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Processos compartilhados em dança: experiências de criação e aprendizagem

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE DANÇA DA UFBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

LUCAS VALENTIM ROCHA

PROCESSOS COMPARTILHADOS EM DANÇA: experiências

de criação e aprendizagem

SALVADOR

2013

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LUCAS VALENTIM ROCHA

PROCESSOS COMPARTILHADOS EM DANÇA: experiências

de criação e aprendizagem

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Dança, Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Gilsamara Moura.

SALVADOR

2013

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Sistema de Bibliotecas da UFBA

Rocha , Lucas Valentim.

Processos compartilhados em dança: experiências de criação e aprendizagem / Lucas Valentim Rocha. - 2014.

123 f. : il. Inclui anexos.

Orientadora: Profª. Dra. Gilsamara Moura.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2013.

1.Dança. 2. Dança - Aspectos sociais. 3. Aprendizagem . 4. Criatividade. 5. Linguagem corporal. I. Moura, Gilsamara. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título.

CDD - 793.3 CDU - 793.3

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LUCAS VALENTIM ROCHA

PROCESSOS COMPARTILHADOS EM DANÇA: experiências

de criação e aprendizagem

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Dança, Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Dança.

Aprovada em

Banca examinadora

Profa. Dra. Gilsamara Moura – Orientadora Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Leda Maria Muhana Martinez Iannitelli

Doutora em Dance Educatino pela Temple University e Pós-doutora pela Smith College Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Rosa Maria Hércoles

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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Dedico este trabalho aos meus pais, Jairo e Eônia, que continuam acreditando nas minhas escolhas.

Ao meu irmão Gabriel, pelas primeiras noções de cooperação e compartilhamento. Ao Rabelo por sempre estar por perto e ter guiado meus primeiros passos no fazer arte. Ao meu amigo-irmão Thiago Assis, pelo exemplo de dedicação e comprometimento com os processos educacionais.

Ao Will, pelo amor, cuidado e paciência que vem iluminado meus dias.

Aos companheiros de labuta e amigos queridos do Núcleo VAGAPARA - Isabela Silveira, Jorge Oliveira, Lisa Vietra, Márcio Nonato, Olga Lamas e Paula Lice.

E claro, à minha orientadora Gilsamara Moura, pela escuta atenta e respeito as minhas ideias, por se compreender em estado de aprendência e por ter sido corresponsável pela escrita desta dissertação.

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AGRADECIMENTOS

À tia Luíza e ao meu irmão Luís Gomes pelo acolhimento em sua casa, família e coração.

Aos integrantes do Coletivo Quitanda e do Coletivo TeiaMUV que abriram espaço para que eu pudesse adentrar.

À Ledinha, pelo carinho, confiança e segredos compartilhados.

À professora Adriana Bittencourt pelos momentos de aprendizagem em sala e pela estrada a fora.

À professora Christine Greiner pela leitura cuidadosa deste trabalho e pela colaboração preciosa.

Aos integrantes do Grupo de Dança Contemporânea da UFBA, na montagem do espetáculo O QUE FICA – Andréia Oliveira, Ariana Andrade, Fábio Santos, Tarso Caldas, Fernanda Cristal, Viola Luise, Nícolas Fernades, Dayse Cardoso, Leonardo Santos, Taiane Costa e Hugo Pimentel.

À Thulio Guzman e Catarina Veiga, que chegaram depois para agregar maturidade ao trabalho do GDC e que compraram a ideia com o empenho de grandes artistas.

A todos os professores do Programa de Pós-graduação em Dança pelo conhecimento partilhado.

Aos meus colegas de turma pelas conversas que possibilitaram aprofundar as questões deste trabalho.

“E eu tão singular me vi plural” (Lenine)

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“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.” (Clarice Lispector, 1973)

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ROCHA, Lucas Valentim. Processos compartilhados em dança: experiências de criação e aprendizagem. 123fl. 2013. Dissertação – Programa de Pós-graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

RESUMO

Este estudo surge do interesse em discutir questões que perpassam o cotidiano de diversos artistas e professores que vivenciam experiências de criar e aprender em coletivo. Dada as especificidades de tais processos, propomos observar a criação e a aprendizagem enquanto instâncias impossíveis de serem entendidas separadamente. Para o desenvolvimento desta argumentação, observamos três coletivos de artistas residentes na cidade de Salvador/BA: Coletivo Quitanda, Coletivo TeiaMUV e Núcleo VAGAPARA. Outro campo de análise é o processo de criação do espetáculo O QUE FICA, desenvolvido ao longo do ano de 2012, pelo Grupo de Dança Contemporânea da UFBA. É relevante dizer que estaremos aqui partindo de pressupostos evolucionistas para tratar a criação em dança enquanto um processo coevolutivo entre os corpos que dançam e o contexto onde se insere a dança. Desse modo, não é possível pensar a dança separada da vida desses sujeitos que dançam, como que suspensa em um espaço-tempo, pois o corpo que dança, também fala, anda, troca informações e vive outras experiências para além da criação. Fazem parte desta discussão autores com Edgar Morin, em seus estudos sobre a complexidade; Helena Katz e Christine Greiner, ao abordarem os processos coevolutivos entre corpo, mente e ambiente. Quando nos aprofundamos nos aspectos que dizem respeito à criação em coletivo, alguns eixos de observação/análise foram escolhidos, tais como: processo, aprendizagem, autonomia, colaboração, cooperação, autoria e hierarquia. Pesquisadores de diferentes áreas foram postos em relação com o objetivo de discutir tais eixos de observação/análise, dentre os principais: na Educação, Paulo Freire e Hugo Assman, a fim de discutir questões de aprendizagem e autonomia; na área da Comunicação e Semiótica, aproximamo-nos de Cecília Almeida Salles, com sua pesquisa sobre o processo de criação enquanto um gesto inacabado; já os filósofos Peter Pál Pelbart e Roberto Esposito compõem esse trabalho na medida em que sustentam uma discussão política acerca dos processos compartilhamento; por fim, o sociólogo Richard Sennett e a professora de dança Gladistoni Tridapalli nos ajudam a refletir sobre habilidades como cooperação e investigação, respectivamente.

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ROCHA, Lucas Valentim. Shared processes in Dance: creation and learning experiences. 123fl. 2013. Masters Thesis – Post-Graduation Program of Dance, Federal University of Bahia, Salvador, 2013.

ABSTRACT

This study emerges from the interest in discussing matters which pervade the daily practices of different artists and teachers who have collective learning and creative experiences. Given the specificities of such processes, we proposed to observe creation and learning as inseparable instances. To develop that argument, we observed three art collectives from Salvador, Bahia: Coletivo Quitanda, Coletivo TeiaMUV and Núcleo VAGAPARA. Another research field is the creative process of the dance piece O QUE FICA, developed during the year of 2012 by the Contemporary Dance Group, from Federal University of Bahia. It is relevant to state that we will be hereby parting from evolutionist pressupositions, in order to see dance as a co-evolutionist process between dancing bodies and the environment in which dance takes place. In that sense, it is not possible to view dance as separate from the lives of those subjects who move, or suspended on a time-space, because the body that dances, also speaks, walks, exchanges information and has other experiences beyond creation. Authors such as Edgar Morin, when he adresses the issue of complexity, and Helena Katz and Christine Greiner, who approach co-evolutionist process among body, mind and environment, are part of that discussion. When we further analyzed matters related to collective creation, some observational/analytical issues were chosen, such as: process, learning, autonomy, collaboration, cooperation, authorship and hierarchy. Resarchers from different areas were put in relation to the purpose of debating these issues, among these: in Education, Paulo Freire and Hugo Assman, to discuss issues such as autonomy and learning; in Communication and Semiotics, we approached Cecília Almeida Salles, with her research on the creative process as an unfinished gesture; also, philosophers Peter Pál Pelbart and Roberto Esposito take part in this work, because of the political debate they raise about sharing processes; finally, sociologist Richard Sennet and dance professor Gladistoni Tridapalli help us reflect on skills such as cooperation and investigation, respectively.

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LISTA DE SIGLAS

GDC - Grupo de Dança Contemporânea da UFBA UFBA - Universidade Federal da Bahia

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Foto de Ensaio ... 56

Figura 2. Imagem do GDC ... 60

Figura 3. Dayse Cardoso apresentação O QUE FICA – 2012... 63

Figura 4. Tarso Caldas apresentação O QUE FICA – 2012 ... 63

Figura 5. Ariana Andrade apresentação O QUE FICA – 2012 ... 64

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SUMÁRIO

PONTOS DE PARTIDA ... 11

DE ONDE SURGEM OS COMEÇOS ... 11

CAPÍTULO 1 1 O PROCESSO ARTÍSTICO E A CRIAÇÃO COMPARTILHADA: DANÇANDO EM COLETIVO ... 16

1.1 PENSAR-FAZENDO, CRIAR-APRENDENDO: O PROCESSO DE CRIAÇÃO NO GERÚNDIO ... 21

1.2 AUTONOMIA-COLABORATIVA: LIDANDO COM AS DIFERENÇAS. ... 25

1.3 HIERARQUIA E AUTORIA: DANÇANDO ENTRE FRONTEIRAS ... 29

CAPÍTULO 2 2 A CRIAÇÃO ARTÍSTICA PRESSUPÕE ESTADOS DE APRENDÊNCIA ... 38

2.1 A EXPERIÊNCIA DA CRIAÇÃO É APRENDIZAGEM ... 44

2.2 A COOPERAÇÃO COMO HABILIDADE CRIATIVA ... 48

2.3 A INVESTIGAÇÃO COMO PROCEDIMENTO DE CRIAR DANÇAS ... 51

CAPÍTULO III 3 TEORIZANDO A PRÁTICA OU PRATICANDO A TEORIA? - A experiência de criação do Grupo de Dança Contemporânea da UFBA, na montagem do espetáculo O QUE FICA ... 55

3.1 O CONTEXTO ... 56

3.2 ANALISANDO O PROCESSO ... 64

3.3 OBSERVAÇÕES EM PRIMEIRA PESSOA ... 72

(IN)CONCLUSÕES, CONSIDERAÇÕES E APONTAMENTOS ... 76

(IN)CONCLUSÕES ... 76

CONSIDERAÇÕES ... 77

APONTAMENTOS ... 78

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 80

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PONTOS DE PARTIDA

Para que a gente escreve, senão é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.

Eduardo Galeano

DE ONDE SURGEM OS COMEÇOS

Já sei que o começo não é o começo de tudo. Há muito antes do começo... Quando se escolhe entender o mundo a partir de pressupostos evolucionistas, assumimos a responsabilidade de perceber que os processos não são estanques. O que chamamos de começo, e de fim, são marcos que escolhemos para indicar períodos aos quais nos referimos.

Pois bem, começar a escrever uma dissertação não é uma tarefa tão simples, principalmente quando esta escrita emerge a partir de inquietações que surgem de uma prática diária de ser artista. Foi ao viver experiências de trabalhos colaborativos que percebi a necessidade de abordar tais assuntos que se referem aos processos de criar e aprender em grupo. É diante desta reflexão que trago aqui a fala dos professores Jorge Larrosa Bondía e Walter Kohan, no texto de apresentação do livro editado em português O Mestre Ignorante - de Jacques Rancière (2011) -, que integra a coleção Educação: Experiência e Sentido.

A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escritura. Digamos como Foucault, que escrevemos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita libertar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo. Também a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à educação. Educamos para transformar o que sabemos, não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em gestos, nos permita libertar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do que vimos sendo.

De acordo com esse pensamento, é impossível não levar em consideração os possíveis leitores que, por qualquer motivo, venham viver a experiência da leitura deste texto, como parte fundamental desta construção. Pois acrescento a reflexão acima, que é a experiência da leitura e não a verdade do que está escrito que dá sentido ao conhecimento que desejamos gerar.

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A escolha por chamar a introdução desse trabalho de “Pontos de Partida” não é compatível com a ideia de apresentar uma origem ou o início de tudo. Sabemos, como ficará evidente no decorrer desta escrita, que os processos não são lineares e causais. O emaranhado do trânsito de informações que constitui o que somos e o que desejamos falar é complexo e descentralizado. Desse modo, o que buscaremos é identificar o contexto no qual está inserida esta pesquisa, as questões deflagradas e qual a relevância de tratar tal assunto.

O trabalho consiste em uma análise de aspectos inerentes aos processos de criação e aprendizagem compartilhados em dança. No entanto, as questões deflagradas aqui podem servir para pensar outros modos de organização em arte, não se restringem apenas ao campo da Dança, mas abrem espaço para o diálogo com outros campos artísticos.

Processos compartilhados em dança – de como criar pressupõe aprender: assim submeti o anteprojeto de pesquisa ao Programa de Pós-Graduação em Dança pela Universidade Federal da Bahia, imbuído de uma questão muito latente naquele momento, quando se fez necessário defender o pressuposto de que a ação de criar é um processo de produção de conhecimento e que ela logo implica, por isto, em relações de ensino-aprendizagem. Diante de tal afirmação, de que criar pressupõe aprender, surgiram algumas questões: como possibilitar a emergência de processos de criação que se configurem como um ambiente mais propício à emergência de experiências de ensino-aprendizagem? É possível pensar a Dança como construção de conhecimento?

É de se desconfiar de um único caminho possível; afinal, são diversos os entendimentos de dança e de conhecimento. Por isto, aponto alguns indicativos: o exercício da investigação, o reconhecimento da autonomia dos sujeitos e das competências/limitações do coletivo.

Devo dizer que há uma grande diferença entre a maneira como é tratada a criação em dança neste raciocínio, e o modo de pensar ensino de dança no senso comum. É bastante recorrente a associação direta entre a prática do ensino de dança com a reprodução de passos que caracterizam “certas danças”, ou seja, há um modelo a ser seguido. Nesse tipo de abordagem, o corpo é entendido com recipiente imerso em um contexto/modelo restrito de aprendizagem, a cópia e a repetição mecânica. Entretanto, o que se busca aqui é perceber a Dança como um ambiente que possibilita transgredir o modo disciplinar e (des) hierarquizar o conhecimento, afinal, o corpo é indisciplinar.

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escrevi um artigo compartilhado com Thiago Assis1, no qual construímos um diálogo intitulado “O coreógrafo e mediador”. Neste momento, as questões que emergiram dessa conversa me levaram a um novo título, afinal, se aprender pressupõe criar, ensinar pressupõe mediar, neste sentido: Processos compartilhados em dança – sobre criação, mediação e aprendizado.

No entanto, ao atualizar algumas referências bibliográficas e ter contato com a proposta do professor Jorge Larrosa Bondía, eu me vi novamente diante do título da minha pesquisa e, neste momento, me pareceu necessário modificar mais uma vez a fim de provocar outra coerência, dada a característica dinâmica, transitória e processual dos objetos de estudo. Apesar dessas mudanças já se revelam, sem dúvida, algumas das permanências do meu fazer artístico-docente: PROCESSOS COMPARTILHADOS EM DANÇA: experiências de criação e aprendizagem.

O interesse pelos processos criativos em dança como procedimentos cognitivos do corpo me levou a perceber dois modos distintos de configuração do ensino da dança no Brasil: o “ambiente formal” (escolas de ensino médio e fundamental, universidades e cursos técnicos) e o “ambiente informal” (escolas de dança, academias, oficinas ministradas por artistas, grupos e coletivos). No entanto, o tempo previsto para o desenvolvimento do mestrado me fez optar por um recorte mais direcionado ao ambiente da criação em coletivo.

Para a realização desta pesquisa, buscamos nos aproximar de três agrupamentos de artistas da cidade de Salvador/BA: o Núcleo VAGAPARA, o Coletivo TeiaMUV e o Coletivo Quitanda. Outro ambiente que esta pesquisa entrelaça é a experiência de criação do espetáculo O QUE FICA (2012), trabalho que desenvolvi junto ao Grupo de Dança Contemporânea da UFBA.

A hipótese que vem sendo apresentada é de que certos modos de organizar processos de criação em grupo, ao lidar de maneira consciente com os princípios como autonomia e colaboração, podem configurar ambientes mais favoráveis à emergência de estados de aprendência. Entretanto, o problema gerado a partir daí é: como os princípios de autonomia e colaboração, atrelados a práticas de investigação em grupos/coletivos da cidade de Salvador/BA, podem colaborar para que os processos de criação em dança sejam compreendidos enquanto experiências de aprendizagem?

A dissertação aqui apresentada está dividida em três partes que podem ser lidas em sequência, ou a partir do interesse específico do leitor por alguma questão aqui tratada.

1

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O capítulo 1 foi intitulado O PROCESSO ARTÍSTICO E A CRIAÇÃO COMPARTILHADA: dançando em coletivo. No primeiro momento, são apresentados o contexto em que se insere esta pesquisa e os grupos observados no decorrer deste processo. Em seguida, localizamos a Dança como um sistema complexo, aberto e dinâmico, a partir da Teoria Geral dos Sistemas e da Teoria da Complexidade, sob a perspectiva de Edgar Morin.

O que interessa neste momento é perceber a possibilidade de pensar a dança enquanto processo evolutivo que se configura a partir de codeterminações entre corpo, mente e ambiente. Outros autores são solicitados nesta conversa para alimentar nossa discussão, como as professoras Christine Greiner e Helena Katz. Também os artistas envolvidos nos coletivos observados e já citados têm espaço para se colocarem neste momento, a partir de entrevistas onde eles falam da maneira como escolheram se organizar.

Diante de pressupostos evolucionistas, entendendo evolução enquanto transformação, e não progressão, foi que percebemos a necessidade de dar à pesquisa e, consequentemente, ao leitor pistas de por onde desejamos pensar a ideia de processo de criação compartilhado. Aproximamo-nos então da proposta de Cecília Almeida Salles, trazida a nós principalmente no livro Gesto Inacabado: processo de criação artística. Nele, Salles fala, dentre outras coisas, da inexistência de um único ponto de origem e de um resultado final, cristalizado. Pois, como aponta a professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes do Rio Grande do Sul, Elida Tessler, na apresentação da 5ª edição do livro de Salles citado acima: “Um gesto inacabado não finda. Um gesto gesta. Depois do parto, outras formas continuam a reinventar espaços inéditos para os seus contornos em movimento. Por menor que seja o intervalo entre a intenção e a realização, é ali que a criação tem lugar.” (SALLES, 2011, p. 19).

Paulo Freire também se faz presente neste capítulo, principalmente, quando tratamos de autonomia-colaborativa, uma proposta para pensar as relações entre singularidade e coletividade no trabalho de criação compartilhado. Já o músico Stephen Nachmanovitch é referenciado também, pois apresenta questões bastante pertinentes sobre o SER-criativo.

Por fim, talvez a discussão mais complexa deste capítulo diz respeito às relações entre autoria e hierarquia no processo compartilhado. Como os criadores dos coletivos analisados lidam com estas questões e como se configura o poder na contemporaneidade? Estas questões nos levaram a Roberto Esposito, Peter Pál Pelbart e, novamente, a professora Christine Greiner, ao tratarem sobre biopolítica, biopoder, biopotência e imunização.

A principal defesa desta pesquisa, de que criar pressupõe aprender, é desenvolvida no segundo capítulo, o qual traz o título: A CRIAÇÃO ARTÍSTICA PRESSUPÕE ESTADOS DE

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APRENDÊNCIA. O termo aprendência enunciado no título dessa seção trata de um neologismo referenciado por alguns pesquisadores da pedagogia como a francesa Hélène Trocmé-Fabre e o brasileiro Hugo Assman. Vem apontar para a necessidade de se pensar a experiência de aprendizagem como um estado de estar-em-processo-de-aprender que é indissociável da dinâmica do vivo.

A partir de tal enunciado, o que nos interessa é pensar que a experiência de criação é aprendizagem, tendo em vista a necessidade de estabelecer relações, criar conexões, desenvolver sentidos motores etc. Entretanto, por estarmos nos referindo a processos compartilhados em dança, algumas questões são possíveis de serem observadas:

1. A necessidade de entender a cópia e repetição como partes do processo de aprender, e não o único modo;

2. A noção de conhecimento adquirido na experiência (indutivo), questão apontada pelo professor Jorge Larrosa Bondía;

3. A cooperação enquanto pressuposto para o desenvolvimento de trabalhos coletivos, sob a perspectiva do livro JUNTOS: os rituais, os prazeres e a política da cooperação, de Richard Sennett;

4. A investigação enquanto procedimento de criação e aprendizagem na dança.

O terceiro e último capítulo será o momento de compartilharmos a experiência da criação do espetáculo O QUE FICA (2012), trabalho realizado junto ao Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federal da Bahia e que possibilitou o aprofundamento teórico-prático das questões trazidas nos capítulos anteriores. O capítulo traz uma pergunta no título com o objetivo de provocar o leitor acerca dessa relação por vezes separada, tratada com hierarquia de valores, os quais precisam ser entendidos enquanto instâncias de um mesmo: TEORIZANDO A PRÁTICA OU PRATICANDO A TEORIA? - a experiência de criação do Grupo de Dança contemporânea da UFBA na montagem do espetáculo O QUE FICA.

Chegando ao final desta análise, serão apresentadas as (in)conclusões, dado o caráter transitório e inacabado deste processo de criação e aprendizagem que se deu na escrita desta dissertação. Desse modo, não se pretende chegar a apontamentos que se organizem enquanto aspectos conclusivos, o que se configuram são novas questões que se abrem a outras perspectivas de desenvolvimento de novos trabalhos.

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CAPÍTULO 1

1 O PROCESSO ARTÍSTICO E A CRIAÇÃO COMPARTILHADA: DANÇANDO EM COLETIVO

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. (RANCIÈRE, 2009, p. 15).

Ao começar este texto, vem de imediato a imagem de tantas pessoas que compartilharam e virão a compartilhar as ideias e, por vezes, a escrita mesmo desta conversa que acabamos de iniciar. São artistas, professores, pesquisadores, integrantes do Núcleo VAGAPARA2, do Coletivo Quitanda3, do Coletivo TeiaMUV4 e você que, a partir de agora, será referido enquanto “o leitor”.

Seria demais falar que já estamos criando? E ainda, é possível dizer que estamos compartilhando criações? Talvez sim, se partirmos do pressuposto de que somos responsáveis, juntos, pelos rumos que tomarão este diálogo e pelas coerências que iremos construir. Por outro lado, apesar de reconhecer que tanto o movimento criativo quanto as ações de compartilhamento fazem parte dos processos vitais de qualquer ser humano, estaremos, aqui, buscando provocar reflexões acerca dos processos de criação compartilhados em dança. O que não impede que o leitor possa relacionar as ideias postas nesta argumentação com outros processos criativos que porventura não se constituam a partir de tais princípios (dança e compartilhamento).

O desenvolvimento desta pesquisa, apesar de não se configurar enquanto estudos de casos, parte da observação e análise dos questionários feitos com três coletivos de artistas da cidade de Salvador/BA: Núcleo VAGAPARA, Coletivo Quitanda e Coletivo TeiaMUV (Vide Anexo A) e da experiência vivida em 2012 pelos integrantes do Grupo de Dança Contemporânea (GDC)5, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na montagem do

2

Criado em 2007, inicialmente composto por 08 artistas com diferentes formações (teatro, dança, letras) residentes em Salvador/BA.

3

Criado em 2007 por estudantes da graduação em Dança pela UFBA, inicialmente configurado enquanto Grupo Quitanda, atualmente adota o enunciado de Coletivo.

4

Surgido entre 2007/2008, este coletivo é formado apenas por mulheres e desenvolve trabalhos na rua que relacionam dança com outras linguagens artísticas.

5

Criado em 1965, o Grupo de Dança Contemporânea da UFBA é um projeto institucional da Escola de Dança, de caráter extensionista, formado por alunos da Graduação em Dança que têm, como princípio, desenvolver

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espetáculo “O QUE FICA”6 (Vide Anexo B). Neste sentido, foram realizadas entrevistas com os artistas envolvidos a fim de possibilitar a fala deles no decorrer de nossa conversa. Alguns recortes foram propostos para organização do texto; entretanto, seguem em anexo as respostas na íntegra.

Ao começarmos a tecer nossas relações, proponho pensarmos a Dança enquanto um sistema complexo, aberto e dinâmico. Para isso, se faz necessário falar sobre algumas especificidades apresentadas pelo pesquisador Edgar Morin, um dos referenciais selecionados por nós, e considerado um dos principais teóricos da complexidade.

A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) foi inicialmente desenvolvida pelo biólogo Von Bertalanffy a partir dos anos de 1950. Desde então, expandiu-se por diversas áreas do conhecimento se tornando, de certo modo, uma teoria transdisciplinar – no sentido de ir além das disciplinas. A TGS apresenta a ideia de que “num certo sentido, toda realidade conhecida, desde o átomo até a galáxia, passando pela molécula, a célula, o organismo e a sociedade, pode ser concebida como sistema, isto é, associação combinatória de elementos diferentes.” (MORIN, 2011, p. 19). Assim, a noção de sistema trata de unidades complexas, ou seja, “[...] um “todo” que não pode se reduzir à “soma” de suas partes constitutivas” (MORIN, 2011, p. 20).

Já a ideia de sistema aberto refere-se a certos sistemas que emergem em constantes trocas entre matéria/energia e o exterior (ambiente). Neste sentido, como nos fala o próprio Edgar Morin (2011): “[...] o sistema só pode ser compreendido se nele incluirmos o meio ambiente, em que lhe é, ao mesmo tempo, íntimo e estranho e o integra ao mesmo tempo exterior a ele”.

Outro ponto que não devemos deixar de mencionar é que a ideia de complexidade não está sendo tratada aqui enquanto sinônimo de algo complicado. Tal pensamento seria um equívoco. Entretanto, o leitor poderá se perguntar, o que é então a complexidade?

À primeira vista, é um fenômeno quantitativo, a extrema quantidade de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades. [...] Mas a complexidade não compreende apenas quantidades de unidades e interações que desafiam nossas possibilidades de cálculo: ela compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. A complexidade num certo ponto sempre tem relação com o acaso. (MORIN, 2011, p. 34-35).

metodologias investigativas na área artística, aliada ao saber acadêmico. Neste sentido, cumpre a função de formação, ou seja, é um fórum de experiências profissionais com a perspectiva artística.

6

Não é possível me furtar à necessidade de dizer ao leitor que faço parte do Núcleo VAGAPARA, desde sua formação em 2007, e que o espetáculo “O QUE FICA” (2012), do GDC, foi dirigido por mim, em decorrência desta pesquisa.

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Após essa breve explicação, voltemos ao nosso enunciado feito anteriormente: é possível pensar a Dança como um sistema (associação combinatória de elementos diferentes), aberto e dinâmico, pois sua emergência depende de trocas constantes entre matéria/energia e o meio ambiente em que ela (a dança) se configura. E complexo, porque não se pode dizer que as partes que constituem a Dança (corpos que dançam, movimento, dinâmica, tempo, espaço etc.) sejam, propriamente, a Dança.

Em se tratando de criação compartilhada, o que parece bastante interessante é a possibilidade de que, através de um agir sistêmico, possamos relacionar o todo e as partes por meio de um princípio dialógico, articulando o que antes era dual: ordem/desordem, corpo/mente, sujeito/objeto, etc.

Ao falarmos de dialogias, não poderíamos nos ausentar de uma discussão bastante relevante para nós da área da Dança, que foi muito alimentada pelas Ciências Cognitivas e que tem, na Teoria do Corpomídia, organizada pelas pesquisadoras Christine Greiner e Helena Katz, um papel de grande destaque – a não separação entre corpo, mente e ambiente. Outra questão chave para entendermos o que Greiner e Katz nos apresentam é compreendermos que corpo não se finda nos limites geográficos de sua pele. Ele se expande em sua relação com o ambiente e com outros corpos. Há codeterminações nesse processo, ou seja, o corpo se apronta a partir de trocas constantes com o ambiente, assim também, o ambiente não é algo dado a priori que está à espera de um observador.

As relações entre o corpo e o ambiente se dão por processos coevolutivos que produzem uma rede de predisposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais. Embora corpo e ambiente estejam envolvidos em fluxos permanentes de informação, há uma taxa de preservação que garante a unidade e a sobrevivência dos organismos e de cada ser vivo em meio à transformação constante que caracteriza os sistemas vivos. Mas o que importa ressaltar é a implicação do corpo no ambiente, que cancela a possibilidade do mundo como um objeto aguardando um observador. (GREINER, 2005, p. 130).

Algumas informações do mundo são selecionadas para se organizar na forma de corpo – processo sempre condicionado pelo entendimento de que o corpo não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo coevolutivo de trocas com ambiente. (GREINER, 2005, p. 130).

O que parece importante frisar é que esta é uma teoria da comunicação, mas que justamente por tratar de certas informações que se organizam enquanto corpo tornou-se bastante apreciada e discutida no ambiente das artes do corpo. Aliás, sobre isto é relevante dizer que as professoras e pesquisadoras Greiner e Katz integram o corpo docente do

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Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (COS) da PUC/SP, dentro da linha de pesquisa Cultura e Ambientes Midiáticos e atuam como docentes na Graduação em Comunicação das Artes do Corpo.

Seguindo este raciocínio, evidencia-se que o corpo que dança e, consequentemente, a criação de um trabalho artístico, não se encontram fora da constância de serem modificados e modificantes dentro do circuito complexo: sociedade-cultura-arte-contexto.

Uma das hipóteses que apresentamos neste capítulo é que tais questões tiveram certo impacto na produção e nos modos de organização de artistas contemporâneos da cidade de Salvador/BA, como, por exemplo, o Núcleo VAGAPARA, o Coletivo Quitanda e o Coletivo TeiaMUV. Esses artistas têm em comum a escolha por trabalhar de maneira colaborativa e se organizarem a partir de lideranças situacionais, provocando fissuras em conceitos como hierarquia e autoria (dos quais iremos tratar a seguir).

Outra confluência é o fato de que os integrantes desses agrupamentos, de algum modo, se relacionaram com a produção de arte e de conhecimento dentro da Universidade Federal da Bahia, como explicam os próprios integrantes (vide Anexo A).

Isaura Tupiniquim, do Coletivo TeiaMUV:

O coletivo teve vários momentos, mas iniciamos os trabalhos a partir de um encontro institucional, nesse caso, a Universidade (UFBA) com o projeto de extensão ACC (Atividade Curricular em Comunidade). Nosso encontro se deu então em 2007, no subprojeto da Escola de Dança chamado Dançando nas Estações, no qual a proposta era criar ações de dança nas estações de transbordo de ônibus de Salvador.

Aldren Lincoln, do Quitanda:

O Quitanda surgiu em 2007 na UFBA, com um “grupo” de artistas desejosos por “fazer-dizer” arte na cidade de Salvador e atravessar a Dança com outras linguagens artísticas (Teatro, Fotografia, Audiovisual etc.).

No entanto, não queremos dizer, de maneira nenhuma, que passar pela Universidade gera, necessariamente, artistas mais autônomos e que buscam trabalhar em parceria. É evidente que a experiência, fomentada e proposta pelo ambiente universitário, favorece inaugurações promissoras em termos de pesquisa e, em relação à Dança, trata-se mesmo de um espaço privilegiado de potência estimuladora para tais fins colaborativos e cooperativos. Mesmo assim, consideramos que seja um movimento muito maior e menos localizado, como

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nos fala a pesquisadora Rosa Hércoles7, no artigo que escreveu para o livro de comemoração dos 20 anos do Grupo Musicanoar:

Nos anos 70, o termo Grupo foi adotado como forma de diferenciação dos modos de produção exercidos pelas Companhias de Dança (oficiais ou extraoficiais). Este outro tipo de enunciado, embora possuidor da premissa de distinção, ainda apresentava a figura de seu fundador como mentor do grupo. Somente a partir dos anos 80, os grupos surgidos pela associação de artistas com interesses comuns, de fato estabeleceram relações produtivas colaborativas, eliminando a dualidade entre aquele que decide daquele que executa. (HÉRCOLES, 2013, p. 15).

O interessante é perceber que, naquele momento, a mudança de enunciado surgiu a fim de provocar certa diferenciação de outro modelo existente (o de Companhia). A partir dos anos 80, o surgimento de mais grupos interessados em trabalhar de maneira “horizontalizada”, no sentido de não sustentar o lugar de um único diretor gerou, de certo modo, a necessidade de se rever conceitualmente a ideia de Grupo. É importante dizer que esse movimento não se restringiu apenas à área da Dança: também é possível percebê-lo em outras formas de produções artísticas, como o teatro, as artes visuais, a performance, dentre outros. Mas, como dizíamos, é possivelmente neste período que começaram a surgir, os chamados Núcleos e Coletivos.

Um traço marcante nessa maneira de organização é que esses artistas estão propondo, de maneira cada vez mais radical, articulações temporárias, inversões de papéis, parcerias e descentralização de poderes, impondo a necessidade ainda mais urgente de lidar com a complexidade das relações na atualidade. Assim nos fala Isabela Silveira, ao se referir ao surgimento do Núcleo VAGAPARA em 2007:

Originalmente composto por oito pessoas (Nilson Rocha se afasta das criações do coletivo ainda em 2008), tem como premissa o desejo daqueles artistas manterem contato com os demais, permitindo o atravessamento de afetos e influências mútuas tanto com os integrantes quanto com outros criadores de fora do núcleo. A liberdade de criação, proposição, ação e parcerias, é ilimitada e não formatada, e cada um conduz seus processos da maneira que lhe parecer mais urgente e/ou agradável no momento. O fato de não ser necessário que os processos criativos sejam compartilhados com todos os integrantes (ainda que isso seja bem-vindo e ocorra quase sempre), permite que haja uma pluralidade de propostas e ritmos de trabalho acontecendo concomitantemente no VAGAPARA. Apenas as ações de gestão financeira e de comunicação são mais ou menos centralizadas, ainda

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Rosa Maria Hércoles é Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Atualmente, é professora e coordenadora do Curso de Comunicação das Artes do Corpo (Graduação), da PUC/SP.

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que tal centro de concentração das tarefas e informações seja flutuante e vise sempre respeitar os quereres individuais e as demandas do momento.

Entretanto, é relevante dizer que os paradigmas coabitam. Ou seja, o surgimento do paradigma complexo não anula a existência do paradigma cartesiano. O que nos faz atentar para o fato de que nos processos de criação, assim como na vida, estamos lidando, a todo tempo, com transformação e avaliação dos procedimentos escolhidos, bem como dos resultados e efeitos de tais escolhas. Assim, os próprios coletivos apontam, por exemplo, momentos de transição acerca dessas relações, como nos fala Giltanei Amorim:

O Coletivo Quitanda surgiu a partir de uma aproximação de artistas estudantes da Escola de Dança da UFBA, em 2007. Neste período se configurava como grupo, desenvolvendo projetos propostos por mim. Após seis anos de atividades o Quitanda passou por várias transformações, seja no que confere ao modo de se organizar, seja pelo numero de integrantes, seja pelas concepções e atuações artísticas e políticas.

É justamente essa condição processual do movimento criativo, evidenciado na fala acima, que iremos discutir a seguir. Com o objetivo de aproximar o leitor de uma perspectiva evolucionista de processo, iremos tratar do tecido de relações, imbricamentos e compartilhamentos evidenciados na criação em dança, buscando entendê-la como emergência circunstancial e temporária de/em processo.

1.1 PENSAR-FAZENDO, CRIAR-APRENDENDO: O PROCESSO DE CRIAÇÃO NO GERÚNDIO

O saber de hoje não é necessariamente o de ontem nem tampouco o de amanhã. O saber tem historicidade. Nunca é, está sempre sendo. (FREIRE, 2012, p. 29).

[...] Pois o ato criador se realiza na ação. (SALLES, 2011, p. 29).

[...] cada momento é um ponto de partida e não uma chegada. (SALLES, 2011, p. 47).

Diante de pressupostos evolucionistas, o que propomos aqui é entender que estamos todos imersos em um processo evolutivo, do qual não há como fugir. Desse modo, viver implica em se modificar. No entanto, precisa ficar claro que evolução, neste caso, tem a ver com transformação e não com progressão. Ou seja, nós – seres vivos – estamos em

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constantes mudanças a fim de nos adaptarmos às condições do corpo e do ambiente. Isso não significa, necessariamente, que estamos melhorando, mas que estamos nos modificando.

O aposto que apresentamos no subtítulo deste capítulo de pensar o processo de criação no gerúndio se dá pelo fato de que esta conjugação verbal propõe um movimento no espaço-tempo em que está sendo empregado, provocando uma ideia de continuidade. Pois trata de algo que se encontra em processo de aprontamento no instante em que é produzido o enunciado. Isto, para nós, da área da Dança, parece fazer bastante sentido. Desse modo, quando expresso: você está me lendo, não denota que você já terminou de ler o que está aqui escrito, nem tampouco é uma garantia de que virá a ler futuramente estas páginas. Portanto, só faz sentido falar no gerúndio - você está me lendo - se você continua a me ler e assim, seguimos a nossa conversa.

A partir desta reflexão, seria possível dizer que o processo de criar se dá na experiência da criação. Buscamos, assim, pensar acerca do momento em que a dança se organiza enquanto dança do/no corpo e se dá a ver enquanto hipótese, testagem e encenação, pois: “Não há uma teoria fechada e pronta, anterior ao fazer. A ação da mão do artista vai revelando esse projeto em construção. As tendências poéticas vão se definindo ao longo do percurso: são princípios em estado de construção e transformação.” (SALLES, 2011, p. 47).

Esta característica processual da criação que aqui observamos sob o viés do gerúndio é algo identificado por diversos artistas e pesquisadores. Dentre eles, poderíamos citar Cecília Almeida Salles, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Ela aborda a criação sob o ponto de vista de um gesto inacabado8. Salles desenvolve sua argumentação a partir da aproximação com a Semiótica9, o que implica pensar a criação enquanto um processo semiótico. A professora Katz (2010) nos esclarece, de maneira bastante sucinta e precisa, algumas noções que permeiam tal pensamento e que estão relacionadas com a proposta de Salles:

Entendendo-se a semiose como a relação entre os três termos necessários, suficientes e irredutíveis que, segundo Peirce, constituem o seu processo (signo é o primeiro termo, objeto é o segundo, e o terceiro é interpretante), pode-se inferir que essa relação se faz com um padrão irredutivelmente triádico dos termos nela conectados. A relação triádica entre signo, objeto e interpretante é irredutível no sentido de que não pode ser decomposta em

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Ver o livro Gesto Inacabado: processo de criação artística. 5 ed. São Paulo: Intermeios, 2011. 9

Salles e Katz se referem à teoria do filósofo semioticista Charles Sanders Peirce e relacionam a outras redes. São questões bastante complexas, em geral, tratadas na área da comunicação; não temos a pretensão aqui de aprofundar nem de adentrar em suas especificidades, por enquanto nos restringimos ao olhar das duas pesquisadoras.

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outra relação mais simples. Por ser processual, envolve tempo, o que faz da semiose um processo irreversível. (KATZ, 2010, p. 162).

Ao discutir a criação como processo, Salles (2011) nos alerta que não há signos isolados; afinal, um sistema de representação só pode ser compreendido em seu contexto de processo triádico (objeto/signo/interpretante). Além disso, a principal função do signo é, segundo a própria autora, interpretar e ser interpretado simultaneamente. Por este motivo, não existe a possibilidade de se pensar um signo sem conexão com outros signos. Trata-se sempre de uma cadeia contínua e infinita onde um signo está ligado a outro signo, que origina, inevitavelmente, outro signo e assim por diante. Um gesto inacabado.

A constatação de que o gesto criador é sempre inacabado é, portanto, estreitamente ligada à conceituação da criação como processo sígnico (e, portanto, contínuo), que olha para todos os objetos de nosso interesse – seja um romance, uma instalação, um artigo científico, uma matéria jornalística ou uma peça publicitária, - como uma possível versão daquilo que poderia vir a ser ainda modificado. Relativiza-se, assim, a noção de conclusão como uma forma única possível. Qualquer momento do processo é simultaneamente gerado e gerador. (SALLES, 2011, p.165).

Diante da proposta lançada por Salles, convido o leitor a investirmos na provocação de algumas fissuras acerca de ideias como origem e produto:

É possível e necessário identificar o momento de início de uma criação? A obra que se dá a ver é resultado final do processo criativo?

Quando pensamos sobre uma ideia que motiva a formulação de uma dança, já estamos criando ou dançando?

Quando fazemos dança, estamos pensando?

Ao criar movimentos configurados enquanto dança nos deparamos com experiências de aprendizagens?

O processo criativo no senso comum percorre um caminho linear que vai do caos (ideias iniciais) à ordem formalizada (cena)?

Estas são perguntas que parecem fazer parte do cotidiano de diversos artistas e pesquisadores não só da dança, mas que se mostram interessados nos processos de criação do corpo-em-arte. Justamente por estar lidando com um fenômeno complexo, simultâneo e não linear, seria arriscado demais apresentar ao leitor respostas definitivas para tais questionamentos. Assim, estaremos apontando algumas pistas que talvez sirvam para alimentar as ideias e criações de outros artistas e pesquisadores.

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Uma visão simplificadora do gesto criador mostra um percurso que tem origem em um insight arrebatador, que se concretiza ao longo do processo criativo. Um caminho do caos inicial para a ordem que a obra oferece. Esta perspectiva contém uma linearidade que incomoda aqueles que convivem com a recursividade e a simultaneidade desse fenômeno. Seria uma forma limitadora de olhar para esse trajeto. Uma representação que não é fiel à complexidade do percurso. (SALLES, 2011, p. 29)

Entretanto, sabemos que compartilhar esta proposta implica em compreender o estado de constante busca, inerente à própria concepção de processo (do latim, proceder - avançar, mover adiante). Sobre isso nos fala o educador Paulo Freire:

Não apenas estamos sendo e temos sido seres inacabados, mas nos tornamos capazes de nos saber inacabados, tanto quanto nos foi possível saber que poderíamos saber melhor o que já sabíamos ou produzir o novo saber. E é exatamente porque nos tornamos capazes de nos saber inacabados que se abre para nós a possibilidade de nos inserir numa permanente busca. (FREIRE, 2012, p. 123).

Diante das questões de inacabamento do processo criador, vejamos o que nos fala novamente Salles:

O percurso criativo observado sob o ponto de vista de sua continuidade coloca os gestos criadores em uma cadeia de relações, formando uma rede de operações estreitamente ligadas. O ato criador aparece, desse modo, como um processo inferencial, na medida em que toda ação que dá forma ao sistema ou aos “mundos” novos, está relacionada a outras ações e tem igual relevância, ao se pensar a rede como um todo. Todo movimento está atado a outros e cada um ganha significado, quando nexos são estabelecidos. (SALLES, 2011, p. 94).

A natureza inferencial do processo significa a destruição do ideal de começo e fim absolutos. Para essa discussão a ênfase recai com maior força na impossibilidade de se determinar um primeiro elo da cadeia ; no entanto a constatação de que o ato criador é uma cadeia implica, necessariamente, em igual indeterminação de últimos elos. (SALLES, 2011, p. 94).

Essa visão do movimento criador, como uma complexa rede de inferências, contrapõe-se à criação como uma inexplicável revelação sem história, ou seja, uma descoberta espontânea (como uma geração espontânea) sem passado e futuro. (SALLES, 2011, p. 94).

Desse modo, assumimos diante do leitor a incongruência em identificar de maneira precisa o ponto de partida e de finalização de um processo criativo. Reconhecemos que há sim, escolhas circunstanciais, nas quais cabe ao artista decidir começar a configurar uma obra

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e determinar o momento de compartilhá-la com o público; no entanto, isso não garante o ponto de inicial, nem tampouco a capacidade de permanência do movimento criador.

Ainda sobre este aspecto cabe falar sobre o problema da dicotomia, bastante recorrente nos enunciados acerca de processos de criação, estamos falando da distinção entre processo e produto, ou, processo e resultado como partes isoladas que se organizam de maneira sequencial, ou seja, primeiro eu vivo o processo e depois eu configuro o resultado. Este entendimento cristaliza a noção de processo e produto não possibilitando compreender a coexistência desses dois aspectos da criação, visto que o próprio resultado é configuração circunstancial e temporária.

Se retornarmos novamente ao subcapítulo que estamos desenvolvendo (pensar-fazendo, criar-aprendendo: o processo de criação no gerúndio), iremos perceber que há uma aproximação, e diria mais, uma imbricação entre as palavras pensar-fazer e criar-aprender (explicitada através do hífen). Tal escolha não é aleatória, busca provocar reflexões que apontam o pensamento enquanto ação do corpo, o que implica pensar que: “o desenvolvimento contínuo da obra deixa claro que não há ordenação cronológica entre pensamento e ação: o pensamento se dá na ação, toda ação contém pensamento.” (SALLES, 2011, p. 59).

Da mesma maneira, aponta para a ação criadora enquanto experiência de aprendizagem. Estas questões serão mais bem desenvolvidas no capítulo 2, onde abordaremos tais conceitos e apresentaremos algumas experiências de artistas dos Coletivos envolvidos nesta pesquisa.

Após configurarmos esse tecido de informações, a fim de localizar melhor o que seriam processos de criação, iremos agora adentrar um pouco mais em aspectos relevantes ao modo como alguns artistas vêm lidando com a criação compartilhada.

1.2 AUTONOMIA-COLABORATIVA: LIDANDO COM AS DIFERENÇAS.

Se a História fosse um tempo de determinismo em que cada presente fosse necessariamente o futuro esperado ontem, como o futuro de amanhã será o que já se sabe que será, não teríamos como falar em opção, ruptura e decisão. (FREIRE, 2012, p. 64).

As sociedades não são, estão sendo o que delas fazemos na História, como

tempo de possibilidade. Daí a nossa responsabilidade ética por estarmos no

mundo, com o mundo e com os outros. (FREIRE, 2012, p. 64).

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A definição, aqui tomada por autonomia, se refere à faculdade de governar-se por si, tomar conta de suas escolhas (do grego: autos, próprio + nomos, lei). No entanto, ao perceber/entender a condição humana de ser biológico-cultural, ou seja, que o que somos é sempre resultado parcial e circunstancial decorrente da coevolução entre corpo e ambiente, é possível dizer que o exercício de governar-se implica em reconhecer o outro (alteridade) e os contextos onde se inserem os sujeitos.

A noção de autonomia humana é complexa, já que ela depende das condições culturais e sociais. Para sermos nós mesmos é preciso aprender uma linguagem, uma cultura, um saber, e é preciso que essa própria cultura seja bastante variada para que possamos escolher no estoque das ideias existentes e refletir de maneira autônoma. (MORIN, 2011, p.66)

Tal procedimento é corpóreo e opera constantemente estabelecendo trocas entre o ambiente/contexto e os corpos/sujeitos, ou seja, trata de uma relação que se configura sempre em processo, nunca fixa ou estática. O que parece interessante perceber é que a conexão entre esses processos é tão complexa que faz de nós, seres humanos, simultaneamente, autônomos e dependentes. Pois: “[...] essa autonomia se alimenta de dependência; nós dependemos de uma educação, de uma linguagem, de uma cultura, de uma sociedade, dependemos claro de um cérebro, ele mesmo produto de um programa genético, e dependemos de nossos genes.” (MORIN, 2011, p. 66).

Com que frequência, temos a impressão de ser livres sem sermos. Mas ao mesmo tempo, somos capazes de liberdade, como somos capazes de examinar hipóteses de conduta, de fazer escolhas, de tomar decisões. (MORIN, 2011, p.67).

Já dissemos que não estamos lidando aqui com sujeitos isolados, como se fosse possível uma suspensão do espaço-tempo em que estamos inseridos. O que somos é um trânsito entre o eu, os outros e do meio-ambiente. O poeta mato-grossense Manoel de Barros nos fala de maneira bastante sutil e poética sobre esta relação de contaminações e trocas: “Os outros: o melhor de mim sou eles”.

Em processos de criação compartilhados, essas questões ficam bastante evidentes, por exemplo, no tecido de negociações e escolhas estabelecidas por/entre os sujeitos-aprendentes-criadores envolvidos. Neste sentido, visualizamos uma trama onde coabitam os sujeitos criadores (com suas histórias, desejos, anseios e limitações), o contexto da criação (social, político, ético, estético) e algo determinante nesse processo: o objetivo de produzir arte. Este

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desejo, compartilhado, de criar (em nosso caso) danças pressupõe um ambiente de negociações constantes, onde emergem as singularidades diante de uma ação coletiva. Poderíamos dizer, neste caso, que um processo colaborativo se auto-organiza em complexidade? Talvez sim, pois como nos atenta o próprio Morin (2011), complexidade é o que é tecido junto.

Vejamos o que nos relata Márcio Nonato, integrante do VAGAPARA:

Pra mim o como nos organizamos, é uma exercício de sempre está entendendo e flexibilizando a ideia de “vários”. Claro, que às vezes nos pegamos repetindo umas hierarquias e alguns formatos, mas exercitamos falar e tentar logo outra coisa. O VAGAPARA é um aglomerado de pessoas que escolheram estar em fluxo, nós tentamos nos ouvir. Ouvir num sentido amplo, naquele que nos deixa poder entrar em discussões e discordar... É daí, que vem nossa autonomia, que é uma palavra meio incorporada a nossa relação. Autonomia que está nas obras e nas nossas relações. Partimos sempre sem querer “nivelar” por nenhum lugar.

Esta fala trazida pelo artista nos remete a pluralidade do coletivo, uma reflexão importante de:

[...] uma coisa óbvia que, no entanto, nunca é demais de reafirmar: personalidades diferentes têm estilos criativos diferentes. Não existe uma única ideia de criatividade capaz de descrevê-la em sua totalidade. Portanto, como em qualquer relacionamento, quando colaboramos com outros construímos um ser maior, uma criatividade mais versátil. (NACHMANOVITCH, 1993, p. 92).

Deste modo, falar sobre autonomia e colaboração em processos de criação implica em reconhecer que “[...] são necessários dois para se conhecer a unidade.” (BATESON apud NACHMANOVITCH, 1993, p. 91). Tal questão perpassa muitas áreas do conhecimento e toca em conceitos como identidade e unidualidade10. Para nossa conversa, o que se torna importante perceber é que:

O reconhecimento de uma identidade, por exemplo, já traz consigo o reconhecimento da impureza dos processos, não é apenas o que superficialmente parece a diferença em relação ao outro. É isso e simultaneamente a contaminação com os outros domínios. O que a caracteriza como identidade é um modo singular de organização, mas não a coisa em si, o corpo em si, os ambientes ou sujeitos em si mesmos. (GREINER, 2005, p. 87).

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Sem perder de vista que estamos lidando com processos criativos, e que essas contaminações, em se tratando de trabalhos compartilhados, são sempre bem vindas, vejamos o que nos falam alguns criadores acerca do modo como eles vêm lidando com as singularidades e as diferenças, na tentativa de provocar a emergência de discursos coletivos:

Jorge Oliveira, integrante do Núcleo VAGAPARA desde sua formação, atenta para a necessidade do respeito mútuo:

Vivo na tentativa de uma boa relação entre essas palavras (singularidade e coletividade), dentro e fora do núcleo. Acho que o respeito é que ajuda a deixar a relação entre as partes conviver em certa harmonia. Pensar que existe um “Outro” com o qual me relaciono e estou em contato constante, colabora para o meu exercício de entender o que é singular e o que é coletivo. Dar espaço para o outro se mostrar é dar chance de compreender o que pode haver de diferenças e semelhanças em mim comigo e em mim com os outros.

Já Isabela Silveira, também do Núcleo VAGAPARA, relata como as funções desempenhadas no coletivo são circunstanciais, mas que dependem também de certa predisposição, desejo ou condições dos sujeitos de desempenharem determinadas atividades:

[...] as funções que desempenhamos são sempre rotativas, ainda que naturalmente nem todos desempenhem tudo por não deterem o perfil adequado.

A singularidade aqui é ponto de partida e chegada. E é o afeto coletivo e as trocas criativas que constroem o trajeto entre esses dois pontos (singular e plural) desafiadoramente tão distantes.

Giltanei Amorim, do Coletivo Quitanda, por sua vez, explica um pouco mais sobre como eles se organizam em relação às funções que cada criador pretende desenvolver em novos processos:

A ideia de um novo processo criativo geralmente é oriunda de um ou mais integrantes. Essa ideia é compartilhada entre os demais, que colaboram com novas ideias para complexificar os processos. Neste estágio, cada integrante define como pretende participar criativamente do processo: intérprete, iluminador, fotógrafo, sonoplasta, artista educador (visto que sempre estamos articulando nossas atividades a processos de formação de jovens), coordenador, diretor, etc. São definidoras desta etapa as habilidades de cada integrante e os interesses do projeto, entendendo que o projeto é o norteador de nossas ações.

O Quitanda não tem, portanto, uma estrutura organizacional fixa, e permite uma plasticidade a depender do que cada novo projeto solicita. Sempre ao

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iniciar uma nova ideia, nos reunimos para definir como vamos operar, e entendemos que esta definição prévia pode ser alterada a depender das necessidades do projeto e dos integrantes.

Tais questões, apresentadas pelos artistas dos coletivos analisados nesta pesquisa, parecem não ser tão localizadas. Ao lidar com a música, Stephen Nachmanovitch refere-se de maneira muito cuidadosa a um aspecto delicado da criação compartilhada que parece fazer sentido para nós da área da Dança:

Trata-se da disciplina mútua de consideração, da consciência do outro, de saber ouvir o outro e da disposição para a sutileza. Confiar no outro envolve enormes riscos, o que nos leva à tarefa ainda mais desafiadora de aprender a confiar em nós mesmos. Desistir de algum controle em favor de outra pessoa nos ensina a desistir de algum controle em favor do inconsciente. (NACHMANOVITCH, 1993, p. 93).

Contudo, sabemos que o processo de colaboração artística e o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos envolvidos não são uma especificidade dos trabalhos de núcleos e coletivos; em verdade, essas características perpassam outros modos de organização em grupo, em diferentes graus, como nos lembra o próprio autor:

A colaboração artística pode percorrer toda uma escala, desde uma hierarquia totalmente estruturada como, por exemplo, a de uma equipe de cinema que trabalha a partir de um roteiro, até um grupo de artistas performáticos que, não tendo um diretor, partilham a responsabilidade por tudo o que acontece no espetáculo. (NACHMANOVITCH, 1993, p. 94).

Desta maneira, a escolha por tratar de autonomia e colaboração a partir de um olhar acerca de certos tipos de organização em dança, que se assemelham mais ao segundo exemplo dado por Nachmanovitch na citação acima, nos leva a questionar conceitos como autoria e hierarquia a partir de uma percepção acerca do modo como se configura o poder. Assim, convido o leitor a seguirmos o próximo passo que talvez seja o mais desafiador, não só para os artistas que lidam diariamente com estes conceitos, mas, sobretudo, para os que desejarem seguir comigo na evolução desta nossa criação do agora.

1.3 HIERARQUIA E AUTORIA: DANÇANDO ENTRE FRONTEIRAS

Não poderíamos nos furtar ao compromisso de analisar com atenção alguns aspectos que tornam o exercício da coletividade algo bastante complicado. Seria, de certa maneira,

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ingenuidade afirmar apenas as características que enfatizam o trabalho compartilhado sobre a perspectiva do lado bom de estar-junto. Na verdade, existem diversos desafios que tornam tal escolha um caminho difícil e que deflagram a necessidade de tomadas de posições e reelaborações constantes, por parte dos sujeitos do processo. Justamente nesse ambiente de negociações é que parecem ser mais evidentes as relações de poder, o que torna as noções de hierarquia e autoria questões constantes que permeiam o trabalho de diversos artistas desafiando a escolha de desenvolverem trabalhos compartilhados.

Etimologicamente, é possível perceber que tais palavras estão intimamente correlacionadas com perspectivas de superioridade e autoridade. Vejamos: o substantivo feminino “hierarquia” é derivado do latim hierarchia, que significa divisão dos anjos por ordem de importância e do grego hierarkhia, que trata do comando de um alto sacerdote, esta palavra surge a partir da junção entre as expressões ta hiera (ritos sagrados), mais arkhein (comando, domínio); já a ideia de autoria vem do Latim auctor, que se refere àquele que aumenta - o mestre, o líder.

Diante desta breve apresentação acerca dos significados dessas duas palavras, apresentamos uma das questões que esta discussão sugere e incita:

Como as noções de autoria e hierarquia na contemporaneidade afetam as relações de compartilhamento no ambiente de criação em dança?

Para responder tal pergunta, é necessário que nos esforcemos para mapear alguns acordos de ordem conceitual que poderão nos ajudar no entendimento sobre a concepção de poder - de como ele se encontra atrelado às nossas escolhas e faz parte integrante de nossas vidas. Trata-se de questões bastante complexas, o que exige, de nossa parte, certa atenção para não perdermos de vista o nosso objetivo de discutir os modos de organização em certos grupos, núcleos e coletivos. Por isso, sugiro que voltemos, sempre que for necessário, à pergunta enunciada acima:

Como as noções de autoria e hierarquia na contemporaneidade afetam as relações de compartilhamento no ambiente de criação em dança?

Um risco que corremos sempre que delimitamos o olhar sobre algum fenômeno é de suspendê-lo do contexto em que se encontra inserido. Para que isso não ocorra, pois estamos falando de complexidade e de processo de criação, é preciso perceber o sujeito que dança enquanto um ser vivo que estabelece, simultaneamente, diversas relações com o mundo à sua volta. Desse modo, um dos pressupostos dessa discussão que vem sendo levantada até aqui, e pelas páginas que seguem, é de que todas as escolhas feitas em processo são afirmações de

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posicionamentos políticos em relação ao ambiente social, cultural, geográfico e assim por diante.

A questão que ocorre é que sesses “seres dançantes” não se encontram isolados do mundo. Então, as relações de poder estabelecidas no mundo também perpassam os processos de criação e, consequentemente, a escolha de trabalhar em coletivo, borrando, de certo modo, as noções de hierarquia e autoria, o que demonstra um posicionamento político em resposta ao poder arbitrário e soberano – muitas vezes exercido pelo diretor do grupo. Entretanto, reconhecer como esses poderes se manifestam em nossas relações parece não ser tão simples assim. Vejamos o que nos fala o filósofo, professor da PUC/SP, Peter Pál Pelbart:

[...] o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, a pôs para trabalhar. Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido, colonizado; quando não diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, com todos os riscos de simplificação: as ciências, o capital, o Estado, a mídia etc. (PELBART, 2007, p. 57).

[...] o poder já não se exerce desde fora, desde cima, mas sim como que por dentro, ele pilota nossa vitalidade social de cabo a rabo. (PELBART, 2007, p. 58).

Esta relação entre poder e vida, segundo o próprio autor, aponta duas direções principais que caracterizam estágio do capitalismo em que estamos. Para tratá-las, iremos permear o ambiente ainda bastante enigmático da biopolítica – parafraseando Roberto Esposito, filósofo italiano contemporâneo.

O assunto da confluência entre política e biologia no discurso do século XX não só se instalou como centro da discussão filosófica, como abriu uma fase completamente nova da reflexão contemporânea. Michael Foucault, embora não tenha sido o primeiro a utilizar o conceito da biopolítica “[...] repropôs e requalificou o conceito, todo o quadrante da filosofia política se viu profundamente modificado.” (ESPOSITO, 2010, p. 29).

O que está em causa, em definitivo, já não é a distribuição do poder ou a sua subordinação à lei, o tipo de regime ou o consenso que recolhe – a dialética que até uma certa fase temos denominado com os termos de liberdade, democracia, ou, pelo contrário, com os de tirania, imposição, domínio: mas qualquer coisa que a precede porque diz repeito a sua matéria-prima. Por detrás das declarações e dos silêncios, as dinâmicas da modernidade, a análise de Foucault redescobre no bios a força concreta da qual estas procedem e para a qual se dirigem. (ESPOSITO, 2010, p. 51).

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Voltemos, assim, a falar sobre as duas direções às quais se refere o Pelbart (2007). A primeira tem a ver com o modo como os mecanismos pelos quais se exercem os poderes na atualidade se configuram. Segundo ele, tais mecanismos “[...] são anônimos e se encontram esparramados, flexíveis. O próprio poder se tornou pós-moderno. Isto é, ondulante, acentrado (sem centro) em rede, reticulado, molecular.” (PELBART, 2007, p. 57).

Se imaginávamos, algumas décadas atrás, ter espaços preservados da inteligência direta dos poderes, por exemplo, o corpo, o inconsciente, ou a natureza, e tínhamos a ilusão de preservar nessas esferas alguma autonomia em relação aos poderes, hoje parece integralmente submetida a esses mecanismos de modulação da existência. (PELBART, 2007, p. 57-58).

Assim, esta característica do poder na contemporaneidade se configura como um poder sobre a vida. Por outro lado, e esta é a segunda direção a qual se refere o autor, aquilo que parecia, de certo modo, submetido e controlado (a vida) revela simultaneamente uma potência indomável. “[...] ao poder sobre a vida, responde a potência da vida. Mas esse responder não significa uma reação, já que o que se vai constatando cada vez mais é que essa potência de vida já estava lá e por toda parte, desde o início.” (PELBART, 2007, p. 58). Por este motivo, o biopoder e a biopotência, ou seja, o poder sobre a vida e as potências da vida, “São como o avesso um do outro. Se você seguir em linha reta você chega ao outro e vice-versa” (PELBART, 2007, p. 58).

Ora, mas o que esta discussão tem a ver com a nossa questão? Precisamente porque estamos falando de dança - dos processos de criar e aprender danças - e não há como pensar dança, sem falar de corpo. Um corpo que por si só já é plural e que lida, a todo o momento, com outros corpos situados em um contexto. E “tanto o biopoder como a biopotência passam, necessariamente, e hoje mais do que nunca, pelo corpo.” (PELBART, 2007, p. 58). Pois, “já mal sabemos onde está o poder e onde estamos nós. O que ele nos dita e o que nós dele queremos. Nós próprios nos encarregamos de administrar nosso controle, e o próprio desejo já se vê inteiramente capturado.” (PELBART, 2007, p. 58).

Também podemos perceber que as mudanças de nomenclaturas referidas no tópico anterior (companhia, grupo, núcleo e coletivo) estão diretamente relacionadas às questões de hierarquia e autoria, visto que muitas vezes essas são as molas propulsoras de tais mudanças, como é possível perceber na fala de Aldren Lincoln, integrante do Coletivo Quitanda:

As relações no Quitanda sempre foram tranquilas, até a hierarquia tomar forma e força, atrapalhando o desenvolvimento dos trabalhos e provocando

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uma transformação radical. Deixamos de ser um grupo e entendemos que desejávamos agir como um coletivo. O que foi maravilhoso.

Jorge Oliveira, integrante do Núcleo VAGAPARA, nos conta como esses artistas lidam com tais questões:

Assumimos a ideia de Núcleo e carregamos esse rótulo pelo fato de procurar entender outros caminhos de produção artístico-cultural diferente dos modelos existentes de gerenciamento de grupo, ou seja, vivemos no exercício de entender possibilidades outras, que não têm semelhança com os modelos já prontos. Fui criado dentro de um sistema onde a hierarquia prevalece sendo entendida como a solução para a realização do trabalho, seja ele qual for, e experienciar outros modos de organização é um desafio complexo. Trabalhamos com ideias em exercício constante, tentando colocá-las em “práticas palpáveis” do modo como pensamos.

Entretanto, o que percebemos é que tais mudanças não eliminam a existência de funções, nem tampouco a assinatura que os trabalhos carregam. Ou seja, a questão não é que desaparece a relação de autoria e de hierarquia a partir da escolha por se organizar em coletivo ao invés de grupo, nem tampouco é diminuído o poder. O que ocorre é uma descentralização desse poder, que se configura ondulante e em rede, temporário e provisório. A questão está no modo como os sujeitos envolvidos no processo escolhem lidar com estes aspectos.

Vejamos o que nos fala Giltanei Amorim acerca da mesma experiência à qual se referiu Aldren Lincoln:

Entendemos que “as hierarquias” são necessárias para coordenar eixos de atuação (vídeo, luz, criação, sonoplastia, produção, etc), por exemplo: se um integrante fica responsável pela iluminação de uma obra ele tem um poder hierárquico diante dos outros integrantes, visto que ele se incumbe de coordenar tudo o que é referente à luz e de conceber conceitualmente essa luz, sobretudo porque sua habilidade nessa área de atuação lhe permite maior autonomia para lidar com as decisões tomadas, mas ou outros integrantes podem interferir na sua concepção dando ideias, questionando as escolhas feitas, discordando... As hierarquias não se definem, portanto, como um poder absoluto para decisões tomadas isoladamente, mas como centralizadoras de informações sob um eixo de atuação, informações que mesmo centralizadas são compartilhadas, discutidas e avaliadas com os demais. Não existe uma única hierarquia, existem diversas hierarquias, cada hierarquia definida pela área de atuação ou, melhor explicando, pela habilidade deste que está no comando de uma função dentro do projeto. Mas vale atentar que o comando é visto como uma potência organizacional, como uma liderança específica numa área de atuação específica, mas que este comando pode encontrar divergências e o detentor desta hierarquia está “aberto” para reavaliar suas decisões a partir das impressões dos demais.

Referências

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