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ESTADO, PRÁTICAS SOCIAIS E FORMAS DE AFERIÇÃO DA VERDADE JUDICIAL NA CONTEMPORANEIDADE

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Academic year: 2021

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ESTADO, PRÁTICAS SOCIAIS E FORMAS DE AFERIÇÃO DA VERDADE JUDICIAL NA CONTEMPORANEIDADE

Samara Pereira Alves (PG/UESB) Edvania Gomes da Silva (UESB)

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar a atuação do Estado em uma das formas de aferição da verdade judicial presente na contemporaneidade, bem como a relação dessas formas de aferição da verdade com diferentes práticas sociais. Para tanto, escolhemos como objeto de pesquisa o instituto negocial penal da delação premiada e recorremos a obras foucaultianas para averiguar a construção dessas verdades e observarmos suas (re)configurações e atualizações.

Delação Premiada: operação Lava Jato em Foco

Tendo a delação premiada como objeto, é importante, antes de mais nada, entender como funciona tal instituto. A delação é um ato jurídico, utilizado no âmbito jurídico, para representar um acordo entre o Ministério Público (promotor) e o delator.

Trata-se, portanto, de um ato legal que consta na legislação brasileira como um benefício concedido a um réu que aceite colaborar de maneira relevante nas investigações, promovendo informações a respeito do delito, bem como fornecendo nomes dos seus comparsas envolvidos no crime.

Esse benefício é previsto em diversos instrumentos legais, mas, no Brasil, a delação premiada teve início com a Lei dos Crimes Hediondos nº 8.072/90, que, em seu artigo 8º, afirma: “Art. 8º, Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.

É possível entender o benefício ofertado pela delação como um prêmio para o acusado que optar por delatar, afinal o nome do referido instituto já indica essa possibilidade interpretativa, e, segundo a Lei brasileira, o juiz pode reduzir a pena do delator em até 2/3 (dois terços), bem como transformá-la em restritivas de direito, desde

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que as informações sejam realmente pertinentes. Essa previsão encontra-se na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, em seu artigo 4º:

Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados[...] (grifamos).

A delação premiada pode ser solicitada pelo próprio réu ou mesmo ser sugerida pelo Ministério Público, na pessoa do promotor de justiça, que estiver atuando na investigação criminal. Para que o acordo seja selado é necessário que a informação oferecida pelo delator seja pertinente em relação ao crime ocorrido.

Neste trabalho, temos como foco o caso da Operação Lava Jato, considerado uma das maiores investigações de corrupção e lavagem de dinheiro do Brasil. Foram investigadas e processadas muitas organizações criminosas que incluíam muitos doleiros, bem como vários funcionários da Petrobrás.

Nessa operação, constatamos que os delatores do caso ajudaram a (re)construir os fatos ocorridos no esquema de desvios de propinas da Petrobras. Trata-se, portanto, de um caso de grande repercussão, no qual os delatores foram peças importantes para se chegar ao fechamento dos fatos ocorridos. Um dos delatores foi Milton Pascowitch, lobista da empresa Engevix. Ele forneceu à justiça detalhes da operação. Outros delatores, como Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa, também participaram da operação. As informações e provas apresentadas pelos mesmos permitiram abrir novas frentes de investigações.

Pelo exposto até aqui, verificamos que os delatores podem contribuir bastante com a busca de certa verdade judicial. Nesse sentido, aquele que, em certo momento, foi chamado de “dedo-duro”, agora é denominado de delator, sendo considerado como peça importante para que a justiça chegue a os outros criminosos. Contudo, apesar da aparente configuração positiva da imagem do delator, deve-se averiguar com cuidado a forma como o instituto da delação premiada funciona e de que maneira estão sendo construídas essas verdades judiciais. Nessa perspectiva, a fim de analisar o funcionamento do referido instituto na contemporaneidade, recorremos, principalmente, aos trabalhos da arquegenealogia foucaultiana, desde as contribuições que o referido

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autor deu aos estudos dos diferentes modos de constituição das formas jurídicas, como o inquérito, por exemplo, até seus estudos acerca da sociedade biopolítica.

Formas Jurídicas, Delação Premiada e Relações de Poder

Em seu livro As Verdades e as formas jurídicas, Foucault discute práticas sociais que produzem um novo saber jurídico para a formação da verdade. Segundo o autor, as práticas jurídicas estão entre as mais relevantes, principlamente as práticas penais, que podem ser consideradas como ponto de partida para a obtenção da relação entre o homem e a verdade. Foucault considera, ainda, o inquérito policial como uma forma característica da verdade em nossa sociedade, pois ele aparece como uma maneira de pesquisar a verdade. Salientamos, contudo, que o inquérito estudado por Foucault difere, em alguns pontos, da fase inquisitorial contemporânea.

Foucault aborda o inquérito, no período em que o Direito estava nascendo, bem como sendo dominado pela soberania política, tudo isso por volta da segunda metade da Idade Média. Nesse período, quando ocorria um conflito a ser solucionado, os representantes da soberania reuniam pessoas envolvidas no mesmo com o objetivo de que esses jurassem dizer a verdade para que, ao final, fosse possível chegar a uma solução. Assim, é fácil notar que o poder político era o centro e o ponto determinante para aferição da verdade.

Nos dias atuais, essa fase inquisitorial funciona de maneira diferente, uma vez que é realizada por policiais e não pelo poder político, mostrando assim que ocorreu uma (re)configuração em relação a esse procedimento.

Ainda na obra em comento, Foucault, aborda a saída de cena do inquérito, que se deu devido as transformações da forma de aferição da verdade judicial que ocorreu com o Direito Germânico. Segundo esse direito, existia um jogo de provas que era responsável por solucionar os litígios entre o envolvidos. Nesse momento, a ação penal era constituída por um duelo entre indivíduos envolvidos em um mesmo conflito. Esse duelo de oposição incluía também famílias ou grupos sociais, pois não existia uma autoridade que representasse o poder nem a sociedade, o que existia era a figura do sujeito que acusava e a do sujeito que se defendia. No direito Germânico, quando se

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iniciava uma ação penal, o que importava era o peso e a força, aspectos esses que construíam a razão e não a veracidade dos fatos, pois, nesse tipo de direito, o mais importante era a luta entre os indivíduos do litígio. Esses indivíduos formavam uma espécie de guerra particular em busca da vingança em relação ao dano sofrido por um deles, pois não se almejava a justiça, mas sim uma maneira regulamentada de fazer a guerra. Ainda sobre o direito germânico, Foucault afirma:

Por exemplo, quando alguém é morto, um de seus parentes próximos pode exercer a prática judiciária da vingança, não significa isso renunciar a matar alguém, em princípio, o assassino. Entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas mata-lo segundo certas regras, certas formas. Se o assassino cometeu o crime desta ou daquela maneira, será preciso mata-lo cortando-o em pedaços, ou cortando-lhe a cabeça e colocando-a em uma estaca na estrada de sua casa.

Esses atos vão ritualizar o gesto de vingança e caracterizá-lo como vingança judiciária. O direito é, portanto, a forma ritual da guerra (FOUCAULT, 1973, p. 57).

Assim, verificamos que, nesse período, o que se destacava para a solução dos litígios não era uma investigação para uma construção dos fatos, mas sim um jogo de forças responsável por representar uma forma de verdade. Contudo, à medida que as práticas sociais foram acontecendo, alguns atos desses procedimentos também foram se renovando e, em uma análise descontínua dos fatos e sem nos preocuparmos com a origem das coisas, pois temos como base o pensamento foucaultiano a respeito da história das verdades, constatamos que as diversas formas de verdades judicial foram se atualizando. A delação premiada é um exemplo dessas diferentes (re)configurações.

Nessa perspectiva, verificamos que o instituto da delação premiada pode ser uma atualização de formas de aferição da verdade anteriormente adotadas. Nesse sentido, defendemos que toda (re)configuração nas formas de aferição da verdade é uma forma de materialização de certa “vontade de verdade”, a qual está sempre implicada em relações de saber/poder.

O instituto da delação premiada surgiu diante a dificuldade que existia para se punir os crimes praticados pelas organizações criminosas em concursos de agentes. Esse concursos de agentes pode ser definido como uma ação em que várias pessoas, em comum acordo, planejam e executam determinado crime. Ocorre um concurso de pessoas ou agentes quando mais de uma pessoa, em comum acordo, com identidade de

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propósitos resolveram praticar um crime. Dessa forma, para que haja concurso de agentes, faz-se necessária a combinação entre os sujeitos ativos do crime (CAPOBIANCO, 2014, p. 306). Assim, isso ocorre quando duas ou mais pessoas, concorrem para a prática de uma mesma infração penal (GRECO, 2014, p. 63).

O Estado, como responsável pela devida segurança dos cidadãos, viu a delação premiada como uma saída para as lacunas existentes nas investigações contra essas organizações criminosas, pois com as informações obtidas por meio dos delatores tornavam mais fácil desvendar diferentes crimes. Assim, o Estado passou, por meio desse instituto estabelecido em leis, a oferecer benefícios para que os envolvidos em crimes se prontificassem a colaborar com as investigações. Fazendo uma análise das Leis brasileiras, constatamos que o Estado se preocupou também em oferecer uma proteção ao delatores para que eles se sintam cada vez mais seguros ao ofereceram as informações cabíveis a construção da verdade dos fatos. Isso está expresso na Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, em seu 15º artigo, o qual determina que: “Art. 15. Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva”.

Essa preocupação do Estado em diminuir a quantidade de organizações criminosas, criando institutos que contribuam com as investigações está voltada para a segurança da sociedade como um todo. Contudo, essa participação do Estado na formação das práticas sociais voltadas para o combate ao crime não funcionou sempre da mesma forma que funciona na contemporaneidade. Na obra Vigiar e Punir, de Foucault, verificamos que, nos séculos XVII e XVIII, o Estado não estava preocupado em se criar um instituto que cuidasse da população como um todo, mas sim em construir meios que controlassem as virtualidades criminosas dos indivíduos. O que existia, então, era um controle do indivíduo e uma forma de governar através das instituições, como as prisões, quartéis, organizações etc. Essas instituições selecionavam os indivíduos que deveriam ser vigiados, segundo o comportamento dos mesmos. Dessa forma, o fato deles saberem que estavam sendo vigiados, mantinha-os, em certa medida, disciplinados. Tratava-se, portanto, de uma estratégia utilizada pelo poder estatal como forma de tornar o indivíduo útil para a sociedade e também de evitar

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que esse indivíduo agisse de forma irregular. Portanto, esse regime de poder, não objetiva cuidar da sociedade como um todo, mas sim do indivíduo.

Com o surgimento da sociedade moderna, após a Segunda Guerra Mundial, essa forma de controle foi se reconfigurando, pois passa-se a buscar não mais um controle apenas do indivíduo, mas também, e principalmente, um controle social. Essa maneira moderna de Estado foi uma derivação da sociedade disciplinar foucaultiana. A diferença está apenas no foco da estratégia de controle, pois na sociedade disciplinar o que se buscava era um controle em uma esfera local e, com esse novo método, o que se almeja é um controle em todos os campos da vida social, todo espaço da vida pública. Agora, o poder se faz presente em todos os ambientes. A delação premiada é, nessa perspectiva, uma forma de aferição da verdade que se alinha a esse biopoder. Segundo Foucault (1978), o biopoder é constituído por diversas técnicas de poder e tem como objetivo o controle da população, ou, da “espécie humana”. Esse biopoder, em síntese, seria o poder sobre a vida e estaria relacionado a uma articulação da vigilância panóptica e uma sansão normalizadora, se ocupando dos processos de natalidade, mortalidade, saúde, higiene etc. Nesse sentido, a delação premiada pode ser considerada uma forma de exercício do bipoder, porque busca controlar a prática de concurso de agentes, que, como vimos, diz respeito à prática de crimes realizada por dois ou mais agentes, constituindo, muitas vezes, o que se pode chamar de “organização criminosa”. Trata-se, portanto, de uma forma de controle que recai não sobre o indivíduo, mas sobre a população, até porque o tipo de crime que permite a delação premiada, como é o caso dos crimes investigados pela Operação Lava Jato, atinge, supostamente, toda a população.

Considerações Finais

Neste trabalho, com base na leitura de alguns textos de Foucault, bem como na análise de algumas leis brasileiras, verificamos que o instituto da delação premiada pode ser uma atualização de formas de aferição da verdade anteriormente adotadas, assim como uma maneira de controle/proteção da sociedade como um todo. Isso mostra que, à mediada que as práticas sociais vão se atualizando e também que participação do Estado

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na sociedade vai se modificando, novas (re)configurações das formas de aferição judicial vão surgindo e se estabelecendo.

Nesse sentido, defendemos que toda (re)configuração nas formas de aferição da verdade é uma forma de materialização de certa “vontade de verdade”, a qual está sempre implicada em relações de saber/poder.

Referências

CAPOBIANCO, Rodrigo Júlio. Exame da OAB Unificado 1ª fase. São Paulo: Editora Saraiva, 4ª edição, 2014.

BRASIL. Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 25. dez. 1990.

BRASIL Lei n.º 9.807, de 13 de julho de 1999. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF,13. jul. 1999.

BRASIL. Lei n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2. Agosto. 2013.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas: II conferência. São Paulo:

Editora NAU, 3ª edição, 2002 [1973].

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 29ª edição, 2004.

_____. Nascimento da Biopolítica. Curso dado no Collège de France (1977-1978).

Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1978].

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. São Paulo: Editora IMPETUS, 16ª edição, 2014.

Referências

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