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Repositório Institucional UFC: Infância, poesia e educação em Cecília Meireles

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Academic year: 2018

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Infância e relações etnorraciais em pesquisa

por uma cosmovisão romântica, compreendia a criança a partir de si mesma, considerando-a um cidadão em potencial, para quem a edu-cação deveria respeitar seu desenvolvimento psicológico, sua natureza sincera, espontânea e curiosa.

A concepção ceciliana de infância compreende, em linhas gerais, um período dotado de particularidades que devem ser respeitadas pelo adulto, como está posto nas várias crônicas dedicadas ao tema, quando através de muitos exemplos e relatos de experiências, a cronista fala da riqueza do universo infantil, no que tange àpercepção, ao pensamen-to e às atitudes da criança diante do mundo e da vida, convidando os leitores a se tornarem novamente crianças. Eis alguns fragmentos ilus-trativos retirados da crônica "O livro e a criança":

Uma menina perguntou-me, um dia, por que Deus não fazia árvores azuis. Isso parece uma futilidade, mas envolve uma visão diferente da paisagem. Éuma outra paisagem, imaginada, que se faz sensível, e vem pedir à menina as razões de sua impossibilidade (...). Li, certa vez, num poema de um menino, esta coisa adorável: "dei um salto melancólico"(MEIRELES, 2001, v. 5, p. 294).

A leitura dos trechos acima nos remete à constatação de que as crianças, de um modo geral, são poetas em razão da experiência lin-guística, lúdica e poética que vivenciam, antes mesmo de frequentarem a escola, e esta, muitas vezes, não sabe aproveitar o potencial poético da criança. Ao mesmo tempo, querer "árvores azuis" e "dar um salto melancólico", a priori, não cabem na ordem lógica do mundo racio-nal, mas, conforme Gaston Bachelard (1988, p.28), são perfeitamente cabíveis nos devaneios da criança, nos quais a imagem prevalece acima de tudo. No geral, a criança enxerga belo e seus devaneios restituem a beleza das imagens primeiras. Por estas razões, uma das preocupa-ções de Cecília Meireles é aproximar mais diretamente a Pedagogia do lirismo da infância.

Ouvir as crianças, observá-Ias e permitir que falem são pressu-postos indispensáveis ao projeto pedagógico ceciliano, associado à necessidade de vê-Ias como seres pensantes, possuidores de forte ima-ginação criadora, ludicidade e sensibilidade que as aproximam dos poetas, como expressa Cecília na crônica intitulada "Como as crianças

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pensam" (MElRELES, 2001, v.l). Esse pensamento encontra resso-nância nos versos de Manoel de Barros:

o descomeço era o verbo. Só depois é que veio o Delírio do verbo.

O delírio estava no começo, lá aonde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para o som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta,

que é voz de fazer nascimentos O verbo tem que pegar delírio. (BA~OS,2007,p.15)

A relação existente entre o poeta e a criança parece paritária, pre-valecendo o espírito de partilha e de comunhão, não podendo ser dife-rente, uma vez que ambos vivem, geralmente, em um estado poético e de contemplação diante do mundo e da vida, permeado, sobretudo, pelo lúdico e pela fantasia. Logo, alimentar esse estado no homem seria uma das contribuições que a educação escolar poderia oferecer para o projeto de humanização de crianças, jovens e adultos, objeti-vo que Cecília defendeu, seja através de sua atuação como professora, seja mediante a sua participação no jornal como cronista da educação, entre outras experiências.

Na mesma linha desse pensamento, o filósofo Gaston Bachelard, ao tecer sua crítica à objetividade presente na educação contemporâ-nea, chama a atenção para o papel da família e da escola na cisão entre a subjetividade do mundo infantil e a objetividade do mundo adulto, com o nítido afastamento do devaneio e da imaginação infantis.

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As cronicas cecilianas sobre a infância nos fazem lembrar do pensamento de Walter Benjamin (2002), porque trazem a visão da criança como um ser de sensibilidade e imaginação criadora, inserida na realidade histórico-social e capaz de recriá-Ia. Além disso, Cecília e Benjamin discutem as premissas educacionais para a infância, dando destaque àrelação da criança com o outro.

E interessante observar a percepção arguta de Cecília Meireles na análise das transformações de sua época sobre o universo infantil, quando na crônica "A arte de brincar", lamenta que "os tempos andam tão maus que as crianças já não sabem brincar". A autora, em tom nostálgico, faz uma breve digressão sobre as mudanças no hábito de brincar, o desaparecimento de certas brincadeiras coletivas e de alguns brinquedos encantadores:

Em dias mais tranqüilos, elas gostavam de suas cantigas de roda, tinham um largo repertório, e à tardinha e à noite brincavam pelos quintais e pelas ruas, pelos jardins e pelas praças. Tinham também jogos cantados e falados, resíduos ou esboços de teatro, e com eles se

entretinham alegremente. Os brinquedos simples, primitivos e eter-nos, fáceis de obter e de conservar, não faltavam nem mesmo às mais pobres; e quase se podia saber em que mês se estava pelo aparecimen-to dos papagaios de papel ou das bolas de gude, do pião ou bilboquê. (MEl RELES ,2001, v. 5, p. 369).

A crítica à sua época resvala para os dias de hoje, quando perce-bemos, assim como a cronista em 1942, data da publicação da crônica aludida, a incidência de crianças "irritadas e desnorteadas", envolvidas por uma atmosfera de agitação "que as deixa sem a suficiente serenida-de para apreciar a beleza simples das pequenas coisas" (MEl RELES, 2001, v. 5, p. 369), sobretudo, se considerarmos o predomínio da cul-tura de massa e seus brinquedos eletrônicos no cotidiano de nossas crianças, os quais pouco solicitam do consumidor o encontro com sua subjetividade, o cultivo de sua afetividade e poder de reflexão, e muito exigem posturas automáticas. Por outro lado, as experiências da cultu-ra lúdica, que não se pautam pelo padrão dos brinquedos e brincadei-ras da indústria eletrônica, parecem se prestar melhor ao desenvolvi-mento psicoafetivo da criança.

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Endossando essa ideia é que Cecília Meireles, na crônica ''As crianças e os brinquedos", defende que "o brinquedo mais útil é aquele que a criança cria, ela mesma, que procura realizar com o material de que dispõe (MElRELES, 2001,IHGFEDCBAv A , p.17). Em outro momento, nas

palavras finais da crônica ''A arte de brincar", Cecília, revelando uma extraordinária atualidade e senso crítico, assim se pronuncia: "e é por isso que eu digo que a arte de brincar se vai perdendo. A máquina está gastando a infância". (MElRELES, 2001, v. 5, p. 371).

Essa afirmação nos transporta para o lugar ocupado pela cultura lúdica em nossa sociedade, cujos desígnios capitalistas relegam o brin-car à insignificância das coisas inúteis, numa perspectiva que se opõe, especialmente, ao trabalho, atividade que sustenta a movimentação do capital, seja através de mãos adultas ou infantis.

Em relação ao trabalho infantil, Cecília se coloca veementemente contra, apresentando um retrato crítico da infância sacrificada:

Crianças que carregam ao colo os irmãozinhos, o dia inteiro, que deles cuidam, enquanto a mãe anda noutros afazeres. Crianças que vão à feira, que entregam roupa lavada, que carregam marmitas, que, de mil e uma formas sacrificam o princípio da sua existência, sem saber que a sacrificam, - embora nessa inconsciência fique um travo de melancolia, qualquer coisa de saudade de uma vida que não tive-ram, e que as acompanhará para sempre, como um veneno no sangue ... (MElRELES, 2001, v.l, p. 111).

o

quadro do trabalho infantil descrito pela cronista já denota um dos grandes problemas sociais que acompanha a história do Brasil há muito tempo e que, com o passar dos anos, tem se ampliado, por conta das poucas políticas públicas voltadas para a infância.

Na defesa que faz do brincar na vida infantil, Cecília Meireles ressalta que: "uma criança que brinca é alguém que está mergulhado no próprio infinito, nesse infinito de onde os adultos foram arranca-dos, alguns à força, outros insensivelmente, e ao qual muitos ainda podem regressar"(MElRELES , 2001, v . l ,p. 210).

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prazero-Infância e relações ecnorraciais em pesquisa

so. Para a criança, a brincadeira colabora na interiorização do mundo que a cerca, na troca com o outro, na sua constituição de sujeito, afinal de contas, retomando as palavras de Schiller: "o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga" (SCHlLLER, 2002, p. 80).

A problemática inerente à poeticidade infantil tem aflorado algu-mas indagações, sobretudo de poetas, como Carlos Drummond de Andrade que, em consonância com o pensamento de Cecília Meireles, questiona: "( ...) não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social o elemento corrosivo do instinto poético da infância que vai fenecendo à proporção que o estudo sistemático se desenvolve (...)?"(ANDRADE, 1974, p.16).

É fato notório que as escolas, na sua maioria, privilegiam, ainda hoje, os exercícios de metalinguagem e o uso da linguagem referencial, deixando no esquecimento as vivências poéticas. A visão que Cecília Meireles tem da criança pressupõe um modo diverso de ensinar, de conduzir à descoberta, de revelar a beleza da vida.

Nesta perspectiva, Edgar Morin (2005, p. 48) dialoga com o pen-samento ceciliano, quando também articula o aprendizado para a vida à cultura das humanidades. Ele defende que "Literatura, poesia e cine-ma devem ser considerados não apenas nem principalmente, objetos de análises gramaticais, sintáticas ou semióticas, mas tambémIHGFEDCBAe s c o l a s d e

v i d a , e m s e u s m ú l t i p l o s s e n t i d o s [grifo do autor)". Em seguida, o pensador

francês delineia essas escolas como "Escolas [...] da qualidade poética da vida e, correlativamente, da emoção estética e do deslumbramento."

A literatura surge como meio propiciador da vivência lírica na educação, na medida em que permite ao leitor uma experiência sin-gular diante da realidade, livre do rigor das práticas desempenha-das socialmente. Nessa vivência estética, cria-se no leitor certo esta-do lúdico que o aproxima da criança em seu brincar e em seu olhar desautomatizado das coisas, produzindo sentidos que fogem à lógica habitual. Neste aspecto, a poeta-educadora sugere:

poesia que pre-cisamos dar às crianças. Poesia natural, simples e profunda. Radicação na vida. Visão da beleza do mundo. Amor à terra. O mais lhe virá por acréscimo."( MEl RELES ,2001, v. 5, p. 353).

Infância e relações ecnorraciais em pesquisa

Na discussão sobre literatura infantil, a poeta e educadora enfa-tiza a relação profunda e necessária entre poesia e educação, afirman-do que "é natural que haja entre educação e poesia uma assonância completa, uma vez que ambas são a própria ansiedade de representar a vida: uma imaginando-a, outra procurando cumpri-Ia, uma anuncian-do-a, outra fixando-a em realidade". (MElRELES, 2001, v. 4, p. 75). A respeito dessa relação, observamos que ainda há uma gran-de distância entre poesia e educação, principalmente porque não se reconhece, plenamente, a função social da poesia. Além disso, a forma como a poesia chega à escola, marcada pelo utilitarismo, contribui também para o distanciamento dessa relação.FEDCBA

2 . A l i t e r a t u r a d e C e c í l i a M e i r e l e s p a r a a i n f â n c i a

Os estudos da história da literatura infantil no Brasil demons-tram que a poesia para crianças, com raríssimas exceções, caracteriza-va-se, até meados da década de 60, como um forte instrumento a ser-viço de uma pedagogia conservadora, numa exaltação da pátria e dos valores cívicos, morais e familiares.

O poeta, de modo geral, configurava a voz adulta que se colocava num patamar superior ao da criança, ministrando-lhe valores éticos e morais, relegando, a segundo plano, a vivência lúdica e o cotidiano infantil. Com a publicação de O u i s t o o u a q u i l o , obra modelar da

lite-ratura infantil brasileira, a poesia para crianças encontrou seu caminho e seu público alvo, focando na criação poética o mundo da criança, seu cotidiano e seus interesses, de modo criativo, alegre e lúdico, dando ênfase às cantigas de roda, trava-línguas, parlendas e a outros brin-quedos da infância.

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jogo deperguntas e de respostas estendido por todo o poema: "Ou se tem chuva e não se tem so1/ ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça aluva e não se põe o anel,! ou se põe o anel e não se calça a luva!" (MElRELES, 2001, v.2, 1483).

O

compromisso da poeta e educadora com a permanência do lúdico na infância aparece também em vários de seus poemas que se voltam para a representação de brincadeiras e brinquedos de diversa natureza. A este respeito, Hélder Pinheiro (2007), ao sugerir a utili-zação dos jogos dramáticos como metodologia na leitura dos poemas em salade aula, destaca:

a poetisa lança mão da brincadeira infantil como matéria de sua poe-sia. Poemas como "Jogo de bola", ''A bailarina", "Colar de Carolina", ''A chácara do Chico Bolacha", "O menino azul", "Leilão de jardim" e "Ou isto ou aquilo" e tantos outros, embora nem sempre tragam diálogo explícito, nos apresentam crianças em ação vendo, ouvindo, realizando uma atividade lúdica (correndo, dançando, jogando, etc.). Esses poe-mas devem ter nascido da observação do brincar das crianças, do modo como elas se transformam em personagens, como atuam concreta ou imaginariamente sobre a realidade. (PINHEIRO, 2007, p. 60).

Várias são as alusões ao lúdico do mundo infantil, presentes nos poemas deIHGFEDCBAO u i s t o o u a q u i l o . Em "Roda na rua", temos a referência ao

espaço da rua para a movimentação das brincadeiras de criança: "Roda na rua! a roda das danças /( ...) Na roda da rua/ rodavam crianças". (MElRELES, 2001, v. 2 p. 1508). O poema "Figurinhas", por sua vez, em harmonia com o tom da crônica 'A arte de brincar', evidencia a perda, nas comunidades urbanas, de espaços para brincar, destacando também o desaparecimento de algumas brincadeiras infantis:

Onde está meu quintal amarelo e encarnado, com meninos brincando de chicote-queimado, com cigarras nos troncos e formigas no chão, e muitas conchas brancas dentro da minha mão? (...) Onde está meu anel e o banquinho quadrado e o sabiá na mangueira e o gato no telhado? (...) (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 1494).

Em

"Cantiga da babá", a poeta alude à figura de um menino que brinca com a imaginação, fazendo de conta que é pescador, sapinho,

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índio e leão e, numa fala à parte, em tom de confidência e, possivel-mente, dirigindo-se ao leitor, o eu lírico declara que, na verdade, o garoto é "um anjo escondido".

Eu queria pentear o menino como os anjinhos de caracóis.

Mas ele quer cortar o cabelo, porque é pescador e precisa de anzóis. Eu queria calçar o menino com umas botinhas de cetim.

Mas ele diz que agora é sapinho e mora nas águas do jardim. Eu queria dar ao menino umas asinhas de arame e algodão.

Mas ele diz que não pode ser anjo, pois todos já sabem que ele é índio e leão.

(Este menino está sempre brincando, dizendo-me coisas assim. Mas eu bem sei que ele é um anjo escondido, um anjo que troça de mim). (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 1505).

Interessante destacar a comparação entre a criança e o anjo, cer-tamente, em alusão ao espírito mágico infantil, ao mesmo tempo em que a autora apresenta a imagem do anjo revestida de ludismo e faça-nha, sugestivo de que a criança é um anjo que troça do adulto, pois imagina que este acreditou no seu jogo de faz de conta.

A preocupação da escritora com a relação entre a criança e o brincar também se manifesta nas crônicas de natureza lírica, entre as quais destacamos "Brinquedos incendiados". A leitura dessa crônica, quase sempre, conduz o leitor a considerá-Ia como um conto, dado o seu caráter narrativo, presente já no início: "Uma noite houve um incêndio num bazar" (MEl RELES, 2005, p. 121). Este fato, aparente-mente comum, é o ponto de partida da autora para iniciar sua crônica e, de certa forma, instaurar a adesão do leitor pelo viés narrativo, pois abemos que desde os tempos mais remotos, a atividade de narrar tem e associado à capacidade e necessidade humanas de trocar experiên-cias, alimentando o h o m o l u d e n s e i m a g i n a r i u s . A esse respeito, Walter

Benjamin destaca: "a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos" (BENJAMIN, 1986, p.198).

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relevo por ser uma evocação memorialística da infância, apresentada através do pronome nós, indicativo do aspecto confessional da presen-ça da autora. Este fato contribui também para que o leitor se aproxime mais da narrativa, pois a crônica, ao usar a primeira pessoa, seja singular ou plural, desencadeia um tom de conversa entre autor e leitor.

De início, esta conversa parece manter-se no nível apenas da memória do tempo de criança, em que se costuma desejar os brinque-dos, sonhar com eles, mesmo na impossibilidade de tê-los. No entan-to, Cecília Meireles não apenas relata o que aconteceu, mas reflete sobre o fato de forma que a palavra "incêndio" tanto pode ser perce-bida em seu sentido denotativo, servindo de mote para a descrição da cena pelos olhares infantis, como no seu sentido simbólico, como ocorre no final da crônica, associado não mais ao bazar, mas à vida das crianças, trazendo à tona uma reflexão existencial, na medida em que conduz o leitor a perceber-se na sua finitude, através da ideia de morte metaforizada pelo incêndio dos brinquedos, que para as crian-ças constituiu a dura aprendizagem da experiência da perda, inerente à condição humana. No final da crônica, a escritora assim se expressa: "E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêsse-mos sem socorro, nós, brinquedos que somos, talvez, de anjos distan-tes!" (MElRELES, 2005, p. 122).

O texto "Brinquedos incendiados" evidencia a oposição de olha-res para uma mesma cena, no caso, o incêndio na loja de brinquedos. De um lado, o olhar comovido e pungente das crianças, que lamen-tam a perda do sonho, metaforizado na imagem dos brinquedos, e, de outro, o olhar dos adultos, lamentando a perda material.

O universo infantil aparece novamente ligado ao sonho: ''Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chega-riam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos" (MEl RELES, 2005, p.122). Neste aspec-to, buscamos em Bachelard o suporte para situarmos a relação intensa que se estabelece entre infância e imaginação criadora materializada no devaneio, na extrema liberdade concedida a quem devaneia. Os deva-neios, segundo Bachelard (1988), foram os primeiros responsáveis por nossa liberdade na infância. Do mesmo modo, ainda hoje, é a partir

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do devaneio, proporcionado pelo poético, que somos seres livres, pois a maior liberdade concedida aos homens é a de sonhar.

Cecília Meireles, no livroPONMLKJIHGFEDCBAO l h i n h o s d e g a t o (2003), defende que a imaginação criadora da criança pode se concretizar nas mais diversas situações do dia a dia, levando-a a construir mundos imaginários e até mesmo a interagir com as coisas e os seres inventados:

Há outros mundos, também, noutras coisas esquecidas; nas cores do tapete que ora se escondem ora reaparecem, caminhando por direções secretas. As pessoas de pé, olhando de longe e de cima, pensam que tudo são flores, grinaldas de flores ... flores ... mas Olhinhos de Gato bem sabe que ali há noites, dias, portas,jardins, colinas, plantas e gente encantada, indo e vindo, e virando o rosto para lhe responder, quando ela chama (MElRELES, 2003, p. 17).

O universo infantil, recorrente no ideário estético e pedagógico de Cecília Meireles, aparece, nesta crônica, ligado ao sonho e à ima-ginação das crianças leitoras que poderão não se contaminar pelos valores mercadológicos dos brinquedos, para aderir ao valor simbólico,

numa identificação salutar com a voz do narrador.SRQPONMLKJIHGFEDCBA

C o n s i d e r a ç õ e s f i n a i s

Cecília Meireles, em suas C r ô n i c a s d e e d u c a ç ã o , defendeu a

presen-ça da poesia na vida e na educação da crianpresen-ça, especialmente porque esta arte põe em evidência o lado palpável dos signos como brinquedo sonoro e plástico, ao mesmo tempo em que privilegia as potencialida-des criativas da linguagem feita jogo. Além disso, a educadora cronista reconhece a importância da poesia simples do cotidiano infantil, pro-veniente de seus devaneios ou criadas em sintonia com suas vivências. Esta poesia-brinquedo pode ser o ponto de partida para o desenvol-vimento da educação estética e da formação humana na escola, inte-grando realidade e sonho, brincadeira e reflexão, enfim, arte e vida.

R e f e r ê n c i a s

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Referências

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