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OCASO DO PROJETO: O "CASO" DO CONJUNTO JK

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OCASO

DO PROJETO:

O "CASO"

DO CONJUNTO

JK

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

FRANCISCO COELHO DOS SANTOS·

QPONMLKJIHGFEDCBA

P a r a H e le n a , e s s e m a r a v ilh o s o p r e s e n te

d e B e lo H o r iz o n te .

Quando escurece, de quase todos os pontos da região central da

capital mineira basta olhar para cima para saber a temperatura que está

fazendo. Tem-se, além disso, a hora certa. Tudo se passa como se o

enorme mostrador digital em néon vermelho quisesse atrair para si todos os

olhares. É que a engenhoca eletroeletrônica foi colocada no alto do 36.

DCBA

0

andar do Bloco B do Conjunto JK, ainda hoje um dos prédios mais altos,

senão o mais alto da cidade.

Há quem pense que a montagem acrescenta mau gosto ao mau

gosto. É possível. Não se deve esquecer, entretanto, que o k its c h pode ser

considerado como uma forma de expressão artística. Seja lá como for,

aquele enorme painel digital que pisca incansavelmente parece coroar um

dos monumentos da moderna arquitetura brasileira.

De fato, coroar é aí a palavra justa. E em mais de um sentido. Por

um lado, ensina o dicionário, coroar quer dizer, entre outras coisas, "encimar,

servir de remate superior a" e, por outro, "terminar, rematar". Ora, não só o

dispositivo remata (termina) a construção - uma vez que acima dele não há

senão gordas nuvens brancas sob o impecável azul do céu - como ele

arremata a admirável amostra da arquitetura moderna, dando-lhe uma

dimensão adicional. Pois o que o mostrador afixa é um desfile interminável

de números sem relação com o que quer que seja, exceto com eles próprios.

O que o mostrador exibe é o tempo abstrato, vazio, linear e homogêneo da

rnodernldade. Assim, a materialização da concepção moderna de tempo dá

acabamento à materialização da concepção moderna de espaço.'

• Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais.

1 Se passou a ser trivial afirmar que a modernidade se constitui como modo de

civilização por contraste com o da tradição e que se impôs à medida que se infiltrava em todas

as esferas da vida, é certo que a esfera da inquietude a respeito do tempo se revela como uma

das privilegiadas. Ganhar tempo, perder tempo, ter tempo, o tempo secularizado e concebido

como capital a bem administrar na austeridade de um orçamento-tempo, s6 é possível no

BIBlOS, Rio Grande, 10: 183-193, 1998.

(2)

Repleta de peripécias e de vicissitudes, a história do Conjunto JK

começa em 1951, quando, na prancheta de Oscar Niemeyer, surgiram os

primeiros traços de um projeto bastante ambicioso, capaz de se constituir

num monumento tão característico de Belo Horizonte quanto a Torre Eiffel o

é de Paris e o Rockefeller Center de Nova York. Empreendimento de

enorme envergadura, ele envolveria a edificação de dois grandes ediffcios,

um deles com 26 andares e o outro com 36 (totalizando 100 000m2 de área

construída), bem como a urbanização da área circundante, cortada por uma

rua de certa importância. Em termos de construção vertical residencial, isso

correspondia, no caso do menor dos prédios, a quase o dobro do gabarito

das maiores construções da cidade nessa ocasião e, no caso do maior, a

quase

DCBA

o triplo desse gabarito.

Dispondo de mais de 1 000 apartamentos distribuídos dentre os 11

diferentes desenhos, no Conjunto poderiam habitar, conforme estimativas

bastante conservadoras, mais de 4000 pessoas (nos dias que correm, ali

moram perto de 6000 pessoas). População importante, na época ela era

superior à da metade das cidades do Estado, representando mais de 1% da

população da capital (em 1951, Belo Horizonte tinha pouco mais de 350 000

habitantes). Para que se tenha uma idéia da monumentalidade do projeto,

basta levar em conta que, no menor dos blocos, o Bloco A, os corredores

teriam 100 metros de extensâo, cada corredor possuindo cerca de 70

portas. E isso num momento em que os pouco numerosos condomínios

residenciais da cidade eram compostos de um número pequeno de

unidades. Mas, para além de monumental, o projeto era também inovador

sob muitos aspectos. Uma dessas inovações era a utilização, inédita numa

obra dessas proporções, daquilo que em linguagem técnica se chama de

QPONMLKJIHGFEDCBA

p e a u d e v e r r e , a fachada totalmente envidraçada.

quadro de uma temporalidade específica que difere ponto por ponto daquela de anteriormente.

A modernidade encobriu a diversidade temporal e tornou "natural" o tempo abstrato e neutro da

cronometria, convertendo-se, ao mesmo tempo, em prisioneira dessa temporalidade. Passou a

ser tão natural e familiar que o tempo assim o seja que, dificilmente, consegue-se pensar que

ele possa ser experimentado diferentemente. Deste modo, ele se insinuou em quase todo o

volume do social. A vida cotidiana moderna, quer se trate da vida coletiva ou da individual, é

sistematicamente analisada e contabilizada em termos de tempo; do tempo do trabalho ao

tempo "livre", a menor parcela é quantificada e regulada com a precisão de segundos: o tempo

quantitativo e abstrato tornou-se dominante. Esse tempo que se mede e que mede todas as

atividades não tem mais a viscosidade daquele de outrora; a consistência pastosa

correspondente ao tempo ritmado pelas estações, colheitas e festas, percebida a partir de

agora como modo de ser ultrapassado e como fonna de estagnação, foi substituída pela

fluidez regular e pela velocidade de escoamento constante, próprias do tempo da

produtividade. Destituído de qualquer qualidade, o tempo abstrato e neutro da modernidade é,

em poucas palavras, linear e infinito, homogêneo e irreversível. Dentre os numerosos textos

que se ocupam da questão do tempo, cf. ÇOELHO DOS SANTOS, Francisco. Vieillesse de

I'avenir, jeunesse du présent. S o c ié té s , Paris, Dunod, n. 35, p. 27-36,1992.

184 BIIILOS, Rio Grande. 10: 183-193, 1998.

Prodígio de pretensão, o projeto propunha novidades técnicas tanto

quanto preconizava preceitos comportamentais pouco ou nada usuais para

seus futuros moradores. Assim é que, visando a um só tempo a

funcionalidade e o aumento dos espaços de convivialidade, criou-se o

conceito. de "coletivização do conforto". Na prática, isso significava a

construção de instalações de uso coletivo que permitiriam o encontro das

pessoas e uma significativa redução na área útil das unidades. Uma

lavanderia, um restaurante e uma cafeteria comunitárias foram planejados

para esse fim, fazendo com que a maioria dos apartamentos - mais de 600

com um único quarto, quase 400 com dois e cerca de 20 com três quartos _

não precisasse dispor de área de serviço. Nessas condições, tampouco se

necessitava de grandes cozinhas: elas tiveram suas dimensões diminuídas

em decorrência. Originalmente, o projeto previa também a construção de

alguns outros equipamentos de conforto coletivo, tais como teatro, cinema,

museu, p la y - g r o u n d , piscinas e lojas diversas, além de uma estação

rodoviária. Formando o que se poderia chamar de infra-estrutura de

serviços, esses equipamentos de uso comum estariam localizados na base

da edificação. Como uma rua já cortava o terreno, dividindo definitivamente

o Conjunto em dois pedaços, foi projetada uma passarela para ligar as

partes separadas (tal passarela jamais existiu e as partes permanecem

separadas). Uma parcela da área construída ficaria reservada para a

instalação de repartições pübücas."

Três anos mais tarde a construção começava a sair do chão,

plantada num terreno público de pouco mais de 16 000m2, situado na Praça

Raul Soares, nas cercanias do centro da cidade. Construída em 1936 para

sediar o 11 Congresso Eucarístico Nacional, a praça é uma estrutura

urbanística inusitada nas grandes cidades brasileiras: a praça em é to ile ,

uma rotunda para onde convergem diversas avenidas. Na borda dessa

praça de belos jardins, à medida que subia, o Conjunto ia concretizando em

pedra, cimento e ferro os mais caros projetos de pelo menos duas tas

partes envolvidas na empresa desde a sua concepçâo", De um iado o

arquiteto-urbanista, já então bem conhecido pela "audácia de suas criações",

como se dizia à época - mas também por sua colaboração com Le

Z Como o terreno sobre o qual se edificaria o Conjunto era um proprto estadual,

segundo a proposta de incorporação, o Estado cederia a área em troca de área construída de

igual valor. A esse propósito, ver PIMENTEL, Thars Velloso C. A T o r r e K u b its c h e k . Belo

Horizonte: Seco de Estado da Cultura, 1993. p. 97-99.

3 Na verdade, havia uma terceira parte interessada: o empresário Joaquim Rolla.

Tendo seu nome associado aos jogos de azar, Rolla havia feito fortuna explorando cassinos (o

Cassino da Urca e o do Hotel Quitandinha, entre outros). Com a proibição do jogo, viu-se

obrigado a se reciclar. Tornou-se, então, empresário no setor imobiliário. Sua participação

como incorporador do Conjunto JK durou cerca de 10 anos. Ele abandonaria o

empreendimento no início dos anos 60, muitos antes que os prédios tivessem oh a b ite - s e .

BIBlOS, Rio Grande. 10: 183-193. 1998.

(3)

Corbusier e pela sua adesão ao afamado Movimento Moderno - que via

crescer mais uma de suas criaturas. E não das menores ou das menos

importantes. De outro, Juscelino Kubitschek, o polftico hábil que vinha

construindo

sua

bem-sucedida

carreira

sobre

a

idéia

central

de

desenvnlvimento

a passos largos, que assim fornecia as provas, em

concreto e vidro, da solidez e da nitidez de seu ideário. De sobra, dava

nome

DCBA

à

eaificação: o Conjunto JK.

4

Na mensagem enviada pelo Governador do Estado - então em seu

primeiro ano de mandato -

à

Câmara dos Deputados, justificando a

implantação Imediata do empreendimento, aprende-se que, a seus olhos, a

realização

constitt.uia

"o

encaminhamento

de

uma

empreitada

que

apresenta contribuição importante para atenuar-se a crise de moradias que

afeta a classe media, propiciando

à

população urbana habitação própria de

alto padrão de conforto, por um preço excepcionalmente baixo", redundando

"na consecução de uma obra monumental, símbolo de progresso e fator de

desenvolvimento, verdadeiro marco de civilização a ser plantado no coração

da capital que mais se desenvolve no país". Afora isso, a realização conteria

em seu bojo a "concretização de um plano coletivo de conforto e bem-estar,

que se estenderá a milhares e milhares de pessoas; um plano que

representa progresso para a cidade, novas oportunidades para seu povo,

para a sua indústria e para o seu comércio". O que estava em apreço era

um projeto, continuava o documento, cuja execução significaria um passo

decisivo "na efetivação de uma experiência urbanística que' enriquecerá a

cidade

não só dotando-a

de

uma jóia

arquitetõnica, como também

resolvendo, dentro das soluções funcionais preconizadas pela técnica mais

atual, problemas que o desenvolvimento futuro iria certamente

exacerbar"."

O impresso que apresentava a realização imobiliária ao mercado

afirmava, por sua vez, que "essa obra monumental, que será a grande

característica da cidade, distingue-se, inicialmente pelo arrojo, pela beleza,

4 A colaboracão de Kubitschek e Niemeyer já não era nova. No início dos anos 40,

quando Kubitschek era prefeito de Belo Horizonte, Niemeyer fora o responsável pelo projeto de

urbanização da Pampulha. Projeto imenso que abrangia a urbanização de toda uma região da

cidade em torno de um lago artificial de cerca de 18km de perímetro, e que implicou até

mesmo a melhoria do acesso à região, ele envolveu, entre outras coisas, a construção de um

cassino (hoje Museu de Arte da cidade), de uma igreja, de um late Clube e da chamada "Casa

do Baile", um

QPONMLKJIHGFEDCBA

d a n c in g popular (hoje desativado) que fica numa ilha artificial a uma dezena de

metros da margem do lago. Deve-se "à originalidade e ao espírito contestador" desse projeto

muito do renome de que o arquiteto-urbanista gozava nos anos 50.

S MINAS GERAIS. Mensagem nO 255 de 13 de novembro de 1951. Minas Gerais;

órgão oficial dos poderes do Estado, Belo Horizonte, 17 de novembro de 1951. D iá r io d a

A s s e m b lé ia , p.1. Apud CAPORALI, Renato et aI. Conjunto JK : idéia e história. R e v is ta d a

F u n d a ç ã o J o ã o P in h e ir o , v. 15, n. 7/8, p. 45, set.ldez. 1985. A mensagem do Governador foi,

evidentemente, objeto de elogios e de críticas. Para um levantamento desses elogios e dessas

críticas, ver PIMENTEL, T h a i s Velloso C., op. cit., p. 101-104.

1 8 6 BIBlOS. Rio Grande. 10: 183-193. 1998.

pela imponência de suas linhas arquitetõnicas". Acrescentava a mensagem

publicitária: "Será uma das realizações mais fortes da moderna arquitetura

brasileira, hoje tida, em todo o mundo, como padrão a seguir, como escola a

parte, pela ousadia de suas concepções, pelo seu inteligente caráter

funcional".

Técnica e progresso associados a desenvolvimento, caráter

funcional associado

a conforto e bem-estar: eis as idéias-chave do

empreendimento. A partir dos imperativos da modernidade, ele fazia sua a

fórmula rimbaudiana: "é absolutamente necessário ser moderno". Letra de

lei para o renomado arquiteto, esse lema era como música suave para os

ouvidos do futuro Presidente da República.

Complementava a brochura promocional: "O novo sistema de vida

lançado pelo Conjunto Governador Kubitschek reduziu ao mínimo as

necessidades no interior de cada unidade residencial. Ó' problema da

criadagem praticamente desapareceu, com os serviços da organização

hoteleira". Ou seja, tanto solteiros como casados "terão, nesse apartamento

simples, o essencial para morar. As áreas comuns, os espaços comuns do

Conjunto, completarão o seu apartamento. E a organização dos serviços

hoteleiros simplificará a sua vida". Acenava-se, assim, aos possíveis

proprietários com uma proposta providencial: a compra de um apartamento

naquele condomínio correspondia, antes de mais nada, a uma liberação das

pesadas e penosas tarefas do dia-a-dia. Morar ali nada mais era que

transformar o prático-inerte em coisa do passado. Quem não desejaria viver

segundo

um

estilo

de

vida

moderno,

se

isso

significava

viver

desembaraçado

dos

repetitivos

e

sempre

recomeçados

encargos

domésticos? Os demais itens de conforto oferecidos aos futuros moradores

- piscina e bar, teatro, cinema e museu de arte - seriam uma espécie de

suplemento, um excedente capaz de proporcionar a eles diferentes opções

de lazer, possibilitando-Ihes a participação numa longa lista de atividades

sócio-culturais, atividades que poderiam ser exercidas sem mesmo ser

necessário sair do Conjunto. Ironicamente, após a entrega das primeiras

unidades aos proprietários, o espaço dedicado ao museu de arte foi

ocupado por uma seção da Secretaria de Segurança Pública do Estado e,

nos andares inferiores do Bloco B, instalou-se uma delegacia da Polícia

Federal.

Ironias do destino

à

parte, o projeto, sem dúvida um dos mais

"modernos" de Niemeyer, fornece um bom exemplo do que se poderia

chamar de

e s té tic a d o c r is ta l 8 .

O cristal e a flor - dois temas caros ao

6CONJUNTO GOVERNADOR KUBITSCHEK. s.n.t., p. 25.

7Op. cit., p. 18.

8 Não se deve pensar que a noção de estética seja algo inteiramente dissociado de

uma sensibilidade coletiva. Ocorre que o objeto estético tem a capacidade de engendrar

comunidade. Pode-se considerar que a apreciação de um objeto estético se funda num acordo

BIBlOS, Rio Grande. 10: 183-193, 1998.

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romantismo alemão - remetem a dois ideais estéticos. Um deles diz respeito

a uma matéria sensível cujas configuração, conformação e consistência são

completamente harmônicas com uma pureza formal de ordem geométrica,

até mesmo matemática, capaz de ser reconhecida ainda que não se

conheçam suas leis. O outro se refere a uma vida cuja incontornável

atividade interna se manifesta na sua capacidade intrínseca de engendrar e

de reproduzir o vivo, sem obedecer ao ideal da ordem matemática, e cujo

inesgotável dinamismo é capaz de criar entidades que ignoramos rigores da

pureza formal. Os temas da flor e do cristal foram tomados de empréstimo

ao romantismo alemão visando estabelecer uma estratégia de entendimento

de dois modos de experimentar o tempo e o espaço. Dois modos de operar

com eles e sobre eles que são inteiramente distintos e de coexistência

complexa e conflitual.

Para além das preocupações formais e simbólicas, a estética do

cristal produz uma imaginação construtora com intenções políticas e sociais

bem explícitas. O pensamento arquitetônico que ela constitui quer construir

o imóvel novo para que o homem dos novos tempos aí viva: Trata-se do

QPONMLKJIHGFEDCBA

/n te r n a tio n a / Sty/e, das formas puras, simples, geométricas, com pretensão

internacional e, portanto, com disposição homogeneizante. Essa concepção

arquitetural tem um certo número de mandamentos, os mais fundamentais

sendo " F o r tn fo llo w s

tunction",

aquele que subordina a forma

DCBA

à função e

funda o estatuto funcionalista, e " L e s s is m o r e " , aquele que valoriza mais a

expressão mais simples, a forma mais simples e despojada. Foram

justamente essas regras que, durante décadas, norteararn a construção dos

inumeráveis cubos e paralelepípedos de concreto, metal e vidro que hoje

povoam nossas cidades. Nessa multiplicidade de sólidos de inspiração

geométrica, podem-se encontrar, não obstante, certos traços típicos.

Inicialmente, a recusa obstinada do ornamento externo em favor da nudez

dos volumes e da pureza das formas, que elas se acomodem à dureza da

linha reta ou à doçura da sinuosidade. Observa-se, igualmente, uma vontade

expressa de operar uma composição do interior com o exterior, quer pelo

uso de elementos construídos - tais como pilotis, rampas ou terraços - quer

pelo uso q a transparência do vidro. Há, ainda, a liberdade deliberada na

coletivo e aberto, não definido previamente por conceitos ou regras, que faz do sujeito que o

experimenta um membro de uma comunidade. No ato estético, o homem, afirmando a

universalidade de seu sentimento, ultrapassa seu eu e junta-se aos outros. Assim, a

experiência da fruição de um mesmo objeto estético produz o sentimento de pertencimento a

uma comunidade, independentemente do conceito ou das regras, na medida em que liga

emocionalmente uns aos outros todos os que fruem a beleza do mesmo objeto, natural ou

produzido. Trata-se de "comunidades emocionais" que se fundam sobretudo no fato de que a

apreciação de um produto estético produz naqueles que compartilham dela o sentimento de

que fazem parte de uma comunidade, da comunidade dos que têm prazer com o mesmo

produto estético.

188 BIBlOS, Rio Grande, 10: 1B3-193, 1998.

concepção da planta, capaz de desafiar tanto as tradições do modo de

morar quanto as convenções da estética costumeira,

O espaço que se utiliza é encarado por essa estética como

homogêneo e isótropo, desprovido de toda singularidade e de todo valor.

Para ela, o espaço é reduzido a suas dimensões métricas, convertendo-se

numa abstração sem corpo nem alma, sem memória nem história. Esse

espaço abstrato e depurado, do qual está ausente o espírito do lugar, não

conserva mais as características que são as da superfície de um tecido

urbano impregnado de vida". Ele se confunde com a épura onde são

desenhados objetos arquiteturais funcionais e autônomos, desconectados

de seu meio ambiente e destituídos de m ic r o c /im a .

O purismo formal dos edifícios, a exatidão de. poliedros condenados

à reprodução viral nas grandes cidades - desenvolvendo-se em escala

planetária, onde quer que elas se localizem, qualquer que seja a sua história

e o universo cultural em que estão imersas - e o sonho de uma cidade

universal desenraizada do solo onde ela é construída são testemunhos de

um modo de operar sobre a realidade a partir do qual a estética do cristal

quer edificar o futuro: uma abstração crescente e o predomínio sobre a

e s té tic a d a flo r . Na proporção em que, em termos arquiteturais, a abstração

destaca o objeto daquilo que o cerca, ela tende a liberá-lo de sua relação

com as outras coisas, arrancando-o à densidade de sua história e

tornando-o uma espécie de abstornando-oluttornando-o. Codificado pela Carta de Atenas, esse modo de

operar é, naturalmente, herdeiro da A u fk la r u n g , e busca seus fundamentos

na

inabalável na Razão, na crença indestrutível na idéia de Progresso e

na oposição resoluta à Tradição, A razão é concebida como a luz capaz de

"iluminar" gradualmente todo modo de ser nesse mundo; o progresso é

compreendido como a superação contínua do que é, levando ao

aperfeiçoamento crescente de tudo que pode ser dado na experiência, seja

ela individual ou coletiva, enquanto que a tradição é identificada aos modos

de pensar, de sentir e de agir que permanecem tributários do passado,

enraizados nos hábitos e nos costumes.

Para essa estética, ser é tornar-se. Não apenas o ser não

permanece, como seu devir tem um sentido, Dito de outra maneira, para ela,

9Impossível, aqui, não lembrar da fórmula de Venturi: " M a in s tr e e t is a /m o s t a li r ig h f', a

rua principal é quase perfeita. Convertida em ponta de lança da crítica do arquiteto americano

ao Movimento Moderno - e à sua santíssima trindade: Le Corbusier, Mies van der Rohe e

Frank' L10yd Wright - ela traduzia a intenção de construir uma arquitetura em ligação direta

com a vida cotidiana. Evidentemente, ele tinha em vista uma arquitetura progressista e

utópica, que se queria revolucionária e demiúrgica, aquela que acreditava ser sobre uma folha

em branco que se desenha melhor e que, por conseguinte, começava por ignorar o existente.

Sobre o trabalho de Venturi e sua repercussão na arquitetura contemporânea, ver, entre

outros, PORTOGHESI, Paolo. A u - d e /à d e /'a r c h ite c tu r e m o d e m e . Paris: L'Equerre, 1981,

particularmente p. 109-118.

(5)

as formas modernas de organização da realidade passam a ser o ponto de

fuga que ordena a perspectiva do existente. O que aí está em ato é lógica do

"dever ser". Por um lado o existente é confundido com um

QPONMLKJIHGFEDCBA

" d e v e r s e r " e, por

outro, esse último é identificado a um inevitável " to r n a n d o - s e " . Eis por que é

num futuro que se deve fazer acontecer, isto é, num ideal que se deve realizar

a qualquer custo que o discurso dessa estética ancora sua legitimidade. E

esse ideal tem um valor legitimarite porque é universal, porque ,ftle pretende

ser um valor para todos. Ele orienta não só o modo de construir e de m o r a r ,

mas o modo de sentir e de pensar, o modo de se relacionar consigo mesmo

e com os outros; em uma palavra, o modo de viver de cada um. Assim, a

estética do cristal forneceu à arquitetura seu modo característico de

construir: o projeto do /n te r n a tio n a /

Sty/e,

ou seja, a vontade de construir

orientada em direção a um objetivo. Segundo os pressupostos dessa

estética, mais do que desenhar croquis, plantas e perspectivas de objetos

dentro dos quais se mora, a arquitetura cria um projeto demiúrgico.

Começada em 1953, a construção do "audacioso" projeto do

Conjunto JK conheceu, no entanto, dificuldades diretamente proporcionais

ao seu porte e à sua pretensão. Tantas e tão grandes foram elas que, em

'1970, quando ele recebeu seus primeiros moradores, continuava inacabado.

Tais dificuldades se devem a diversas razões, algumas das quais costumam

ser consideradas as mais decisivas. Seu gigantismo, em primeiro lugar. As

proporções do empreendimento - sua monumentalidade, como dizia a

brochura promocional - se constituíram desde a primeira hora numa fonte

inesgotável de entraves e obstáculos de toda ordem, em particular, de

ordem econômica: ao longo do tempo, o finahciamento da construção

tornou-se cada vez mais precário. O custeio da obra dependendo

fundamentalmente da venda de frações ideais" e o superdimensionamento

da realização ultrapassando largamente a demanda corrente de compra de

moradia, os fundos para a construção foram se tornando demasiado

modestos para fazer face às despesas da obra e o consórcio de empresas

criado com o fim de levar a cabo a construção foi sendo gradualmente

abatido pelos abandonos e pelas falências. Havia ainda a inadequação do

"novo sistema de vida" que ele propunha ao "sistema de vida" da sociedade

naquela época. O fato é que o modo vertical e condominial de morar era

ainda pouco habitual e, portanto, muito pouco sedutor para uma grande

DCBA

1 0 De acordo com Thars Pimentel, a incorporação da obra resultou numa composição

em que, dos 100 000m2 de construção previstos, o Estado participava com 16,716%, o

Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais era condômino com

7,767% e o empresário Joaquim Rolla, através da firma Hotel Quitandinha S/A, com 19,089%.

Os restantes 56,428% ficaram reservados para serem vendidos aos futuros proprietários

particulares de frações ideais. Ver PIMENTEL, Thats Velloso C., op. cit., p. 113. Nesse mesmo

trabalho, nas páginas subseqüentes, aprende-se bastante sobre as peripécias financeiras e as

vicissitudes de andamento por que passou o projeto no longo período de sua execução.

190 BIBLOS, Rio Grande, 10: 163·193, 1996.

parcela da população ainda à procura de construções baixas e

individualizadas como solução para a compra de casa própria. Não bastasse

tudo isso, é preciso ter em conta que nos quase vinte anos de duração da

obra, a feição e a valorização do centro da cidade mudaram inteiramente.

Se, à época do lançamento do projeto, ele gozava ainda de um certo charme

e era capaz de ser atrativo para uma parcela ponderável da classe média, o

tempo e o tipo de ocupação haviam mudado seu destino: o centro e suas

cercanias tinham perdido todo o seu encanto em benefício de outras

reqiões.,

Eles se transformaram no lugar do comércio e dos negócios,

enquanto o lugar de morar se transferira para os bairros. O resultado dessa

constelação de problemas é que o Conjunto só começou a ser efetivamente

habitado cerca de duas décadas depois de desenhados seus primeiros

esboços. Inacabados, os prédios também não possuíarn o h a b ite - s e - a

Prefeitura só o forneceu em 1972.

E eles foram sendo gradualmente ocupados por uma população s u i

g e n e r is . Ocorre que o grande número de apartamentos pequenos e o

inusitado modo de morar que era ali praticado atraíram preferencialmente

um contingente de moradores jovens e de solteiros. Numerosos, com

hábitos pouco convencionais, com um estilo de vida que era pouco ou nada

"familiar", eles contribuíram de forma involuntária, porém determinante, para

criar, em torno do Conjunto, uma aura de suspeita, pouco a pouco

cristalizada na fama de que ali era um lugar onde tudo podia acontecer. O

inacabamento da construção e a rápida depreciação dos edifícios e das

partes comuns logo se tornaram os signos mais evidentes do triste renome

que ele adquirira. Além do mais, as dimensões do condomínio faziam com

que sua administração fosse demasiado complexa - grande como uma

pequena prefeitura - despreparada, no entanto, para dar conta do bom

funcionamento de tal coletividade, seja em termos de orçamento, seja em

termos de manutenção de toda a edificação, seja em termos da solução dos

problemas cotidianos", seja em termos das relações entre os condôminos.

Foi assim que a "jóia arquitetõnica". núcleo de uma original

1 1Olhando hoje em dia o Conjunto, a impressão que se tem é de deplorável estado de

conservação, de deterioração progressiva e inexorável. Na verdade, os transtornos da obra

transfiquraram a const~ução desde o início. Assim, a qualidade dos acabamentos e dos

revestimentos variaram, sempre para pior, à medida que os meios minguavam. Deve-se

imaginar que essa piora de qualidade tenha alcançado igualmente materiais menos visíveis.

Tempos depois de estar habitado, certos itens de conforto, tais como o aquecimento central de

água e o sistema de exaustão das instalações sanitárias e cozinhas foram desativados por se

mostrarem muito dispendiosos. O sistema de venezianas, as b r is e - s o le i/, instaladas

externamente no Bloco B para permitir a ventilação dos apartamentos e , ao mesmo tempo,

protegê-Ios do excesso de luminosidade, há muito deixou de funcionar por falta de

manutenção de seu mecanismo. O inventário das mazelas do Conjunto seria longo e

fastidioso. Melhor interrompê-Io por aqui.

BIBLOS, Rio Grande, 10: 163·193, 1996.

(6)

"experiência urbanística", que alguns anos depois da concessão do

QPONMLKJIHGFEDCBA

h a b ite

-se abrigava alguns milhares de moradores, converteu-se também no espaço

exíguo de uma multiplicidade fervilhante de vida, com todas as implicações

que isso comporta.

DCBA

A difícil gestão das despesas e dos interesses comuns, a

complicada economia dos mal-entendidos e das ambigüidades geradas por

uma população muito diversificada, nada mais eram que indicadores de que

ad e s o r d e m d a v id a se instalara definitivamente no Conjunto. Com ela, foram

trazidos para os intermináveis corredores dos prédios tanto as inevitáveis

intrigas sexuais quanto as banais brigas de vizinhança, tanto as

contravenções às regras da convenção do condomínio quanto os pequenos

delitos sujeitos à perseguição penal. Lugar de mistura de pessoas, de

mescla de costumes, de colagem de hábitos, nele tudo é pouco ponderável

e pouco usual. Mesmo o trágico aí está presente: os suicidas lá vão,

seduzidos pela grande altura dos edifícios. Nas longas "ruas internas" do

Conjunto, entre tantas portas que se abrem para casas de pessoas comuns,

daquelas que se diz serem honestas e trabalhadoras, é possível, entretanto,

encontrar certos recantos onde são oferecidos encontros sexuais a bom

preço, assim como viagens fabulosas que só alguns produtos químicos

podem proporcionar. Nada de surpreendente, portanto, se, do ponto de vista

de boa parte dos habitantes da cidade, ele tenha entrado para o catálogo

dos lugares malditos, onde gente "de bem" não deve pôr os pés.

O que a população que habita o Conjunto põe à mostra é uma outra

estética: aquela que antes foi chamada de e s té tic a d a flo r , regida por um

outro modo de operar, o do q u e r e r v iv e r social. Ela engendra um espaço que

liga as pessoas, mesmo que o contraditório jamais esteja ausente dele.

Trata-se do espaço da social idade, espaço compartilhado onde se dá a

experiência sensível das reuniões e das desuniões, dos acordos e dos

desacordos constitutivos da vida social. Em relação aos outros, esse é o

espaço da vizinhança, onde se pode tocar o outro e trocar com ele, espaço

onde, muito mais do que a dimensões racional e contratual das relações, o

que está em ato são suas dimensões sensível e afetiva. Relações sempre

multicoloridas, na medida em que elas são fatalmente matizadas pelas

comunhões e pelos conflitos intrínsecos a toda experiência coletiva.

No que diz respeito ao Conjunto JK, seria trivial dizer que há sempre

um descompasso ou um desnível entre a idéia e sua realização ou, o que dá

no mesmo, lembrar que "na prática, a teoria é diferente". Seria cômodo

constatar que todo projeto complexo é forçosamente heterotélico, isto é, que

ele é capaz de, quando posto em funcionamento, produzir efeitos que não

poderiam ter sido previstos à partida ainda que todos os seus elementos

constituintes sejam previamente conhecidos. Qualquer coisa como e fe ito s

b a s ta r d o s que dão mostras de sua existência tão logo o projeto se

concretiza ou se põe em marcha. Precisa-se, no entanto, ter cuidado para

1 9 2 BIBLOS. Rio Grande. 10: 183-193. 1998.

que a trivialidade ou a comodidade não se transformem em empecilhos para

. perceber que aquilo que o "caso" do Conjunto JK põe à mostra é da ordem

da falência do In te r n a tio n a l S ty le como modo de experimentar o espaço e de

operar com ele1 2 . O que se parece com uma revanche da estética da flor

sobre a do cristal representa. em resumo. a dissolução daquilo que

justamente se poderia chamar de u to p ia do Movimento Moderno. Utopia.

esse significante polissêmico que. para além dos seus sentidos correntes,

tem gravado de maneira indelével na sua etimologia a idéia de lu g a r n e n h u m

ou de n ã o - lu g a r .

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1 2A esse propósito, convém lembrar de um acontecimento que é geralmente tido como

um marco para a história da arquitetura: a implosão do complexo residencial Pruitt-Igoe, em St.

Louis, no Missouri, no dia 15 de julho de 1972, às 15h32min. Construido em 1951 segundo as

regras de ouro do CIAM. (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), o conjunto

habitacional havia sido, na ocasião, premiado pelo Instituto dos Arquitetos Americanos.

Composto por vários prédios de 11 andares, com corredores intermináveis, fileiras sem fim de

janelas idênticas, enfim, com uma estrutura gigantesca e repetitiva, ele tinha se tornado uma

espécie de gaiola dourada, insuportável para seus moradores, cujo mal-estar terminou por se

manifestar em atos de violência e de vandalismo crescentes. A solução foi abater o complexo

com dinamite. Para muitos, o acontecimento - até então sem precedentes - se constitui no

golpe de misericórdia nas concepções da arquitetura moderna.

BIBLOS, Rio Grande. 10: 183-193. 1998.

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