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A NATUREZA DO TRÁGICO EM ÉDIPO REI, DE SÓFOCLES 1. Palavras-chave: Édipo Rei; Tragédia Grega; Natureza do trágico.

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A NATUREZA DO TRÁGICO EM ÉDIPO REI, DE SÓFOCLES1

Anderson Alves Pereira2 Andréia Penha Delmaschio3

Resumo: Neste artigo revisitamos a peça Édipo Rei, de Sófocles, baseados na visão de grandes pensadores, a saber: Aristóteles (2008), Johann Wolfgang von Goethe (2010), Albin Lesky (1996), Johann Christoph Friedrich von Schiller (1784) e Sigmund Freud (1900), objetivando saber mais sobre a natureza do trágico surgido entre os gregos. Além destes autores, também nos amparamos nas ideias de Unamuno (1996), Eagleton (2013), Bornheim (1975), Brandão (1984), Kant (1781/1788/1790) entre outros. A presente proposta investigativa se dá inicialmente por uma análise da tragédia segundo a ótica aristotélica, com base em sua obra Poética. Passo seguinte, avançamos sobre o conceito de Contradição Irreconciliável, presente em Goethe, e Dupla Causalidade, sustentado por Lesky. Na sequência, trazemos a visão de Schiller sobre a tragédia, em sua concepção moral. Após, amparados nas percepções de Freud, apresentamos uma leitura de Édipo Rei, na perspectiva de uma jornada auto investigativa, destacando três fases da vida do herói trágico.

Palavras-chave: Édipo Rei; Tragédia Grega; Natureza do trágico.

1 INTRODUÇÃO

Refletir sobre a tragédia grega é oportunamente refletir a respeito do pensamento humano, que ainda hoje se desenvolve sob forte influência das ideias originárias da Grécia Antiga, as quais continuam a fazer parte da formação cultural dos povos do ocidente. A dramaturgia, junto da filosofia, da literatura e da democracia consolida-se, indubitavelmente, como uma das mais importantes heranças da nação grega, berço da civilização ocidental, tendo seus influxos alcançado tanto a mente quanto o coração das mais diversas audiências em todo o mundo. Diante do fascínio exercido pelas tragédias gregas, somos conduzidos à investigação dos mitos e mistérios que fazem parte dessa expressão poética que, há séculos, compõe o imaginário individual e coletivo dos mais diversos povos do mundo. Assim, de tempos em

1 Trabalho Final de Curso da Graduação em Letras do Ifes, Campus Vitória.

2 Licenciando em Letras-Português, modalidade presencial, pelo Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória. E-mail: anderson.alpe@yahoo.com.br

3 Professora Orientadora; Doutora em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professora no Ifes Campus Vitória. E-mail: adelmaschio@gmail.com

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tempos vemos a crítica literária debruçar-se sobre múltiplas questões relacionadas ao drama trágico surgido entre os gregos, que vão desde questões morais, religiosas e filosóficas até questões relacionadas ao modo como essa forma específica de arte deve ou não ser apresentada ao público. Em meio a essas discussões realizadas em torno da tragédia, uma interrogação específica chama-nos à atenção: “qual é a natureza do trágico?”. Direcionados por essa pergunta que atraiu e continua a atrair o olhar de grandes nomes da filosofia, da dramaturgia, da literatura, da psicanálise, entre outras áreas do saber, é que conduzimos nossa investigação.

Posto isso, através do presente trabalho objetivamos apresentar determinadas definições a respeito das tragédias gregas e também refletir sobre o fenômeno trágico que delas emana, com base na peça teatral Édipo Rei, de Sófocles, destacando o modo como essas imprecisões são percebidas e tratadas conforme o recorte proposto. Para tanto, adotaremos os seguintes objetivos específicos: 1) Apresentar algumas das teorias mais conhecidas e aceitas em relação às possíveis origens da tragédia grega; 2) Revisitar a peça Édipo Rei, de Sófocles, bem como seu contexto de produção; 3) Examinar as opiniões de reconhecidos pensadores, que se dedicaram à compreensão das artes dramáticas e suas múltiplas relações com o homem, a saber: Aristóteles (século V a.C.), Johann Wolfgang von Goethe (século XVIII e inícios do século XIX), Albin Lesky (século XX) Johann Christoph Friedrich von Schiller (século XVIII e inícios do século XIX) e Sigmund Freud (século XX), a fim de compreender suas principais teses quanto à gênese do trágico; 4) Destacar analiticamente três grandes momentos da jornada de Édipo, herói trágico da peça Édipo Rei, de Sófocles, a saber, as fases: da inocência, da dúvida e do reconhecimento, com o objetivo de destacar o percurso do herói trágico, que se materializa no âmbito dessa tragédia.

Um elemento altamente profícuo para nos apropriarmos de uma determinada dimensão ou

“realidade” a que se pretende conhecer, de acordo com Maria Cecília de Souza Minayo (2002), é o método, que além da teoria, se apresenta como um mediador entre aquele que pesquisa e a realidade pesquisada. A teoria viabiliza a aproximação com o tema a ser compreendido, contribuindo para que o pesquisador construa caminhos que o conduzam a conhecer com mais profundidade o tema que estuda. Estes caminhos de aproximação, nos quais perpassam correntes de conhecimento, são denominados métodos. Para Minayo, tanto as correntes teóricas ou do conhecimento, quanto os métodos e técnicas são componentes da metodologia. Considerando tal forma de compreensão do que seja metodologia, adotaremos

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em nossa análise a pesquisa bibliográfica como método de investigação dos elementos centrais componentes da tragédia.

Segundo José Carlos Koche (1997), a pesquisa bibliográfica distingue-se pela utilização de materiais já elaborados, tais como livros, revistas, correspondências, entre outros. Oferecendo ao pesquisador a apreensão das teorias produzidas por diversos autores dentro da área de interesse, que servirão como instrumento de avaliação, compreensão e explicação do objeto investigado (KOCHE, 1997, p. 122). Desta forma, entre os principais textos utilizados em nossa abordagem, destacamos os trabalhos: Édipo Rei, de Sófocles, situada na obra A Trilogia Tebana, tradução de Mário da Gama Kury (2001); Poética, de Aristóteles, prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira, tradução e notas de Ana Maria Valente (2008); Correspondência, de Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller, tradução de Claudia Cavalcanti (2010);

A tragédia grega, de Albin Lesky (1996), tradução de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik; O Teatro Considerado como Instituição Moral, de Friedrich Schiller, em Teoria da Tragédia, tradução de Flavio Meurer, introdução e notas de Anatol Rosenfeld (1991); Escritores criativos e devaneio (1908) e A interpretação dos sonhos (1900) de Sigmund Freud, tradução de Paulo Cesar de Souza. Com base nessa revisão teórica, dissertaremos sobre os aspectos concernentes à tragédia e à natureza do trágico.

Tendo em vista a necessária diferenciação entre a tragédia e o trágico, Wolfgang Kayser realiza a seguinte proposição: "Parece vantajoso distinguir o trágico, como fenômeno vital, da tragédia, como forma artística dramática que se apodera do trágico" (KAYSER, 1958, p. 281).

Ou seja, o elemento trágico não se localiza na obra em si, visto que ele faz parte de uma realidade anterior,percebida e materializada pelo poeta trágico.

De acordo com Bornheim (1975), observa-se que é comum o propagar de uma compreensão errônea de que a tragédia encontra-se fundamentada na produção poética enquanto obra de arte:

[...] o trágico é possível na obra de arte porque ele é inerente à própria realidade humana, pertence, de um modo precípuo, ao real. A partir dessa inerência é que a dimensão trágica se torna possível numa determinada obra de arte (BORNHEIM, 1975, p. 72).

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Logo, para Bornheim a tragicidade não surge da obra artística por si só, com efeito, o fenômeno trágico somente existe na poesia como possibilidade, pois ele decorre de uma realidade anterior, que é a realidade do homem, em sua face mais dramática.

Dentre os inúmeros fatores que consolidam e justificam a expressividade e a importância do elemento trágico na experiência humana, destacamos em primeiro lugar o seu caráter humanizador, a que o presente artigo busca aludir. Por intermédio do trágico, conforme expressado pelo filósofo espanhol Miguel de Unamuno, em sua obra Do Sentimento Trágico da Vida (1996), temos exposto diante dos nossos olhos o descortinar de nossa finitude. Ao passo que almejamos o absoluto, também nos deparamos com a consciência da dor, do sofrimento e da morte.

Mas será que podemos conter esse instinto que leva o homem a querer conhecer e, sobretudo, a querer conhecer o que leva a viver, e a viver sempre? A viver sempre, não a conhecer sempre. Porque viver é uma coisa e conhecer outra e, talvez haja entre ambas tal oposição, que não possamos dizer que tudo o que é vital é anti- racional, e não só irracional, e tudo o que é racional, antivital. Esta é a base do sentimento trágico da vida (UNAMUNO, 1996, p.33).

Desse modo, a experimentação do sentimento trágico torna-se, segundo o ponto de vista de Unamuno, do qual compartilhamos, mais do que um fenômeno existente no mundo, um instrumento pujante, capaz de despertar nas mais diversas audiências, ainda em nossos dias, o que foi descrito por Aristóteles em sua Poética como kátharsis, isto é, a purificação das paixões (ARISTÓTELES, 2008, p. 12) – um termo que, embora pouco claro do ponto de vista teórico, encontra-se bastante atrelado à ideia de purificação, evacuação ou purgação; o processo de purificação espiritual vivenciado pelo espectador através da purgação de subjetividades e sentimentos tais como: paixão, terror e piedade, que emergem da contemplação do espetáculo trágico. Assim, enquanto contemplamos e compartilhamos do trágico, também nos humanizamos, na medida em que percebemos o quanto somos efêmeros e dependentes uns dos outros em nossa jornada de vida, tal qual Édipo a vagar por um plano repleto de dúvidas, mistérios e grandes contrariedades.

Outro importante aspecto do teatro trágico diz respeito ao seu caráter pedagógico. O poeta trágico era reconhecido entre os gregos como um educador, que diante de uma sociedade marcada por constantes mudanças, via-se compelido a manter acesa a chama mítica no seio da pólis. Desta maneira, distanciando-se um pouco do caráter religioso das tragédias áticas, nos é

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possível perceber, em uma perspectiva mais avançada, três importantes possibilidades: a tragédia enquanto expressão artística, enquanto possibilidade catártica e enquanto elemento educativo (FREITAG, 2002, p. 21).

O poeta educador, de posse da palavra, liberta-se e conduz os seus educandos por um percurso libertador. Na medida em que os provoca a refletirem e conhecerem mais sobre si e sobre o mundo que os rodeia, o educador coloca-se como um poderoso instrumento em prol do processo de humanização e libertação dos indivíduos, que passam a perceber a interdependência de conceitos como educação, política e liberdade. Posta a capacidade humanizadora e pedagógica do texto trágico, é possível reafirmar sua ampla pertinência em nossos dias.

2 AS ORIGENS DA TRAGÉDIA GREGA

De acordo com Junito de Souza Brandão (1984, p.10), uma das versões mais defendidas em relação à origem das tragédias gregas indica que suas raízes nascem do culto oferecido a Dioniso, deus do vinho, da agricultura e da fertilidade, filho de Zeus e da princesa tebana Sêmele. A celebração, que primeiramente era realizado nas regiões rurais da Grécia, tempos mais tarde é transferida para a cidade, dando origem a mais suntuosa das festas ao deus Dioniso, as chamadas Dionisíacas Urbanas. Assim, por ocasião da vindima, celebrava-se anualmente em toda a Ática a festa do vinho novo, onde os participantes, em referência aos Sátiros, seres míticos que, conforme se dizia, ficaram ébrios após terem bebido do vinho que fora produzido e servido pelo próprio deus Dioniso, personificavam as divindades, de modo cênico e dramático. Diante desse “espetáculo” ritualístico e religioso teria nascido, segundo o imaginário popular, a expressão “homens-bodes”. A origem do vocábulo tragédia (tragoidía) seria, portanto, uma aglutinação das palavras trágos, que significa bode, oidé, que significa canto mais ia, assim, gerando a expressão “canto do bode”, da qual a expressão em latim tragoedia derivou-se a palavra tragédia.

Outra versão indica que o termo tragédia faz referência ao bode sacrificado em homenagem ao deus Dioniso no início dos festejos, um ato cerimonial cujo animal imolado simboliza o próprio deus do vinho, que, consoante ao mito antigo, foi uma das últimas metamorfoses de Baco em sua fuga dos Titãs. O animal, tendo sido devorado pelos filhos de Úrano e Géia, ressuscitou da morte como figura mítica; tragos theios (bode paciente), o pharmakós (bode

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expiatório) sacrificado em favor da purificação da pólis (cidades-Estados gregas). O grito do animal sacrificado seria então “o grito do bode”, imolado a Dioniso.

Levando-se em conta o contexto da religião dionisíaca, que trará nessa festividade anual o seu principal exemplar de processo ritual, perceberemos que aqueles festejos eram uma ocasião na qual se glorificava tanto a vida como a morte. Não por acaso as dionisíacas urbanas de Atenas eram realizadas no início da primavera, um período do ano em que se tem uma passagem de um ciclo invernal para um novo ciclo de fertilidade e de vida.

Com base nas discussões trazidas por Eagleton (2013), nos é possível compreender que esse ato cerimonial, repleto de significados e dualidades, que nos apresenta elementos de “poder e fragilidade, sagrado e profano, central e periférico” (EAGLETON, 2013, p. 376), refletirá-se nas narrativas teatrais por meio dos heróis-trágicos que se tornam pharmakós (veneno e cura, aquele que é imolado para a purificação da pólis), alcançando na figura de Édipo o seu maior arquétipo.

As expressões religiosas oriundas da Grécia antiga convergiam, não raramente, para uma mesma sede de pensamento, onde sentimentos e anseios compartilhados pelo povo afloravam.

A exemplo do tragos theios, ser mítico anteriormente citado, um desses anseios era o desejo de substituição do ciclo de existência material, calcado na finitude, por um novo ciclo de vida – renovada, revivificada, eterna (athanásia).

Não obstante aos anseios humanos, os deuses olímpicos estavam sempre prontos a punir toda e qualquer desmedida (démesure) que os seres humanos viessem a cometer contra si ou contra os deuses (hybris). A tragédia é, portanto, desencadeada a partir do momento em que o hypocrités (aquele que responde em êxtase e entusiasmo) ultrapassa o Métron (a medida de cada um). (BRANDÃO, 1984, p.11-12).

Northrop Frye, em sua obra Anatomia da Crítica (1980), definirá a hybris como um agente precipitador natural da catástrofe.

Mais uma vez é verdade que a grande maioria dos heróis trágicos possui hybris, um ânimo soberbo, apaixonado, cheio de obsessão ou de arrojo, que acarreta uma queda moralmente inteligível. Tal hybris é o agente precipitador normal da catástrofe, tal como na comédia a causa do final feliz é em geral algum ato de humildade, praticado por um escravo ou pela heroína, pobremente disfarçada (FRYE, 1980, p.

207).

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Posto isso, percebemos que a ação dos deuses, e também do Estado, reverberam o seu sentimento de ameaça, frente a esse homo dionysiacus, que conectado em êxtase e entusiasmo à divindade báquica, liberta-se das amarras que condicionam a ordem natural, pervertendo os preceitos da ordem social, política e ética vigentes. Diante dessa ideia, se observava no mundo grego, em diversos locais estratégicos, inscrições que tinham como objetivo advertir os passantes quanto ao cuidado que se deveria ter em relação aos excessos: “meden ágan”, nada em excesso, e o mais famoso deles situado no Pórtico de Delfos: “gnôthi sautón”, conhece-te a ti mesmo. O som de alerta desses “avisos” ressoará inclusive séculos depois, na era cristã, como podemos notar na semelhança da advertência contida na primeira epístola de Paulo à igreja de Corinto, na Grécia, que diz: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo [...]” (BÍBLIA, 1 Coríntios, 11, 28). No texto, a autoridade religiosa orienta à comunidade cristã quanto aos princípios da sagrada ceia, momento em que os fiéis comungam o pão e o vinho, símbolos do corpo e do sangue de Cristo. Com o passar dos tempos, o Estado se apodera completamente da tragédia, tornando-a um instrumento em favor da nova religião política do povo.

Apesar das imprecisões quanto a suas origens, sabe-se que a encenação das tragédias ocorre na transição do século V para o século IV a.C., na ocasião em que o povo grego vivenciava a passagem da aristocracia para um novo sistema de governo, que os gregos irão chamar de democracia, uma expressão que nasce da aglutinação de duas palavras demos (povo) e kratos (força, poder), que juntas significam “o poder na mão do povo”. Em que pese esse novo sistema de governo, que trará como princípio uma série de decisões sociais, destacamos o regime de passagem entre ambos: a tirania, um sistema que se assemelha à monarquia, sobretudo pela centralização de poder na mão de um único indivíduo. Contudo, diferente da monarquia, a passagem do poder não ocorre pela sucessão familiar, e sim pela tomada do poder por meio de um golpe de estado ou outro elemento social – o que pode ocorrer de modo violento ou não. Em sua obra A Tragédia Grega, o conhecido especialista austríaco Albin Lesky indica-nos que esse momento de reestruturação da política no mundo grego foi marcado por intensas disputas:

Debilitara-se o governo aristocrata, mas sua substituição pelo governo do povo não foi um processo fácil. Em muitos lugares do mundo grego houve fortes personalidades da estirpe aristocrática que tomaram posições contrárias às de seus pares e, apoiadas pelo demos, se assenhorearam do poder absoluto (LESKY, 1996, p.75).

Entre os tiranos que ocuparam o poder na antiga Atenas, um nome se destaca: Pisístrato, que em 532 a.C., durante seu governo, no campo das artes, dá ordens para que seja feito o registro

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dos escritos de Homero, as obras Ilíada e Odisseia. Além disso, Pisístrato será o responsável por trazer à cidade uma festividade proveniente das regiões rurais da Grécia, realizada em homenagem ao deus Dioniso, inaugurando assim as Grandes Dionisíacas. Nos festejos, de um lado serão encenadas comédias, e do outro, tragédias. É justamente nesse ambiente que Sófocles apresentará ao público a sua peça teatral Édipo Rei.

2.1 O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DA PEÇA ÉDIPO REI, DE SÓFOCLES

Escrita no ano 427 a.C. pelo ateniense Sófocles, um dos mais renomados tragediógrafos do mundo grego, ao lado de Ésquilo e Eurípedes, a peça teatral Édipo Rei está inserida cronologicamente na linha temporal da chamada Trilogia Tebana, como sendo a primeira de um conjunto total de três peças teatrais. Somam-se nessa trilogia as obras: Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono.

Considerada por grande parte da crítica literária como uma das mais importantes heranças do teatro ateniense, Édipo Rei, além de ser um modelo teatral trágico por excelência, destaca-se por sua capacidade de conexão com as mais diversas audiências ao longo da história, despertando-as para um universo de reflexões, paixões, dúvidas. Albin Lesky nos informa que a cidade de Atenas foi assolada em 430 a.C. por uma cruel epidemia, que dizimou, durante 3 anos, uma parte considerável da população ateniense e de seu exército. Um ano antes, em 431 a.C., iniciou-se a Guerra do Peloponeso, um conflito entre as cidades de Atenas e Esparta, que se estendeu até o ano 404 a.C., quando alcançou seu desfecho por meio da vitória da Liga do Peloponeso, sob a liderança de Esparta. Quanto a uma possível associação da tragédia ao seu contexto histórico, Lesky escreve:

A própria peça nos oferece a “análise trágica” (Schiller) por cujo intermédio o sentido desses atos penetra destrutivamente na consciência de Édipo. No prólogo, vemo-lo no apogeu de sua realeza, que o poeta nos mostra magnificamente não em sua plenitude do poder, mas em seu profundo conteúdo humano. A peste está assolando Tebas e bem podemos supor que sua descrição teve uma determinante na terrível epidemia que devastou Atenas no começo da guerra do Peloponeso (430) (LESKY. 1996, p. 161-162).

No ano 427 a.C., envolto neste cenário de perdas em decorrência da peste de Atenas e da guerra do Peloponeso, Sófocles escreve Édipo Rei. O enredo trágico da peça evoca e aprofunda reflexões a respeito de aspectos vivenciados naqueles dias.

De modo geral, as tragédias gregas trazem à baila uma importante reflexão a respeito da forma como os seres humanos, cada um ao seu modo, irão se comportar diante do sofrimento

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e da morte. Vemos, por exemplo, Édipo, como tirano da cidade de Tebas, assustadoramente preocupado em manter-se no poder enquanto uma terrível peste assola o seu povo. A atitude do governante de Tebas, muito semelhante a atitudes de certos governantes em nossos dias, nos quais somos assolados por um terrível morticínio decorrente do vírus Covid-19, destaca não apenas como os homens, dentro e fora do microcosmos dramático, nunca estão preparados para lidar com a tragédia premente, como também suas atitudes sempre tendem ao agravamento do efeito trágico.

2.2 O ENREDO TRÁGICO DE ÉDIPO REI, DE SÓFOCLES

A peça Édipo Rei, de Sófocles, apresenta-nos o mito de uma família monárquica da cidade de Tebas, isto é, trata-se de uma história que irá apresentar reis e rainhas, que serão descritos a partir da forma política da tirania para uma audiência democrática, que irá refletir a partir dessa democracia instituída na Grécia por volta do século V a.C., a respeito do período anterior, governado por reis que se comportavam como tiranos.

Segundo a maldição dos labdácidas, Laio, filho de Lábdaco e pai de Édipo, em sua juventude teria cometido um crime: esquecendo-se da sacralidade do princípio da hospitalidade, atentou contra a segurança e o bem-estar físico do príncipe Crísipo, enquanto esteve hospedado na corte de Pélops. Laio, ao seduzir e raptar o jovem príncipe, desrespeita o seu anfitrião, indo de encontro a uma lei fundamental aos gregos, que é a lei da ksenía, a lei da hospitalidade.

Amaldiçoado por Pélops, após a morte de Anfião e Zeto, que haviam se apoderado do reino de Tebas, Laio então é coroado como rei da cidade, casando-se com Jocasta, filha de Meneceu. Algum tempo depois, Laio e Jocasta vão a Delfos e ao consultar o oráculo ouvem a seguinte predição: se acaso tivessem um filho, este estaria destinado a matar o pai e desposar a mãe. Contudo, com o passar dos anos, Jocasta concebe um menino. Temendo o cumprimento da profecia, Laio e Jocasta entregam o infante a um pastor, para que ele o matasse. Assim, o pastor leva a criança até o monte Citerão, onde o deposita em uma árvore, com os seus tornozelos atados, para aguardar pela morte. Todavia, compadecendo-se do menino, o pastor tebano o entrega para outro pastor da cidade de Corinto, que por sua vez conduz o infante aos cuidados dos reis Pólibo e Mérope, que não podiam ter filhos e receberam a criança com a condição de nunca revelarem a ninguém sobre a adoção. Em razão dos ferimentos em seus pés, a criança recebe o nome de Édipo, que significaria algo como:

“pés inchados”, “pés feridos” ou “pés machucados”.

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Em Corinto, Édipo cresce sem saber da sua condição de filho adotivo. Vinte e um anos depois, num festim, ouve de um homem bêbado, isto é, um homem possuído por uma experiência dionisíaca, que não é filho legítimo dos reis de Corinto. Angustiado, Édipo vai até o oráculo de Delfos, onde ouve a mesma predição ouvida por seus pais anos antes: sua sina era matar o pai e casar-se com sua mãe. Desejando fugir do cometimento desses dois delitos, parricídio e incesto, Édipo foge, sem saber, para a sua cidade natal, Tebas.

Em seu percurso na direção de Tebas, ao passar por uma estrada conhecida como “A fenda”, numa bifurcação entre as estradas, Édipo vai se deparar com um homem, que ao exigir passagem, terá uma atitude desrespeitosa para com Édipo, desencadeando assim uma peleja entre ambos, resultando, por fim, na morte desse homem pelas mãos de Édipo e de todos os outros que com ele estavam. Em Tebas, Édipo depara-se com uma terrível peste, uma Esfinge que permanecendo às portas da cidade ofertava enigmas aos que por ali passavam, não havendo quem pudesse decifrar o enigma, o monstro descrito como tendo asas de águia, dorso leonino e face de virgem devorava a todos. Diante da situação, instituiu-se um prêmio a quem conseguisse derrotar o animal mítico: ao que vencesse a terrível fera seria dado o direito de ser o novo rei da cidade. Édipo desvenda o mistério proposto pela criatura e com isso recebe o trono de Tebas, a mão da rainha Jocasta e ainda a alcunha de decifrador de enigmas.

Observamos então a concretização do oráculo sobre a vida de Édipo, haja vista que o homem que ele assassinou na estrada conhecida como “A fenda” era seu pai, e a mulher com quem acabara de se unir em casamento é sua mãe.

Tempos se passam e Édipo tem quatro filhos com Jocasta: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene, até que novamente a cidade é assolada por uma outra praga: as sementes haviam parado de germinar e a terra não estava mais a produzir seus frutos. Diante da situação, os cidadãos de Tebas vão até Édipo e novamente suplicam para que o herói os salve da terrível aflição. É a partir desse instante que a peça trágica é encenada.

Édipo dá ordens para que seu cunhado Creonte vá até o oráculo de Delfos em busca de respostas ao novo problema da cidade de Tebas. Ao regressar do templo de Apolo, Creonte transmite a mensagem obtida em Delfos – aqui verificamos mais uma vez as ações da tragédia movimentarem-se pelos preditos oraculares vindos de Delfos, onde o deus Apolo, irmão antitético de Dioniso, era adorado. A mensagem4 trazida por Creonte assim dizia: “Teremos de banir daqui um ser impuro ou expiar morte com morte, pois há sangue causando enormes

4 Como notação dos versos, seguiremos a versão realizada por Mário da Gama Kury (SÓFOCLES, 2001, p.23).

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males à nossa cidade”. Sem entender bem o que dizia Creonte, Édipo questiona quem havia perecido e que morte exigia expiação? Creonte então esclarece: “Laio, senhor, outrora rei deste país, antes de seres aclamado soberano”.

A partir desse momento Édipo inicia um processo investigativo, no qual segue, semelhante a um detetive, chamando e interrogando suspeitos, a fim de descobrir e punir o assassino de Laio. No decorrer do inquérito, após diversas remissões ao passado, Édipo descobre ser ele o real assassino de Laio. Ao mesmo tempo também descobre que Laio e Jocasta, rei e rainha de Tebas, são os seus verdadeiros pais consanguíneos, caindo então num profundo e doloroso sofrimento:

Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-se! Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo! Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, 2001, p.82).

Na sequência, um arauto adentra a cena e anuncia o suicídio de Jocasta. Édipo segue apressadamente aos aposentos da rainha, lugar em que o último registro visual será o corpo de Jocasta já sem vida. Assim, reconhecendo que não poderia mais ir contra os desígnios dos deuses, apanha um broche dourado das vestes da mulher e perfura os próprios olhos, condenando-se imediatamente à escuridão. Pouco depois Édipo também será exilado.

3 ARISTÓTELES, A POÉTICA E O TRÁGICO

Aristóteles (384-322 a.C.) é, reconhecidamente, uma das referências mais fundamentais, no que concerne ao tema da tragédia. Em seu livro intitulado: Poética, um texto com características pedagógicas, o Estagirita traz uma série de aspectos que são fundamentais na composição das artes dramáticas.

Conforme nos afirma Lesky: “o filósofo grego, embora teórico máximo da tragédia, não chegou a elaborar propriamente uma teoria do trágico” (LESKY, 1996, p.14). Quanto à importância dos escritos de Aristóteles, bem como suas contribuições,sobretudo no campo da retórica e da poética, Marilena Chauí nos diz que:

Com esses dois escritos (Arte retórica e Arte poética), Aristóteles deixou fixadas para o Ocidente as regras de argumentação persuasiva (retórica) e as regras dos gêneros literários (poética). Tudo quanto foi escrito depois, ainda que ampliado, renovado, adaptado a novas circunstâncias históricas e sociais, foi escrito a partir de Aristóteles (CHAUÍ, 2018, p. 334).

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Situada na passagem do século IV para o século III a.C., a Poética remonta às grandes produções dramáticas de, pelo menos, 150 anos, do itinerário das composições dramáticas até a época em que foi escrita.

Antes, porém, de tratarmos do drama trágico na Poética de Aristóteles, refletiremos um pouco a respeito do modo como o filósofo concebia a ideia de pensamento. Diz Aristóteles, em sua Metafísica, que o pensamento é triplo: teórico (theoréin), prático (práxis) e poético (poietikê).

O pensamento teórico ou especulativo consiste na ideia de busca pelo saber e conhecer o

“real” através da lógica. Isso se opera pelo desejo de superação da ignorância. Em seguida temos o pensamento prático em que atuamos ética e politicamente, com o fim de melhorarmos a nós mesmos. É, portanto, o resultado da práxis ainda imanente, mas não tão desinteressada como é o pensamento teórico, contemplativo. O terceiro é o pensamento poético, que está associado às artes, ao fazer algo por meio do artefato (arte factus), isto é, feito com arte, com técnica – trata-se do fazer poético. É justamente nesse terceiro campo que se situa a Poética de Aristóteles.

Enquanto Platão desenvolve um pensamento mais completo a respeito da linguagem, no campo das artes a balança penderá, sem dúvidas, para Aristóteles. Lembremo-nos, pois, que Platão em seu diálogo República assume um posicionamento bastante rigoroso quanto às artes, banindo-as, inclusive, da república ideal, com exceção da música, isto é, tipos específicos de músicas. Já em seu diálogo Leis, Platão assume uma postura menos rígida, concedendo maior espaço à poesia e aos poetas. Não obstante as diferenças do pensamento de Platão e Aristóteles, sobretudo no campo das artes, é possível constatar que ambos os filósofos estavam preocupados com os efeitos da arte e da poética na vida da pólis.

As artes não são únicas, suas expressões são muitas. Suas origens provêm de uma atitude naturalmente humana, que é a atitude de imitar, isto é, a origem primeira das artes está em nossa tendência a imitar. Assim Aristóteles nos diz que:

Parece ter havido para a poesia em geral duas causas, causas essas naturais. Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos sentem prazer nas imitações.

(ARISTÓTELES, 2008, p. 42).

Logo, as artes originam-se dessas duas causas. Imita-se mediante: versos, encenações, músicas, danças e outras formas mais. A Imitação (mímesis) é definida por Aristóteles na

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Poética, no capítulo XXV, mas, sobretudo, conjuntamente à definição de tragédia, no capítulo VI:

A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão (eleos) e do temor (phobos), provoca a purificação (katharsis) de tais paixões (ARISTÓTELES, 2008, p. 12).

Como podemos notar, Aristóteles traz consigo uma concepção positiva a respeito da mímeses.

Nesse sentido a arte teria, segundo a percepção do filósofo, um caráter benéfico, sobretudo por sua utilidade na vida da pólis.

Os estudos sobre a tragédia ocupam a maior parte da Poética, permeando todo o escrito, sobretudo a extensão compreendida entre os capítulos VI e XXIII. A tragédia Édipo Rei, de Sófocles, é, conforme se observa, a principal referência do filósofo no que concerne à elaboração do trágico. Sua composição, sob vários aspectos, corresponde aos critérios de enredo, estrutura e efeitos emocionais.

Outra importante questão levantada por Aristóteles é a composição do enredo trágico, que segundo o filósofo deve, necessariamente, ser complexa, ao passo que também deve imitar fatos que suscitam sentimento de temor e compaixão (ARISTÓTELES, 2008, p.60), para tanto, assim como ocorre em Édipo Rei, o herói trágico deve passar da prosperidade para a desgraça, não em razão da perversidade, mas pelo cometimento de um erro (hamartia).

É, pois, forçoso que um enredo, para ser bem elaborado, seja simples de preferência a duplo, como pretendem alguns, e que a mudança se verifique, não da infelicidade para a ventura, mas, pelo contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade, mas de um erro grave, cometido por alguém dotado das características que defini, ou de outras melhores, de preferência a piores (ARISTÓTELES, 2008, p. 61).

Posterior ao cometimento desse erro (hamartia) observa-se a peripécia (peripéteia), isto é, uma súbita reversão das circunstâncias do momento. Aristóteles assinala que a tragédia complexa (peplegméne), diferentemente da tragédia simples (haplê), é a mais perfeita.

Peripécia é, como foi dito, a mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas isto, como costumamos dizer, de acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade. Assim, no Édipo, o mensageiro que chega com a intenção de alegrar Édipo e de o libertar dos seus receios em relação à mãe, depois de revelar quem ele era, produziu o efeito contrário (ARISTÓTELES, 2008, p.57).

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Édipo, aqui sintetizado como figura singular representativa da concepção de herói trágico, durante sua jornada de vidapassa por algumas fasesque representam, segundo o nosso ponto de vista, fases em que as ações do herói irão orbitar certas condicionantes que, por sua vez, trarão à narrativa complexidades e significados interpretativos de grande profundidade. Com relação a essas fases e ao modo como elas se relacionam à tragicidade da peça sofocliana em questão, buscaremos tratar de forma mais pormenorizada adiante.

Para Aristóteles o poeta assemelha-se a um construtor, aliás, segundo o filósofo: “o poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos” (ARISTÓTELES, 2008, p.55).

Nesse sentido, o artífice da poesia, ao concatenar de forma hábil os pressupostos percebidos e descritos por Aristóteles, no que concerne à “boa” poesia trágica, seria capaz de conduzir sua audiência à kátharsis.

Perante o exposto, apresentamos a seguir alguns aprofundamentos a respeito da gênese do trágico surgidos a partir das ideias de Johann Wolfgang von Goethe e Albin Lesky.

4 A CONTRADIÇÃO INCONCILIÁVEL DE JOHANN WOLFGANG VON GOETHE O poeta romântico alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), é, notadamente, uma das mais brilhantes mentes de seu tempo. Seu conjunto de ideias e de descobertas contribuíram para múltiplas áreas do saber. No campo das artes literárias,o poeta destaca-se por uma vasta produção, da qual destacamos Os Sofrimentos do Jovem Werther e sua peça teatral Fausto – esta última considerada sua magnum opus. Em que pese a grande importância da literatura goethiana, o grande autor alemão também nos legou uma importante produção crítica a respeito do drama trágico. De suas correspondências trocadas com Johann Christoph Friedrich Schiller, Goethe publicou, após a morte de seu amigo e correspondente, em um jornal de crítica artística e político-cultural, sob o título Kunst und Altertum, que pode ser traduzido por Arte e Antiguidade, uma série de cartas selecionadas, cuja temática predominante era a poesia épica e dramática. Concernente às contribuições de Goethe, em sua obraA tragédia grega, Albin Lesky considera a importância do poeta e crítico alemão no que diz respeito às tentativas de se compreender a essência do trágico. Lesky lembra-nos que o trágico na visão goethiana tem como base o conceito de contradição inconciliável:

Qualquer tentativa para determinar a essência do trágico deve necessariamente partir das palavras que, a 6 de junho de 1824, disse Goethe ao Chanceler von Muller:

“Todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. tão logo aparece ou se toma possível uma acomodação, desaparece o trágico” (LESKY, 1996, p. 31).

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Para Lesky, na visão de Goethe as acomodações fazem decalcar as estruturas da tragicidade, isto é, paralelamente ao aparecimento da conciliação ocorre o apagamento do elemento trágico. Esse entendimento encontra-se implicitamente compreendido na correspondência enviada por Goethe a Zelter, em 31/10/1831, na qual o poeta diz:

Eu não nasci para ser um poeta trágico porque minha natureza é conciliadora. Por isso um caso somente trágico não me interessa porque aquele tem que ser por sua natureza de origem inconciliável (GOETHE, 2010, p.458).

Goethe compreendia-se como alguém de natureza conciliadora. Seu desinteresse no desenvolvimento de um projeto trágico, pelo menos até aquele momento, localizava-se no risco de que seu perfil pudesse afetar, negativamente, tanto a si quanto ao seu texto, segundo a sua concepção teórica sobre a natureza do trágico, que, como apontada anteriormente nas palavras de Lesky, fundamenta-se na ideia da contradição inconciliável, isto é, o evento terrível e incontornável consequente das ações humanas dentro de uma situação familiar, estatal, religiosa ou similar. A exemplo disso temos que Édipo, sujeito multifacetado e sutilmente complexo, é o maior indivíduo representativo da tragédia grega.

No mito edipiano, o fundamento do desalinhamento com os deuses não se encontra estabelecido em Édipo, visto que o herói trágico funciona na narrativa como representação do pharmakós, o bode expiatório dionisíaco, aquele a ser imolado para a purificação da pólis. A falta ou o crime (hamartía), que afetou o grupo familiar ligado por laços de sangue (guénos) e provocou a ira (nêmesis) divina, na verdade havia sido cometida pelo seu pai consanguíneo, o rei Laio, enquanto esteve hospedado na casa de Crísipo. Esse evento traz uma contradição que não pode ser acomodada e conduz Édipo ao trágico.

Além das contribuições teóricas a respeito dos fundamentos da tragicidade grega, Goethe declara em uma de suas cartas a Schiller que, para ele, compor uma tragédia seria equivalente à sua autodestruição:

Não me conheço com certeza suficientemente bem para saber se poderia escrever uma verdadeira tragédia; porém me assusto só em pensar em tal empresa, e estou quase convencido de que a simples tentativa poderia destruir-me (GOETHE, apud LESKY, 1996, p. 35).

Não obstante ao juízo externado pelo poeta alemão, observamos o fato de que Goethe é o escritor de grandiosas tragédias, a exemplo disso destacamos suas obras “Fausto” e “Ifigênia”

– Textos dramáticos de valor inquestionável.

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A concepção nutrida por Goethe a respeito da “verdadeira tragédia” não lhe era trivial; tal ideia o afetava intimamente,desaguando nos campos teórico e prático de sua vida e poesia, um limite nem sempre bem delineado quando olhamos para o poeta alemão. Lembramos, pois da composição de sua grande obra dramática Fausto e de todo seu processo de escrita, que abrangeu grande parte de sua vida. Quanto ao projeto artístico de produção do Fausto, Walter Benjamin informa-nos que: “Segundo seu próprio testemunho, Goethe trabalhou nas duas partes da obra por mais de sessenta anos”. (BENJAMIN, 2009, p.170).

5 A TRAGÉDIA SEGUNDO A DUPLA CAUSALIDADE DE ALBIN LESKY

Diante do fenômeno trágico, Albin Lesky defenderá um alinhamento crítico semelhante ao de Johann Wolfgang von Goethe. Contudo, Lesky seguirá mais adiante da concepção goethiana, sobretudo no que se refere à ideia de contradição irreconciliável, agregando novos questionamentos e propostas, que irão enriquecer ainda mais o debate a respeito da gênese do trágico. Nesse sentido,Lesky considera que:

[...] o fato de Goethe situar o trágico no mundo das antinomias radicais nos dá o acesso necessário ao nosso problema, não nos exime, porém, da necessidade de formular um número considerável de outras perguntas (LESKY, 1996, p.31).

Nesse sentido, Lesky desenvolve um pensamento no qual demonstra que a contradição trágica fundamenta-se não em uma situação irreconciliável, conforme a concepção de Goethe, mas em uma dupla causalidade que surge do embate entre dois pólos antagônicos, um situado na esfera divina e outro situado na esfera humana:

[...] a contradição trágica pode situar-se no mundo dos deuses, e seus pólos opostos podem chamar-se Deus e homem, ou pode tratar-se de adversários que se levantem um contra o outro no próprio peito do homem (LESKY, 1996, p. 25).

Desta forma, compreendemos que o trágico, na visão do historiador da cultura grega,decorre de uma tensão entre dois pólos adversários. As ações e desdobramentos decorrentes dessa oposição de forças emparelhadas produzem uma situação trágica de caráter mais relevante para a tragicidade da peça, que o seu próprio desfecho. Deste modo, no contexto de uma tragédia ática, o final nem sempre redundará, segundo Lesky, em um acontecimento irreconciliável ou infeliz:

Uma tragédia ática pode, como acabamos de ver, participar do autenticamente trágico na forma manifesta da situação trágica, o que não impede um desfecho feliz.

Mas também pode ter por tema o conflito trágico fechado que termina com a morte (LESKY, 1996, p. 40).

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Consoante ao pensamento de Lesky, o filósofo brasileiro Gerd Alberto Bornheim, em sua obra O sentido e a máscara (1975),realiza o seguinte apontamento:

Queremos dizer que a ação trágica não precisa redundar necessariamente na morte do herói, embora a morte possa causar um impacto trágico maior. Mas de modo algum é lícito considerar o happy end como incompatível com a tragédia; se assim fosse, uma boa parte das tragédias gregas não deveria ser classificada como tragédia.

O mais importante, longe de ser a morte do herói, é a reconciliação dos dois pólos ou a suspensão do conflito, embora a reconciliação possa acontecer através da morte (BORNHEIM, 1975, p.74).

Como vemos, as concepções mais modernas sobre o trágico, aqui referenciadas nos textos de Lesky (1996) e Bornheim (1975), evidenciam que esse elemento encontra-se profundamente vinculado às tensões decorrentes do conflito e da busca por sua suspensão, que pode inclusive se dar por intermédio da morte, entretanto, a exemplo de outras tragédias gregas, essa não é uma condição sine qua non para se atribuir autenticidade a uma tragédia grega. Um grande exemplo trazido por Lesky, em que podemos observar com boa nitidez os fenômenos da dupla causalidade e do final conciliador, em contraste ao pensamento de Goethe, encontramos na trilogia de Ésquilo:

Assim, em primeiro lugar, a separação dos conceitos há pouco proposta nos proporciona o aclaramento do problema do qual partimos. Obras como as trilogias de Ésquilo, que terminam em reconciliações, não cabem na definição do trágico dada por Goethe, porque esta aponta exclusivamente para o conflito trágico cerrado.

Apesar disso, chamamo-las tragédias, e isto não só para indicar sua pertinência a determinado gênero de literatura clássica mas também por causa de seu conteúdo trágico, que dentro dessas peças se configura em sua situação trágica (LESKY.

1996, p. 39).

Na trilogia citada por Lesky, a qual também conhecemos como Oréstia, vemos um conflito surgido no seio da família de Agamenon e Clitemnestra, rei e rainha da cidade de Micenas,na Grécia. A trama desenvolvida em três grandes peças: Agamenon, As Coéforas e As Eumênides, apresenta-nos, inicialmente, Agamenon, em seu regresso após dez anos da grande guerra de Tróia. No início da referida batalha, ainda a caminho de Tróia, Agamenon teve que entregar sua própria filha Ifigênia em um sacrifício exigido pela deusa Ártemis, por tê-la ofendido ao matar acidentalmente um de seus veados sagrados. Diante da terrível atitude, Clitemnestra, juntamente com seu amante Egisto, planejam e executam o plano de assassinato do rei Agamenon. Ao saber do crime, Orestes, príncipe de Micenas, por ordenança de Apolo, regressa a sua cidade e vinga a morte do pai, assassinando primeiramente Egisto e posteriormente sua própria mãe, a rainha Clitemnestra, derramando, assim, sangue familiar. A

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partir do cometimento desses crimes, temos a terceira e última peça, As Eumênides, em que vemos Orestes sendo perseguido pelas Fúrias, por causa do matricídio cometido.

A peça se encerra no Areópago, com o julgamento do crime de Orestes, presidido pela própria Palas Atena, com a participação de Apolo, as Erínias e mais um grupo de doze cidadãos atenienses. Finalizado o julgamento, verifica-se um empate dos votos e Atena decide a questão em favor de Orestes, determinando que o príncipe não seja morto. Diante da decisão,

as Fúrias se desagradam, contudo Atena as convence a aceitar o veredito, tornando-as uma força de vigilância em Atenas e modificando seus nomes. Agora, não mais seriam conhecidas como Erínias, e sim como Eumênides, que quer dizer “as graciosas” ou “as bondosas”.

Lesky reafirma sua compreensão de que a Oréstia, de Ésquilo, representa, sem dúvida alguma, uma das maiores criações trágicas da Grécia clássica, abarcando todos os elementos componentes constituintes de um grande texto dramático. Não obstante sua constatação, Lesky também enfatiza que a Oréstia não se encerra de forma cruenta e irreconciliável, visto que o herói trágico, o pharmakós, alcança da parte dos deuses o perdão quanto ao sangue materno derramado pelo herói trágico.

Diante do exposto, no qual observamos o apaziguar entre os polos divino e humano, Lesky esclarece que não deseja incorrer no paradoxo de dizer que a Oréstia,de Ésquilo,não é uma tragédia, tampouco busca refutar Goethe em seu campo. Assim sendo, suas colocações contribuem para o desenredar do tumulto das definições existentes e toleradas de modo tácito, as quais o próprio Lesky define pelo emprego do termo “barafunda”, isto é, uma situação em que não há controle ou ordem (LESKY, 1996).

Não obstante sua concepção de que a tragédia pode ter um final feliz, referenciando-se na Poética de Aristóteles, Lesky chama à atenção para um importante fato: no referido trabalho, o tragediógrafo Eurípides é qualificado como sendo “o mais trágico” dentre os áticos, em razão dos finais catastróficos de suas tragédias.

Portanto, estão igualmente errados aqueles que censuram Eurípides por fazer isto nas suas tragédias, muitas das quais terminam na infelicidade. Isto é, como se disse, correcto. A melhor prova disso é que, nos concursos dramáticos, as tragédias deste género, se forem bem feitas, revelam-se as mais trágicas e Eurípides, se é certo que não estrutura bem outros aspectos, mostra ser, no entanto, o mais trágico dos poetas (ARISTÓTELES, 2008, p. 62).

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Lesky, ao apresentar essa consideração de Aristóteles sobre Eurípedes, paralelamente busca demonstrar que na Antiguidade esboçava-se um pensamento de que as peças trágicas seriam em geral lendas heróicas repletas de sofrimentos. O ato de reproduzir acontecimentos familiares imbuídos de dor é, inclusive, reconhecido por Aristóteles como um elemento liberador de determinados afetos (ARISTÓTELES, 2008). Assim, o sofrimento foi reproduzido em intensidade cada vez maior, chegando a ser compreendido como aquilo que de fato caracterizava a tragédia. Logo, não é estranho notar, segundo a compreensão de alguns teóricos, uma concepção de trágico como algo irremediavelmente irreconciliável (LESKY, 1996).

Outra importante definição a ser trazida à memória neste contexto de abordagem diz respeito ao desenlace dos acontecimentos no decorrer da peça, no sentido da produção do efeito trágico, que segundo Aristóteles, nos capítulos XIII e XIV de sua Poética, se estabelece não pela pura e simples representação de homens que passam de um estado de felicidade para a infelicidade. Segundo o filósofo, o poeta deve imitar ações que possibilitem o despertar de sentimentos tais como temor e compaixão. Nesse sentido, uma obra que representasse homens bons, que vão da felicidade ao infortúnio sem que haja uma identificação pelo despertamento de tais sentimentos, suscitaria ao final um indesejado efeito de repulsa (ARISTÓTELES, 2008).

As questões levantadas por Lesky confirmam que o fator de tragicidade das peças gregas decorre de um conflito entre forças que, de um lado, expressa o poder absoluto dos deuses e, do outro, a finitude humana. A tensão entre esses polos suscita uma diferença, uma inconformidade a ser apaziguada no mundo dos deuses e dos homens. O trágico, ergue-se poderosamente desse conflito. Para Lesky, a natureza do trágico, em sua expressão mais genuína, encontra-se na tragédia Édipo Rei,de Sófocles:

Por trás de nossa exposição da tragédia grega coloca-se a questão da natureza do trágico. Em sua figuração mais pura, deparamo-la na tragédia de Sófocles, ao modo do primeiro Édipo: o homem na pugnaz auto-afirmação de sua dignidade face à potência superior do irracional (LESKY. 1996, p. 252).

Embora o elemento morte seja algo fortemente marcante em Édipo Rei, de Sófocles, sua tragicidade não se encontra fundamentada em tal fato. O herói trágico, Édipo, permanece vivo até o fim da história, podendo inclusive, ao fim, contemplar, em sentido simbólico, a reconciliação do conflito existente nos dois polos, "homem/finitude" ou "homem/destino", que marcou a maior parte de sua vida.

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6 SCHILLER E O TEATRO COMO INSTITUIÇÃO MORAL

Envolvido desde sua juventude com o universo do teatro, Johann Christoph Friedrich von Schiller (1759 – 1805) é tido como um dos mais amados literatos da Alemanha do século XVIII, tendo participado, ao lado de Goethe, do movimento literário romântico Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto). Entre as principais obras teatrais de Schiller, estão: Os Bandoleiros (1781), Don Carlos (1788), Wallenstein (1799) e Guilherm Tell (1803), peças que expressam, além de um grande talento para a dramaturgia, o processo de amadurecimento técnico do escritor e dramaturgo alemão. No campo da poesia, destacamos o seu mais conhecido poema lírico Ode à Alegria (1785), inspirada nos sentimentos de amizade e companheirismo vivenciados num momento de grande dificuldade financeira, e Xénias (1797), poesia composta em parceria com seu grande amigo e companheiro na arte Johann Wolfgang von Goethe.

Tão importante quanto à produção poética e literária de Schiller, evidenciamos sua produção crítico-filosófica, através da qual o poeta nos apresenta sua tese em relação à estética e suas ligações com o processo de educação e aperfeiçoamento ético dos indivíduos. É justamente nesse contexto de ideias que, em 1784, Schiller lança O Teatro Considerado como Instituição Moral, texto no qual argumenta sobre a possibilidade de conciliação entre o sentido e a razão, identificando o teatro trágico como meio artístico ideal para o alcance de tal interesse.

Segundo Schiller, a arte exerce um poder benéfico sobre os indivíduos, pois ela os influencia moralmente, através do seu efeito máximo.

Só cumprindo o seu efeito estético máximo é que ela [a arte] irá exercer uma benéfica influência sobre a moral; mas só ao praticar a sua inteira liberdade é que pode cumprir o seu supremo efeito (SCHILLER, 1992, p. 15).

Conforme exposto, o efeito moral da arte, presente no pensamento de Schiller, não está baseado em imposições que se fazem do alto do palco sobre a plateia, pelo contrário, tal efeito decorre de um exercício completo da liberdade.

As ideias desenvolvidas por Schiller, resguardadas as suas particularidades, vinculam-se fortemente ao pensamento do conhecido filósofo prussiano Immanuel Kant (1724 – 1804), principal referência teórica do poeta. Mas o que poderia ter atraído o olhar de Schiller às ideias kantianas? Possivelmente, tal como Kant, Schiller estivesse interessado em explorar, aquele que foi um dos maiores temas de sua filosofia, a saber, as relações entre natureza e liberdade. Deste modo, em sua trilogia crítica da razão, Kant aprofunda suas reflexões sobre

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tais assuntos. Em Crítica da Razão Pura (1781), o filósofo propõe a separação da natureza, onde vemos a razão em seu uso teórico, da liberdade, onde a vemos em seu uso prático. Na Crítica da Razão Prática (1788), o filósofo postula quanto aos princípios morais da livre agência dos indivíduos, visão moral essa que influenciou fortemente o pensamento de Schiller. Já em sua terceira e última crítica, a Crítica da Faculdade do Juízo (1790), Kant traz à discussão seus aprofundamentos a respeito da estética e dos sentimentos que dela decorrem, avançando, assim, sobre a diferenciação entre os conceitos de belo e de sublime, ressaltando a distinção existente entre os juízos de conhecimento da razão, em seu uso teórico, dos juízos morais da razão prática, afirmando que desse último, os juízos estéticos se afastam por dependerem da relação com objetos em uma experiência dada. Diante disso, não seria possível afirmar que, para Kant, a beleza e a sublimidade, sentimentos instigados pela arte, poderiam estar relacionados a qualquer conteúdo moral, visto que, na argumentação kantiana, o juízo estético, paralelamente ao prazer oriundo da contemplação da arte, encontra-se representado na relação de jogo mediado pela faculdade da imaginação humana e não por um instrumento da razão (KANT, 1993).

Schiller distancia-se das proposições de Kant, apontando para uma nova perspectiva sobre a estética, na qual defenderá uma harmonização entre as ideias de moral e estética, anteriormente divididas dentro da ótica kantiana. A “chave resposta” para esse dilema, segundo a visão de Schiller, encontra-se justamente no ato de fruição da arte, pois é nesse ato que os homens, de maneira geral, se deparam com seus impulsos vitais.

Não obstante a sua sustentação em favor da plena autonomia da arte, segundo os preceitos da estética kantiana, Schiller reserva para esta uma importante finalidade pedagógica: guiar coletivamente o espírito de uma nação, tal qual acontecera entre os gregos em seu período Clássico.

Se chegássemos a ter um palco nacional, teríamos também uma nação. Que trouxe vínculos tão firmemente, na Grécia, um outro? Que atraía o povo tão irresistivelmente para o seu palco? Nada mais que o conteúdo patriótico das peças, o espírito grego, o grande e dominante interesse do Estado e da elevada essência humana, que nelas se manifestava (SCHILLER, 1991, p.45).

Partindo da concepção de que a culpabilidade moral de toda uma geração estaria vinculada a uma mesma fonte, e que as gerações posteriores seguem palmilhando pelo mesmo caminho de degradação social, Schiller indica a arte teatral como meio eficaz para a proteção do povo contra suas fraquezas morais (SCHILLER, 1991), identificando o palco teatral como um aliado indispensável ao sábio legislador que deseja bem conservar sua república,

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especialmente quando o povo, sobretudo os poderosos, já não possuem mais respeito pelas leis, dando lugar ao escárnio e ao cometimento de delitos de toda espécie.

A jurisdição do palco começa onde finda o domínio das leis profanas. Quando a justiça cega, a peso de ouro, e vive na fortuna, a soldo do vício, quando os crimes dos poderosos escarnecem de sua imponência o temor humano tolhe o braço da autoridade, o teatro assenhora-se da espada e da balança e arrasta os vícios para diante de um terrível tribunal (SCHILLER, 1992, p. 35).

Para que a arte pudesse despertar o sublime efeito da justiça entre os indivíduos, Schiller acreditava na necessidade de uma educação estética. Sua defesa de homens preparados para esta apreciação ia, inclusive, ao encontro do momento histórico tão elogiado por Schiller, a Revolução Francesa. Para ele, a política encontra-se profundamente vinculada a arte e para que a sociedade pudesse ser beneficiada politicamente por ela, caberia ao sábio governante o estabelecimento de tal ensino. Neste ponto, mais uma vez observamos o espirito de Schiller unir-se ao dos gregos, em seu período Clássico, onde o teatro exercia um papel fundamental no processo de formação educativa da pólis. Schiller encontrará na junção entre o sublime e o belo, interligados ao trágico, a equação ideal de sua proposta de educação estética (SCHILLER, 1991).

É justamente na tragédia, em sua função mais elevada, que Schiller identificará a representação sensível daquilo que é supra-sensível e visível daquilo que é invisível. Nela, verificamos um embate entre as esferas que expressam, por um lado, a livre agência humana e, por outro, sua natural determinação. Além disso, um espaço transcendente que se abre para a possibilidade de reconciliação entre essas esferas. O herói trágico que participa deste confronto não deve ser, conforme a recomendação aristotélica, excessivamente virtuoso, pois se assim o for a trama torna-se meramente pessoal e logo não participamos do seu infortúnio.

Deste modo, a figura do herói trágico, tal qual o Rei Édipo, de Sófocles, deve despertar na plateia o desvelamento de sua condição – humana e mortal.

Quando vemos o herói negando todos os interesses vitais de autoconservação, por qualquer motivo que seja, “vemos” afirmar-se um princípio mais alto do que a natureza, vislumbramos a instauração de uma liberdade que anula a determinação natural. Assim, pelo menos em termos estéticos, a força de vontade de um criminoso pode ser mais fascinante do que a de um herói bafejado pela virtude (SCHILLER, 1991, p. 11).

Como observamos, e mais uma vez temos a oportunidade de enfatizar, em Schiller a visão de arte, sobretudo o drama trágico, não tem por finalidade aplicar lições de virtude, seu objetivo está em fazer com que o público perceba de forma lúcida e livre a sua existência moral em todas as suas possibilidades, sejam elas negativas ou positivas. Pela visão schilleriana, a

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poesia trágica retrata artisticamente, o conflito moral e o sofrimento de indivíduos que se insurgem contra os poderes brutais do universo e da história. O observador da tragédia tem a oportunidade de conhecer elementos constituintes do universo, até então não percebidos, os quais Schiller chamou de: ordem universal transcendente e harmonia absoluta, que só podem ser alcançadas pela superação do abismo, onde, de um lado estão postos a necessidade natural e o dever, e do outro, a liberdade moral e as inclinações dos impulsos (SCHILLER, 1991).

Assim, enquanto o belo mostra-nos o ideal absoluto dessa harmonia, o sublime, manifesto primordialmente na tragédia, mostra-nos o homem imerso no mundo das tensões antagônicas, reafirmando sua liberdade e nos fazendo vislumbrar essa harmonia absoluta.

O teatro trágico nos conduz artificiosamente às aflições alheias e nos retribui, ainda que por meio de lágrimas e sofrimentos, um significativo acréscimo de experiência e bravura. Ao contemplarmos o homem trágico e seu coração enrijecido para o golpe, lembramo-nos de nós mesmos, lembramo-nos por meio da experiência sublime da tragédia o quão humanos também somos.

7 SIGMUND FREUD, A CRIAÇÃO LITERÁRIA E O EFEITO TRÁGICO

As abordagens desenvolvidas no campo da crítica literária, com base nas tragédias gregas e, sobretudo, no mito de Édipo, se direcionam no itinerário histórico por múltiplos campos do saber, entretanto, um fato incontornável é que a retomada das discussões a partir do século XX se deve, em grande medida, ao trabalho do médico austríaco e pai da psicanalise Sigmund Freud, especialmente pelo lançamento de seu livro A interpretação dos sonhos, em 1900.

Entre as características mais relevantes da personalidade do médico austríaco, destaca-se o seu singular interesse pela literatura, em especial obras trágicas produzidas na Grécia Clássica, lugar histórico de onde Freud retoma uma série de mitos e narrativas, que o auxiliarão no desenvolvimento de suas mais importantes teorias psicanalíticas. Por seus estudos e contribuições para o campo da crítica literária, em 1930 o austríaco recebe de Frankfurt o “Prêmio Goethe”, uma honraria, até então, dedicada apenas aos profissionais da área da literatura.

Em 1908, partindo da dúvida: “de onde o poeta extrai os elementos básicos de sua arte?”, Freud escreve um artigo, intitulado: Escritores criativos e devaneios, no qual se dedica à compreensão do processo de criação literária. Para Freud, tal processo encontra-se relacionado ao ato de brincar, praticado pela criança, e ao sonho diurno, que também pode ser

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compreendido como devaneio. Nesse sentido, a argumentação de Freud passa pela ideia de que todo ser humano, em seu íntimo, possui uma capacidade poética e que o comportamento de toda criança é semelhante ao do escritor criativo, visto que a criança reajusta ou reinterpreta o mundo exterior conforme o seu querer, transformando-o para melhor, por meio do ato de brincar. O jogo literário realizado pelo escritor surge como substituição dessas reinterpretações que são feitas pelos indivíduos durante o período da infância, e ao longo tempo, por meio das imposições sociais vão sendo gradativamente reprimidas.

[...] a criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. Acredito que a maioria das pessoas construa fantasias em algum período de suas vidas. Este é um fato a que, por muito tempo, não se deu atenção, e cuja importância não foi, assim, suficientemente considerada. (FREUD, 1908, p. 136).

Tendo em mente que o fantasiar, que gradativamente se sobrepõe ao ato de brincar, encontra- se diretamente vinculado aos processos oníricos, Freud busca refletir como se dão as relações entre as fantasias e os sonhos. Além disso, também busca refletir sobre o modo como os desejos ocultos de nós mesmos em nosso subconsciente se manifestam durante esse processo:

Não posso ignorar a relação entre as fantasias e os sonhos. Nossos sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente (FREUD, 1908, p. 139).

Ao olharmos para as palavras de Freud, passamos a perceber que nenhum indivíduo humano, sobretudo os que se dedicam a criação literária, estão “livres” das influências do seu inconsciente. Junto do temor que sentimos quanto a exposição dos nossos sonhos e desejos, também sofremos pela brutal necessidade de externá-los.

Mas, indagarão os senhores, se as pessoas fazem tanto mistério a respeito do seu fantasiar, como os conhecemos tão bem? É que existe uma classe de seres humanos a quem, não um deus, mas uma deusa severa - a Necessidade - delegou a tarefa de revelar aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade (FREUD, 1908, p.137).

Quanto às obras que não são fruto da mente de um único autor, mas de uma construção psicológica de todo um povo, como é o caso dos mitos, lendas e contos de fadas, Freud aponta que tais produções podem ser a expressão de fantasias plenas de desejos de nações inteiras.

Ainda assim, as marcas de personalidade do escritor são percebidas por meio dos materiais que escolhe, ou das modificações que realiza:

Referências

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