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ANÁLISE DAS TEORIAS NORTE-AMERICANAS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL A PARTIR DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL N. 54 COMO ESPÉCIE DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL RELEVANTE NO BRASIL

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Academic year: 2021

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ANÁLISE DAS TEORIAS NORTE-AMERICANAS DE

INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL A PARTIR DA ARGUIÇÃO

DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL N. 54

COMO ESPÉCIE DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL RELEVANTE

NO BRASIL

Clarice Paiva Morais 1 Edimur Ferreira De Faria 2

Resumo: O trabalho tem por objetivo, com base na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, demonstrar o diálogo existente entre a realidade brasileira e a realidade norte-americana, no que tange às teorias que trabalham com a interpretação constitucional. A partir do debate promovido nos Estados Unidos sobres as alterações informais da Constituição daquele país, que data de 1787, originariamente, e seus principais intérpretes, utilizando como exemplo a ADPF n. 54, demonstrar-se-á que o Supremo Tribunal Federal continua sendo o principal intérprete da Constituição brasileira de 1988 e suas decisões aproximam-se da corrente teórica norte-americana que se baseia nas práticas sociais.

Palavras-Chave: Interpretação. Mutações Constitucionais. Aborto. Democracia.

Abstract: The objective of the work is based on the Argument of Fundamental Non-compliance n. 54, to demonstrate the existing dialogue between the Brazilian reality and the North American reality, regarding the theories that work with the constitutional interpretation. Based on the debate held in the United States on the informal amendments to the Constitution of that country, originally dated 1787, and its main interpreters, using as an example ADPF n. 54, it will be shown that the Federal Supreme Court remains the main interpreter of the Brazilian Constitution of 1988 and its decisions are close to the theoretical North American trend that is based on social practices.

Key Words: Interpretation. Constitutional Mutations. Abortion. Democracy.

1 Mestre e Doutoranda em Direito Público pela PUC Minas. Professora e advogada atuante.

claricepaivamorais@yahoo.com.br

2 Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da

Graduação e do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Ex-Diretor da Faculdade Mineira de Direito da mesma Universidade. Ex-Diretor da Escola de Contas e Capacitação do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Ex-presidente do Instituto Mineiro de Direito Administrativo – INDA. edimurfaria@hotmail.com

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178 1 Introdução

O presente artigo tem por objetivo demonstrar, com supedâneo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, que a realidade brasileira, apesar da tradição da civil law, aproxima-se da realidade norte-americana, no que tange às teorias que trabalham com a interpretação constitucional.

Partindo-se daanálise da doutrina norte-americana, que promove rico debate sobre as alterações informais da Constituição dos Estados Unidos de 1787 e seus principais intérpretes, formaliza-se a seguinte problematização: Como ocorrem as mutações constitucionais no Brasil? Quais os principais atores dessas alterações que modificam o sentido original do texto constitucional, transformando-o em norma jurídica, adaptável à realidade social circundante? E, qual (ais) a (s) principal (ais) teoria (s) ou método (s) hermenêutico (s) utilizado (s) pelo (s) Juiz (es) ou Tribunal (ais) brasileiros na interpretação constitucional? Existe semelhança entrea (as) teoria(s) invocadas no debate norte-americano e a (as) brasileira (as)? O objetivo da pesquisa consiste em demonstrar a influência das teorias desenvolvidas nos Estados Unidos sobre a interpretação constitucional dada pelo Supremo Tribunal Federal.

Na busca do objetivo proposto, o artigo vale-se, exemplificativamente, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, importante mutação constitucional que elucida a questão do abortamento no Brasil e tem como pano de fundo a desigualdade de gênero entre homens e mulheres.

O Brasil, criminaliza o aborto, excluindo a ilicitude do fato apenas nos casos de estupro e risco de morte para a gestante (art. 124, 126 a 128, inciso I e II do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro 1940).

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, julgou procedente o pleito, realizando a interpretação conforme a Constituição da República de 1988, dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, admitindo a possibilidade de abortamento de fetos anencefálicos, ampliando as hipóteses de exclusão da ilicitude do fato, que antes se subsumia apenas aos casos de estupro ou risco de morte da gestante.

A escolha da análise da ADPF n. 54 liga-se ao fato de que desde os tempos mais remotos existe forte desigualdade entre homens e mulheres no País, o que deu ensejo a

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movimentos sociais e políticos em busca da verdadeira igualdade material de gênero3 na atualidade4.

O aborto é tema com posição de destaque na sociedade brasileira pois representa um dos assuntos de maior importância entre os movimentos feministas que objetivam ceifar questões ligadas à desigualdade de gênero.

Segundo Daniel Sarmento, anualmente, centenas de mulheres brasileiras realizam o procedimento abortivo de forma clandestina, sem as mínimas condições de higiene e segurança, gerando elevado índice de mortalidade materna no País. (SARMENTO, 2013, p. 4).

Não só os processos de formação histórica da sociedade, mas o contexto político, econômico, midiático e religioso, mantém o status quo de desigualdade de gênero, tornando o tema do abortamento de interesse peculiar no atual cenário social e político. O assunto é permeado por valores morais, religiosos e culturais, arraigados na sociedade brasileira, que mantém suas raízes patriarcalistas.

A Emenda Constitucional n. 95, promulgada em 15 de dezembro de 2016 e a reforma trabalhista (Lei 13.467, de 2017), são importantes exemplos de políticas públicas atuais que

3Cf. Carvalho (2015), o tema foi objeto de discussões acaloradas no Brasil, principalmente pelos grupos

defensores de direitos humanos, desde que foi excluída a questão de gênero do texto do Plano Nacional de Educação em 2014. A bancada evangélica entendeu no Congresso Nacional que o tema é ameaçador ao modelo tradicional de família, deturpando os conceitos de homem e mulher.

E, ainda, conforme Loureiro, Gabriela e Vieira, Helena (2016), o gênero não se confunde com o sexo biológico do indivíduo ou com sua orientação sexual. Gênero é identidade do que é considerado feminino ou masculino e pode variar ao longo do tempo, sendo, portanto, relativo. Já o sexo biológico liga-se ao órgão sexual do corpo humano e a orientação sexual ao tipo de preferência sexual da pessoa, que pode ser por pessoas do mesmo sexo ou diferentes.

Gênero não é característica do indivíduo como um ser natural, mas um processo externo, definido pelas interações sociais, pelos discursos e pela cultura. “Os construcionistas sociais argumentam que não existem essências verdadeiras, mas que a realidade é socialmente construída, e, por isso, os fenômenos são construções sociais, produto de uma cultura particular, língua e instituições”. (TELES, 2010, p. 164). Segundo Ceccarelli, a distinção entre gênero e sexualidade foi introduzida pelo psicanalista Robert Stoller para uma melhor compreensão do transexualismo. “O gênero é a quantidade de masculinidade, ou de feminilidade, que uma pessoa possui. Ainda que existam misturas dos dois nos seres humanos, o homem (male) “normal” possui uma preponderância de masculinidade, e a mulher (female) “normal” uma preponderância de feminilidade. (STOLLER, 1978, p. 61).” (CECCARELLI, 2010, p. 271-272).

4“O estado democrático, em construção, continua a desvalorizar e subestimar as mulheres, fazendo-as

submeter-se à manutenção da discriminação histórica que pesa sobre elas. Mas não é só. Convive-se com forças políticas e religiosas conservadoras que desrespeitam os direitos das mulheres e mantém a mentalidade e práticas que contribuem para a violência de gênero, a violação de direitos e ferem a sua dignidade humana. Portanto, nossos feminismos enfrentam situações de opressão patriarcal tanto nos espaços públicos como privados.” (TELES, Maria Amélia de Almeida. Caminhos Transversais dos Feminismos e dos Movimentos Sociais. In: REND, Silvia Maria Favero; PEDRO, Joana Maria; RIAL, Carmen (Orgs.). Diversidades: Dimensões de gêneros e sexualidade. Ilha de Santa Catarina: Mulheres, 2010. p. 161).

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podem ser invocadas para ilustrar a importância sobre o tema das alterações constitucionais. Entretanto, foge ao escopo dopresente estudo, análise profunda sobre os projetos e políticas do atual governo que contribuem para o arrefecimento da discussão ora proposta.

O Judiciário, principal intérprete da Constituição, principalmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, vem se destacando, ao longo dos anos, entre os três poderes, possibilitando o exercício dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República, atuando no vazio decorrente da omissão do Legislativo e do Executivo.

Nesse contexto, assume papel significativo a análise do debate norte-americano sobre as mudanças constitucionais ao longo da história, demonstrando que o texto constitucional, além de possuir força normativa, é documento vivo e dinâmico, adaptável à realidade social e que deve expressar e reafirmar os verdadeiros anseios de uma nação.

Apesar das diferenças entre o constitucionalismo norte-americano e o brasileiro, pode-se estabelecer diálogo com as principais problematizações elencadas pelos constitucionalistas norte-americanos.

Assim, o presente artigo, num primeiro momento, pauta as discussões de Heather Gerken (2007), Reva B. Siegel e Robert C. Post e Stephen Griffin, que demonstram como tem sido realizadas as alterações da Constituição norte-americana desde a sua promulgação.

Mais adiante, alicerçado em importante texto de Fallon Jr. (1999), serão demonstradas duas principais correntes teóricas que se formaram no país para interpretação constitucional: Os intérpretes que se baseiam no texto, tendo a corrente dos originalistas seus principais expoentes e que muito se aproximam do positivismo jurídico de Hans Kelsen, e os teóricos que se baseiam nas práticas sociais circundantes, destacando-se Ronald Dworkin, entre os integrantes dessa corrente teórica.

Após a exposição dessas teorias, analisar-se-á a ADPF 54, com enfoque no seu julgamento, na importância do movimento feminista para sua procedência e no principal método hermenêutico utilizado pelo Supremo Tribunal Federal para julgar o pedido constante no pleito da Arguição, de interpretação conforme a Constituição dos artigos tipificados no Código Penal que criminalizam o abortamento (art. 124 a 128 do Código Penal).

A metodologia da pesquisa consiste em revisão bibliografia, incluindo doutrina americana e nacional, exame das decisões judiciais sobre o tema, dos dois sistemas jurídicos em estudo e a legislação brasileira

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2A interpretação da Constituição norte-americana à luz da doutrina americana

Em 4 de julho de 1776, após a Declaração de Independência das antigas colônias da Inglaterra na América do Norte, os Estados Unidos tornaram-se independentes. Alguns anos mais tarde, em 1787, a Convenção da Filadélfia aprovou a primeira Constituição jurídica e escrita dos EUA.

O texto aprovado foi submetido a um processo de ratificação pelos Estados norte-americanos e teve como características principais a noção de soberania popular, “We the

people”, sendo a primeira Constituição escrita a consagrar uma República Federativa no

âmbito da evolução política da humanidade, enfatizando um Poder Executivo unipessoal nos dois planos federativos, federal e estadual, o princípio da separação de poderes e a supremacia da lei , “rule of the law”.

Em 1791 houve a incorporação do Bill of rights, com as dez primeiras emendas que destacaram o direito à vida, à propriedade, à liberdade de expressão, à igualdade e à liberdade religiosa. Em 1803, consolida-se a supremacia da Constituição por meio do caso Marbury vs. Madison, que consagrou o controle difuso de constitucionalidade, em que qualquer juiz ou tribunal pode realizar o controle de constitucionalidade dos atos normativos.5

Além da possibilidade de realização do controle difuso de constitucionalidade, os EUA, expressamente, permitiram a realização das mudanças constitucionais, por meio das emendas constitucionais, conforme se depreende do artigo V da Constituição dos EUA :

O Congresso, todas as vezes que dois terços de ambas as Câmaras o julgarem necessário, proporá emendas a esta Constituição, ou, a pedido das legislaturas de dois terços dos diversos Estados, convocará uma convenção para a proposta de emendas que, em ambos os casos, serão válidas para todos os fins e propósitos, como parte desta Constituição, quando ratificadas pelas legislaturas de três quartos dos diversos Estados, ou por três quartos das convenções para tanto reunidas, conforme um ou outro modo de ratificação tenha sido proposto pelo Congresso. Contudo, nenhuma emenda poderá ser feita antes do ano de mil oitocentos e oito sobre a primeira e sobre a quarta cláusulas da nona secção do primeiro artigo, e nenhum Estado poderá ser privado, sem o seu consentimento, da igualdade de sufrágio no Senado.

A Constituição norte-americana, portanto, é rígida e pode sofrer modificação formal, de acordo com o art. V.

5 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito

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Com esses dados históricos sobre a Constituição norte-americana e a prevalência do controle difuso de constitucionalidade dos atos normativos, pergunta-se: Como interpretar as normas constitucionais, adaptando-as à realidade? Diante de uma Constituição rígida que foi originalmente elaborada no século XIX em meio a uma realidade social bem diferente dos dias atuais, qual (ais) a melhor teoria de interpretação das normas constitucionais e qual (ais) atore(s) seriam seus legítimos intérpretes?

Vários autores norte-americanos enfatizam as mutações constitucionais como processo político comum de alteração constitucional6. Dentre eles, destacam-se Heather Gerken (2007), Stephen Griffin(2006) e Häberle.

Segundo José Adércio Leite Sampaio:

As mudanças informais, também chamadas de “mutações”, podem ser apesentadas como práticas, às vezes, fraudulentas, que introduzem alterações significativas no ordenamento constitucional sem mexer em uma vírgula no texto escrito. A história do direito constitucional é repleta de exemplos de costume praeter e contra constitutionem, poderes constitucionais inexistentes e existentes, mas não exercidos, interpretações extensivas das normas constitucionais e construções analógicas de certas conclusões que, embora deixando intacta a dimensão sintática, promovem profundas modificações na expressão semântica e pragmática da linguagem constitucional. Nos EUA, por exemplo, a Constituição, embora tenha sido emendada, desde sua origem, vinte e seis ou vinte e sete vezes (uma delas carece de ratificação plena), as emendas mais expressivas se concentraram em três grandes períodos de sua história (em 1791, com a lista original do Bill of rights, depois da Guerra Civil, com as emendas da Reconstrução, e durante a era progressista, com as emendas XVI a XXI), as transformações do significado ou alcance das normas constitucionais ou o surgimento de outras não escritas são visíveis até ao leitor menos atento. Basta ver, limitando-nos à sua parte orgânica, o desenvolvimento, no século XIX, dos partidos políticos e, no século XX, o estabelecimento das agências reguladoras. ( SAMPAIO, 2013, p. 286-287).

Em texto recente (2007), intitulado “A hidráulica da reforma constitucional: uma

resposta cética a nossa antidemocrática Constituição”, Heather Gerken, professora na Yale

Law School e uma das principais especialistas em Direito Constitucional e Eleitoral do país, analisa a reforma da Constituição, fora da possibilidade do artigo V, ampliando a possibilidade da utilização das Convenções Constitucionais, que, segundo a autora, deve ser o mecanismo mais fácil para as reformas da Constituição norte-americana. Na primeira parte do artigo, a autora explica o “processo informal de alteração constitucional” e, na segunda, apresenta razões pelas quais pode-se valorizar o processo informal, principalmente, sobre o fato de que ele ajuda a garantir a continuidade da contestabilidade do direito constitucional.

6 As mutações constitucionais são mecanismos de alteração da Constituição através da interpretação, sem

alteração do seu texto. Ao longo do artigo será explicitado de forma mais clara o que significam, com respaldo em alguns autores.

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Segundo Gerken (2007), é difícil para os juízes precisar as alterações informais, e, ainda, mais difícil é reconhecer sua existência, uma vez que as mudanças informais ocupam estranho status constitucional, tornando difícil para qualquer pessoa reivindicar o acesso a uma afirmação autêntica de seu significado constitucional.

Essas mudanças informais da Constituição, nada mais são que as mutações constitucionais, ou, nas lições de STRAUSS, um Living Constitution.

Segundo Strauss não é realístico imaginar que todas as mudanças ocorram via alterações no texto constitucional, por meio de emendas. As transformações se deram fundamentalmente na compreensão, pelos seus intérpretes, do conteúdo do texto escrito. Assim, assenta que a Constituição Americana é uma living constitution, uma constituição que evolui, que se altera com o tempo e se adapta a novas circunstâncias, sem que necessariamente tenha sido formalmente emendada (JARDIM, 2012, p. 14).

Nessa perspectiva, a Constituição torna-se organismo vivo, possuindo o Poder Judiciário papel significativo na sua interpretação.

Entretanto, embora se reconheça a importância do papel jurisdicional na interpretação da Constituição, importa observar que a evolução do significado constitucional é mais rica e complexa do que um projeto em que juízes auto-conscientemente adaptam a forma das normas constitucionais às novas circunstâncias, pois o verdadeiro trabalho de alteração é realizado, conforme Gerken (2007), majoritariamente, por atores não judiciais.

Alguns estudiosos, entre os quais, Stephen Griffin (2006) e Häberle enfatizam o papel do povo, especificamente, o papel dos movimentos sociais na mudança do significado constitucional. É importante notar, entretanto, que a autora considera a Constituição “juriscêntrica”, centrando o trabalho na hipótese de que o Tribunal deve ser o intérprete exclusivo da Constituição.

Maior ênfase à denominada Constituição juriscêntrica é sustentada por REVA B. SIEGEL e ROBERT C. POST, em texto intitulado “Protegendo a Constituição do Povo:

Potencial restrições juricêntricas na Seção 5”.

Os autores analisam o papel dos tribunais na interpretação Constitucional a partir da análise de inúmeras leis federais contestadas pela Suprema Corte dos EUA, concebendo o conceito de Constituição juriscêntrica como aquela em que o Poder Judiciário seria seu único guardião, excluindo o Congresso ao editar leis federais.

Tomando por base a análise da decisão do Conselho de Curadores da Universidade de Alabama v. Garrett (2001), em que a Suprema Corte entendeu que o Congresso

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representa ameaça ao Tribunal como o último intérprete do Texto Constitucional, estabelecendo forte oposição entre suas próprias construções legais sobre a Constituição e os entendimentos políticos do Congresso, excluindo o governo de questões constitucionais de interpretação, os autores discutem o diálogo entre o direito e a política.

Por fim, Stephen Griffin, especialista em teoria e história constitucional nos EUA, analisa, em texto intitulado “Constituent Power and Constitutional Change in American

Constitutionalis”, preparado para uma conferência sobre "Poder Constituinte e Modelo

Constitucional" no Instituto Universitário Europeu, em Florença, no mês de março de 2006, o papel da mudança constitucional informal na compreensão do constitucionalismo norte-americano na atualidade. Com arrimo no art. V da Constituição, o autor ressalta a ausência de oportunidade para o exercício do poder constituinte primordial. O poder constituinte só poderia ser exercido por meio das formas especificadas na Constituição e "as próprias pessoas" raramente seriam encontradas no estágio constitucional. Para Griffin (2006), em virtude da improbabilidade de uma segunda convenção constitucional, o único modo prático de o "poder constituinte" de influenciar a Constituição é, na visão convencional, por meio do processo de emenda do art. V ou de interpretação judicial. Com as críticas à visão convencional, amplamente criticada e revisada por estudiosos interessados no processo de mudança constitucional, como sustenta Griffin nova abordagem para a mudança constitucional, envolveria as instituições e o poder das pessoas.

Os textos em análise, demonstram, portanto, a importância das alterações informais da Constituição e o significativo papel dos Tribunais como verdadeiros guardiões de uma Constituição rígida, mas ao mesmo tempo democrática, espelhando os anseios da sociedade, não excluindo o papel dos movimentos sociais e do próprio Congresso que deve manter diálogo constante com o Poder Judiciário, ao elaborar leis e atos normativos.

É o que se pode chamar de sociedade aberta aos intérpretes da Constituição, segundo Häberle.

Haberle observa que, dentro de um conceito mais amplo de hermenêutica, “cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública (...) representam forças produtivas de interpretação (...); eles são intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (...). Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (...). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional. (LENZA, Pedro. 2010, p. 141, apud HÄRBELE, Zeit und Verfassung, p. 14).

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Portanto, após esta análise que conclui serem os Juízes e Tribunais os principais intérpretes da Constituição, ou, pelo menos, os principais responsáveis pela jurisdição constitucional, qual seria a melhor teoria desenvolvida nos Estados Unidos sobre a interpretação constitucional? E, como, utilizar tais considerações sobre o papel dos intérpretes da Constituição no Brasil, partindo-se da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o aborto de fetos anencefálicos na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, e a problemática da desigualdade de gênero entre homens e mulheres, ilustrando as reflexões sobre os avanços das teorias constitucionais norte-americanas contemporâneas?

Richard H. Fallon, Jr., professor da Faculdade de Direito da Universidade Harvard, desde 1982, demonstra sua inquietude, problematizando as diversas formas de interpretações constitucionais pelo Poder Judiciário, existentes no país.

Em artigo intitulado How to Choose a Constitutional Theory (1999), o autor demonstra que constitucionalistas enfrentam número de teorias constitucionais concorrentes que oferecem propostas divergentes e conflitantes, sobre como os juízes devem interpretar e aplicar as normas constitucionais.

A principal subdivisão do autor é entre teorias que se baseiam nos textos constitucionais e teorias que se baseiam nas práticas circundantes. Dentre os teóricos que se baseiam nos textos constitucionais, ressalta-se a corrente dos originalistas que, segundo o autor:

...which calls for the Constitution to be interpreted in accordance whit the “original understanding” of those who wrote and ratified relevant language and generation to which the Constitution was originally addressed. (FALLON JR., 1999, p. 541). Os teóricos que se baseiam nos textos constitucionais, conforme se depreende do texto, são pouco ativos, preservando o jogo democrático por meioda divisão dos poderes das funções legislativa, executiva e judicante.

Diferentemente das teorias baseadas nos textos, os teóricos baseados nas práticas constitucionais circundantes, segundo o autor, acreditam que a fundação da ordem constitucional é inerente aos fatos da prática social.

Os teóricos procuram ver o que é tratado na prática como possuindo o “status” da lei constitucional. Exemplos de abordagens baseadas na prática aparecem em escritos diversos de Ronald Dworkin, Bruce Ackerman, e David Strauss.

In contrast whit text-based approaches, other constitutional theories are predominatly practice-based. For practic-based theories, the foundation of the constitutional order inheres in the facts of social practice. Proceeding from this

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assumption, practice-based theorists look to see what is treated in practice as the Constitution or as prossessing the status os constitutional law.

Examples of practice-based approaches appear in the otherwise diverse writings of Ronaldo Dworkin, Bruce Ackerman, and David Strauss. (FALLON JR., 1999, p. 542-543).

Dworkin compara a decisão constitucional com a autoria de um “romance em cadeia“, (state decisis horizontal) comparando os juízes a romancistas que devem obedecer uma lógica sequencial em suas decisões, como se cada magistrado ao decidir, elaborasse novo capítulo de um livro. Assim os juízes que estivessem julgando lides atuais, deveriam ater-se a decisões passadas e interpretarem-nas de maneira sequencial.7

Para Bruce Ackerman, a compreensão das mudanças não podem ser atribuídas apenas à Constituição escrita. Deve-se reconhecer que a Constituição foi revisada informalmente por alterações não escritas, que conseguiram legitimidade por meio de ratificação informal. David Strauss, segundo Fallon Jr., entende que o direito constitucional desenvolveu-se e deve continuar dedesenvolveu-senvolvendo, à luz da Common law, que permite adaptação dedesenvolveu-sejável à luz da evolução dos valores sociais. Assim, os juízes mais freqüentemente, decidem o caso por meio de forma de precedência.

Folow Jr. (1999), entende que embora os casos claros de teorias baseadas em texto e

baseadas na prática sejam facilmente

distinguíveis, não deve haver divisão categórica entre ambas, ou seja, os teóricos baseados no texto não podem se separar inteiramente de considerações de prática, e os teóricos da prática

reconhecem a importância da Constituição escrita. As teorias baseadas em texto devem reconhecer o significado de várias práticas sociais, para que o texto constitucional seja inteligível.

Ora, diante de tais considerações, é importante dizer que o intérprete, guardião da Constituição, não pode fugir da importância e evolução da filosofia, para o entendimento da hermenêutica. O giro linguístico pragmático hermenêutico do século XX introduziu a pragmática, além da semântica na teoria da linguagem.

7 Dworkin ataca o positivismo e entende o direito como integridade, uma comunidade de princípios. Segundo SAMPAIO (2013): “(...) Dworkin é favorável a um ativismo judicial que se proponha a levar os direitos a sério. Não se trata, porém, de conferir ao juiz demasiada discricionariedade. Ao contrário, cuida-se antes de vinculá-lo àquelas práticas e tradições lidas pelo melhor ângulo.

À coerência com a cultura e tradições jurídico-políticas, chama de “integridade”. Antes de ser uma liberação ao discricionarismo judicial, é um mandado de conduta: “(os juízes) não podem aplicar os princípios morais, não importa o quanto estejam pessoalmente comprometidos com eles, que não possam ser defendidos com consistência em face da história geral das decisões pretéritas da Suprema Corte e da estrutura geral das prática norte-americanas”. (p. 135)

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Assim, não há como se falar em interpretação de normas constitucionais sem se levar em conta o contexto histórico, as práticas circundantes, os valores sociais e princípios de determinada sociedade. Os signos permitiriam apenas a interpretação literal do texto, intensificando a distância entre a decisao e a realidade, o que não permitiria efetividade das decisões judiciais propriamente ditas, sentido o direito homologatório da realidade e não verdadeiro instrumento e emancipação social. 8

Heidegger inaugura um novo sentido para o círculo hermenêutico. A compreensão de um texto é apenas um ato a mais no processo contante de comrpeensão do mundo pelo ser, cuja existência é interpretar. Portanto, a tarefa da hermenêutica não era a de descrever a metodologia da compreensão de um texto literário, artístico ou bíblico, mas a de compreender o processo hermenêutico do ser humano. É compreendendo o mundo e, dentro dele, o texto, que o ser se acha no mundo, se comprende (eis porque se diz que a hermenêutica heideggeriana é uma hermenêutica ontológica da facticidade – do processo existencial do ser). A pré-compreensão seria o resultado da inteligência (trata-se de uma operação intelectual), marcada pela finitude (da própria existência e da capacidade intepectiva) e pela historicidade humanas (o ser humano é determinado pelo seu contexto existencial, sua história de vida), sobre o texto. (SAMPAIO, 2013, p. 427).

Pois bem, os originalistas seriam os que mais se aproximariam do positivismo metodológico de Hans Kelsen no século XX. De acordo com a teoria positivista, os juízes seriam meros intérpretes gramaticais da Constituição, “la bouche de la loi” (a boca da lei). Para preenchimento das lacunas, nos casos concretos, o positivismo jurídico, conforme Hans Kelsen, admite os recursos da analogia, dos princípios gerais de direito, dos costumes, a jurisprudência, entre outros, preservando, portanto o princípio da separação dos poderes. O positivismo em sentido estrito compreende o direito como sendo um conjunto de normas que regulam o uso da forma coativa, havendo predominância das leis em detrimento de outras fontes como os costumes e a jurisprudência. O ordenamento jurídico seria composto apenas

8 Essa nova concepção da linguagem é bem sintetizada por HABERMAS (2007): “Não obstante, os filósofos

nem sempre tiveram grande interesse por esta força da linguagem, capaz de criar uma comunhão. Desde Platão e Aristóteles, eles analisam a linguagem como médium da representação e investigam a forma lógica de proposições por meio dos quais nos referimos a objetos e reproduzimos fatos. Não obstante, a linguagem existe em primeira linha para comunicação, e por ela, qualquer um pode tomar posição perante as pretensões de validade um outro lançando mão de um “sim” ou de um “não”. Noutras palavras, nós necessitamos da linguagem, em primeiro lugar para fins comunicativos; em segundo lugar a utilizamos para fins puramente cognitivos. A linguagem não é o espelho do mundo, uma vez que ela apenas nos franqueia um detetminado acesso a ele. É certo que ao dirigir nossos olhares ao mundo, ela o faz de um certo modo. Nela está inscrito algo que se parece com uma visão de mundo. Felizmente, tal saber preliminar que adquirimos junto com o aprendizado de determinada linguagem não está definido de uma vez por todas. Caso contrário não poderíamos aprender nada de novo com o mundo e nos diálogos sobre ele. Ora, o que vale para as linguagens teóricas das ciências vale também no dia-a-dia: nós temos condições de corrigir o significado de predicado e de conceitos à luz de experiências que fazemos com o seu auxilio.” (HEBERMAS, 2007, p. 22-23).

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por normas jurídicas justapostas e coerentes, integrando um sistema completo em que os juízes não teriam poder para criar normas jurídicas, assumindo posição passivista9.

Segundo Bernanrdo Gonçalves Fernandes (2015), o debate da doutrina norte-americana sobre a interpretação constitucional subdivide-se em interpretativistas e não-interpretativistas.

[...] a corrente conhecida hoje como interpretativistas vem defendendo, ainda, uma posição conservadora – como faz, por exemplo, grandes expoentes como o juiz Robert Bork e o Justice Antonin Scalia – na qual atestam que o intérprete, mas, principalmente, os juízes, ao interpretar a Constituição, devem se limitar a captar o sentido dos preceitos expressos ou, pelo menos, tidos como claramente implícitos (textura semântica). Sendo assim, ao interpretar a Constituição, o leitor tem de ter os olhos voltados apenas para o texto constitucional que se situa à sua frente, tendo como limite máximo de abertra uma busca pela intenção dos fundadores. Alegam que dar um passo para além das molduras do texto seria subverter o princípio do rule of law, desnaturando-o na forma de um direito feito por magistrados (law of judges) Isso se mostraria imperativo no controle judicial dos atos legislativos, que deveria ser limitado à moldura constitucional sob alegação de violação do princípio democrático (fato da lei ou ato legislativo ter sido feito contando com apoio de uma maioria dos membros do órgãos). (GONÇALVES, 2015, p. 195-196)

Ao contrário dos originalistas, as teorias baseadas nas práticas sociais circundantes, permitem ao juiz contextualização e utilização de precedentes, além dos valores da sociedade, como na concepção de Dworkin. Nas lições de Fernandes (2015), trata-se dos não interpretativistas da doutrina norte-americana, que buscam respostas nos valores sociais, ao invés da intenção dos criadores da Constituição.

Mas qual a teoria mais consetânea com a realidade brasileira na atualidade? O Brasil é uma sociedade aberta à interpretação constitucional? Existe contribuição dos movimentos sociais para interpretação da Constituição brasileira? O próximo topico terá como suporte a ADPF n. 54 para exeplificar o contexto brasileiro à luz das teorias de Fallon Jr. e o debate na doutrna norte-americana de interpretação constitucional.

Nos Estados Unidos o caso Roe vs. Wade, julgado em 1973, declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas que considerava crime a prática do aborto, exceto para resguardar a vida da gestante. A Suprema Corte norte-americana, por sete votos a dois, parametrizou os limites que os estados deveriam seguir ao legislarem sobre o

9 Segundo NORBERTO BOBBIO (1995), o positivismo parte da premissa metodológica de que o direito deve

ser estudado enquanto fato social, independentemente das consierações valorativas que se possa fazer a seu respeito. (BOBBIO, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, comp. Nello Morra, trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E Rodrigues, São Paulo, Ícone, 1995, p. 131. RAMOS (2015) destaca algumas características do positivismo jurídico em sua obra, como a coação, a imperatividade e suas fontes. (RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial Parâmetros Dogmáticos. Saraiva: 2 ed. 2015, p. 40-42)

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aborto, definindo que nos primeiros três meses de gestação caberiam à gestante decidir livremente, aconselhada por seu médico, sobre a realização ou não do procedimento. Só a partir do terceiro trimestre é que poderiam os estados proibir a realização do procedimento. (SARMENTO, 2013).

3. A Interpretação da Constituição da República de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal no caso do aborto de fetos anecefálicos e a contribuição da doutrina norte-americana

Diferentemente dos Estados Unidos, o Brasil é um país de tradição da civil law, contempla o controle de constitucionalidade difuso e concentrado e a Constituição da Republica é muito jovem, completa 30 (trinta) anos em 5 de outubro deste ano (2018), rompendo um histórico de autoritarismo anti-democrático.

A revisão formal da Constituição originária é admitida por meio de emendas (constituição rígida) e foi realizada uma revisão que deram ensejo a seis emendas, sendo a primeira em 10.03.1994 e as outras cinco em 7.6.1994. do texto, com eficácia exaurida e aplicabilidade esgotada, 5 anos após sua promulgação, conforme se depreende do art. 60 da CR de 1988 e art. 3 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

As mutações constitucionais, no entanto, podem ser citadas em vários exemplos10, após a promulgação da Constituição de 1988, exteriorizando o caráter dinâmico de alteração informal do poder constituinte originário e demonstrando a importância do Poder Judicante na interpretação das normas jurídicas.

Um importante exemplo de mutação constitucional é a ADPF n. 54 que trata do abortamento no caso de fetos anencefálicos e que bem ilustra a importância das discussões na doutrina norte-americana sobre as alterações e interpretações da Constituição no cenário brasileiro e o papel do Poder Judiciário.11

10 O conceito e mulher honesta disposto nos artigos 215, 216 e 219 do Código Penal sofreu mutação

interpretativa ao longo dos anos, sendo, finalmente revogado pela Lei 11.106 de 2005 pelo legislador ordinário. Segundo LENZA (2010), “Podemos estacar, ainda, as diversas interpretações dadas pelo STF ao instituto da “quarentena de entrada”(art. 93, I), à vedação da progressão de regime prevista na Lei de Crimes Hediondos, à anencefalia, à competência trabalhista para julgar ações de indenização decorrentes deacidentes de trabalho, o não cabimento da prisão civil do depositário infiel (cf. HC 91.361, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.09.2008, DJE de 06.02.2009), etc.” (LENZA, 2010, p. 131).

11 O sociólogo Boaventura de Souza Santos (2017) ao analisar a situação política atual, entende que a crise

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Em 17 de junho de 2004 a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), entidade sindical devidamente representada pelo então advogado Luiz Roberto Barroso, com fundamento nos art. 102, §1º, da CR/88, art. 1º e 3º da Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, interpôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental. O pedido fundamentou-se na declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos penais, art. 124 a 128 do Código Penal brasileiro, lei federal, que conferem interpretação impeditiva à realização da interrupção terapêutica da gravidez no caso de anencefalia12.

O pedido consubstanciou-se na interpretação conforme a Constituição dos preceitos penais com efeito vinculante e eficácia erga omnes, reconhecendo-se à gestante portadora de feto anencefálico o direito subjetivo de submeter-se ao procedimento médico adequado sem necessidade de autorização judicial. Os preceitos fundamentais vulnerados apontados na ação foram os art. 1º, inciso IV (dignidade), 5º, inciso II (legalidade, liberdade, autonomia), 6º,

caput e 196, (saúde), todos da CR/88.

Barroso deixou claro na petição inicial que a questão que se submetia ao Supremo Tribunal Federal não era discussão sobre o direito positivado em matéria de aborto, mas a antecipação terapêutica de fetos anencefálicos e necessidade de pronunciamento do STF sobre a matéria.

intensidade”11 e alerta para a ameaça fascista aberta sob o manto do combate à corrupção que se apresenta para a

manutenção das sociedades democráticas acirrada pela mídia.11 Para o autor, o capitalismo atua ao lado do

colonialismo e do patriarcado, ou seja, “com o racismo e com a violência contra as mulheres”. Conforme SANTOS (2017),: “A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”. E ainda, “o crescimento dos movimentos fascistas é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia” (http://brasileiros.com.br/2017/06/um-cha-com-boaventura). Exemplo de reforma constitucional formal e que representa verdadeiro retrocesso social na atualidade, foi a promulgação em 15 de dezembro de 2016 e de iniciativa do governo Michel Temer, da EC 95 que alterou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigos 106 a 114, estabelecendo limites individualizados para a despesa primária total dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, para o Ministério Público e a Defensoria Pública da União, sem, contudo, estabelecer teto de gastos para os juros sobre a dívida pública.

12Conforme a exordial: “A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por

defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Como é intuitivo, a anencefalia é incompatível com a vida extrauterina, sendo fatal em 100% dos casos. E ainda que haja sobrevida por alguns instantes (em 65% dos casos a morte ocorre dentro do útero), a morte é certa, e o quadro irreversível). (BRASIL, 2012, p. 4-5).

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Nada obstante, o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tornou-se indispensável na matéria, que tem profundo alcance humanitário, para libertá-las de visões idiossincráticas, causadoras de dramático sofrimento às gestantes e de ameaças e obstáculos à atuação dos profissionais da saúde. (BRASIL, 2012, p. 4).

O Ministro relator Marco Aurélio recebeu a petição inicial e indeferiu a participação de amicus curiae, com base no art. 6º, §1ºda Lei n. 9.882/1999 (ADPF), pleiteada pela CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), mas, deferiu a liminar, invocando o Habeas Corpus n. 84.025-6/RJ e determinou o sobrestamento de todos os processos e decisões que aplicassem o Código Penal no caso, autorizando às gestantes a realização do procedimento, após diagnóstico médico.

Realizadas audiências públicas nos dias 26 e 28 de agosto de 2008 e 4 e 16 de setembro do mesmo ano, várias entidades religiosas, sociológicas, além do Conselho Federal de Medicina elucidaram argumentos favoráveis, desfavoráveis, dados concretos e opiniões sobre o procedimento13.

Dentre os argumentos favoráveis à procedência do pedido, destaca-se a elucidação pelo Conselho Federal de Medicinada da judicialização da saúde no Brasil, além dos diagnósticos reais apresentados por mulheres gestantes de fetos anencefálicos que apresentam inúmeros problemas de saúde como hipertensão e diabetes, variações do líquido amniótico, aumento de complicações no parto e pós-parto, com consequências psicológicas severas, sendo oito vezes maior o risco de depressão14.

Ademais, a ultrassonografia realizada pelo SUS é 100% segura, conforme dados apresentados.

No entanto, merecem, do mesmo modo, destaque, os argumentos contrários apresentados nas audiências. O então Deputado Federal Luiz Bassuma elucidou o direito inviolável à vida, ressaltando que o Brasil referendou a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, alcançando a situação dos anencéfalos, impondo à República Federativa do Brasil o dever de assegurar igualdade de oportunidades aos deficientes. E ainda, argumentou o então deputado que os anencéfalos têm substrato neural para desempenho de funções vitais e consciência, o que contraindicaria a interrupção possibilitando a disponibilização dos órgãos do recém-nascido para transplantes.

13 Cf. BRASIL, 2012. 14 Cf. BRASIL, 202, fls. 21.

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Em 27 de abril de 2005, o Plenário do STF realizou audiência e admitiu a ADPF n. 54, mantendo o sobrestamento dos processos em curso, mas revogou a decisão que concedia à gestante o direito de interrupção15.

Ressalte-se que não foi a primeira vez que o STF enfrentou o problema sobre o início e o fim da vida, além do Habeas Corpus acima mencionado.

Em 30 de maio de 2005, o então Procurador Geral da República protocolizou petição questionando a constitucionalidade do art. 5º, da Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005) que permite a utilização de embriões excedentários16, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510/2005.

A ADI n. 3510 foi julgada em maio de 2008 e a maioria dos ministros entendeu pela improcedência do pedido.

Apesar disso, dentre os argumentos referendados pelos ministros que votaram pela procedência do pedido, salienta-se a ideia de que a vida começa com a concepção, utilizou-se a tese concepcionista, impedindo a possibilidade de descartar embriões excedentários, reconhecidos como seres vivos.

Na ADI 3510 enfatizou-se a necessidade de melhor debate sobre o início e fim da vida humana17.

O Supremo Tribunal Federal, no dia 12 de abril de 2012, julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, declarando a inconstitucionalidade da interpretação dos art. 124 a 128, incisos I e II do Código Penal que inclui a prática da interrupção de feto anencefálico. Os ministros Marco Aurélio, relator, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello votaram a favor, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Cesar Peluso. Impedido o Ministro Dias Toffoli.

Dentre as principais argumentações favoráveis à procedência do pedido e que merecem guarida, pela contribuição dada à evolução dos movimentos feministas e à conquista

15Na decisão que manteve parcialmente a liminar deferida foram vencidos os Ministros Marco Aurélio, Carlos

Britto, Celso de Mello, e Sepúlveda Pertence.

16Trata-se de embriões obtidos mediante inseminação artificial homóloga, por meio da técnica FIV (fertilização

in vitro), para pesquisas e terapias com células-tronco.

17Existe projeto de lei, projeto número n. 1.184/2003 que versa sobre reprodução humana assistida e não permite

que sejam feitos embriões humanos em número superior a dois. Atualmente, após três anos de criopreservação e desde que haja consentimento dos genitores é permitido a realização de pesquisas, conforme art. 5 da Lei de Biossegurança e decisão do STF.

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de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, salienta-se a laicidade18 do Estado e o direito à saúde, dignidade, liberdade, autonomia e privacidade da mulher.

Além disso, a ponderação de valores entre a liberdade, dignidade e saúde da mulher e a vida do feto anencefálico19 e os diferentes graus de tutela penal da vida humana ao sancionar de forma diferenciada o aborto, o infanticídio e o homicídio, o que denota gradação, abrandando as penas.

Os movimentos feministas20, o postulado da dignidade da pessoa humana e a proteção das minorias também foram importantes argumentos utilizados pelos Ministros.

Recentemente, nova decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, proferida em 29 de novembro de 2016, entendeu que criminalizar o aborto até o terceiro mês de gravidez fere os direitos fundamentais da mulher. Tal posição, proferida pelo atual Ministro Luiz Roberto Barroso, à época, responsável pela postulação da ADPF n. 54 foi acompanhado pelos ministros Rosa Weber e Edson Fachin.21

Transcreve-se a ementa do voto vista do Ministro Luiz Roberto Barroso, pela sua importância e porque traduz o que se discutiu no presente artigo sobre a problemática do aborto na atualidade.

Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO.

18O primeiro argumento utilizado pelo ministro Marco Aurélio em seu voto foi a laicidade do Estado que teve

início com a promulgação da Constituição republicana de 1891 e consolidou-se com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ao dispor nos artigos art. 5, VI a liberdade religiosa e no artigo 19, inciso I o caráter laico do Estado.

A laicidade do Estado impõe-lhe a impossibilidade de intervir em assuntos religiosos, assim como os dogmas de fé não podem influenciar nos atos estatais, nas decisões sobre direitos fundamentais.

19A Ministra Rosa Weber, ao utilizar os princípios da razoabilidade, proporcionalidade em sentido estrito e

necessidade, destacou em seu voto que: Seja do ponto de vista epistemológico, seja por meio da análise histórica, seja a partir da hermenêutica jurídica, e forte ainda nos direitos reprodutivos da mulher, todos os caminhos levam ao reconhecimento da autonomia da gestante para a escolha, em caso de comprovada anencefalia, entre manter a gestação ou interrompê-la. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2012, fls.48).

20O Ministro Celso de Mello proferiu seu voto com base nos movimentos feministas e no postulado da

dignidade da pessoa humana utilizando as várias teses que não definem o início da vida humana e que a inércia legislativa não pode submeter interesses de grupos minoritários aos interesses da maioria. O feminismo é um movimento plural, ideológico, político, cultural, com posições convergentes e divergentes que muito contribuiu para e emancipação das mulheres e sua inclusão social nos espaços públicos no século XX. Parte da análise histórica e social do patriarcalismo que subjuga as mulheres fomentando a separação entre espaço público e privado. O direito ao voto, à liberdade, à autonomia, os direitos sexuais e reprodutivos foram, sem dúvida, conquistas dos movimentos feministas que incluem a luta de classes, os movimentos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT) e os movimentos raciais.

21Trata-se de pedido de Habeas Corpus n. 124.306 de cinco profissionais da saúde presos em flagrante ao

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INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos.

2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação.

3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.

4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.

8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus (BRASIL, 2016).

Observe-se que, diferentemente da ADPF n. 54, o STF utilizou o termo aborto e não interrupção terapêutica da gravidez e estendeu a possibilidade da realização do procedimento, a fim de proteger os direitos fundamentais à liberdade, integridade e igualdade da mulher, a todos os casos, até o terceiro mês de gestação, não se restringindo às hipóteses de fetos anencefálicos.

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A decisão problematizou a questão da desigualdade de gênero de forma expressa e, pautando-se em outros países democráticos, como Estados Unidos e Alemanha, concluiu que a realização do procedimento, nos três primeiros meses de gestação, não configura crime, prevalecendo os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, sua autonomia e integridade física e psíquica.

A decisão no Brasil articula-se com a decisão proferida nos Estados Unidos e demonstra não só a importância da interpretação que os Juízes e Tribunais atribuem à Consituição e leis de determinado Estado, mas como os movimentos sociais possuem significativa importância para a conformação de tais decisões com os anseios sociais. Ambas as decisões proferidas receberam influência dos movimentos feministas que se articularam ao longo do século XX e intensificaram-se, levantando a bandeira da liberalização do aborto, refletindo-se na legislação de vários países ocidentais22.

É importante notar-se que no Brasil, o principal método hermenêutico utilizado pelo Supremo Tribunal Federal, principal intérprete da Constituição, na atualidade, é o método da ponderação de valores formulado por Robert Alexy23 (2008). Tal método ganhou prestígio na

jurisprudência e doutrina pátria e vem sendo aplicado em vários acórdãos e decisões monocráticas.24

Para SAMPAIO (2013), em análise sobre o STF e o ativismo judicial, após a virada do século, o Tribunal assumiu postura ativista,

[...] uma orientação hermenêutica aberta e sincrética e multidirecional. Fuga da literalidade e do apego ao originalismo, por meio de interpretação principiológica e sem o caráter formalista ou substantivo. O sincretismo não esconde uma preferência

22Segundo Daniel Sarmento (2013), “Em sintonia com os novos valores sociais e revelando uma crescente

sensibilidade diante dos direitos fundamentais das mulheres, legisladores ou Tribunais Constitucionais de incontáveis países como os Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Espanha, Canadá, dentre tantos outros, promoveram significativas modificações em suas ordens jurídicas, legalizando a interrupção voluntária da gravidez, desde que realizada dentro de determinados prazos ou sob determinadas indicações. Neste contexto, a legislação brasileira caracteriza-se hoje como uma das mais severas, rigorosas e anacrônicas de todo o mundo.” (SARMENTO, 2013, p. 5-6).

23 O alemão formula a teoria da argumentação jurídica na década de 1970 e a denominada teoria dos direitos fundamentais ou dos princípios em meandros de 1980. Seu principal objetivo é reabilitar a teoria axiológica dos direitos fundamentais, retomando a distinção de Dworkin (1977) entre princípios e regras.

24 Exemplificativa, o método da ponderação foi utilizado na decisão do Habeas Corpus nº 126.292, na

ADI4.954-AC e 2014 e na ADPF n. 54. A Ministra Ellen Gracie na ADPF n. 54 elaborou sua decisão com base no método da ponderação entre a vida do nascituro e a saúde da mulher. Na doutrina brasileira, cita-se o Professor Humberto Ávila na obra Teoria dos Princípios (2015) e Paulo Bonavides que trabalham com a descrição do método da ponderação. Para SAMPAIO (2013), em análise sobre o STF e o ativismo judicial, após a virada do século, o Tribunal assumiu uma postura ativista, “(...) uma orientação hermenêutica aberta e sincrética e multidirecional. Fuga da literalidade e do apego ao originalismo

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à doutrina alemã da Jurisprudência dos Valores e da adoção de critérios interpretativos como a proporcionalidade e razoabilidade; (p. 195).

Baseado no postulado da proporcionalidade ou na ponderação de valores, Alexy elabora método para argumentar a colisão entre princípios25. Para Alexy (2008, p. 116), existiria conexão entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade. “[...] a

natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade, e essa implica aquela.”.

Assim, a lei da ponderação, originariamente concebida com a finalidade de racionalizar os discursos de aplicação, controlando o subjetivismo judicial no esclarecimento dos princípios, utilizada pela Corte Constitucional alemã, contém três subprincípios basilares que controlam o utilitarismo e o subjetivismo das decisões judiciais: a) a adequação, que significa a correção dos meios para se chegar aos fins, exigindo, pois, idoneidade; b) a necessidade, significando a limitação do Estado à mínima intervenção possível, privilegiando-se privilegiando-sempre a decisão menos gravosa aos cidadãos; c) a proporcionalidade em privilegiando-sentido estrito, que significa a relação custo/benefício da norma examinada, possibilitando ao intérprete realizar autêntica ponderação, em que de um lado, estariam os interesses envolvidos e de outro, os bens jurídicos sacrificados pelos interesses.

A máxima da proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de princípios serem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas. (ALEXY, 2008, p. 118).

No âmbito das diversas correntes descritas por Fallon Jr. (1999) na doutrina norte-americana, o método da ponderação utilizado no Brasil, sem dúvida, se aproxima da corrente liderada pelos não interpretativistas, ou seja, mais vale a intenção, o projeto constitucional embasado nos princípios da justiça, igualdade e liberdade do que, necessariamente, o texto literal do documento.

25 O método da ponderação de valores ou princípios é um método não holístico, calcado num amplo suporte fático dos direitos fundamentais. O direito definitivo, segundo o método da ponderação, não é definido aprioristicamente e internamente, mas a partir de fora, das condições fáticas e jurídicas existentes, após um sopesamento, havendo restrições externas por meio de regras ou princípios conflitantes. Tais restrições externas não tem qualquer influência no conteúdo do direito, que são garantidos prima facie, através de um amplo suporte fático, podendo restringir, diante do caso concreto, seu exercício. O foco, diferentemente do que ocorre nas teorias que defendem um suporte fático restrito dos direitos fundamentais, é na argumentação no momento da fundamentação da intervenção e não no momento da definição daquilo que é protegido e daquilo que caracteriza uma intervenção estatal. Tal método possui argumentação jurídica axiológica.

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O norte-americano Dworkin, principal expoente da corrente que embasa a interpretação nas práticas circundantes, segundo Fallon Jr. (1999), se aproxima de Alexy.

Para os dois autores, os conflitos entre princípios são resolvidos pela importância (o peso argumentativo ou axiológico) que demonstram, na ponderação (segundo Alexy), para resolver o caso concreto. Prevalece o que se revelar mais importante após a argumentação dialética de prós e contras ou depois da operação lógica ou argumentativa de custo e benefício realizada entre todos os princípios envolvidos na questão. (SAMPAIO, 2013, p 366).

A noção dos princípios de Dworkin é fundamental na consideração de casos difíceis (hard cases), uma vez que eles desempenham papel central na solução do caso concreto. Diferentemente das regras, que dependem das “regras de reconhecimento”, sua positivação decorre do senso de adequação desenvolvido numa comunidade jurídica principiológica.26

Importante observar que Fallon Jr. (1999) entende ainda, existem três requisitos mínimos que devem ser observados em qualquer interpretação constitucional, seja ela interpretativista ou não. Em verdade, seriam, segundo o autor, três critérios imprescindíveis para a manutenção de um estado de direito que se baseie na common law , como os EUA, ou na civil law, como o Brasil.

São eles: Defender o Estado de direito e moral, “upholding the rule of law”; promover a democracia política - “promoting political democracy”, e, por fim, promover a justiça substantiva, respeitando os direitos fundamentais “advancing substantive justice by

respecting a morally defensible set os individual rights”.

Esses critérios, no entanto, são extremamente vagos. Segundo Fallon Jr. (1999), embora quase todos os autores concordem que o Estado de direito, a democracia e os direitos individuais são valores importantes, há discordância sobre aplicação desses standarts. Há discordâncias similares sobre o que é democracia, se, por exemplo, a democracia implica que as maiorias populares devem ser capazes de alcançar qualquer resultado que eles desejam, ou se ela reflete o respeito pela igualdade de todos os cidadãos?

É também notório que diferentes concepções de justiça geram diferentes pontos de vista dos direitos se houver, que as pessoas têm. Ex.: Justiça distributiva, na concepção de Aristóteles, seria a distribuição de bens e honrarias conforme o mérito de cada qual, já a justiça comutativa teria função corretiva, equilibrando vantagens e desvantagens entre os homens.

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Apesar das divergências e das diversas teorias existentes, deve-se deixar claro que a utilização moderada de todos esses critérios e teorias seria o caminho da solução mais desejável no contexto atual.

Não se pode deixar de elucidar a importância do texto escrito, que fornece bases mínimas para a interpretação. Tampouco, pode-se desconsiderar as práticas sociais que se refletem na jurisprudência e nos movimentos sociais para a formação de uma “Constituição fora da Constituição”, consolidando as alterações informais do texto escrito, ou seja, as mutações constitucionais.

Nesse contexto, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 54 exemplifica a importância do debate na doutrina norte-americana sobre as mutações constitucionais, demonstrando que a interpretação da Constituição de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal é de suma importância no contexto jurídico brasileiro e conta com a participação do povo, titular do poder constituinte originário segundo o § ,do art. 1º da Constituição da República de 1988.

O debate da doutrina norte-americana que arrefece a concepção de mutações constitucionais, hermenêutica, sociedade aberta à interpretação e as teorias mais consentâneas com verdadeiro estado democrático de direito para efetivação da Constituição República, é de vital importância para reflexões no Brasil, atualmente.

Um país de constituição rígida, que adota o controle de constitucionalidade misto, com tradição da civil law, com realidade bem diferente dos EUA, como o Brasil, precisa trazer reflexões da doutrina alienígena sobre as diferentes maneiras de se interpretar a Constituição e seus atores, para melhor atender aos anseios da sociedade ávida pela concretização dos preceitos fundamentais.

4 Conclusão

O Brasil, apesar de ter tradição na civil law, pode contar com a contribuição da doutrina norte-americana, de tradição common law para avançar no debate sobre a interpretação da Constituição da República de 1988.

Da análise de textos extraídos da doutrina norte-americana, constatou-se que é praticamente uníssona a compreensão de que as modificações da interpretação da Constituição sem alteração formal de seu texto, contribuem para os avanços da sociedade como um todo e o Judiciário, nessa perspectiva, representa o principal ator dessas

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mudanças, refletindo os anseios da Sociedade. (reveja e melhore a conclusão. Ela não pode ter referência de nenhum autor)

Várias são as teorias, diante de tal contexto, que pretendem discutir no cenário dos EUA, qual a melhor forma de se interpretar a Constituição. Fallon Jr (1999) enfatizou as teorias interpretativistas baseadas na literal do texto, próxima ao positivismo jurídico e que tem como principais expoentes os originalistas e os não-interpretativistas que se baseiam nas práticas sociais circundantes e nos valores concebidos por uma sociedade, encontrando guarida na teoria de Dworkin, principalmente.

O Supremo Tribunal Federal na análise da ADPF n. 54, interpreta lei federal em vigor, o Código Penal brasileiro, que criminaliza o aborto, conforme a Constituição da República de 1988 e os direitos à vida, à igualdade, à liberdade e à dignidade da pessoa humana e descriminalizam o aborto realizado por gestantes de fetos anencefálicos. As decisões monocráticas dos ministros contaram, em suas fundamentações com as contribuições dos movimentos feministas, das audiências públicas realizadas no STF e dos debates com vários setores da sociedade.

Além disso, o principal método hermenêutico utilizado para interpretação dos artigos do Código Penal conforme os preceitos normativos constitucionais, foi o método da ponderação de valores de Robert Alexy que parte, assim como Dworkin, da acepção dos princípios como normas diferenciadas das regas, observando-se as exigências da moral e da justiça.

Nesse contexto, assume relevância o debate norte-americano para o cenário brasileiro, que demanda avanços normativos e jurisprudenciais para acabar com as desigualdades sociais e de gênero, a fim de possibilitar ambiente verdadeiramente democrático.

O papel dos Juízes e Tribunais no século XXI é significativo, destacando-se entre os três poderes. Apesar de todas as teorias que envolvem as formas de interpretação do texto constitucional pelos Juízes e Tribunais, enfatizadas por Richard Fallon Jr. (1999), certo é que qualquer que seja a opção do órgão judicante, interpretativista ou não-interpretativista, deve-se buscar deve-sempre predeve-servar o Estado de Direito, a igualdade para o exercício da democracia e os direitos e garantias fundamentais básicos dos cidadãos.

Referências

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