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DEIXANDO AS LUVAS DE AMIANTO: A TRAJETÓRIA POÉTICA E FEMINISTA DE ADRIENNE RICH

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DEIXANDO AS LUVAS DE AMIANTO: A TRAJETÓRIA POÉTICA E FEMINISTA DE ADRIENNE RICH

Lucianne Christina Fasolo Normândia Moreira Resumo: Este trabalho é parte de minha pesquisa de doutorado e traça brevemente a trajetória literária da poeta estadunidense Adrienne Rich (1929-2012) a partir da análise de alguns poemas. A autora é reconhecidamente uma das mais importantes vozes da literatura estadunidense do século XX, e deixou uma vasta obra poética além de crítica literária e feminista. Segundo Riley (2016), é possível observar três fases distintas em sua poesia. A primeira delas, de 1950 a 1971, compreende a transição do formalismo para o uso do verso livre e desenvolvimento de temáticas relacionadas à posição social das mulheres. A segunda, de 1973 a 1985, é marcada pela maior presença de temáticas ligadas a experiências de mulheres e sexualidade. Já a última, de 1986 a 2012, é definida por um crescente número de reflexões acerca de práticas governamentais, conflitos sociais e o poder da linguagem. É interessante observar que a trajetória poética de Adrienne Rich, desde o uso do formalismo até o seu abandono completo, acompanha o desenvolvimento da perspectiva feminista da poeta e a sua busca por expressão. Como a própria Rich afirmou, as convenções de linguagem poética do formalismo serviram inicialmente como "luvas de amianto", que possibilitaram que ela se estabelecesse como poeta e abordasse temáticas que não poderia sendo uma mulher na década de 1950. Busco então delinear a evolução na produção poética de Adrienne Rich em cada fase e demonstrar a influência de sua posição como feminista sobre sua poesia.

Palavras-chave: Adrienne Rich. poesia. literatura de autoria feminina. feminismo Introdução

A discussão sobre a autoria feminina tem acompanhado a crítica feminista ao longo de décadas, e já acumula uma série de análises que enriqueceram nosso entendimento acerca do que significou através dos tempos e ainda significa ser uma mulher que escreve. Não é algo novo observar que a literatura produzida por mulheres tem sido historicamente considerada uma arte menor, superficial e demasiadamente emotiva; esse estigma infelizmente persiste ainda hoje, embora talvez em menor medida. Sabemos que a própria definição do que é um texto literário “de qualidade” não é neutra, tampouco objetiva – uma vez que invariavelmente está impregnada de julgamentos de valor.

Obras são reconhecidas e adicionadas ao cânone em detrimento de outras a partir de concepções sobre o que é a natureza do ato da escrita, o que pode ser considerado uma obra literária e que indivíduos (e grupos sociais) possuem a prerrogativa de produzir arte. Como afirmou Russ (1997), é importante que questionemos para que fim e para quem determinadas obras são classificadas “boas”.

Por um lado, a categorização da literatura de autoria feminina permite o estudo de uma tradição literária diversa e múltipla que difere da tradição “universal” e canônica em termos de especificidades formais e temáticas, bem como do desenvolvimento da relação com a linguagem em si e convenções de gêneros literários. Por outro lado, existe o risco de relegar a expressão variada e

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multifacetada de mulheres a um terreno limitante destinado às obras que, como uma simples secreção biológica, são produzidas naturalmente por seres do gênero feminino. A isto junta-se a questão de que a leitura e análise de uma obra a partir da discussão da figura da autora empírica pode facilmente levar a conclusões equivocadas, baseadas em supostos aspectos biográficos e que não levam em consideração o trabalho estético presente na obra em questão.

Tendo isso em mente, o que busco desenvolver neste trabalho não é meramente uma análise de cunho biográfico. Não desejo fazer uma leitura da obra poética da poeta estadunidense Adrienne Rich a partir de sua vida. Porém, entendo, como Dewey (2005), que uma obra de arte não é produzida em um vácuo de ideais abstratos; pelo contrário, a experiência estética possui íntima relação com as experiências do indivíduo vividas em sociedade. Meu objetivo, ao analisar a longa trajetória poética de Rich, é demonstrar como é possível traçar um paralelo entre a mudança nas suas escolhas estéticas – do formalismo ao verso livre, do distanciamento do eu poético à busca por comunicação com o público – e o seu desenvolvimento como feminista e ensaísta.

Buscando A Linguagem Comum: Sobre Adrienne Rich

Adrienne Cecile Rich nasceu em 1929 em Baltimore, no estado de Maryland nos Estados Unidos. Rich foi incentivada a prosseguir com seus estudos; formou-se na Radcliffe University em 1951 e publicou seu primeiro livro de poesia no mesmo ano, com boa recepção crítica. Em 1953, Rich se casou com Alfred Conrad, um professor de economia em Harvard, com quem teve três filhos ainda jovem. O seu casamento gradualmente se deteriorou. Em 1970 Rich deixou o marido, que cometeu suicídio alguns meses depois. Passados seis anos, a poeta se uniu à escritora Michelle Cliff, com quem permaneceu até o final de sua vida. Seu livro de poemas publicado em 1973, Diving Into The Wreck, ganhou o prêmio National Book Award. Rich o dividiu com as finalistas Audre Lorde e Alice Walker, afirmando em seu discurso que o aceitava em nome de todas as mulheres. Muitos outros prêmios e publicações se seguiram. Devido a complicações de artrite reumatóide, Adrienne Rich veio a falecer em 2012.

Adrienne Rich deixou uma obra vasta compreendendo dezesseis livros de poesia e sete volumes de crítica literária e social. No seu país de origem ela é reconhecida como um dos nomes mais importantes da poesia do século XX. A Change of World, seu primeiro livro, teve uma boa recepção crítica e ganhou um prêmio importante, mas continha poemas bastante tradicionais em termos formais e temáticos, como afirma Farias (2017). Além disso, fica evidente o distanciamento do eu lírico. O segundo livro de Rich, The Diamond Cutters, de 1955, é também bastante tradicional.

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É apenas a partir do terceiro livro, Snapshots Of A Daughter-in-law, de 1963, que as maiores mudanças de estilo e temática são percebidas. Como observa Farias (2017), muitos poemas aparecem não metrificados e mais fragmentados, e o eu lírico parece estar menos preocupado em seguir a voz e autoridade poética de Yeats e Auden. Os livros publicados na década de 1970 trazem mais amadurecida esta mudança na forma, e Farias (2017) comenta que o eu poético parece dotado de mais autonomia.

Os livros publicados a partir da década de 1980 evidenciam uma mudança de temática, embora não de trabalho formal. Segundo Riley (2009) e Clark (2009), os poemas deste período parecem lidar mais com questões relacionadas a eventos de caráter global, como a Guerra do Golfo. Em An Atlas of A Difficult World, de 1991, por exemplo, a palavra “atlas” é utilizada tanto para se referir à figura mítica de Atlas carregando o mundo em suas costas quanto à sociedade como um todo em sua complexidade. Neste livro, há o poema VI da seção “An Atlas of A Difficult World”, que lida com a situação de imigrantes irlandeses que chegaram com expectativas mas descobriram a dura realidade.

Este poema, que tem o tom de uma exposição em prosa, dialoga com ensaios críticos da autora uma vez que explora a noção da poesia como fonte de esperança.

O conjunto da obra poética de Adrienne Rich é bastante extenso, de modo que não seria possível analisá-lo em sua totalidade em poucas páginas. Sendo assim, selecionei alguns aspectos relevantes para abordar. Como observa Riley (2016), é possível delinear três fases na produção de Rich. A primeira fase, compreendendo os anos de 1951 a 1971, representa sua busca por encontrar sua voz e seu tema de escolha, além da transição do uso do formalismo ao verso livre. A segunda fase, de 1973 a 1985, marca a quebra definitiva com as convenções do formalismo e a expressão plena de temas relacionados ao feminismo e sexualidade. Já na última fase, de 1986 a 2012, intensifica-se a relação entre poesia e perspectiva política. Os poemas desta fase da obra de Rich abordam como tema conflitos sociais em geral, a crise na poesia e o poder da linguagem.

Com Luvas De Amianto: Os Primeiros Poemas

Os dois primeiros livros de Rich, A Change Of World e The Diamond Cutters, são radicalmente diferentes dos publicados a partir de 1966. Escritos durante a década de 1950, observa- se a influência de poetas como Yeats, Eliot e Frost. Como Hartman (1980) afirma, a linguagem poética e a organização rítmica do poema dependem de convenções, sejam elas do uso da prosódia métrica ou não. No caso de Rich, seus primeiros poemas revelam a rígida conformidade às convenções do formalismo vigente na época; ou seja, padrões métricos e rímicos regulares, além do

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tom impessoal adotado pelo eu poético. Isto é compreensível uma vez que se considera o fato de que, como documentado por Ostriker (1986), ser mulher e poeta na década de 1950 era visto como quase um paradoxo. Aquelas que buscassem desenvolver suas habilidades criativas fora dos padrões preestabelecidos seriam duramente criticadas. Ainda assim, é possível perceber ligeiras transgressões em alguns poemas de Rich escritos nesse período. É interessante observar que as convenções do formalismo servem como ferramenta para abordar temas menos ortodoxos. Nas palavras da poeta, “o formalismo era parte da estratégia – como luvas de amianto, ele me permitia manusear materiais que eu não podia segurar com as mãos desprotegidas” (RICH, 2001, p. 18, tradução nossa1).

O poema “An Unsaid Word”, de A Change Of World, é um exemplo disto. É composto de apenas uma estrofe com sete versos que rigidamente seguem um padrão rítmico e rímico. Todos os versos são tetrâmetros jâmbicos e observa-se um esquema de rimas alternadas com uma rima interpolada e um verso branco ao início (–ABACBC). O tom é estritamente impessoal e distanciado, como observado nos demais poemas do livro. O conteúdo do poema remete a uma concepção de comportamento feminino que teria sido reconhecido como “normal” na década de 1950: as mulheres não devem perturbar seus maridos em seus pensamentos, e devem esperar fiel e pacientemente até que eles desejem interagir. A prática do silêncio pleno de palavras não ditas e suprimidas: isto, afirma- se ao final do poema, é a coisa mais difícil para uma mulher aprender.

Provavelmente, o aspecto transgressor do poema teria passado despercebido a um leitor contemporâneo de Rich que não estivesse preparado para reconhecer algo além da superfície enunciativa do poema. As convenções da prosódia métrica e da dessubjetivação do eu poético de fato mascaram a abordagem de uma situação social opressiva. Considerando-se que a enunciação se renova a cada leitura, é possível perceber como o enunciado impessoalmente descritivo de demandas de uma sociedade patriarcal causa um grande conflito com o sujeito da enunciação se este for uma mulher. No silêncio das palavras omitidas do poema está implícita uma crítica que sua autora – sendo uma mulher buscando se estabelecer como poeta em um espaço pensado como essencialmente masculino – não poderia explicitar.

She who has power to call her man From that estranged intensity Where his mind forages alone,

Yet keeps her peace and leaves him free, And when his thoughts to her return Stands where he left her, still his own,

1 Trecho original: In those years formalism was part of the strategy—like asbestos gloves, it allowed me to handle materials I couldn’t pick up bare-handed.

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5 Knows this the hardest thing to learn. (RICH, 2016, p. 20)

Tirando as Luvas, Procurando Uma Linguagem

O terceiro livro de Rich, Snapshots Of A Daughter-In-Law, foi publicado em 1963. Conforme observado por Keyes (2008), este é um volume de transição: apresenta tanto poemas regularmente metrificados e rimados quanto poemas em verso livre com uma organização rítmica diversa. Além disso, pode-se dizer que há diferenças consideráveis em termos da construção do eu poético e da posição esperada do leitor. Enquanto os poemas dos dois primeiros livros de Rich não pressupõem necessariamente um leitor que interaja ativamente com o que apresenta um eu poético desafetado e impessoal, alguns poemas de Snapshots Of A Daughter-In-Law como o de mesmo título oferecem indícios da busca por possibilitar a partilha do sensível que Rich viria a estabelecer em sua poesia posteriormente. Nestes poemas, o eu poético abandona seu tom impassível, e enuncia conflitos em relação aos quais o leitor precisa se posicionar: uma troca de energia é esperada.

Para ilustrar, será analisada a terceira parte de “Snapshots Of A Daughter-In-Law”. Este poema possui dez partes, cada uma delas sendo um retrato de experiências de mulheres em sociedade.

Visualmente, a fragmentação dos versos fica evidente, e há espaçamentos dos versos na página além de espaços dentro dos versos, o que serve como uma estratégia para dar ênfase a determinadas porções do conteúdo e também estabelecer um ritmo de leitura. É até possível perceber a ausência de uma maior conexão entre as duas estrofes, que apresentam duas situações relacionadas minimamente mas distintas. O primeiro verso já abre o poema com imagens perturbadoras que firmam o tom sombrio e quase sarcástico que pode ser observado até o fim. Uma mulher pensante dorme com monstros, e se torna aquilo que a aflige. Sua natureza é descrita com a imagem de uma cômoda valise feita de ritmos e regras, que tudo comporta: comprimidos, flores mofadas e os seios de Boadicea em meio a orquídeas e peles de raposa. É digno de nota que Boadicea foi a rainha de uma tribo celta que tentou, corajosamente mas sem sucesso, resistir ao domínio romano na ilha da Grã Bretanha. A referência a esta figura histórica, aliada ao uso do adjetivo “terríveis” em relação aos seus seios (“terrible” no original) enfatiza o sentimento de revolta e derrota construído no poema.

A segunda estrofe apresenta uma cena de conflito verbal entre mulheres, que se relaciona com as afirmações da primeira estrofe pelo fato de que tal conflito é consequência dos monstros que assolam cada mulher pensante. As imagens utilizadas para descrever a discussão das duas mulheres destaca o aspecto destrutivo dos seus atos, pois apenas reproduzem a violência já sofrida previamente, bem como um certo desamparo: são Fúrias acuadas de suas presas, utilizando uma argumentação tipicamente feminina que transfere facas das costas de uma para outra. O último verso é uma

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adaptação do verso que fecha o poema “Au Lecteur” de Baudelaire: “Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!” No poema de Rich, o contexto de enunciação é outro. No entanto, a acusação de hipocrisia na violência de mulheres contra suas iguais fica subentendida através da relação intertextual entre o último verso e o verso original de Baudelaire.

A thinking woman sleeps with monsters.

The beak that grips her, she becomes. And Nature, that sprung-lidded, still commodious

steamer-trunk of tempora and mores

gets stuffed with it all: the mildewed orange-flowers, the female pills, the terrible breasts

of Boadicea beneath flat foxes’ heads and orchids.

Two handsome women, gripped in argument, each proud, acute, subtle, I hear scream across the cut glass and majolica like Furies cornered from their prey:

The argument ad feminam, all the old knives that have rusted in my back, I drive in yours, ma semblable, ma soeur! (RICH, 2016, p. 300)

Os livros seguintes, publicados entre 1966 e 1971, dão continuidade à experimentação com a organização rítmica do verso livre e a abordagem de temas relacionados à posição social da mulher que pressupõem um maior envolvimento do leitor. O que é interessante observar é que alguns poemas testam até mesmo os limites do que era até então denominado poesia. Por exemplo, The Will To Change, de 1971, apresenta o poema “The Burning Of Paper Instead of Children”, que é composto de cinco partes. A primeira e terceira partes se iniciam com um trecho em prosa, ao passo que a última parte é inteiramente escrita como um parágrafo. Como definir estas partes de “The Burning Of Paper Instead of Children”? Poema em prosa? Prosa poética? Assim como sugere Ludmer (2010), as literaturas pós-autônomas ultrapassam as barreiras tradicionais dos gêneros, e se encontram simultaneamente dentro e fora delas. E este parece ser o caso do poema de Rich mencionado.

O Desenvolver De Uma Consciência

Como afirma Benveniste (1989), a enunciação implica uma apropriação da língua pelo indivíduo “para a expressão de uma certa relação com o mundo” (p. 84). A partir de Diving Into The Wreck, publicado em 1973, o estilo de Rich aparece firmado. As convenções do formalismo foram abandonadas, e a presença da experimentação com o verso livre, a fragmentação dos versos e espaçamento na página consolidou-se. Além disso, percebe-se nos poemas um eu poético que faz referência a situações sociais sem a necessidade de uma posição distanciada ou um discurso de universalidade. À medida que Rich desenvolve uma visão feminista e assume sua lesbianidade, sua

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poesia evidencia a abordagem direta de temas relacionados às experiências de mulheres em sociedade e a busca pela expressão da sexualidade. A busca por estabelecer um ponto de encontro com os leitores que possibilite a partilha do sensível através da experiência da leitura fica evidente.

Por exemplo, analiso aqui a décima e última parte de “Phenomenology Of Anger”, do livro Diving Into The Wreck. Este poema trata abertamente da consciência e expressão da raiva ou revolta, e o eu poético, oscilando entre uma primeira pessoa do singular e do plural, identifica-se abertamente como feminino. O aspecto fragmentário dos versos é bem claro; nesta última parte em particular, quase não se observam sinais de pontuação, os versos não possuem o mesmo tamanho, as estrofes possuem espaçamentos variados e há dois versos em itálico que causam uma quebra no poema. A décima parte se inicia com a descrição de detalhes de uma cena no metrô – com aspecto fragmentado também, não tradicionalmente narrativo – que o eu poético menciona como um testemunho de como nossas vidas estão sendo consumidas: uma mulher encolhida por sono ou uso de drogas. E os dois versos em itálico provocam uma quebra no poema, ainda mais por se tratar de um enunciado comum nas sinalizações de metrôs que é apropriado em um novo contexto de enunciação para descrever perigos maiores: a fúria pelo desgaste da existência.

As próximas estrofes descrevem o sono de uns, a inquietação de outros, e a raiva do eu poético que arde como chamas. A fragmentação dos versos cria uma atmosfera tensa condizente com a fúria descrita pelo eu poético. A menção a Thoreau – reconhecidamente um pacifista – ateando fogo na floresta enfatiza o aspecto da revolta que não é mais contida, nem pode ser. A última estrofe remete aos ensaios de Rich, uma vez que declara que a tomada de consciência é um ato não natural. Ou seja, exige esforço da parte da poeta para a transfiguração de situações reais que não são confortáveis uma vez que revelam os conflitos de uma sociedade marcada pela perda do lastro.

how we are burning up our lives testimony:

the subway

hurtling to Brooklyn her head on her knees asleep or drugged la vía del tren subterráneo es peligrosa

many sleep the whole way others sit

staring holes of fire into the air others plan rebellion:

night after night

awake in prison, my mind

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8 licked at the mattress like a flame

till the cellblock went up roaring Thoreau setting fire to the woods Every act of becoming conscious

(it says here in this book)

is an unnatural act (RICH, 2016, p. 381)

Também é interessante mencionar “Hunger”, publicado em The Dream Of A Common Language. Este poema possui quatro partes, e foi dedicado à poeta negra e lésbica Audre Lorde, que possuía uma perspectiva similar acerca da experiência poética e com quem Rich manteve uma correspondência bastante interessante. A quarta parte será transcrita e analisada aqui. Nesta parte, observa-se um aspecto narrativo; diferente de “Phenomenology Of Anger”, há apenas uma estrofe com versos menos fragmentados, e o uso de pontuação é mais frequente – o que serve para dar destaque à presença de enjambement em alguns versos como estratégia para criar pausas dramáticas na leitura. O eu poético, identificado como uma primeira pessoa do singular e marcadamente feminino, descreve situações relacionadas à perda do lastro discursivo. A fome da população, metafórica e literal, envenena eu poético, no entanto o alimento é igualmente intragável: a decisão de alimentar o mundo é a única decisão real, afirma o eu poético, mas não foi tomada por nenhuma revolução porque isso requer que as mulheres sejam livres. O poema é permeado pela noção de ânsia e expectativa. O que o eu poético deseja é possibilitar a partilha do sensível entre as e os famintos e até mesmo quem ainda não nasceu. E isto se dá através da escrita, do ato de nomear as privações que dilaceram o eu poético e outras mulheres vítimas dos “terroristas da mente”. O último verso deixa clara a proposta de libertação do eu poético: até que todas estejam livres, estamos sós.

Ouvir A Voz De Nosso Tempo: Buscando Um Lastro

Os poemas da última fase da produção de Rich consolidam os aspectos observados na segunda fase, como o uso da organização rítmica do verso livre e abordagem de temas relacionados a conflitos sociais, mas também trazem uma intensificação de questionamentos sobre o poder da linguagem, a perda do lastro discursivo e a relação entre poesia, leitor e sociedade. O eu poético convida os leitores a tomarem um posicionamento frente às questões levantadas nos poemas, seja assumindo o lugar da enunciação deixado por este eu poético ou o posto de interlocutor; ambas as posições evidentemente exigem que não haja passividade.

Escolhi dois poemas para analisar aqui. O primeiro deles é “North American Time”, que integra Your Native Land, Your Life, publicado em 1985 e que para Riley (2016) é o volume que

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marca esta nova fase da escrita de Rich. Este poema possui nove partes, e aborda o tema da relação inescapável entre a linguagem e a história. Pode-se observar o uso da organização rítmica do verso livre, com trechos em itálico e espaços no interior dos versos como uma estratégia para estabelecer pausas dramáticas ou ênfases na leitura. A segunda parte do poema será discutida em mais detalhes.

Nesta parte, o uso de pontuação é mínimo, limitando-se a um ponto final em alguns versos. A presença de letras maiúsculas ao início do verso é o único indicador realmente preciso de novos períodos no poema, então. É interessante que há apenas uma vírgula no poema, no quarto verso Esta fragmentação dos períodos em vários versos sem separação por vírgulas cria uma atmosfera de tensão e algo em suspenso na leitura, o que reforça o aspecto de crise e urgência do conteúdo apresentado.

Tudo que escrevermos será utilizado contra nós. Esta é afirmação que abre a segunda parte de

“North American Time”. É impossível evitar que futuros leitores se apropriem dos enunciados de escritores e se coloquem como sujeitos de uma nova enunciação, em um contexto diverso. Como indica Benveniste (1989), o uso da língua permite que o falante se inclua em seu discurso. Estes são os termos, declara o eu poético: a poesia, que se baseia no emprego de convenções da linguagem para expressar o que Hartman (1980) denomina fato poético, nunca teve a mínima chance de se colocar como um objeto imune ao desenrolar da história. No contexto do poema, esta possibilidade da renovação de contextos da enunciação é o que o eu poético classifica como privilégio verbal, mas que também causa um profundo conflito. Estamos diante da historicidade distorcida que Provase (2016) discute: múltiplos contextos e temporalidades produzidos a cada leitura. O que o eu poético de “North American Time” sugere é que os enunciados de poetas são de alguma forma responsáveis pela multiplicidade de apropriações e releituras que se podem fazer deles, mesmo que seus autores as renunciem. Isto, como observa Riley (2016), não deve reduzi-los ao silêncio, mas sim incentivar um olhar consciente acerca do passado para pensar possibilidades para o futuro.

Everything we write will be used against us or against those we love.

These are the terms, take them or leave them.

Poetry never stood a chance of standing outside history.

One line typed twenty years ago can be blazed on a wall in spraypaint to glorify art as detachment

or torture of those we did not love but also did not want to kill

We move but our words stand become responsible

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10 for more than we intended

and this is verbal privilege (RICH, 2016, p. 600)

Por fim, analiso “Tonight No Poetry Will Serve”. Este poema integra o livro de mesmo título que é também o último da poeta, publicado em 2011. “Tonight No Poetry Will Serve” visualmente se apresenta com períodos fragmentados em vários versos ou até mesmo estrofes; o uso da maiúscula ao início do verso é o único indicador de um novo período, já que o uso de pontuação é mínimo. Nas duas primeiras estrofes, o eu poético se refere a seu interlocutor – que, por se tratar de um poema mais recente de Rich, pode-se presumir feminino. O eu poético relata vê-la caminhando à luz da lua crescente, depois nua e adormecida. É importante para este eu poético deixar claro que o sono da interlocutora não apaga sua consciência daqueles que permanecem insones em outro lugar.

Em uma quebra no conteúdo, a descrição da interlocutora é abandonada e o eu poético abruptamente faz a afirmação que dá o título ao poema e ao livro como um todo: nesta noite nenhuma poesia servirá. É interessante observar aqui que, ao começo do livro, a epígrafe é a entrada do verbo “servir” retirada do Webster’s New World Dictionary of the American Language de 1964. Trabalhar para alguém; dever obediência ou reverência; lutar ou prestar serviço militar; passar por encarceramento; satisfazer as necessidades ou requisitos, ser usado; fazer uma entrega oficial. Esses são os sentidos do ato de servir impróprios para a poesia neste momento, ao mesmo tempo que a própria linguagem é também apontada como insuficiente para fazer jus aos insones mencionados anteriormente. As últimas quatro estrofes utilizam como metáfora a diagramação de uma sentença para indicar essa inadequação. A “sintaxe da representação” é a de que o verbo controla a ação modificada por um advérbio, sufocando o sujeito. Os atos do verbo denigrem a si próprio, mas continuam.

A crescente fragmentação observada nos versos serve de estratégia para ilustrar o colapso da linguagem, que não dá conta da expressão em contextos de conflito social. No penúltimo verso, observam-se espaços até mesmo no seu interior. Cada um deles pode ser compreendido como uma pausa dramática – ou como se fosse um tipo de pontuação mais eficiente para a proposta do poema. O último verso introduz um imperativo, “agora diagrame a sentença” (now diagram the sentence” no original), que sugere a redução do uso da linguagem a um contexto meramente escolar de análise sintática. Pode-se também considerar o fato de que o termo “sentença” possui mais de um sentido. Sendo assim, a diagramação requisitada poderia ser a da punição sofrida pelo sujeito na linguagem.

Saw you walking barefoot taking a long look at the new moon’s eyelid later spread

sleep-fallen, naked in your dark hair asleep but not oblivious

of the unslept unsleeping elsewhere

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11 Tonight I think

no poetry will serve

Syntax of rendition:

verb pilots the plane adverb modifies action verb force-feeds noun submerges the subject noun is choking

verb disgraced goes on doing

now diagram the sentence (RICH, 2016, p. 1054-1055)

Considerações Finais

A obra poética e ensaística deixada por Adrienne Rich é extremamente vasta, o que significa que diversos estudos sobre ela poderiam ser feitos. O objetivo deste trabalho foi apresentar uma breve análise da poesia de Rich no que diz respeito à trajetória das escolhas estéticas da poeta. O que procurei demonstrar é que, mesmo em sua fase inicial, Adrienne Rich já buscava abordar questões não ortodoxas e levantar questionamentos a seus leitores – de forma ainda tímida, sim, utilizando-se das “luvas de amianto” do formalismo. A produção da década de 1960 apresenta os primeiros experimentos fora dessa tradição, mas é a partir dos volumes publicados na década de 1970 que se consolida o estilo de Rich, com a abordagem de temáticas relacionadas a conflitos sociais aliada ao uso do verso livre, e a defesa da poesia como prática social que estabelece um espaço para a partilha do sensível. Assim, a obra de Adrienne Rich ilustra o desenvolvimento consciente da relação entre poesia e visão política.

Referências

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RUSS, Joanna. How to Suppress Women’s Writing. Austin: Texas University Press, 1997.

Leaving the asbestos gloves behind: Adrienne Rich's poetic and feminist path

Abstract: This paper is part of my PhD thesis and makes an overview of the literary path of U.S. poet Adrienne Rich (1929-2012) through the analysis of a few poems. This writer is recognizably one of the most important voices of U.S. literature from the twentieth century, and she left a vast poetic oeuvre besides literary and feminist criticism. According to Riley (2016), it is possible to observe three distinct phases in her poetry. The first phase, from 1950 to 1971, characterizes the transition from formalism to free verse and the development of themes related to women's social position. The second phase, from 1973 to 1985, is marked by the growing presence of themes connected to women’s experiences and sexuality. Finally, the third phase, from 1986 to 2012, is defined by an increased number of reflections on governmental practices, social conflicts and the power of language. It is noteworthy that Adrienne Rich's poetic path, from the use of formalism to her complete rejection of it, follows the development of her feminist perspective and her search for creative expression. As Rich herself stated, the formalist conventions of poetic language initially served as “asbestos gloves”, which allowed her to establish herself as a poet and tackle themes which she could not as a woman in the 1950’s. I then wish to outline the poetic evolution of Adrienne Rich in each phase of her writing and demonstrate the influence of her feminist stance over her poetry.

Keywords: Adrienne Rich. Poetry. Women's literature. Feminism

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