Ceclia Barreira
Antnio Duarte Gomes Leal ainda
hoje
um poeta maldito,arredado da notoriedade a que outros nomes da cultura
(decerto
no toincmodos)
ascenderam. E a incomodidade paga-se cara. Masesta
feio
subversiva, suposta
cumplicidade
com o satnico e o perverso, lado oculto de um bom senso que se preza e se
cultiva,
quetoma esta
poesia
porventura
mais atraente, mais sedutora e sublime na sua dimensoesquizofrnica,
entre o delrio e o mistrio.Gomes Leal nasceu em Lisboa a 6 de Junho de 1848, filho de um
empregado
daAlfndega
que nuncachegaria
a casar e alegitimar
osfilhos,
Antnio e Maria Fausta. Opai
morreu ainda novo. Da que a suafigura
esteja
relativamente ausente, nuncapreenchendo
uma presena forte no
imaginrio potico
de Gomes Leal. Mas a infnciares-guarda-se
numlugar
de felicidade e deutopia,
memria que tantas vezes se recorda com saudade. Consta que foipassada
despreocupada
ealegremente.As primeiras poesias
surgem naRevoluo
de Setembro,
ia opoeta
nos dezanove anos. Soava a hora do satanismo, deBaudelaire,
dofantstico,
do mistrio. Mas outros ventos oaguarda
vam entre 1879 e 1880. Falava-se de
revoluo,
de socialismo e deoperrios.
Os intelectuais paravam muito na LivrariaInternacional
deCarrilho Videira. Sabe-se l
quantas
conspiraes
e outros devaneios no ocorriam entre amenascavaqueiras
e discursos mais exaltados. OEspectro
deJuvenal,
peridico,
ondefiguravam
como redactoresRevista da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n." 10, Lisboa, Edies
Gomes Leal, Guilherme de Azevedo e Luciano Cordeiro deve ter nascido assim, num ritual
tipicamente
lisboeta,
entre o caf e alivraria.
1872,
era o ano.E,
logo aps,
as convulses deEspanha agi
tariam os intelectuais portugueses. Dos
federalistas,
aos iberistas. Gomes Leal anuncia o seu Tributo deSangue,
com um travosocialista a marcar o andamento do discurso. No Teatro do
Prncipe
Real l o veremos
participando
numespectculo
a favor dojornal
ORebate que se encontrava beira da falncia. A morte da
irm,
ocor rida entre 1870 e 1875 marca-oprofundamente.
Claridades doSul,
provavelmente,
o seu melhor momentopotico,
para alm depoisar
em temticas que se relacionam com a morte, o sanguederramado,
apureza, transcorre dessa
perda,
para o poetairreparvel.
Entretanto,
nada o demovia de uma
interveno
jornalstica
de carizpoltico.
Aps
A Tribuna, Gomes Leal assenta arraiais riO Sculo que iniciapublicao
em 1881. Assinava umaseco,
Carteira deMefistfeles,
de ondesurgiriam
livros comoMefistfeles
em Lisboa e Retratos Femininos. E nojornal
O Sculo que escreve os poemas maispanfle
trios da sua existncia: ATraio
e OHerege.
Entre ascomemoraes
camoneanas e asmalogradas
conversaes
com osingleses
que culminariam em 1890 com oUltimatum,
redige
o poeta uma violenta invectiva contra o rei D. Lus. Resultado imediato de tal atrevimento: uma breve passagempelos calabouos
e,sobretudo,
anotoriedade. Tal a
poca
em que Gomes Leal foi tratado como umheri.
Outros tempos,
porm,
se adivinhariam no toprometedores
assim. At 1910 o poeta foi sustentado economicamente
pela
me.Aos sessenta anos,
quando
ela lhefaltou,
a orfandade torna-se-lhepesada
edesesperante
at um estdio ltimo dedegradao.
A 12 deAgosto
de 1910, em cartapublicada
numjornal
nacionalista e catlico, o autor do
polmico
Anti-Cristo renegaperjrios
dajuventude
econverte-se ao cristianismo. Teria sido um
pedido
ltimo no leito demorte da
piedosa
me? No o asseguramos. Mas a carta, essa, saiu edeu brado: "Solenemente declaro que me retrato,
repilo, abjuro
de todos os escritos e poemas que heitracejado,
em que se mantmmatria contrria aos ideais que actualmente
professo,
e que foramescndalo para o Cristo e a sua
Igreja".
Umalonga
fase de declnio seiniciava at morte ocorrida em 1921 .
um
poeta
sem escola-rejeita
que o considerem satnico ou realista-Gomes Leal representa um
primeiro
encontro dapoesia
portuguesa
com as ambincias do fantstico.
Viajar
por essapoesia
penetrar
numuniverso
inquietante, algo
mrbido,
intimidade fluida com a perverso, a morte e a sndroma do sangue, onde a
representao
damulher
prioridade
fundamental.Se encararmos o fantstico como
Roger
Caillois emAu CoeurduFantastique
enquanto"ruptura
com uma ordemreconhecida,
irrupo
do inadmissvel no seio de uma inaltervellegalidade
quotidiana",
ento, sem
dvida,
que nos encontramos perante umgnero
fants tico. Todorovexplica
em Introduction la LittratureFantastique
que o fantstico no dura seno o espao da
hesitao
entre duasordens
distintas,
a do natural e a do sobrenatural.Quer
emTodorov,
quer em Caillois o fantstico consagra a tenso entre doisplos
queepisodicamente
se mesclam ao ponto delhes no reconhecermos fronteiras: por um
lado,
as leisregulares
doquotidiano,
por outro, o sobrenatural.Num
quotidiano
aparentemente inaltervel e ameno, ocorre umfacto estranho que no
explicado
racionalmente: a penetramos numdomnio
especialmente grado
a Gomes Leal.Espao
Toda a literatura
decadente,
naqual
se insereparte
daproduo
potica
do autor,elege
como espaosprivilegiados
os locais soturnos,imersos em escurido ou em parca luminosidade. Normalmente
designam
espaos concntricosisolados,
auto-regulando-se
por umaprisionamento
face ao exterior:falamos,
porexemplo,
dos cemitrios,
doscastelos,
ou dospalcios.
Dasprises
ou dosjardins.
O localde
eleio
para o derramamento do sangue da vtima - uma mulherbela,
quase sempre emsituao
denpcias
- nunca se assinala emnenhum destes espaos
auto-regulados.
Assinala-se, sim,
num espaoainda mais
especfico
doponto
de vistapsicanaltico:
o leito, porexcelncia o altar
consagrado
a umaexpiao
ou a um sacrifcio divino.
Excepes
existem,
como, porexemplo,
em A Mulher de Luto. Aaco
decorre numpalcio
situado num, "altopenhasco
enegrecido
e
bruto,
onde os corvosda noite e os
Mas em inverso
genial
dasituao,
o poetaprefere
transformar o heri masculino em vtima de umavampiresca
Teodora,
A Mulherde Luto. O Heri
surpreende-se
a siprprio
noleito,
"achei-me no solar desse
penhasco
bruto:encontrei-me estendido ao
comprido
num leito- e em
p,
como uma esttuahirta,
a Mulher de Luto".Na
poesia
"Mefistfeles noCemitrio",
tal como nos indicia ottulo, a
aco
decorre num cemitrio.Vejamos
como descrito esse espao:"Estendeu-se - ante mim - um vasto cemitrio.
Cemitrio
gigante.
- Era o luar da corde um
matjim
velho e srioDe um Cristo
agonizante".
Notem-se as cores que vo
surgindo
napreparao
lenta e ascensional de um clima de terror:"As gotas do luar escorriam leitentas... Contas de um colar
frias!
Nas cruzes
sepulcrais
e as campas macilentasDas tumbas alvadias.
Pairava nos covais, e em toda a
circunferncia
Da dormente
regio,
A
fosfrica
luz,
verdefosforescncia
Que
sai dapodrido.
(...)
O elemento vermelho / sangue
primordial
no desencadeamento da viso terrfica:A esses
glaucos
clares,
danando,
num embateFunreo,
alado ebelo,
Os cravos tinham sangue - e o lrio a branco mate
Da
folha
de um cutelo".A cor
realiza,
nesteentrecho,
aarticulao
entre a ordem donatural
-o
luar,
as campas, os cravos - e a ordem subversiva do ter"o luar, cor de
marfim
velho";
"as campasmacilentas";
"o verde
fosforescncia
que sai da
podrido
";
"cravos comsangue";
"lrios a branco mateda
folha
de um cutelo".Encontram-se assim identificados os instrumentos de um poten
cial banho de sangue e de morte: a
agonia,
apestilncia,
o sangue e ocutelo.
0
leito, contrariamente,
aos restantes locaisobsessivos,
raramente descrito com pormenor. Serve, apenas, de referncia com uma carga de erotismo evidente e notria.
Consagra
arealizao
de umaoferta.
"um amante sacerdote
antigo,
Derrubando uma deusa dum altar"
A Um
Corpo Perfeito
A
posio
da mulher no leito deabandono,
como esttua hirta efixa,
escultural quase inumana.Profanao
da deusa, intromisso do caos e da desordem num espao reservado aorespeito
efiligrana
davirtude.
A
situao
ertica resulta dainadequao
evidente entre umadeterminada atmosfera de erotismo com a
deflagrao
do sangue e airrupo
da morte.A Sndroma do
Sangue
O
espectculo
do sangue derramado torna-se por si s a temticaobsessiva
primeira
napoesia
de Gomes Leal. A efuso do sangueconstitui uma metfora em torno da
dominao
da mulher porparte
do amormasculino e apenalizao,
em ltimainstncia,
da beleza."Ah,
bem sei quem tu s! -s
aforma
imponente,
o
Infernal
Feminino, a carne da Mulher!"Viso d'
pio
Sem dvida que a Mulher
potencializa
umaespecial
intimidadecumplicidade
com afeitiaria,
com o mundo das serpentes, demona co e fatal. O sangue feminino vertidoconjura
esta teia decumplicida
des ao mesmo tempo que se inscreve numapenalizao
de um Erosdesenfreado e louco. No poema O Amor do Vermelho exalta-se o
"corpo
brancoamado,
/ Beleza escultural e triunfante". O Poetalogo
se denuncia naseguinte
imagem:
"Persegue-me,
mulher, a todo o instante- Como o assassino o sangue derramado!"
O corpo abandona-se ao
leito,
"plido
ebrijado".
E,
no entanto, "-duro, excntricodesejo!
-
Quisera
s vezesque a dormir te
vejo
Tranquila,
branca, inerme, unida a mim...Que
o teu sangue corresse de repente,Fascinao
da cor! - eestranhamente,
Te colorisse
plido marfim!".
Note-se como o contraste da cor na antinomia branco / vermelho
-"plido
marfim" / sangue,"fascinao
da cor- provoca odesejo
ertico.Normalmente,
numasituao
denpcias,
no consumada, que se assisteexecuo
de um crime. E a mo assassina insond vel nos seusdesgnios:
no h umaexplicao
racional eplausvel,
porque tudo se passa na zona subterrnea dos instintos, dosdesejos,
daspulses.
Diz Antnio Coimbra Martins(que
ao poeta dedicouestudos
pioneiros
de mritoindiscutvel)
que Gomes Leal o "nico da suagerao
a reabilitar Eros". Discordamos destaopinio.
Porque
o que se passa em GomesLeal,
no gosto da crueldade e daperversi
dade ertica, asubjugao
do Eros Dor e Morte. A dor sagra avida,
"A Dor, gama
final
na msica daGraa!
A Dor, ltimo tom na escala da Beleza!".
Nevrose Nocturna
Alis,
a Belezaplasma-se
esttica,
escultural epassiva
perante
odesejo
masculino e nele desencadeia aspulses
de morte. DizGeorge
erotis-mo sempre uma
dissoluo
das formas constitudas. As noivas quemorrem nos leitos
nupciais apresentam
sempreligaes
esferacelestial atravs dos nomes:
Angela,
Teodora,
Celeste.Porque
amulher que se imola tem de estar imune do
pecado
e daconspurcao,
nela se
prefigurando
Deus. Aperversidade
da morte deDeus,
talcomo assinala Coimbra Martins, um dos vectores de
compreenso
dos finais do sculo
XIX,
dado que a"Nossa alma apagou Deus com o
carvo de um muro"
Soneto
Descrena,
1870.E neste entrecho seria de entrar num outro
captulo
deinterpreta
o
do Anti-Cristo de GomesLeal, escrito,
espantosamentealguns
anos antes do seu homnimo nietzscheano.
Mas outra ser a
orientao
destas linhas. Se nos referimos sn droma do sangue como factor decisivo obsessional em GomesLeal,
no nos esqueamos da cor, indissolvel na
fermentao
de um climaertico.
A Cor
Vimos
j
como o branco e o vermelho se encontramligados
imagem
do corpo feminino imolado. Em um dos sonetos mais belosde Gomes
Leal,
que se chamaprecisamente "Alucinao
daCor",
mesclam-se com
especial
ousadia,
atravs de efeitos sinestsicos, a cor e o som, naconduo
de metforassegundo horripilantes
assassnios em leitos
nupciais.
S que a mestria dopoeta
devolve-nos a mensagem com uma
colorao
maispressentida
queexplcita.
Leiamos um excerto deste soneto:"Alucina-me a Cor! A Rosa como a
Lira,
A Lira
pelo
tempo h muitoengrinaldada,
E velha aunio,
anpcia
sagrada,
Entre a cor que nos
prende
e a nota quesuspira!
Sea terra, s vezes, brota aflor
que noinspira,
A trivial
camlia,
a brancaenfastiada,
Muitas vezes no arperpassa a nota alada Como a
perdida
cor d'alguma flor
queexpira!
Irms do
obo,
gmeas
doviolino;
H
gemidos
noazul,
gritos
no carmezim!A
magnlia
umaharpa
etrea eperfumada!
E o cacto a
larga flor,
vermelha eensanguentada
Tem notas marciais, soa como um clarim!".
Contudo,
a antinomia Branco / Vermelho,
semdvida,
a quepredomina
sobrequalquer
outra: apele
da amada /supliciada,
marmrea, fina,
lmpida,
pura e o sangue quebrota,
no de umades-florao
mas da morte. Como num festimpago,
onde a vtima seimola perante os convivas.
"Bela! dizia eu, como uma mesa lauta
Para um
festim pago:
a Forma, o Som, a Cor.Bela! dizia eu, como nocturna
flauta,
Desfiando,
no mar, a ladainha - Dor".Nevrose Nocturna
A cor torna-se,
assim,
um elemento desencadeador da "nevrose nocturna"qual alucinao
feroz.A beleza no esttica em Gomes Leal. Ser esttica na pose com que se apresenta perante o
espectculo
do olhar masculino, que carrasco odegolador
nainteno
dodesejo.
Mas no esttica aodesencadear as
pulses
de morte. Odesejo
possante e violento epara
atingir
um absoluto tem de passarpela
execuo
doobjecto
queelegeu.
Aviolao
transferida,
assim, para a morte: a morte consa gra o prazer ltimo atravs do elemento sangue. Beleza e Dor, Morte eVida,
Sonho eRealidade,
Aparncia
e Forma renem-se numa apoteose onde ser difcil discernir o que
,
daquilo
que no :"Na
alcova,
sobre oleito,
inerme, exausta exangue,Celeste estrebuchava em um
lenol
de sangue.Ele,
a um canto, assim, com'oslunticos,
tinha uns olhos de
sombra,
esfngicos,
errticos".Anti-Cristo O olhar masculino
despede-se
intactodaquela imagem
de feitiaria
emagia,
provocada
pela
beleza exaltante do corpo feminino. Eaps neutraliz-lo,
nairrupo
inicitica do sangue,pode
expuls-lo
da
imaginao
onde h muito se instalara. A morteexpiao,
masA
representao
do feminino esconde-se na morte e no apocalipse;
da o seu caracterparadigmtico
nestaproduo potica
fim desculo.
Gomes Leal's intelectual labour is
distinguished
by
aspecial
vision ofWoman. The sacrifice of the bride is an obsessive idea in the Gomes Leal's