tradução, que passar um texto literário para um texto encenado é antes de tudo um acto de interpretação, e que a mudança de signos que ocorre nesta operação acarreta numa transformação e, sendo assim, ocorrerá necessariamente, após a aproximação, um segundo movimento de afastamento do texto original? Jakobson distingue três níveis de tradução: a endolinguística, a interlinguística e a intersemiótica ou transmutação. Essa última ocorre quando há a interpretação de signos linguísticos por meios de signos não linguísticos, ou seja, quando a mudança de uma mensagem em códigos semióticos diferentes.

Mais frequentemente, entretanto, ao traduzir de uma língua para outra, substituem-se mensagens em uma das línguas, não por unidades de código separadas, mas por mensagens inteiras de outra língua. Tal tradução é uma forma de discurso indireto: o tradutor recodifica e transmite uma mensagem recebida de outra fonte. Assim, a tradução envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes. […]. Nenhum espécime lingüístico pode ser interpretado pela ciência da linguagem sem uma tradução dos seus signos em outros signos pertencentes ao mesmo ou a outro sistema. (JAKOBSON 1985:65)

Ou seria ainda mais apropriado buscar apoio na noção de “desleitura” do crítico norte-americano Harold Bloom (1991) que, ao formular seus estudos sobra a relação de

(22)

“angústia da influência” entre um poeta e seu antecessor na escrita da poesia, entende que todo procedimento deve ser, para o bem da inventividade artística, um desvio do texto literário? Para encontrar possíveis caminhos para a execução de uma dramaturgia a partir de um romance, optamos por visitar algumas experiências vigorosas de transposição da literatura narrativa para a cena, como as lideradas pelo encenador português João Brites e os brasileiros Luiz Arthur Nunes e Aderbal Freire-Filho. Também, como estudos de caso, observaremos uma “adaptação” do romance Uma

passagem para a Índia, de E. M. Forster e o resultado alcançado pela pesquisa da atriz portuguesa Sara Carinhas para um espectáculo recentemente encenado em Lisboa a partir da obra Orlando, de Virgínia Woolf. Também mencionarei a experiência recente que vivenciei com a encenação de contos luso-brasileiros e, em seguida, farei uma experiência dramatúrgica com o primeiro fragmento do romance Viva o povo brasileiro. Definir com precisão, nos dias de hoje, o que é uma peça de teatro é uma tarefa bastante complexa diante da interdisciplinaridade das linguagens estéticas e da consequente hibridização da cena. No teatro contemporâneo poucos se atreveriam a generalizar o que é que caracteriza essencialmente um texto teatral. Tanto assim que a pesquisadora Sílvia Fernandes nos lembra no seu estudo sobre dramaturgia contemporânea que esta dificuldade “chega ao ponto de levar um pesquisador da envergadura de Patrice Pavis a definir o texto teatral pelo critério elocutório. Segundo o teórico francês, atualmente texto de teatro é tudo aquilo que se fala em cena.” (FERNANDES 2010:153). E Sílvia conclui que:

Parece evidente que essas definições pragmáticas resultam dos problemas para distinguir o texto teatral de hoje, quando as fronteiras do drama se alargaram a ponto de incluir romances, poemas, roteiros cinematográficos e até mesmo fragmentos de falas esparsas, desconexas, usados apenas para pontuar a dramaturgia cênica do diretor ou do ator. Diante dessa situação, não é de estranhar que uma das principais tarefas do estudioso do texto teatral contemporâneo seja distinguir o seu objeto. (Ibidem 154)

Dentro desse mapa de fronteiras tão imprecisas, é importante que eu procure reconhecer com nitidez os critérios que adoptei para cada passo do trabalho e as alavancas impulsionadoras deste processo de criação. Será importante também identificar as etapas percorridas e todos os entraves enfrentados até alcançar a versão final desta dramaturgia, ou seria mais apropriado dizer, “dramatografia”, conforme prefere o encenador João Brites, já que será construído um texto com palavras que podem acabar por desenhar os mapas da cena.

(23)

CAP. 1 A ACEPÇÃO DO TERMO DRAMATURGIA NO TEATRO CONTEMPORÂNEO: UM TECIDO COM MUITAS PONTAS.

O teatro actual aceita todos os textos, qualquer que seja sua proveniência, e deixa ao palco a responsabilidade de revelar sua teatralidade e, na maior parte do tempo, ao espectador a tarefa de encontrar seu alimento. A escrita teatral ganhou em liberdade e em flexibilidade o que ela perde, por vezes, em identidade (RYNGAERT)

Para abordarmos o tema “dramaturgia” vou iniciar por relembrar a sua etimologia, drama-ergon, que em grego significa construir com acções, ou, se preferirmos, compor uma acção ou, ainda, erguer através de acções, ou mesmo, a activação da acção. Ou seja, em qualquer dos significados o termo está inegavelmente ligado ao ato de provocar a execução de acções. Ao não aprisionarmos o conceito de acção, exclusivamente, ao mytos, à trama, e sim direcciona-lo também para o espectáculo, em grego opsis, o sexto elemento da tragédia, que representa a materialidade e visualidade do espectáculo, segundo a poética de Aristóteles, é possível perceber como a noção de dramaturgia passa a ser ampla e de contornos difíceis de definir nos novos tempos. Já nos meados do século XIX, os trabalhos de Brecht e Artaud, influenciados pelo teatro oriental, já apontavam para o facto de o conceito de dramaturgia estar cada vez mais comprometido com a articulação dos diversos elementos que constituem a cena e, consequentemente, mais ligado à ideia de produção dos sentidos.

Sendo assim, graças também à influência exercida pelos teatros orientais, não somente aquele balinês e chinês, mas também o indiano e o japonês, dentre outros, emerge no Ocidente uma noção de dramaturgia vista enquanto operação através da qual elementos cênicos não convergem para um mesmo ponto, mas são entrelaçados de diversas maneiras, são “tecidos”. Surge assim, de maneira mais consistente em algumas culturas do Oeste, a noção de “dramaturgia como textura”. (BONFITTO 2011:57)

Pela definição acima podemos concluir que o trabalho de um actor quando executa uma acção no palco e, portanto, cria um significado está compreendido dentro do actual conceito de dramaturgia. Da mesma forma podemos afirmar que um encenador quando concebe a cena, ou mesmo o criador da luz quando define a iluminação, e, consequentemente, criam outros significados, também está incluído neste

(24)

conceito. Assim, não devemos estranhar nos textos contemporâneos sobre o fenómeno teatral a presença de expressões como “dramaturgia do actor”, “dramaturgia do encenador”, ou mesmo, “dramaturgia da luz”. Evidentemente que, nesta linha de raciocínio, não menos dramaturgo será o autor do texto que foi levado à cena, e mesmo o próprio espectador, que ao ser afectado por todas as dramaturgias que foram compostas e reagir ao “jogo”, também acabará por criar a sua própria “dramaturgia”, ou seja, podemos falar nesta perspectiva da “dramaturgia do espectador”. Neste último caso é fundamental perceber que está em evidência o comportamento que se credita ao espectador contemporâneo, mais próximo da figura do participante do que da posição passiva do assistente, que deixa de ter como tarefa “a reconstrução mental, a recriação e a paciente reprodução da imagem fixada; ele deve agora mobilizar a sua própria capacidade de reacção e vivencia a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecido.” (LEHMANN 2007:224)

Sobre o conceito de dramaturgia, cabe destacar a valiosa contribuição da pesquisadora Ana Pais no seu trabalho O Discurso da Cumplicidade: dramaturgias

contemporâneas. Ana Pais faz na sua pesquisa um preciso mapeamento de natureza histórica do conceito de dramaturgia e, interessantemente, atribui ao termo o carácter de um “conceito-hidra”. (PAIS 2016: 29). Para a pesquisadora, a dramaturgia está associada ao conjunto de acções realizadas com o fim de estruturar e relacionar os sentidos de um espectáculo durante o processo de criação. Ana Pais entende que a dramaturgia está presente no espaço-tempo entre o texto e a encenação e que tem uma característica polissémica e tentacular, já que alcança a globalidade dos materiais cénicos. Para Ana Pais, neste trabalho de articulação dos materiais e estruturação dos sentidos, a dramaturgia promove uma cumplicidade entre aquela que seria a concepção do espectáculo – componente invisível – com a sua concretização cénica – componente visível – e neste processo “faz do público seu cúmplice no discurso.” (ibidem 83). A partir da ideia de cumplicidade, Ana Pais reflecte sobre as dimensões que a dramaturgia pode ser teorizada e desenvolve a instigante proposta de que “a dramaturgia é o outro lado do espectáculo, o seu avesso invisível que, como um objecto côncavo, implica uma complementariedade convexa.” (ibidem 23)

Por esse viés, muito acolhido no pensamento contemporâneo, podemos compreender que o conceito de dramaturgia resulta não, exclusivamente, do texto, como já foi considerado no passado, mas sim de todas as acções responsáveis pela construção

(25)

do acto teatral, de tudoo que dá vida ou, se preferirmos, de tudo oque é tecido para que o espectáculo possa acontecer. Estamos, portanto, diante de um conceito de forte dinâmica, determinado por uma ideia constante de inter-relações das “dramaturgias” que formam a “dramaturgia” final do espectáculo. Essa noção encontra uma forte justificativa na perspectiva de que o teatro é um acontecimento único e irreproduzível, e que a sua existência está indissociável do hic et nunc, aqui e agora, da representação. Nesta acepção do termo, Féral ao citar a visão de Eugênio Barba nos lembra que:

Concretamente, num espetáculo teatral, é ação (isto é, concerne à dramaturgia), de um lado, aquilo que os atores fazem ou dizem, de outro lado os sons, os ruídos, as luzes, as variações do espaço. São ações num nível superior de organização os episódios da história ou as diversas fases de uma situação, os espaços de tempo entre duas entonações do espetáculo, entre duas mudanças do espaço, ou ainda a evolução conforme uma relação autônoma de uma trilha sonora, variações de luz, modificações de ritmo e de intensidade que um ator realiza nos temas físicos determinados (o comportamento, a utilização de objetos, da maquiagem ou do figurino). São também ações todas as relações, todas as interações entre as personagens ou entre as personagens e as luzes, os sons, o espaço. São igualmente ações aquelas que operam diretamente na atenção do espectador, na sua compreensão, sobre sua emotividade, na sua cinestesia. (Barba apud Féral 2015:261)

Através deste alargamento do alcance do conceito de “dramaturgia” é possível verificar um crucial deslocamento da investigação nas artes cénicas, que passa a colocar em primeiro plano a materialidade da cena e não mais os suportes literários que a precediam. O foco foi desviado da literatura dramática, que era colocada como a base principal de um futuro espectáculo, para o espectáculo – a encenação – propriamente dito. Na reflexão contemporânea do fenómeno teatral podemos perceber que muitos estudiosos levam mais em conta o aspecto visual e áudio-táctil da cena do que o texto escrito para a cena. Nesse novo paradigma o destaque do teatro passou a ser mais a matéria bruta, viva, que é captada pela visão e pela audição no instante do espectáculo e menos as histórias narradas e os conflitos psicológicos dos personagens. Passamos, consequentemente, a conviver mais intimamente com o conceito de teatralidade, que actualmente é tão caro aos investigadores da cena, e já transitamos com mais regularidade pelos conceitos de “texto espectacular”, adoptado por Eugénio Barba, e “texto performativo”, mais comum para Richard Schechner, destacado pesquisador norte-americano da “performance art”. Esses conceitos contemporâneos remetem a um “texto que está plenamente indissociável, ou quase, da sua representação, de forma que

(26)

sistemas da cena.” (FÉRAL 2015:247). Não falamos mais do texto para enxergarmos a cena, agora, definitivamente, falamos da cena para compreendermos o texto.

1.1 Interrogar o conceito de dramaturgia: Joseph Danan, Jean Pierre Sarrazac e Bernard Dort

1.1.1 A Dramaturgia sob a óptica aristotélica

Mas voltemos ao termo “dramaturgia”, pois pelo caminho ainda há questões a responder: por que durante tantos anos, comummente, apenas nos referimos ao conceito de “dramaturgia” como sendo o trabalho do autor dramático que escreveu a peça de teatro? Por que demoramos tanto tempo em reconhecer a “dramaturgia” também como o trabalho de passar para o palco as peças de teatro? E ainda, será que esses dois aspectos, texto e espectáculo, são os únicos ainterferir numa definição para o termo dramaturgia? Para esta última pergunta, “pode-se desde já, supor que não.” (DANAN 2010:12)

Onde há acção há problema e em “dramaturgia”, havendo acção, há, portanto, problema. Trocadilho à parte, conforme verificou Danan, no dicionário de Anatole Bailly, de 1901, drama significa a “acção que se desenrola num teatro.” A partir desse significado podemos, por opção, concluir que Bally se refere à acção que é realizada no ato da cena, não fala restritivamente da acção que é escrita no texto, nem tampouco do ato de escrever uma acção para uma cena, mas sim da acção que é efectivamente praticada no palco. Para “dramaturgia”, o mesmo Bally, indica que o significado é a “composição ou representação de uma peça de teatro.” Nesta proposta tanto compor uma acção como representar uma acção possui, ainda que não tenha a mesma significação, o mesmo alcance, a mesma destinação. Para entendermos melhor o nosso raciocínio, vamos deixar guardada ao lado a definição de Bailly e regressar, novamente, ao tratado de Aristóteles sobre a tragédia ateniense do século V. A aguçada oposição, verificada por séculos no fenómeno teatral, entre a dimensão literária e a espectacular, apesar de já insinuada nas teorizações sobre o teatro ocidental desde A República, de Platão, quando o filósofo estabeleceu, no que diz respeito à apresentação ficcional de uma narrativa, a diferença entre a diégesis e a mimesis, está ligada, definitivamente, à interpretação feita da Poética, de Aristóteles.

(27)

Platão, mestre de Aristóteles, nos faz saber que a mimesis é da ordem das ficções que se apresentam através dos actores e que a diégesis diz respeito às ficções que se apresentam através da narrativa pura. Como é sabido, Platão criticava o que havia de performativo na mimesis, e desejava banir da cidade o poeta rapsodo, o mais perigoso de todos. Na análise da Poética, de Aristóteles, este embate hierárquico entre o mythos e a opsis ficou mais evidente e costumou-se afirmar que, para Aristóteles, o primeiro era o mais importante elemento da tragédia, o que lhe conferiria absoluta primazia dentre os seis elementos. Esta primazia fez com que a Poética fosse vista mais como um tratado sobre a tragédia enquanto fenómeno literário e menos sobre o fenómeno do espectáculo trágico. O fato de Aristóteles identificar como essencial a forma com que a trama devia ser costurada pelo poeta trágico para se alcançar o efeito da catarse não excluía, muito menos anulava, o grau de importância do plano espectacular da tragédia. Na tragédia, segundo Aristóteles, há a distinção entre o literário e o cénico, mas os dois planos convivem com importâncias distintas e diferenciadas sem jamais o primeiro colaborar para a eliminação do segundo. Essa posição pode ser reforçada quando lembramos, com alguma obviedade, de que o texto da tragédia não tem como fim o ato da leitura, e sim a cena. A sua concepção já previa a sua representação dentro de um conjunto de regras antecipadamente conhecidas, e daí ser possível vislumbrar que o texto trágico também era constituído de uma dimensão performativa prevista pelo poeta. Mas ocorre que no século XVII, no período neoclássico da história, através da revisitação da tragédia por autores como Corneille e Racine, uma leitura ainda mais restritiva da Poética se impôs e elevou ao máximo o status do poeta dramático. A escrita se agigantou sobre a materialidade da cena e baniu em excesso a “dramaturgia do palco”. Numa visão mais aristotélica do que o próprio Aristóteles, os poetas desprezam a opsis do espectáculo. Aos poucos, mas cada vez mais, passa a se enaltecer o carácter permanente alcançado pelo texto, que deveria ser imutável, para finalmente, “o autor dramático afirma[r] o seu poder no teatro perante os actores, até ao triunfo do “teatro-livro” (DANAN 2010: 15)

1.1.2. Novos ventos. A figura do dramaturgista.

Como lembra o estudioso Luis Ramos, como reacção ao radicalismo neoclássico, Diderot, no século XVIII, em seu Discurso sobre a poesia dramática, traz

(28)

no século anterior, Diderot combate a desvalorização que sofreu a visualidade da cena em benefício da sua estrutura literária.

O aspecto interno da dramaturgia da cena, a sua estrutura literária e ficcional, sufocava a sua dimensão externa ou as suas potencialidades semânticas enquanto espetáculo. É assim que Diderot vai apontar a importância de o dramaturgo visualizar o espetáculo no momento da composição dramática e enfatiza, sobremaneira, o peso definitivo que os corpos dos atores, e os seus respectivos movimentos, tem na realização do drama. Mas ainda não havia uma dissociação acabada entre os dois planos, o literário e o cênico, que já tinham sido distinguidos na análise de Aristóteles. Diderot pontuava a dualidade, mas ainda a subordinava a um projeto cuja realização pressupunha as prerrogativas do dramaturgo. (RAMOS 2009: 96)

Vale ressaltar nesta trajectória do teatro, brevemente lembrada, que o termo dramaturgia remete, portanto, desde a tragédia grega, também para algo relacionado à prática aberta do teatro e é esta herança, arejada por um sopro de renovação por Diderot (1713-1784), na França, e, como veremos, por Lessing (1729 -1781), na Alemanha, que o teatro contemporâneo definitivamente irá recuperar e valorizar.

Para continuar este percurso convido o leitor a imaginar que um jovem autor teatral, francês, no ano de 1765, em pleno exercício das suas habilidades criativas, ou seja, um dramaturgo clássico no sentido mais restrito do termo, ou mais preciso ainda seria dizer um poeta dramático, como usualmente se referiam àqueles que escreviam “peças de teatro”, até porque o termo dramaturgo poderia sugerir algo para além da escrita, por uma razão inexplicável, talvez por uma dentada numa fruta encantada, para lembrarmos os contos de fadas, o nosso autor adormece profundamente e acorda, sem envelhecer, exactamente em 2015. Durante duzentos e cinquenta anos o nosso hipotético poeta, ainda impregnado das normas do teatro classicista francês, que levou com absoluto rigor as três regras das unidades aristotélicas e ficou marcado por uma rígida escrita, descansou nos braços de Morfeu sem imaginar as transformações que a dramaturgia teatral sofreria nos séculos seguintes.

Podemos nos perguntar: por que a escolha do ano de 1765? Pode parecer que é simplesmente para fixar uma quantidade de tempo mais exacta e também impactante, afinal duzentos e cinquenta anos é um belo número. Mas não é isso. A escolha tem o propósito de marcar que o nosso jovem autor embarca no sono profundo nas vésperas de o escritor alemão G. E. Lessing escrever um conjunto de reflexões e críticas sobre a sua

(29)

experiência junto ao Teatro Nacional de Hamburgo, entre 1767 e 1768, como uma espécie de consultor artístico e literário.

Na obra que foi intitulada como a Dramaturgia de Hamburgo1, Lessing, durante exactos 12 meses, faz um registro detalhado das actividades artísticas do Teatro Nacional, que, segundo estudiosos, tinha sido reaberto na época com o objectivo de “fundar um palco que pudesse servir de modelo a toda a Alemanha” (SAADI 2013). Apesar de ter sido convidado inicialmente para escrever textos inéditos para a Companhia, convite que Lessing acaba por rejeitar, o poeta alemão, que já havia tido experiência como jornalista e ensaísta, sugere que o seu trabalho consista em produzir “uma sequência de críticas à medida da apresentação dos espectáculos e publicadas num folheto editado pelo teatro” (Ibidem). Sugestão acatada, Lessing acompanha o autor e os actores nas suas actividades diárias. No seu “diário de bordo” ele escreve sobre temas que vão da direcção cénica à actuação dos actores, passa pelas razões das escolhas dramatúrgicas e pelos estudos complementares realizados, até finalmente chegar à crítica da montagem.

Ele actua como um questionador das regras dramáticas estabelecidas nos textos. Lessing promove, de facto, um rico ambiente de debate ao se questionar sobre a eficiência do texto encenado, e também se perguntar sobre o olhar do espectador. Inclui entre as suas questões até mesmo as próprias rubricas do autor. Tão completo e detalhista, os escritos de Lessing prenunciam o exercício contemporâneo dos dramaturgistas, o Dramaturg, de acordo com a língua alemã, aquele que age como um intercessor intelectual entre autor, actores e criadores da cena.

Esta já seria uma grande questão para o nosso adormecido poeta francês ao acordar: quem é este, além do próprio dramaturgo, que está autorizado a falar sobre a dramaturgia? Uma pergunta simples de responder nos dias de hoje, onde as tarefas do dramaturgista nas companhias de teatro já não são uma novidade, onde já não pairam dúvidas sobre as diferenças entre a função do dramaturgo, escritor de textos, e do dramaturgista.

As tarefas do dramaturgista são múltiplas. Entre elas, eu listaria: colaborar no delineamento do projeto artístico do grupo e na sua difusão; participar da escolha do repertório; ler e comentar peças que sejam enviadas para

(30)

apreciação; traduzir, criar ou adaptar textos ou materiais que sirvam de base para o espetáculo; trabalhar, juntamente com o encenador, na criação do conceito dos espetáculos, oferecer o material de pesquisa necessário à montagem; acompanhar os ensaios para comentar o desdobramento cênico da proposta durante sua concretização; elaborar o programa do espetáculo e demais publicações do grupo; organizar debates com o público; realizar o registro das atividades da trupe. (SAADI 2013)

Podemos considerar que a Dramaturgia de Hamburgo é um marco para a função do dramaturgista actual. Com o seu trabalho, Lessing desenha as primeiras linhas de um projecto estético e político para o Teatro Nacional de Hamburgo. De acordo com os estudos da dramaturgista Fátima Saadi2,Lessing estabelece a busca por um teatro genuinamente alemão, num país repartido político e culturalmente; por um teatro com uma produção fixa, contínua e durável, num contexto em que predominavam as companhias itinerantes; por um teatro que possuísse uma proposta estética própria, liberta da aprisionante influência normativa do teatro francês, e que pudesse servir de exemplo para os jovens poetas alemães; por um teatro que fosse comprometido com o carácter formador dos artistas integrantes da Companhia e atento ao aprimoramento do gosto do público.

É incontestável que Lessing estava à frente do seu tempo. Para além do conjunto de inquietações descrito acima, são especialmente as suas notas ao criticar o modo de fazer das peças representadas da época, ao se perguntar sobre a eficácia do texto, ao valorizar o receptor do ato teatral, ao colocar em constante tensão o resultado do texto e a sua representação, que revelam o seu olhar moderno. Segundo Ana Pais, “a dramaturgia de Lessing é uma acção moralmente consciente das implicações do teatro cuja missão didáctica tenciona potenciar: o seu objectivo é direccionar o gosto e educar a mentalidade da anónima plateia. Lessing é, um precursor da pedagogia estética.” (PAIS 2016:41). Sobre a sua Dramaturgia de Hamburgo não podemos afirmar que esta seja o registro de uma encenação, até porque dizer o contrário seria cometer um erro anacrónico já que o conceito de encenação ainda não existia no séc. XVIII. Mas seria correto dizer que a Dramaturgia de Hamburgo, antes de tudo, dá pistas de um olhar visionário de Lessing ao deixar indicado o seu posicionamento de que um determinado texto não possui um único correspondente cénico para a sua montagem. Ou seja, para se levar à cena um determinado texto não será necessário recorrer a um determinado modelo, ou também podemos dizer que a exigência de uma determinada representação

2Fátima Saadi é dramaturgista da companhia carioca Teatro do Pequeno Gesto, no âmbito da qual edita a

(31)

não é colocada antecipadamente pelas características da obra literária. Para Lessing, a obra teatral não deve seguir uma dramaturgia normativa. Conforme muito precisamente esclarece Joseph Danan a respeito do trabalho de Lessing: “A sua dramaturgia não é um

sistema (fechado) de regras com o objectivo de dizer como se deve escrever peças, mas uma prática (aberta) que tem por objectivo questionar e produzir pensamento” (DANAN 2010:19)

Como já identificamos, este possível desligamento entre o modelo textual e o modelo cénico é o presságio de novos tempos. Há nos registos de Lessing, assim como na visão de Diderot, uma apetência pela mudança. A acepção ampliada por Lessing para o termo dramaturgia aponta para novos ventos e, ainda que com alguma timidez, para o surgimento de uma nova função no processo de criação da cena. Conforme apontam Joseph Danan e Bernard Dort, nas entrelinhas dos comentários de Lessing poderemos intuir a porta pela qual entrou, no século seguinte, para escrever parte da história de transformações do teatro, a figura do encenador.

Há que tomar a Dramaturgia de Lessing por o que ela é, um momento decisivo da história do teatro, sem perder de vista que ela precede o nascimento da encenação e que são esta, o seu desenvolvimento fenomenal no século XX e a conflagração provocada então entre o texto e as suas encenações, entre o texto e o palco, que obrigarão a repensar a noção de dramaturgia. (DANAN 2010:24)

A nossa concepção moderna de dramaturgia está evidentemente ligada ao advento da encenação. Ela é-lhe mesmo anterior, anunciando-a. Encontramos as suas premissas em A Dramaturgia de Hamburgo, de Lessing. Esta obra marca a transição entre a dramaturgia normativa e textual que era de regra na época clássica e a nossa prática dramatúrgica. (...) O encenador está inscrito em filigrana tanto nos textos teóricos de Lessing, como nos de Diderot. (DORT 2003: 40)

Os escritos de Lessing, como bem aponta Joseph Danan, anunciam a necessidade “dum questionamento dramatúrgico no sentido moderno – como pensamento da passagem para o palco, quer este esteja presente na escrita, quer seja assumido pela representação”, como podemos verificar no comentário que integra o nono fascículo, de maio de 1767, sobre a montagem de Julie, de Franz von Heufeld, a partir de La nouvelle Héloise, de Rousseau:

A dureza com que Julie é tratada por seu pai quando tem de tomar por esposo outro e não aquele que o seu coração tinha escolhido mal é esboçada por Rousseau. O Senhor Heufeld teve a audácia de nos mostrar toda a cena. Gosto quando um jovem poeta dá mostras de audácia. Mostra-nos o pai a atirar a filha ao chão. Estava inquieto por causa da maneira como esta acção

(32)

tão bem entre eles, o pai e a filha observaram tão bem a regra da conveniência, e essa conveniência prejudicou tão pouco a verdade que tive de reconhecer que se podia confiar uma cena como esta à nossa companhia como a nenhuma outra. O Senhor Heufeld pede que, quando Julie é levantada do chão pela mãe, se veja sangue no seu rosto. Pode estar contente por o não terem feito. A Pantomina não deve nunca ser levada ao ponto de ser repugnante. Tanto melhor se, em casos semelhantes, a imaginação ao rubro julga ver sangue: mas o olhar não deve vê-lo de verdade. (DANAN 2010: 21)

Cabe perceber como Lessing, a partir da análise de uma mesma acção, atravessa três níveis da criação teatral, o primeiro em relação à obra original de Rousseau, o autor do romance, o segundo em relação ao texto levado à cena, a adaptação de Franz Von Heufeld, e o terceiro sobre a representação dos actores da companhia. Compreendemos através do seu escrito a sua preocupação com o que será apreendido da cena. Podemos nos antecipar e dizer da sua preocupação com a “dramaturgia da cena”, que acaba, neste caso relatado, por não seguir as rubricas do próprio autor.

Para finalizar esta breve visita ao legado deixado por Lessing, vale citar, como nos recorda Saadi, no seu artigo já citado anteriormente sobre a função do dramaturgista, o belo texto - de inteligente reprovação aos egos muitas vezes desmedidos de alguns actores - no qual ele explica porque, após o seu vigésimo quinto comentário, deixou de criticar os espectáculos e os actores da Companhia. Os actores estavam descontentes com as suas críticas e Lessing passa a se concentrar nos aspectos estilísticos e poéticos presentes nos textos representados pela Companhia, que acabaria por encerrar assuas actividades no ano seguinte ao seu afastamento.

O único cumprimento que sei fazer a um artista, homem ou mulher, é dizer que o considero distante de qualquer vã susceptibilidade; que, para ele, sua arte está acima de tudo e que, por isso, ele ouve de bom grado os juízos livres, expressos em alto e bom som a seu respeito. Acredito que ele prefere saber-se julgado erroneamente de vez em quando a não ser praticamente nunca avaliado. Em relação a quem não compreende esse elogio, eu reconheço que me enganei: não vale a pena ocupar-me dele neste estudo. O verdadeiro virtuose não acredita que sejamos capazes de reconhecer e sentir sua perfeição, por muito que o alardeemos, se não considerar que somos também capazes de ver e sentir suas fraquezas. Ele faz pouco de todo aquele que lhe dedica uma admiração sem limites; só o lisonjeia o elogio daquele que ele sabe que também tem a coragem de criticá-lo. (SAADI 2013)

Feito o registro das posições críticas, porque não dizer revolucionárias, de Diderot e Lessing durante o século XVIII ao excesso de normas para a escrita teatral, vamos avançar para o século seguinte e fazer referência ao crítico francês Stéphane

(33)

Mallarmé (1842 – 1898). Para Luiz Ramos, foi na conceituação de Mallarmé sobre o teatro que pela primeira vez se afirma claramente a cisão entre o literário e o cénico e as suas respectivas autonomias, conforme será percebido nas experiências de Gordon Craig, já no século XX. Mallarmé vislumbrava um teatro em "que as dimensões do silêncio e do gesto libertados do sentido ficcional se bastariam autónomos e absolutos" (RAMOS 2009:96). Para ele, é possível um teatro em que tanto a literatura como o espectáculo estão igualmente livres daficção dramática. A Literatura, grande arte que é, se posiciona - na visão de Mallarmé - no lado oposto da espectacularidade, e o que ele possui de performativo não conjuga com o dramático. "Já o espectáculo, por sua vez, também se libertaria do jugo do dramático, passando a ser tecido, em hipótese, só com os corpos e a música, dissociado de sentidos prévios e de qualquer vínculo anterior" (ibidem 97). No teatro imaginado por Mallarmé, a ficção dramática é expulsa e restaria o puramente literário e o puramente espectacular.

1.1.3. Os dois sentidos da dramaturgia, segundo Joseph Danan

No fim do século XIX e início do século XX chegamos ao ponto de viragem do drama e iniciamos o processo de reconhecimento de uma dramaturgia desdramatizada que marcará a segunda metade de novecentos. Mas antes de avançarmos para os aspectos essenciais acerca do nosso tema que ocorreram no século XX, considero fundamental, sobre a noção de Dramaturgia, ressaltar os dois diferentes sentidos apresentados por Joseph Danan no seu ensaio intitulado Qu`est-ce que la dramaturgie? Para Danan, o termo Dramaturgia possui dois sentidos básicos que estão em permanente articulação: o sentido 1 (primeiro) se refere à noção mais tradicional do termo, à função do autor dramático, Dramatiker em alemão, e está “ao lado do texto”. Já o sentido 2 (segundo), na esteira da experiência de Lessing, e posteriormente de Piscator e Brecht, diz respeito à função do Dramaturgista, aquele que não é autor da obra, mas que trabalha intensamente em função dela, estando ligado ao processo de "passagem do texto à cena". Para apresentar o seu estudo Danan usa como linhas de referências duas obras: a Dramaturgia de Hamburgo, já citada, e o texto L`état d`esprit dramaturgique, de Bernard Dort.

(34)

Danan nos lembra que a reflexão de Dort sobre a noção actual do termo dramaturgia apresentada no texto L`état d`esprit dramaturgique é uma baliza para qualquer estudo sobre o tema, e que se a noção que nos traz por um lado é “extremamente vaga”, por outro é “extremamente operativa”. Dort, dois séculos depois de Lessing, actualiza a noção de dramaturgia distinguindo-a tanto da escrita do texto como da própria encenação, uma vez que “o domínio da dramaturgia não é a realização cénica concreta, mas o próprio processo de representação” (DORT 2003:35). Para Dort, a Dramaturgia dos novos tempos é um "estado de espírito" de alcance irrestrito atodos aqueles que estão comprometidos na reflexão e execução do espectáculo. Não está limitada auma única função ou a um acto da encenação. A construção da dramaturgia de um espectáculo, na visão de Dort, compreende os trabalhos de todos os componentes da equipa: atores, encenador, cenógrafo e dramaturgista. Neste sentido, mais clara fica ainda a opção de Dort em não falar em trabalho dramatúrgico, mas sim em “estado de espírito dramatúrgico”. Sua expressão quer traduzir uma qualidade de atenção às potencialidades de um texto quando este é levado para o palco, que todos os que interferem na criação do trabalho devem ter.

Para o nosso hipotético poeta do século XVIII, que acabou de acordar, lembro ao leitor, Dort explicaria esta mudança ocorrida na noção de dramaturgia com as seguintes palavras:

Antigamente, um curso de dramaturgia teria por tema a escrita dramática e por objectivo a composição de peças. Não a sua representação. Mas o centro da gravidade teatral deslocou-se da composição do texto para a sua representação. Por isso, a dramaturgia, hoje, diz menos respeito à escrita da peça – mais exactamente, de um texto, o qual pode não ser uma peça de teatro – do que à sua passagem para a cena, à mutação de um texto em espectáculo: à sua representação, no sentido mais lato do termo. Diz respeito a tudo o que implica essa passagem. (DORT 2003:35)

Sobre a função do Dramaturgista, Dort também faz uma interessante colocação quando aponta esta prática como transitória. “Ela deve ser liquidada no fogo-de-artifício da representação”. Na visão de Dort, o dramaturgista exerce um tipo de prática pedagógica ao fazer com que aqueles que criam no teatro tomem a plena consciência da importância da actividade e tornem-se responsáveis "do ou dos sentidos das suas realizações" (Dort 2003:42). Trata-se de uma tomada de consciência de todo o artista envolvido na realização do espectáculo. Esta tomada de consciência, manifestada e partilhada no processo de ensaio, faz com que seja possível um projecto dramatúrgico

Imagem

Ilustração  1:  Espectáculo:  Orlando.  Actriz:  Sara  Carinhas.  Lisboa/Maio  de  2015
Ilustração 2: Espetáculo: Histórias que não deviam ser contadas.  Atores: Alexandre Dantas e  Cláudia Ventura
Ilustração 3: idem
Ilustração 4: cena do espectáculo A Divina Comédia – Inferno, criação do Teatro O Bando
+3

Referências

Documentos relacionados

condições.. Figura 53: Curva da cinética de adsorção para o corante Laranja Reativo 16. Analisando-se os resultados apresentados na Figura 53, observa-se que o tempo

Esta investigação teve como critério trabalhar, entre os filmes repetidos, quatro referentes a filósofos: Sócrates, sobre o filósofo grego; Agostinho, que trata do filósofo da

Mesmo nos sacrifícios que lhe são oferecidos pelo povo de Israel (relatados no Velho Testamento) como prática de culto, Ele impõe limites, estabelece condições. 21-22)

e especificamente para o caso brasileiro em LAURENTI (1990). Nestas revisões já se abandonava a proposição inicial da substituição das doenças infecciosas e parasitárias pelas

Os danos provocados nas RU, designadamente os estragos por mau uso ou negligência nos quartos, são da responsabilidade do (s) respetivo (s) ocupante (s) e, nas

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

Dessa forma, os níveis de pressão sonora equivalente dos gabinetes dos professores, para o período diurno, para a condição de medição – portas e janelas abertas e equipamentos

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla