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Tortura clandestina: uma análise reflexiva da práxis das audiências de custódia na prevenção e combate ao crime de tortura

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Academic year: 2018

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FACULDADE DE DIREITO CURSO DE DIREITO

LARISSA CRISTINA NUNES CUNHA

TORTURA CLANDESTINA:

UMA ANÁLISE REFLEXIVA DA PRÁXISDAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA NA PREVENÇÃO E COMBATE AO CRIME DE TORTURA

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TORTURA CLANDESTINA:

UMA ANÁLISE REFLEXIVA DA PRÁXIS DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA NA PREVENÇÃO E COMBATE AO CRIME DE TORTURA

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Processo Penal.

Orientador: Prof. Pós-Dr. Gustavo César Machado Cabral

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TORTURA CLANDESTINA:

UMA ANÁLISE REFLEXIVA DA PRÁXISDAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA NA PREVENÇÃO E COMBATE AO CRIME DE TORTURA

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Processo Penal.

Orientador: Prof. Pós-Dr. Gustavo César Machado Cabral

Aprovada em: ___/___/_____.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Prof. Pós-Dr. Gustavo César Machado Cabral (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________ Prof. Me. Sérgio Bruno Araújo Rebouças

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________ Mestranda Lara Teles Fernandes

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““(...) Minha dor é perceber Que apesar de termos

Feito tudo, tudo Tudo o que fizemos Nós ainda somos Os mesmos e vivemos Como os nossos pais.” – Como nossos pais

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AMB Associação dos Magistrados Brasileiros APT Asociación para la Prevención de la Tortura

CESeC Centro de Estudos de Segurança e Cidadania CNJ Conselho Nacional de Justiça

CNMP Conselho Nacional do Ministério Público

DMF Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas

IDDD Instituto de Defesa do Direito de Defesa

MPCE Ministério Público Público do Estado do Ceará ONU Organização das Nações Unidas

PSOL Partido Socialismo e Liberdade

SPT Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes

STF Supremo Tribunal Federal

TCDD Tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes TJCE Tribunal de Justiça do Estado do Ceará

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INTRODUÇÃO ... 17

1 AFINAL, O QUE É TORTURA? A EVOLUÇÃO NORMATIVA DO CONCEITO AO LONGO DOS ANOS ... 21

1.1 A evolução normativa do conceito de tortura ao longo dos anos ... 21

1.2 A tipificação do delito de tortura no ordenamento jurídico brasileiro ... 25

1.3 A tortura como um crime próprio ... 29

2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA E SUA EFETIVIDADE NA PREVENÇÃO À TORTURA ... 33

2.1 Cenário normativo antes da adoção das audiências de custódia ... 33

2.2 O Projeto Audiência de Custódia do Conselho Nacional de Justiça e a política de desencarceramento ... 35

2.3 A necessidade de aprovação do Projeto de Lei n. 554/2011 ... 40

2.4 A regulação normativa das audiências de custódia e a apuração dos crimes de tortura e correlatos ... 43

2.5 A importância do respeito ao prazo de apresentação da pessoa presa para a responsabilização e prevenção da tortura ... 48

3 A PRÁXIS CORRENTE DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA E A PERPETUAÇÃO DA TORTURA ... 55

3.1 Aspectos da violência policial perpetuados nas audiências de custódia . 55 3.2 A abordagem da tortura pelos magistrados(as) nas audiências de custódia ... 63

3.3 A posição confortável e conveniente do Ministério Público ... 75

3.4 A tímida atuação da Defesa diante da importância de seu papel processual ... 79

3.5 A hostilidade do ambiente das audiências de custódia ... 82

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INTRODUÇÃO

A frequente abordagem positivista experimentada ao longo da formação acadêmica foi o principal elemento de estímulo a este trabalho, não no sentido de segui-la, mas, sim, enquanto uma inquietante busca em se romper com essa perspectiva que muito se distancia da realidade e dos problemas sociais existentes.

Com efeito, enxergar o “fazer o que é de Direito” somente pela letra morta dos manuais e doutrinas é não entender o alcance do papel dessa formação, não perceber os propósitos aos quais ela deveria essencialmente servir.

Na perspectiva adotada no presente trabalho, almejou-se dar espaço e visibilidade àqueles que frequentemente são marginalizados e excluídos do âmbito social, e, no mesmo ensejo, também do mundo jurídico, o qual aparenta ser apartado da vida que levam essas pessoas.

Decerto, este trabalho não pretendeu esgotar os questionamentos sobre o tema, o que exigiria ir muito além do que seria possível desenvolver em um trabalho de conclusão de curso, porém foi elaborado na crença de que qualquer abertura de comunicação e reflexão sobre questões, por vezes, “esquecidas” – a bem da verdade, relegadas – é dar sempre mais um passo adiante.

Inclusive esse “esquecimento” é o ponto que justifica o uso da expressão

tortura clandestina no título.

De fato, a tortura, por si só, é furtiva e ilegal, o que atribui à expressão uma linguagem hiperbólica, aplicada, aqui, propositalmente. Mas, além disso, a expressão foi inspirada em uma leitura antiga de Clarice Lispector, de seu conto intitulado Felicidade Clandestina.

No conto, Clarice narra a experiência sentimental de uma menina ao receber emprestado aquele que seria seu primeiro livro. O que chama a atenção é que a menina, ao poder ter o livro em mãos pelo tempo que desejar, o deixa no quarto e finge esquecer que o possui, só para se redescobrir possuidora dele. Assim, a todo momento, a menina procura se distanciar e negar o seu sentimento de felicidade, para que ele perdure mais; busca tornar o real clandestino para não tomar consciência sobre ele.

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sabendo – ou se devendo saber – do uso recorrente dessa prática.

Com efeito, o Estado não tem reconhecido esse problema social, não adotando providências concretas para solucioná-lo, parecendo, assim, “tapar os olhos” para a situação, afastando-se da responsabilidade que tem e, diante dessa omissão, tornando-se conivente com a situação.

Essa relação guarda semelhança com o que Dostoiévski traz em seu livro

Notas do Subterrâneo, ao afirmar que “o homem tem uma tal paixão pelos sistemas

e pelas conclusões abstratas que não hesita em deformar deliberadamente a verdade, em deixar de ver o que está vendo e de ouvir o que está ouvindo, só para justificar a lógica”1.

Assim, a tortura revela-se como mais uma peça necessária à manutenção de um direito penal voltado ao controle social e desse sistema político-econômico extremamente desigual em que se vive hoje, sendo por isso mais fácil negar sua existência ou tomar medidas resolutivas rasas e superficiais, do que buscar efetivamente combatê-la.

A ditadura brasileira de 1964 foi o momento em que mais se evidenciou os vários meios de tortura empregados pelos órgãos de segurança pública, o que causou grande comoção nacional e impulsionou inúmeros levantes populares. Ali ficou claro o desejo de se extirpar de vez da realidade brasileira qualquer ato realizado em contrário à defesa da dignidade humana. No entanto, os dados atuais revelam que estamos muito longe de conseguir alcançar tal objetivo e parece que o povo brasileiro esqueceu de sua história e dos direitos pelos quais lutaram.

Diferentemente daquela época, a tortura hoje não está estreitamente relacionada aos “inimigos” políticos outrora combatidos, mas, é estrategicamente empregada contra uma classe e uma raça bem definidas. O “inimigo” hoje é outro, mas que sofre igualmente, ainda ostentando sua invisibilidade e marginalização. A comoção de antes parece ter se esvaziado e as práticas de tortura vão passando despercebidas, ou naturalizadas, ou até mesmo aplaudidas. Seriam os de agora menos merecedores de levantes?

Nesse passo, contemporaneamente, existe uma carência e demanda crescente de se ver o Poder Judiciário atuando com maior protagonismo social e político, o que, independentemente da ideologia encartada nesse anseio, evidencia

1 DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Notas do Subterrâneo. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

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uma mudança no papel a ele atribuído na dinâmica do sistema político estatal.

É o que se verifica com a implementação das audiências de custódia por incentivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual se destaca como uma importante diretriz para o sistema de justiça criminal na prevenção e combate ao crime de tortura, contribuindo para uma mudança do locus ocupado tradicionalmente

pelo Poder Judiciário.

Diante disso, evidencia-se aqui a atuação dos principais atores envolvidos na prática das audiências de custódia, motivo pelo qual o título se aproveita do termo práxis, evidenciando uma análise das audiências não como somente um

instituto de processo penal, mas como este procedimento vem sendo colocado em prática no dia-a-dia do “fazer jurídico”.

Essa análise buscou o rompimento da – ilusória – neutralidade política atribuída ao Poder Judiciário em regimes democráticos, trazendo à tona um autoritarismo típico de períodos ditatoriais da qual ainda se fazem amplamente presentes resquícios na prática forense atual, podendo, ainda, repercutir na prestação jurisdicional em si.

Embora assuma-se neste trabalho uma perspectiva relativamente crítica, não se faz uma crítica deslegitimadora ou extenuante do instituto. Pelo contrário, entende-se a crítica aqui como uma etapa necessária para o fortalecimento e a legitimação da prática, que, apesar de apresentar elevado potencial para contribuir com o movimento de inversão da cultura de violência, enfrenta inúmeras barreiras de ordem estrutural, política, funcional e, principalmente, cultural, para tornar-se efetiva.

Para isso, adotou-se uma metodologia inicial de pesquisa bibliográfica exploratória, que consistiu, majoritariamente, na leitura de livros e artigos acadêmicos ou de opinião, examinando-se, ainda, documentos e decisões produzidas no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos. Essa pesquisa inicial incluiu ainda uma tentativa de levantamento de dados e de problemas verificados no desenvolvimento da prática em outros estados, dificultada pela escassez dessas informações no estado do Ceará.

Depois da coleta de dados, optou-se por uma atitude dialógica em relação à investigação em curso, apresentando-se os apontamentos e reflexões realizados aos agentes públicos envolvidos, buscando-se, assim, dar utilidade à pesquisa.

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segue:

No primeiro capítulo, foi elaborado um estudo evolutivo da normatização do crime de tortura, com enfoque na recepção dada à prática no ordenamento brasileiro, tecendo reflexões sobre a forma como se deu a regulamentação interna e a relação desta com o recorrente uso da tortura nos dias atuais.

No segundo capítulo, foi traçado um breve histórico do Projeto Audiência de Custódia, utilizando-se do mesmo para reunir elementos descritivos iniciais e delinear o que é (ou deve ser) e a que se propõe (ou deve se propor) essa nova prática forense, enfatizando sua funcionalidade na prevenção e combate ao crime de tortura e trazendo reflexões acerca do tema. Baseou-se para tanto não só na regulamentação que o procedimento recebeu internamente, mas nos instrumentos internacionais em que se funda e na interpretação dos mesmos pelos organismos integrantes do sistema interamericano de direitos humanos. O objetivo do primeiro e do segundo capítulos foi fornecer conceitos e diretrizes avaliativas para a análise da prática judicial das audiências de custódia a ser desenvolvida no capítulo seguinte.

Assim, no terceiro capítulo, servindo-se das coletas de dados e do exame documental realizado, analisou-se criticamente as informações apresentadas, com ênfase nos problemas do desenvolvimento prático das audiências de custódia, traçando-se, ainda, perspectivas a serem alcançadas, tudo à luz do esboço teórico realizado nos capítulos iniciais, averiguando-se onde se situa o instituto, enquanto política pública e judiciária para prevenção e combate à tortura.

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1 AFINAL, O QUE É TORTURA? A EVOLUÇÃO NORMATIVA DO CONCEITO AO LONGO DOS ANOS

Desde o final do século XVIII, é percebida uma constante busca pela consolidação de direitos e garantias que assistam todos os indivíduos, concepção essa originária do princípio da dignidade da pessoa humana, hoje presente nos mais diversos tratados e convenções, tanto em âmbito nacional, quanto internacional. A tortura, por sua vez, guardando estreita relação com o mencionado princípio, não poderia deixar de ser também contemplada nos ordenamentos jurídicos, havendo experimentado significativas mudanças em sua conceituação através do tempo.

1.1 A evolução normativa do conceito de tortura ao longo dos anos

Foi em 1764, com a publicação da obra Dos Delitos e Das Penas, que

Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, deu início a um movimento pela reforma do sistema punitivo até então empregado, posicionando-se pela necessidade urgente da abolição da prática de tortura. Na realidade, anteriormente a Beccaria, a crueldade das sanções já havia sido questionada pelos filósofos enciclopedistas, como Voltaire, Montesquieu, Diderot, D’alembert, Helvetius, D’Holbach e Jean-Jacques Rousseau, porém, foi a publicação da obra ora intitulada que deu ensejo a sensíveis reformas no Direito Penal, tomando-se como base a justiça e a dignidade humana.

Destaque-se que as ideias iluministas trazidas pelo Marquês de Beccaria foram de grande influência para a Revolução Francesa, tendo desdobramentos na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada e aprovada

definitivamente em 02 de outubro de 1789, na qual consta proibição implícita da tortura2, conforme se lê de seu artigo 7º:

Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário torna-se culpado de resistência.3

2 Sobre essa retomada histórica, confronte: KIST, Dario José. Tortura: da legalidade para a

ilegalidade. São Paulo: Memória Jurídica, 2002, p. 47-50; BURIHAN, Eduardo Arantes. A tortura como crime próprio. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, p. 33-52.

3 Assembleia Nacional Constituinte Francesa. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

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Já no séc. XX – trazendo aqui a perspectiva histórica para tempos mais modernos –, mesmo depois de quase 200 anos dos escritos iluministas, salta aos olhos a intensa, e constante, preocupação com o tema, o que se comprova com a grande quantidade, nesse período, de documentos legais assinados condenando o uso da tortura.

Para citar alguns, tem-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem,

de 10 de dezembro de 1948, estando estabelecido em seu artigo V que “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”4.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, datado de 1966, por

sua vez, dispõe em seu art. 7º que “ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes”5.

Em âmbito regional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos

(Pacto de San José de Costa Rica), assinada em 22 de novembro de 1969,

estabelece em seu art. 5º, n. 2, que "ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”6.

A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, firmada em 27 de

janeiro de 1981, decreta em seu art. 5º que “todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e aviltamento do homem, notadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física e moral e as penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes são proibidos”7.

ago. 1789. Tradução do espanhol por Marcus Cláudio Acqua Viva (Textos Básicos sobre Derechos Humanos. Madrid. Universidad Complutense, 1973) (grifo nosso).

4 Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada

pela Resolução n. 217-A na 183ª reunião plenária durante a III Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. Paris: 10 dez. 1948. Tradução oficial do United Nations Information Centre, Portugal. 5 Assembleia Geral das Nações Unidas. Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

Adotado pela Resolução n.2.200-A na 1.496ª reunião plenária durante a XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. Nova Iorque: 16 dez. 1966. Tradução conforme oDecreto nº 592, de 6 de julho de 1992.

6 Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. San José: 22 nov. 1969. Tradução conforme o Decreto nº 678, de 6 de janeiro de 1992.

7 Organização da Unidade Africana. Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. Adotada

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Válido citar, ainda, a Declaração e Programa de Ação de Viena, firmada

em 25 de junho de 1993 pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, estando dispostos nos pontos 55, 56 e 57 que:

55. A Conferência Mundial Sobre Direitos Humanos sublinha que uma das violações mais atrozes da dignidade humana consiste no ato da tortura, cujos efeitos destroem a dignidade das vítimas, diminuindo a sua capacidade de prosseguirem as suas vidas e as suas atividades.

56. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que, de acordo com a legislação em matéria de Direitos Humanos e Direito Humanitário, o direito a não ser sujeito à tortura deve ser protegido em quaisquer circunstâncias, incluindo em situações de distúrbios internos ou internacionais ou de conflitos armados.

57. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insta, assim, todos os Estados a porem um termo imediato à prática da tortura e a erradicar definitivamente este mal através da aplicação plena da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como das convenções relevantes, reforçando, quando necessário, os mecanismos já existentes. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela a todos os Estados para que cooperem plenamente com o Relator Especial sobre a questão da tortura, no cumprimento do seu mandato.8

Nesse ensejo, é curioso perceber que em nenhum momento os textos legais deixam claro qual o conceito aplicável ao termo “tortura”, sustentando somente a sua condenação, mas sem pormenorizar no que ela consiste. De fato, a primeira conceituação só surgiu em meados dos anos 70, quando boa parte dos documentos internacionais acima citados já se encontravam firmados.

Foi somente em 1975, com a Declaração sobre a Proteção de Todas as

Pessoas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou

Degradantes, firmada na 5ª Assembleia Geral da ONU, que a conceituação do crime

de tortura apareceu pela primeira vez9, quando define, em seu artigo 1º, tortura como:

[...] todo ato pelo qual um funcionário público ou outra pessoa, sob sua instigação, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos graves, sejam físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de um terceiro informação ou uma confissão; de castigá-la por um ato que haja cometido ou suspeite que tenha cometido; ou de intimidar a essa pessoa ou a outras.10

Posteriormente, em 1984, foi aprovada a Convenção Contra a Tortura e

8 Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos. Declaração e Programa de Ação de Viena.

Adotada na II Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, realizada em Viena entre os dias 14 e 25 de junho de 1993. Viena: 25 jun. 1993 (grifo nosso).

9 KIST, 2002, p. 72.

10 Assembleia Geral das Nações Unidas.

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Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, a qual trouxe,

em seu art. 1ª, a definição de tortura como sendo:

[...] qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou se suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência.11

Com o mesmo propósito, em 1985, foi aprovada, pela Organização dos Estados Americanos – OEA, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a

Tortura, cujo art. 2º define a tortura como sendo:

[...] todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contato que não incluam a realização dos atos ou aplicação dos métodos a que se refere este Artigo.12

Importante observar que, nos artigos reproduzidos acima, somente figuram como sujeitos ativos da conduta funcionários públicos – policiais, militares ou outros agentes do Estado – quando fazem o uso da tortura como castigo ou para obter confissão ou informação13. Ou seja, a prática da tortura, a nível internacional, é classificada como um crime próprio, o qual “exige determinada qualidade ou condição pessoal do agente”14.

A maior preocupação desses documentos é coibir os atos praticados por

11 Assembleia Geral das Nações Unidas.

Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Adotada pela Resolução n. 46 na 93ª reunião plenária durante a XXXIX Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. Nova Iorque: 10 dez. 1984. Tradução conforme oDecreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991.

12 Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a

Tortura. Assinada no 15º Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral. Cartagena das Índias: 9 dez. 1985. Tradução conforme o Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989.

13 MAIA, Luciano Mariz. Do controle judicial da tortura institucional no Brasil hoje: À luz do direito

internacional dos direitos humanos. 2006. 403 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006, p.114. Disponível em: <http://apublica.org/wp- content/uploads/2012/06/DO-CONTROLE-JUDICIAL-DA-TORTURA-INSTITUCIONAL-NO-BRASIL-HOJE.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2017.

14 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 1: Parte Geral. 17. ed. São

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aqueles que justamente agem em nome da lei, ou seja, aquelas pessoas que têm a obrigação de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos15. Adiante-se aqui, que o crime de tortura não foi dessa forma recepcionado pela legislação brasileira, conforme mais tarde se demonstrará.

1.2 A tipificação do delito de tortura no ordenamento jurídico brasileiro

No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824, já existia previsão jurídica opondo-se à prática de tortura e outros tratamentos desumanos, conforme se observa da leitura do art. 179, inciso XIX, daquele diploma: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”16.

No entanto, ao contrário do que se poderia esperar, conforme destaca Cabette17, as constituições republicanas que se seguiram à Constituição outorgada de 1824, se omitem em relação à prática da tortura, não se encontrando qualquer menção expressa ao termo “tortura” nessas normas constitucionais.

Ressalte-se aqui que houve, sim, nesse período, manifestações de repulsa quanto a determinadas penas cruéis, com uma menção direta, no artigo 150, § 14 da Constituição Federal de 1967, referente ao "respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário"18, porém inexiste qualquer previsão diretamente relacionada à tortura.

De fato, somente com o advento da Carta Magna de 1988, é que se encontra uma referência explícita à tortura, cujo art. 5º, inciso III, estatui que: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”19; e em seu inciso XLIII, prevê que:

15 COIMBRA

apud BURIHAN, 2008, p. 116 -117.

16 BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um

Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25 de março de 1824. Rio de

Janeiro, Typographia Nacional, 1824. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 27 abr. 2017. 17 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal

brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1789, 25 maio 2008, p. 1 (on line). Disponível

em: <https://jus.com.br/artigos/11304>. Acesso em: 27 abr. 2017.

18 BRASIL. Constituição (1967).Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Diário

Oficial da União. Rio de Janeiro, 24 jan. 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 27 abr. 2017. 19 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário

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a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.20

Posteriormente, em 15 de fevereiro de 199121, o país aderiu, à – já mencionada – Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, norma internacional que trouxe previsões acerca da

tortura. Logo, os termos da Convenção restaram integralmente incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro inclusive sua definição de tortura.

Nesse contexto, é importante destacar que a Constituição de 1988 dispôs expressamente que os direitos e garantias nela previstos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte22.

Além disso, cuide-se que o tratado internacional supracitado dispõe em seu art. 4º que:

1. Cada Estado Parte assegurará que todos os atos de tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal. O mesmo aplicar-se-á à tentativa de tortura e a todo ato de qualquer pessoa que constitua cumplicidade ou participação na tortura. 2. Cada Estado Parte punirá estes crimes com penas adequadas que levem em conta a sua gravidade.23

Entende-se, então, que o Estado, após a promulgação do Decreto nº 40/1991, ficou responsável por criminalizar a prática da tortura em sua própria lei penal. Porém, o que se verificou foi a continuidade da legislação ordinária brasileira, sem qualquer alteração normativa que realmente tipificasse o crime. Com efeito, o que se encontrava na época era somente a citação da palavra "tortura" na qualificadora do crime de homicídio (art. 121, § 2º, III, Código Penal) ou como agravante genérica (art. 61, II, "d", Código Penal), mas sem qualquer tipificação

20 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário

Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 27 abr. 2017.

21 BRASIL. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e

Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Diário Oficial da União. Brasília, 18 fev. 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0040.htm>. Acesso em: 27 abr. 2017.

22 Cf. BRASIL. Constituição (1988). Artigo 5º, § 2º. 23 Assembleia Geral das Nações Unidas.

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penal autônoma24.

Pode-se dizer que a primeira iniciativa do legislador ordinário pátrio nesse sentido deu-se com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo art. 233 prevê como crime o ato de "submeter criança ou adolescente, sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura"25. Porém, tal diploma não chegou a delimitar o que consistiria "tortura", deixando-o sem a necessária conceituação26.

De fato, apenas em 1997, com a promulgação da chamada Lei da Tortura, houve a devida tipificação do crime de tortura na legislação ordinária pátria, conforme se observa:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.27

Comenta-se que o advento dessa Lei se deu por conta de graves acontecimentos ocorridos na Favela de Diadema, São Paulo, onde policiais militares foram surpreendidos em atos de barbárie contra civis. No entanto, já existia, há tempos, projetos de lei sobre a prática dormitando no Congresso Nacional, os quais não receberam a devida atenção28.

Com efeito, da leitura do dispositivo legal observa-se que a primeira modalidade do crime trazida pela lei é representada pelo verbo “constranger”, o que denota:

[...] tolhimento da liberdade, ação de coagir, de obrigar pela força, de anulação da liberdade e vontade de outrem, de violação da liberdade moral ou psíquica do homem, isto é, da faculdade de determinar-se livremente e

24 Cf. KIST, 2002, p. 77.

25 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do

Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 27 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 27 abr. 2017.

26 Nesse sentido, CABETTE,

op. cit., loc. cit.

27 BRASIL. Lei nº 9455, de 07 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências.

Diário Oficial da União. Brasília, 08 abr. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9455.htm>. Acesso em: 27 abr. 2017.

(28)

pelos próprios motivos.29

Quanto à forma de constrangimento dirigida à vítima, a norma traz o uso da violência física ou da grave ameaça, esta última utilizando-se o agente de qualquer meio que cause temor à vítima, seja a intimidação ou anúncio de um mal grave a ela própria ou a alguém que lhe seja próximo.

Já o resultado a ser obtido deve ser o sofrimento físico ou mental, ou seja, o ato que cause:

[...] prejuízo físico, como o uso de instrumentos cortantes, perfurantes, queimantes, ou que afete diretamente a mente provocando angústia, stress, como a privação do sono, a ameaça de morte de familiares, execução simulada etc.30

Ademais, o texto legal exige que o agente tenha por fim: a) o propósito de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa – é o caso da tortura praticada para a obtenção de prova, com declaração ou confissão de fato punível –; b) o objetivo de provocar ação ou omissão de natureza criminosa – trata-se da tortura como meio para fazer outrem praticar um ilícito penal –; c) por motivo de discriminação racial ou religiosa – visa-se à garantia da igualdade de todos perante a lei, em consonância com o art. 5º, caput, da CF/88, bem como da

liberdade de consciência e de crença, recepcionada no mesmo artigo, em seu inciso VI.

Outra modalidade trazida pela lei é a prevista em seu art. 1º, inciso II, tratando-se da hipótese de submissão. Nesse caso, a ação do torturador deve ser direcionada aos custodiados por motivo de prisão provisória ou de execução de pena ou internados para cumprimento de medida de segurança. Conforme Alberto Silva Franco, “nessa situação, o sofrimento físico ou mental exigível tem uma qualidade diversa daquela que é própria da ação de ‘constranger’: possui um nível superior; em resumo, deve ser ‘intenso’”31.

Nesse ponto, a lei alberga a prática da tortura como um crime próprio, isso porque o texto legal é especificamente dirigido aos agentes penitenciários e policiais responsáveis pelos estabelecimentos em que se encontram custodiados os presos provisórios, bem como onde são executadas penas e medidas de segurança.

29 KIST, 2002, p. 78.

30 KIST, 2002, p. 79.

31 FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael; FELIX, Yuri. Crimes hediondos. 7. ed. São Paulo: Revista

(29)

Por fim, a lei prevê a prática da tortura em sua forma comissiva por omissão, quando o agente se omite diante do dever de agir, em outras palavras, “é o não fazer aquilo que se devia fazer”32.

No caso, o agente teria o dever de evitar que fossem executadas as práticas de constrangimento ou de submissão pelo sujeito torturador ou de apurar a responsabilidade de quem as executou:

O ‘evitar’ pressupõe um procedimento positivo com a finalidade de impedir que se consume a tortura. Já o ‘apurar’ retrata um comportamento negativo consistente em não averiguar, em não investigar, em suma, em não responsabilizar o autor ou autores de torturas.33

Compreende-se que a ação evitar não é voltada a um sujeito específico,

podendo ser qualquer indivíduo; já apurar se dirige à autoridade pública que, por

ocupar tal posição, tem a obrigação de averiguar o crime e promover a responsabilização de seu(s) autor(es). Além disso, é importante destacar que as três modalidades de tortura são dolosas, ou seja, pressupõe o ânimo, a vontade livre e consciente de praticar o ato.

1.3 A tortura como um crime próprio

Apesar das previsões trazidas pela Lei da Tortura, raras não foram as críticas – a propósito, muito bem fundamentadas –, quanto à sua composição, declarando-se como falha a representação pretendida.

Alberto Silva Franco34, Eduardo Luiz Santos Cabette35 e Eduardo Arantes Burihan36, somente para citar alguns, teceram ponderações acerca da temática, destacando o fato de a legislação em comento ter sido constituída na contramão de previsões internacionais – inclusive ratificadas pelo País, como já exposto – no sentido de reconhecer a prática da tortura como um crime próprio e não como um crime comum, como fez a lei brasileira, que não a restringiu apenas aos agentes do Estado, como está previsto nos Tratados Internacionais.

32 FRANCO, 2011, p. 198. 33FRANCO

, loc. cit.

34 FRANCO, Alberto Silva. Tortura: breves anotações sobre a Lei 9455/97. Revista Themis.

Fortaleza v. 1, n. 1, p.33-57, 1997, passim.

35 CABETTE, 2008,

passim.

36 BURIHAN, 2008

(30)

Além disso, Aberto Silva Franco37, fazendo referência a Vives Antón, pondera que o delito da tortura se opera em torno do abuso de poder como atentado

contra as garantias, penais e processuais. Porém, tais elementos não podem ser encontrados nos atos realizados por particulares, e que, além disso, estes já possuem uma larga série de figuras genéricas visando a sua punição, não sendo necessária, portanto, a previsão trazida na Lei da Tortura.

No mesmo sentido, Burihan38 salienta que, ao longo da história, a tortura sempre apresentou um caráter eminentemente estatal, tendo sido, por inúmeras vezes, tolerada e aplicada pelo próprio Estado. Dessa forma, se tomamos o termo tortura em um sentido técnico, precisamos considerar que somente a praticam os agentes estatais ou quem esteja a seu serviço. A natureza pública do delito de tortura é tal que

[...] não é possível emprestar ao termo um sentido vulgar, que não se coaduna com o verdadeiro significado da expressão, permitindo ao legislador, de maneira indevida, considerar que o particular também pode cometer o crime de tortura. É da essência do termo a participação do agente público, com finalidade eminentemente pública. Equiparar o comportamento do particular ao do agente estatal é medida que não se amolda às características fundamentais de seu conteúdo, porque as notas que caracterizam a tortura são outras e estão relacionadas ao abuso do poder estatal.39

Tipificar o delito de tortura como crime comum é considerar que os atos praticados por particulares que denotam sofrimento físico ou mental a alguém estão equiparados aos cometidos por agentes públicos, que têm a obrigação de salvaguardar os direitos fundamentais dos cidadãos, tendo a mesma gravidade e merecendo a mesma resposta estatal.

Ademais, os comportamentos cometidos por particulares, mesmo que presente uma finalidade específica, como, por exemplo, a obtenção de informação ou confissão, já se encontram abrigados em outros tipos penais. O alargamento do tipo penal do delito de tortura, assim, cria uma sobreposição com os crimes de maus-tratos, com o constrangimento ilegal ou com as lesões corporais graves e gravíssimas, os quais, nessa concepção, também deveriam ser considerados como crimes de tortura.

37 FRANCO,

op. cit.,p. 40.

38 Cf. BURIHAN, 2008, p. 105

et sequens.

39

(31)

Como destaca Burihan40, a relativização do conceito de tortura não colabora para o progresso da ciência jurídico-penal, uma vez que o tipo penal, assim como concebido em sua gênese e nas normativas internacionais, perde seus caracteres fundamentais, passando tudo a ser tortura, banalizando-se a vítima da tortura estatal e enfraquecendo a proteção do cidadão contra o Estado.

Outro problema consiste na insuficiência descritiva da lei, que não pormenorizou as condutas que o tipo penal abrange, dando espaço para subjetivismos e ficando a adequação ou não do caso ao crime de tortura a critério dos intérpretes da lei.

A consequência desses entraves é a possibilidade de haver uma diferenciação quanto à apuração e processamento dos casos que envolvem agentes do Estado, ocasionando, por exemplo, que certas condutas não sejam qualificadas como tortura, mas como mero abuso de autoridade41, segundo previsão dos arts. 3º e 4º da Lei 4.898/6542, o qual impõe penas ridiculamente mais brandas.

De fato, essa posição tomada pelo legislador ordinário, devido à abrangência dada na definição do crime, criou situações problemáticas quanto à interpretação dos dispositivos, pois os juristas não conseguem distinguir o tipo previsto no art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.455/9743 dos previstos nos incisos I e II, do art. 1º, da mesma lei44.

Os tribunais, mesmo para situações que se enquadram no tipo previsto em seu art. 1º, § 1º (subjugação de preso ou internado à medida não prevista ou não autorizada em lei), ao aplicá-lo, exigem os elementos dos incisos I ou II, do art. 1º da lei, e, não os encontrando, desclassificam o delito para o de abuso de autoridade, tendo como consequência comum, diante da reduzida pena, o reconhecimento – de

40

Ibidem, p. 116-122.

41 Conforme exemplifica CABETTE, 2008,p. 2.

42 BRASIL. Lei nº 4.898, de 09 de dezembro de 1965. Regula o Direito de Representação e o

processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade. Diário Oficial da União. Brasília, 13 dez. 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4898.htm>. Acesso em: 27 abr. 2017.

43

“[...] § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”.

44[...] I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento

(32)

ofício – da prescrição da pretensão punitiva45.

Dessa forma, existe uma abertura a permitir que o crime de tortura seja desclassificado para delitos com penas significativamente menos rígidas – e.g.,

maus tratos, abuso de autoridade ou lesão corporal – quando os operadores do direito, promotores e juízes, assim entendam, tudo dependendo, portanto, da interpretação de quem denuncia e de quem julga o crime, o que significa uma influência indesejável da subjetividade e das concepções desses intérpretes.

Um reflexo dessa conjuntura são as conclusões do estudo Julgando a Tortura46, no qual se demonstra que, mesmo nos casos em que esses agentes

estatais respondem pelo crime de tortura, eles têm maiores chances de serem absolvidos do que os outros acusados, tanto em primeira quanto em segunda instância47.

É perceptível, portanto, que a forma como o tipo penal foi adotado na legislação brasileira é extremamente frágil e – não sendo demais falar – rasa, porém não destoando da falta de importância dada ao crime pelo legislador pátrio ao longo dos anos, em completo atraso com a ordem jurídica supranacional.

Neste cenário de desleixo quanto à efetivação de direitos humanos e de garantias fundamentais, no qual desponta como insuficiente a política de combate à tortura, a adoção pelo País das denominadas “audiências de custódia” ou “audiências de apresentação” veio, aparentemente, renovar os ares da Justiça, vez que sinaliza a construção de um Estado mais humanizado e preocupado com o respeito às garantias fundamentais de seus cidadãos.

Contudo, o termo “aparentemente” foi corretamente empregado, porque o que se constata é a existência de inúmeros e graves obstáculos ainda a serem superados para a concretização de um avanço real em relação à erradicação da tortura na praxis dos agentes estatais.

45 MAIA, 2006, p. 169.

46 JESUS, Maria Gorete Marques de; CALDERONI, Vivian (Org.). Julgando a tortura: Análise de

jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010). Produzido por ACAT, Conectas Direitos Humanos, IBCCrim, NEV-USP e Pastoral Carcerária. São Paulo, jan. 2015. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Julgando a tortura.pdf>. Acesso em: 05 maio 2017. 47

(33)

2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA E SUA EFETIVIDADE NA PREVENÇÃO À TORTURA

A audiência de custódia – também denominada de audiência de apresentação48 – é um instituto que visa a oportunizar a todo cidadão preso ser apresentado, sem demora, em juízo, a fim de que se analise a legalidade e a necessidade de sua prisão, bem como se examine a ocorrência de tortura ou maus tratos na abordagem policial.

De fato, a previsão de conduzir o detido, sem demora, à presença de uma autoridade judicial é um salto civilizatório no processo penal pátrio, porém – infelizmente – sua adoção seguiu a mesma tendência da tipificação autônoma do crime de tortura, chegou ao Brasil com muito atraso e permeada de equívocos.

2.1 Cenário normativo antes da adoção das audiências de custódia

Apesar da implantação do procedimento no País ter ocorrido em 2015, o Estado brasileiro já havia aderido – há anos – a tratados internacionais que mencionava a prática e determinavam a apresentação do detido.

É o caso dos já mencionados Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos)49 e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos50, incorporados ao ordenamento jurídico pátrio pelos Decretos de n. 67851 e de n. 59252, ambos datados do ano de 1992.

Assim, mesmo tal determinação tendo sido integrada ao ordenamento jurídico brasileiro há mais de vinte anos, o País continuou adotando isoladamente as

48Caio Paiva afirma que a nomenclatura “audiência de custódia” não encontra correspondência no

Direito Comparado e o uso desse termo se deve a sua ampla adoção não somente pela imprensa brasileira, mas também pelos órgãos que o implementaram no País (PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. 1. ed., Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.31). 49

A convenção em seu art. 7º, item 5 estabelece que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais [...]”. (Convenção Americana sobre Direitos Humanos.1969).

50O pacto em seu art. 9º, item 3, prevê que “qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de

infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. [...]”. (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. 1966).

51 BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de janeiro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 9 nov. 1992.

52 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre

(34)

disposições presentes na legislação processual penal de direito interno, as quais, quanto ao controle judicial das prisões em flagrante, determinam apenas a comunicação imediata da prisão ao juiz competente e a remessa para o mesmo, em um prazo de até vinte e quatro horas, do auto de prisão em flagrante53.

Do mesmo modo, a legislação, quanto à prisão mediante ordem judicial escrita, não prevê a apresentação do preso ao juiz que determinou a sua segregação, somente a comunicação da prisão à autoridade que a decretou54.

Destaque-se que tal situação se agravou após a reforma processual de 200855, isso porque o interrogatório do réu que antes era o primeiro ato do rito processual passou a ser o último, o que definitivamente trouxe vantagens para o exercício do direito de defesa, mas, doutro giro, grandes prejuízos para as garantias pessoais que assistem ao acusado, que passou a ter o primeiro contato com um magistrado postergado para o final da instrução processual.

Portanto, a análise de legalidade e conveniência da prisão, antes da implementação das audiências de custódia, se baseava somente em elementos excessivamente abstratos, com o emprego de uma lógica estritamente cartorária, tomando o magistrado uma decisão somente pelo que constava nos autos, em outros termos, a partir do papel.

Nessa perspectiva, é de se questionar, primeiramente, a viabilidade/possibilidade de um magistrado identificar a ocorrência de ilegalidades, inclusive tortura, maus-tratos ou abuso de autoridade, a partir de informações fornecidas por aqueles que poderiam vir a praticar tais atos, ou mesmo de declarações prestadas por quem encontra-se sobre seu domínio.

Além disso, no cenário descrito, o acusado poderia demorar meses – não sendo exagerado grafar aqui anos – para ser ouvido pessoalmente em juízo, sendo este o primeiro momento em que lhe seria possibilitado – e quando fosse – relatar abusos cometidos por qualquer autoridade estatal a quem esteve submetido.

O controle judicial, mesmo em tese, nos moldes em que era operado, mostrava-se praticamente incapaz de prevenir ou responsabilizar as violações ocorridas contra as pessoas detidas ou presas, só vindo a identificá-las em casos

53 Cf. BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário

Oficial da União. Rio de Janeiro, 13 out. 1941, art. 306. 54

Idem, art. 289-A, § 3º.

55 BRASIL. Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3

(35)

extremos ou em situações fortuitas, que extrapolassem absurdamente à praxe estatal.

O projeto de audiência de custódia veio, então, como medida garantidora da legalidade da prisão, evitando-se prejuízos decorrentes de detenções ilegais ou desnecessárias, assim como buscando a efetivação do direito à integridade pessoal dos indivíduos sob custódia do Estado.

Com efeito, o instituto, por possibilitar a verificação da legalidade e necessidade da segregação pelo magistrado em contato direto e pessoal com o preso, tende, além de humanizar o trato judicial, a auxiliar no combate e prevenção de violações de direitos humanos, como os crimes de tortura praticados por policiais civis e militares durante o procedimento de prisão e investigação.

Isso porque se assegura às vítimas momento oportuno para relatar qualquer agressão sofrida diante de uma autoridade competente para apurar os fatos, tomar as medidas cabíveis para a responsabilização dos agentes e salvaguardá-lo de quaisquer represálias.

De outro lado, dá concretude ao objetivo de prevenção geral encartado na tipificação penal, vez que potenciais ofensores se sentirão, no mínimo, coibidos a praticar tais delitos diante do prévio conhecimento da obrigatoriedade de apresentação do detido e da possibilitade de qualquer ato de tortura ser imediatamente comunicado à autoridade judicial, à Defesa (pública ou privada) e ao Ministério Público, no curso da audiência de custódia.

No entanto, pelo fato de a implementação do procedimento ter se dado em um contexto de crise do sistema penitenciário brasileiro, o escopo primordial da medida centralizou-se na possibilidade de diminuição dos índices de decretação de prisões preventivas, objetivando-se a redução da taxa de encarceramento do país.

2.2 O Projeto Audiência de Custódia do Conselho Nacional de Justiça e a política de desencarceramento

(36)

reproduz a seguir56:

Lançado em 6 de fevereiro de 2015, o CNJ lançou o projeto Audiência de Custódia, em São Paulo. No discurso, Lewandowski anunciou a intenção de levar o projeto a outras capitais. O DMF já discutiu a proposta em AM, MT, TO, PI, CE, DF, PB, PE, MG, ES, PR, SC, RJ e MA.

No dia 9 de abril, o CNJ, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) assinaram três acordos que têm por objetivo incentivar a difusão do projeto Audiências de Custódia em todo o País, o uso de medidas alternativas à prisão e a monitoração eletrônica. As medidas buscam combater a cultura do encarceramento que se instalou no Brasil.

O primeiro acordo de cooperação técnica estabelece a “conjugação de esforços” para a implantação da audiência de custódia nos estados. O projeto busca garantir a rápida apresentação do preso em flagrante a um juiz para que seja feita uma primeira análise sobre a necessidade e o cabimento da prisão ou a adoção de medidas alternativas. O acordo prevê apoio técnico e financeiro aos estados para a implantação de Centrais de Monitoração Eletrônica, Centrais Integradas de Alternativas Penais e câmaras de mediação penal. Os recursos devem ser repassados pelo Ministério da Justiça aos estados que implementarem o projeto audiência de custódia e também serão usados para a aquisição de tornozeleiras eletrônicas.

O segundo acordo firmado pretende ampliar o uso de medidas alternativas à prisão, como a aplicação de penas restritivas de direitos, o uso de medidas protetivas de urgência, o uso de medidas cautelares diversas da prisão, a conciliação e mediação. As medidas alternativas à prisão podem ser aplicadas pelos juízes tanto em substituição à prisão preventiva, quando são chamadas de medidas cautelares, quanto no momento de execução da pena. O uso de tornozeleiras eletrônicas, o recolhimento domiciliar no período noturno, a proibição de viajar, de frequentar alguns lugares ou de manter contato com pessoas determinadas são alguns exemplos de medidas alternativas que podem ser aplicadas. O terceiro acordo tem por objetivo elaborar diretrizes e promover a política de monitoração eletrônica. Segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, o monitoramento eletrônico é usado hoje em 18 estados da federação, principalmente na fase de execução da pena ou como medida protetiva de urgência. O acordo busca incentivar o uso das tornozeleiras em duas situações específicas: no monitoramento de medidas cautelares aplicadas a acusados de qualquer crime, exceto os acusados por crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade superior a quatro anos ou que já tiverem sido condenadas por outro crime doloso, e no monitoramento de medidas protetivas de urgência aplicadas a acusados de crime que envolva violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência.57

Como se pode observar do texto institucional, o propósito é majoritariamente voltado à adoção de uma política de desencarceramento, com a previsão de ampliação do uso de medidas alternativas à prisão.

56 Atente-se que se destaca como função primordial a de buscar combater a cultura de

encarceramento que tomou conta do País, conforme se relatou anteriormente.

57 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sistema Carcerário, Execução Penal e Medidas

(37)

Contudo, enxergar a audiência de custódia como uma solução para o abarrotamento do sistema carcerário, acabou por deturpar a sua essência acautelatória, não sendo o sistema de justiça criminal brasileiro favorecido por todo o potencial garantista que a mesma detém, coibindo ilegalidades nos procedimentos policiais e investigativos, conforme sua gênese nos tratados internacionais.

Vale pontuar que, um ano antes da iniciativa do CNJ, em outubro de 2014, o Estado do Maranhão já havia implantado o procedimento, sendo pioneiro na adoção do instituto58.

Tal fato foi consequência do grave problema enfrentado pelo estado em seu sistema carcerário, principalmente no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, onde ocorreram diversas rebeliões e já haviam sido noticiados casos violência sexual contra familiares em dias de visita59, além de decapitações e outras mutilações60. A situação no Maranhão ensejou, inclusive, a decretação de medidas cautelares pela Corte Interamericana, dentre as quais, a redução de forma imediata do índice de superlotação do presídio61.

Em um contexto mais geral, dados do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), órgão integrante do CNJ, apontavam em 2014, ano anterior ao início do processo de implementação do projeto, que o Brasil encontrava-se em 4º lugar no ranking dos países com maior população carcerária, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia62.

O cenário descrito deu o tom para a construção do projeto piloto realizado

58 PAIVA, 2015

, p. 68.

59 Cf. BRÍGIDO, Carolina. Mulheres de presos são estupradas em complexo penitenciário do

Maranhão: Detentos que se recusam a permitir o estupro correm risco de serem mortos. O Globo. Brasília, 23 dez. 2013. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/mulheres-de-presos-sao-estupradas-em-complexo-penitenciario-do-maranhao-11142893>. Acesso em: 05 maio 2017.

60 Cf. TRUZ, Igor; NOVAES, João. Decapitações no Maranhão não são novidade, diz OAB. Imagens

monstram corpos decapitados no Complexo de Pedrinhas; situação pode legitimar intervenção federal no estado. Última Instância, São Paulo, 7 jan. 2014. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/68412/decapitacoes+no+maranhao+nao+sao+no vidade+diz+oab.shtml>. Acesso em: 5 mai. 2017.

61 Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Resolução n. 11/2013. Medida cautelar n. 367/13.

Assunto: Pessoas privadas de liberdade no “Complexo Penitenciário de Pedrinhas” sobre o Brasil. Washington, 16 dez. 2013. Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/MC367-13-pt.pdf >. Acesso em: 5 mai. 2017.

62 BRASIL. Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de

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pelo CNJ em São Paulo, que serviu como base para a implementação do procedimento no restante do país, tendo o Conselho realizado uma ampla promoção da prática nos demais estados, visando à adesão dos respectivos Tribunais de Justiça. Entretanto, cada tribunal, baseando-se nas premissas estabelecidas pelo CNJ, definiu e adotou a sua própria regulamentação, a partir de atos normativos próprios.

O início do projeto no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) deu-se em 6 de fevereiro de 2015, tendo o procedimento da audiência de custódia sido regulado pelo Provimento Conjunto n. 03/201563.

Registre-se que, quando a iniciativa foi implementada em São Paulo, não contou com o apoio do Ministério Público do Estado nem dos delegados de polícia brasileiros, que, representados por suas entidades associativas, ingressaram com ações judiciais contra o ato normativo emanado do TJSP64.

Esses posicionamentos institucionais observados no Estado de São Paulo não se mostraram divorciados do que veio a ser percebido nos processos de implantação do projeto nos demais estados65, o que dá indícios da resistência significativa que promotores(as) de justiça, delegados(as) civis e magistrados(as) demonstraram em relação à prática, o que, consequentemente, acaba por se refletir em suas atuações junto às audiências de custódia, sendo que o trabalho desses agentes mostra-se fundamental para a eficácia do procedimento.

No Ceará, a implementação ocorreu em agosto de 2015, por meio da Resolução do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) de n. 14/201566, a qual regulamentou a realização de audiências de custódia na comarca de Fortaleza alterando a competência e denominação do Juízo de Direito da 17ª Vara Criminal da Comarca de Fortaleza, que passou a exercer, em caráter

63 SÃO PAULO. Presidência do Tribunal de Justiça e Corregedoria Geral da Justiça. Provimento

Conjunto n. 03/2015. Diário da Justiça Eletrônico, Publicação Oficial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Caderno Administrativo, Ano VIII, ed. 1814, p 1-3. São Paulo, 27 de janeiro de 2015.

64 Sobre o assunto, ver a retomada realizada por Caio Paiva acerca do mandado de segurança

impetrado pela Associação Paulista do Ministério Público e da ação direta de inconstitucionalidade interposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (PAIVA, 2015, p. 75-76).

65 No Ceará, por exemplo, o Ministério Público Público do Estado do Ceará (MPCE) lançou nota

pública, divulgada à imprensa, manifestando críticas e reservas à adoção da prática das audiências de custódia (CEARÁ. MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ. Destaques. Nota pública sobre audiência de custódia. Fortaleza, 9 jul. 2015. Disponível em: <http://tmp.mpce.mp.br/servicos/asscom/destaques.asp?cd=3917.>. Acesso em: 05 maio 2017). 66 CEARÁ. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Resolução do Órgão Especial

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privativo e exclusivo no âmbito de sua jurisdição as atribuições relativas à realização das audiências de custódia.

Com a instituição do projeto no Distrito Federal, em 14 de outubro de 201567, as audiências de custódia passaram a ser adotadas por todos os 27 Tribunais de Justiça do país, sendo realizadas, pelo menos, nas capitais de cada estado.

A expansão da prática para as comarcas do interior dos estados tem sido lenta, havendo notícias de que é adotada integralmente apenas nos estados do Amapá, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Roraima68. No Estado do Ceará, o início da obrigatoriedade de realização das audiências nas comarcas do interior do estado aconteceu somente no último dia 22 de maio69, cabendo à diretoria de cada Fórum disciplinar a forma e os prazos específicos de apresentação na respectiva comarca.

Não obstante, é de se ressaltar que em setembro de 2015, no julgamento de medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de n. 347, na qual o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) buscava providências diante das violações de direitos humanos decorrentes da crise do sistema prisional brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia determinado aos juízes e tribunais de todo o país que passassem a realizar audiências de custódia em até noventa dias.

Além disso, após quase um ano da iniciativa do projeto piloto, com a ampla adoção pelos estados brasileiros e a corroboração pelo STF, o CNJ veio a editar a Resolução n. 213/201570, regulamentando a realização das audiências de custódia em todo o território nacional, tendo referida resolução entrado em vigor em

67 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sistema Carcerário, Execução Penal e Medidas

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Referências

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