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COLÓQUIO/Letras. [Recensão crítica a 'Vim Porque Me Pagavam', de Golgona Anghel]

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EDIÇÃO E PROPRIEDADE

COLÓQUIO/Letras

ISSN: 0010-1451 - Página principal / Homepage: https://coloquio.gulbenkian.pt

[Recensão crítica a 'Vim Porque Me Pagavam', de Golgona Anghel]

Ricardo Marques

Para citar este documento / To cite this document:

Ricardo Marques, "[Recensão crítica a 'Vim Porque Me Pagavam', de Golgona Anghel]", Colóquio/Letras, n.º 180, Maio 2012, p. 212-215.

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Ted Hughes», por exemplo, podemos ler:

«Tenho uma flor à tua espera, uma ferida / nos sulcos do meu ventre. Vem regá -la, / colhê -la, faz com ela o arranjo da refeição / que agora termina e de novo começa»

(p. 97). O poema «Stefan Zweig a Char- lotte Altmann» termina desta maneira:

«o mundo é um emprego remunerado com a morte / que apenas conforta a vida / quando à sorte cabe um amor / que não sare como uma ferida vulgar» (p. 95).

Humphrey Bogart também ordena a Lau- ren Bacall que dance: «Quero -te a dançar a dança resoluta das feridas» (p. 32). Os pares amorosos evoluem e executam o seu número no salão de papel do livro.

Outro dos eixos é o conflito que se vai estabelecendo entre o amor e a for- mulação do amor, a hipótese de o dizer.

O amor, o corpo e a dança de um lado, do outro o bailado dos versos. As feridas do amor são também as feridas dos ver- sos que nos tornam possível apreendê -lo e exprimi -lo. Em «Salomé Segura a Ca- beça de S. João Baptista» encontramos, porventura, a formulação mais fulgurante desta oposição: «Eu, Salomé, me confes- so perante / a cabeça de João: jamais nas palavras /vislumbrei a honra que encon- trei / na tua mão, jamais as palavras dirão / tanto como esses teus olhos mortiços»

(p. 92 -3). Outros versos, como por exem- plo «não deve ser amor a palavra que me convém» (p. 75), confirmam o insucesso de um propósito assim formulado num dos poemas iniciais: «Queria transformar cada gemido numa palavra, / num verso, e aprender a ler nos músculos / do teu rosto o prazer com que cada um de nós sente, / à sua maneira, a ferida que está na origem da beleza» (p. 11).

A cada passo tropeçamos em achados.

Veja -se, por exemplo, a carga irónica dos quatro versos que abrem o poema «An- tonin Artaud e Genica Athanasiou»:

«Venho de um canto escondido / na terra

praguejada. / Perdi à superfície dos senti- dos / o fio à meada» (p. 63). Ou a relação estabelecida entre «poemas» e «pro- blemas» no poema «Charles Baudelaire a Jeanne Duval»: «mas cá para mim, ao pé de ti, artificiais / são os versos, os poe- mas, as flores / do mal que vou cheiran- do enquanto / arranjo mais problemas»

(p. 67). Ou ainda o truque da recusa das flores: «Flores que eu não quero, / que eu definitivamente não quero, / pois tenho- -te a ti. / Ninguém dá flores às flores. / O que eu quero é um ramo de poemas / para oferecer à minha flor» (p. 25 -6). Versos, feridas, feridas de amor.

José Ricardo Nunes

Golgona anghel

VIM PORQUE ME PAGAVAM

Lisboa, Mariposa Azual / 2011

a poesia é apenas isso: a poesia (não é coisa / que salve o mundo nem coisa que o comprometa).

Vítor Nogueira [The] sense of identity provides the ability to experience one’s self as some- thing that has continuity and sameness, and to act accordingly.

Erik H. Erikson A poet is the most unpoetical of any- thing in existence, because he has no identity — he is continually informing and filling some other body.

John Keats Ecoando a ideia de Keats, que de um pon- to de vista mais científico nos remete ori- ginalmente para o que o teórico da iden- tidade Erik Erikson defende, qualquer crítico literário sabe bem que a identidade

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de um poeta é sempre um terreno difícil e muitas vezes árido como metodologia e caminho a seguir quando se escreve sobre um dado livro. O século XX, apenas para citar um momento temporal, esteve, efe- tivamente, pejado de poetas que desafiam qualquer noção de identidade, como Blai- se Cendrars ou Henri Michaux, que tanto foram escritores como viajantes (no espa- ço físico e no espaço da língua).

É assim curioso e, ao mesmo tempo, es- timulante que estejamos em presença de uma poesia como a de Golgona Anghel, romena da Ilíria Ocidental, naturaliza- da portuguesa, que agora chega ao seu segundo livro, Vim Porque Me Pagavam, depois de Crematório Sentimental (Quasi, 2007). Tanto mais curioso é que as críti- cas que imediatamente se seguiram te- nham precisamente tocado este ponto da identidade em dois sentidos diferentes.

Não penso resultar absolutamente central para o entendimento desta poesia saber que o português não é a língua materna da autora, como apontou David Teles Pe- reira na sua crítica no Público/Ípsilon, de 19/8/2011. Este é, poderíamos conceder, um livro cuja propensão de análise crua do país neste início do século XXi benefi- cia do facto de se estar distante, mas esta

«distância», quanto a mim, parece -me tão importante na conceção e nos temas dos versos quanto o é a «distância» a outras culturas europeias que o livro tam- bém evoca. Com isto pretendo exemplifi- car que uma certa ausência da prosódia, como também afirma Teles Pereira, é mais produto da opção de Anghel pelo verso certo, declarativo e enumerativo, e não tanto relacionado com uma aprendi- zagem do português pela literatura. Pen- so que é mais importante o que a autora é enquanto pessoa (e aqui encontro -me com a citação de Erikson) e, esteticamen- te, enquanto poeta, consciente do que quer declarar, referir, enumerar no corpo

identitário da sua obra (e aqui encontro- -me com a citação de Keats), tal como di- zia no início, quando aludi a Cendrars ou Michaux. A título de exemplo, vejamos parte do poema «Portugal — dia dois de Maio de dois mil e oito», talvez aquele em que se atinge um maior grau de aten- ção antropológico e empenhamento em relação ao real, fazendo lembrar distante- mente o famoso poema «Portugal», de Jorge Sousa Braga:

As nossas janelas têm vista para o [Mediterrâneo.

Os nossos turistas são ingleses. As nossas [cozinheiras angolanas.

As nossas empregadas brasileiras.

Os nossos pedreiros ucranianos.

Os nossos comerciantes chineses e [indianos.

As nossas amantes baratas.

As nossas putas disponíveis — agora, se faz [favor.

Os nossos sonhos transatlânticos.

Os nossos hábitos light, soft, ecológicos, se [possível.

Os nossos medos hoje são negros.

Os nossos dias contados.

Complementar a este ponto forte da poética da autora é, efetivamente, o «des- concerto» que acompanha cada poema, que se desdobra de variadíssimas formas, para além do engagement já visto. A iro- nia, segundo Todorov, acontece quando o eixo da conotação se encontra com o eixo da denotação, sobrepondo assim dois discursos que aparentemente seguem em caminhos diferentes. É um processo am- plamente usado por Anghel, que no poe- ma da página 64 pisca o olho à crítica e ao universo literário português num poema cheio de referências diretas e indiretas:

Um dos bons e vivazes escritores da actual geração portuguesa,

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o Sr. Eça de Queirós, acaba de publicar o seu segundo romance, O Primo Basílio.

«Que o Sr. Eça de Queirós é discípulo do [autor do Assommoir,

ninguém há que o não conheça.

O próprio Crime do Padre Amaro é [imitação do romance de Zola, La Faute de l’Abbé Mouret»

— explica -me o Sr. Machado de Assis numa carta que me chegou hoje de

[Florianópolis.

Conjuntura análoga, iguais atracções;

diferença do meio; diferença do

[desenlace;

idêntico estilo;

algumas reminiscências,

como no capítulo da missa, e outras;

enfim, o mesmo título.

Evidentemente, os jornais desmentem tudo [isto.

E quem sou eu para os contradizer?

Camões podia julgá -los, se tivesse tempo.

E, de resto, como vão as meninas?

A dona Lurdes está bem?

Veja -se como a autora se coloca no fim do século XIX para encenar -se con- temporânea de Machado de Assis e Eça de Queirós, para, já no fim, trazer o po- ema para o presente, depois remeter di- retamente para Cesariny e, num afilhado próximo e distante, indiretamente para Ruy Belo, nos dois últimos versos, que se assumem um pastiche de dois versos de

«Ácidos e Óxidos». Esta relação meta- literária com a própria literatura é uma faceta, de resto, incontornável em todo o livro (na página 49, a autora diz «Como a noite era branca e prudente. / Como Pa- ris ficou tão longe, de repente. / Rima e soa barato. / Mas a literatura tem destas coisas»). Neste sentido, «Vim porque

me pagavam, / e eu queria comprar o fu- turo a prestações», presente no poema da página 58 que dá título ao livro, é uma declaração de intenções, um dos poemas mais fortes deste volume. Nele assume- -se Anghel como autora que desconstrói todo o ideário subjacente à figura do pró- prio autor, entre a esperança utópica e a constatação de uma realidade de «cucos e mexericos de feira / metralhadoras de plástico, coelhinhos de Páscoa e pulseiras / de lata». Resta -lhe concluir o poema da seguinte maneira:

Alguém se atreve ainda a falar de [posteridade?

Eu só penso em como regressar a casa;

e que bonito me fica a esperança enquanto apresento em directo a autópsia da minha glória.

O Amor é um tema que se desdobra de forma peculiar em Golgona Anghel, e que se estende um pouco à geração de mulhe- res poetas que começam agora a publicar (lembro aqui a poesia de outra autora editada pela Mariposa Azual, Margarida Vale de Gato). Parece haver sempre um distanciamento entre o eu e o tu poéticos («O mundo é estranho, Sandy!», p. 23), uma descrição crua do sentimento que une os dois elementos no sentido de de- monstrar que a equação «amor -ódio» é mais do que válida em qualquer relação a dois (e a ironização, quase sempre lúdi- ca, disso mesmo). Veja -se só o primeiro verso deste poema: «Ainda bem que te foste embora / o nosso sistema linfático não era de todo compatível». O para- digma anglo -americano contemporâneo respira -se abundantemente aqui — lem- bro Carol Ann Duffy, poeta laureada no Reino Unido, especialmente na conceção feminina do mundo em The World’s Wife (2002), ou Sharon Olds, americana tradu- zida em 2004 por Vale do Gato, na con-

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vocação das comparações metafóricas, na forma como metaliterariamente se re- ferem «os lugares -comuns» dos poemas de amor. É o que nos sugerem os versos da página 32:

Passas horas a olhar -me em silêncio enquanto invocas o sono

à beira de uma corona com limão.

Que tipo de cadáver sou eu neste preciso [instante?

Quero pensar que não vês em mim a decadência do império romano pintado por cima desta linda vista de

[Lisboa.

Não sou nenhuma sobremesa flambée ao lume das velas no deserto de Atacama.

Quero acreditar que neste bordel ruidoso a luz ténue e intermitente do despertador mostra ainda com rigor científico os resultados dos nossos

[electrocardiogramas.

Vá, apaga lá esse cigarro e vem!

Regressemos aos lugares comuns!

Sentemo -nos na nossa cama.

Em suma, a edição de Vim Porque Me Pagavam é minimalista, sóbria até, onde ainda há um espaço para «Notas do Lei- tor», como acontece nos livros de viagem (ainda que seja cliché, que livro de poesia não é uma viagem pessoal?). Remetendo para um universo surrealizante, ligeira- mente engagé e desconstrutivista no me- lhor sentido pós -moderno, cada um dos quarenta textos que o compõem encena a sua própria estruturação enquanto po- ema, tendo com isso Golgona Anghel criado para si própria um espaço peculiar no panorama atual da poesia portuguesa.

Sem destino, sem personagem princi-

pal, sem tempo (e eu acrescentaria, sem identidade fixa): Apenas vim porque me pagavam: «‘Je fermerai maintenant les yeux…’»

Ricardo Marques

tradição oral

idália Farinho custódio, Maria aliete Farinho Galhoz

CANCIONEIRO

VOL. IV — PATRIMÓNIO ORAL DO CONCELHO DE LOULÉ

Loulé, câmara Municipal de Loulé / 2011

Há em Portugal muitas coleções de poesia oral lírica a que, regra geral, se dá a desig- nação de cancioneiros. Há -os em edições autónomas ou incluídos em monografias e etnografias, regionais (transmontanos, minhotos, alentejanos, algarvios…), locais (Vila Real, Vila Nova de Gaia, Arouca…) ou até ditos, impropriamente, gerais (im- propriamente porque os que foram pu- blicados sob essa designação são parciais, incompletos). Mas são raros os cancio- neiros que contemplam as diversas áreas da lírica oral ou que se preocupam com a indicação de elementos biográficos dos informantes e com as informações que es- tes muitas vezes fornecem sobre os textos e os contextos; e também são escassas as coleções que adotam rigorosos critérios temáticos, funcionais (para evitar quer a escassez quer a repetição de rubricas e sub -rubricas), alfabéticos e numéricos.

Daí a importância do Cancioneiro de Loulé, rico na quantidade e na qualidade dos textos, exemplar no modo como os colige e organiza, e, por isso, modelo a seguir noutras recolhas de campo e poste- rior arrumação e publicação.

Não conhecemos, aliás, em Portugal (e não só) outro caso de tanta sintonia entre

Referências

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