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O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL MALAGRIDA: O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII

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RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA

O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL

MALAGRIDA:

O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

XVIII

MESTRADO EM TEOLOGIA

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC

SP

RODRIGO PIRES VILELA DA SILVA

O ESTILO HAGIOGRÁFICO NA FIGURA DO PADRE GABRIEL

MALAGRIDA:

O MODELO DE SANTIDADE NA SEGUNDA METADE DO

SÉCULO XVIII

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia, sob a orientação do Prof. Dr. Ney de Souza.

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Banca Examinadora

__________________________________________

__________________________________________

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“Aquele homem existiu mesmo! Bem concreto, daquele tamanho que andou com passos de gigantes em todo lugar do nordeste, e podemos enfim dizer com base histórica: aqui passou Malagrida no século XVIII!”

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AGRADECIMENTOS

A Deus pelo dom da vida e pelas possibilidades sempre novas que me concede;

À minha família, ao meu padrinho Luís Ferreira (in memoriam), meu primeiro catequista: pelos ensinamentos que alicerçaram minha história de fé;

À Arquidiocese de São Paulo: pelo constante apoio e orações;

A todos com os paroquianos da Área Pastoral Santíssima Trindade, onde tive grandes momentos de Alegria;

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na pessoa de seu Grão-chanceler, Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer: pelos encaminhamentos na construção de uma instituição segundo os valores cristãos;

Aos meus queridos professores e aos companheiros de estudo no Programa de Mestrado em Teologia da PUC-SP: pelo incentivo, exemplo e empenho dispensados;

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RESUMO

Esta dissertação desenvolve-se acerca da questão hagiográfica entendida como literatura a partir da vida do padre Gabriel Malagrida do qual pretende-se extrair a compreensão de santidade da época colonial. Problematiza-se o assunto, tendo como pano de fundo da reflexão teológica, questionamentos como: Qual o contexto cultural em que as narrativas da vida de Malagrida então inseridas? É possível estabelecer um modelo hagiográfico de santidade a partir da investigação das biografias de Malagrida? Qual é a relação que podemos estabelecer entre a narrativa de Matias Rodrigues, Vida do padre Gabriel Malagrida e a obra hagiográfica mais relevante sobre a vida dos santos,

Legenda Áurea? O método utilizado é a investigação de fontes literárias, biográficas e da literatura hagiográfica da vida de Malagrida e de outros textos que contribuíssem na compreensão da temática. A pesquisa pretende com essa abordagem contribuir na valorização de um personagem de importância histórica para o Brasil, o jesuíta Malagrida. Verificou-se, primeiramente, que o modelo de santidade vigente tem suas origens na concepção medieval de matriz portuguesa que impregna toda a Colônia brasileira. Em seguida, comprovou-se a hipótese de que uma investigação das obras biográficas de Malagrida vistas a partir da compreensão da literatura hagiográfica, poderia-nos fornecer elementos suficientes para estabelecer um modelo de santidade medieval colonial. E por fim, relacionamos essa concepção com a hagiografia contida em Legenda Áurea de modo a delinear esse paradigma de santidade.

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ABSTRACT

This dissertation develops on the issue seen as hagiographic literature from the life of Father Gabriel Malagrida which aims to extract an understanding of holiness from the colonial era . Problematizes the subject , with the backdrop of theological reflection , questions such as: What is the cultural context in which the narratives of the life of Malagrida then inserted ? You can establish a hagiographic model of holiness from the investigation of biographies of Malagrida ? What is the relationship that we establish between narrative Matias Rodrigues , Life of Father Gabriel Malagrida and more relevant information about the lives of saints hagiographic work , Legenda Aurea ? The method used is the investigation of literary , biographical and hagiographic literature of life Malagrida and other texts that contribute in understanding the thematic sources. The research aims to contribute to this approach in the valuation of a character of historical importance to Brazil , Jesuit Malagrida . It was found , first, that the current model of holiness has its origins in the medieval conception of Portuguese mother permeates all Brazilian colony . Then proved the hypothesis that an investigation of biographical works Malagrida views from the understanding of hagiographic literature , could provide us sufficient evidence to establish a model of colonial medieval holiness. Finally , we relate this concept to the hagiography contained in Legenda Aurea in order to delineate this paradigm of holiness .

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...09

CAPÍTULO I – UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO DA COLÔNIA...12

1.1 O MUNDO NO QUAL O BRASIL COLONIAL ESTÁ INSERIDO...13

1.2 OS ASPECTOS DAS RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS NA COLÔNIA ...20

1.2.1 “Encomienda”, “Requerimiento”E “O Estatuto Do Índio”...21

1.3 APROXIMAÇÃO DO UNVERSO RELIGIOSO COLONIAL...26

1.4 A VOCAÇÃO DA INQUISIÇÃO E SEU PAPEL NO PERÍODO COLONIAL...33

1.5 A OPÇÃO POR UM MODELO DE FORMAÇÃO SACERDOTAL NO SÉCULO XVI...36

CAPÍTULO II – LEITURAS ACERCA DO PADRE GABRIEL MALAGRIDA..40

2.1 AS FIGURAS DE MALAGRIDA...41

2.1.1 Malagrida de Matias Rodriguez: o Missionário Taumaturgo...42

2.1.2 Malagrida de Camilo Castelo Branco: a irracionalidade do século das Luzes....46

2.1.3 O Malagrida de Ilário Govoni: Malagrida por ele mesmo e a partir dos seus...53

CAPÍTULO III – A HISTÓRIA COMO INSTRUMENTO DA TEOLOGIA NA LITERATURA HAGIOGRÁFICA...66

3.1 HAGIOGRAFIA COMO GÊNERO LITERÁRIO...67

3.1.1 Hagiografia e Teologia...72

3.1.2 Legenda Áurea: modelo hagiográfico medieval...76

3.1.3 O estilo Hagiográfico de Legenda Áurea presente na obra de Matias Rodriguez...77

3.1.4 O Martírio em Vida do padre Gabriel Malagrida a partir do modelo hagiográfico em Legenda Áurea...85

CONCLUSÃO...89

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INTRODUÇÃO

O nome de Malagrida é reconhecido como Apóstolo do Brasil, tanto entre os Jesuítas quanto para os seus conterrâneos. É de chamar atenção a ausência de seu nome junto aos manuais de História, junto aos nomes de outros jesuítas como Nóbrega, Anchieta e Vieira, sobretudo por ter implantado aqui algumas devoções que vão marcar a identidade do povo brasileiro, como a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora da Boa Morte1. A campanha anti-jesuítica foi deveras forte, sobretudo na historiografia brasileira, que num processo de criação de uma História Nacional, dentre as seleções de fatos e personagens, de certa forma esquece a figura de Malagrida, que é elemento chave para a proposta espiritual para o período que se segue.

Sendo assim, pretendemos fazer memória à figura de Malagrida e destacar a sua importância no processo de formação do Brasil. Além disso, abrimos para a discussão o papel da hagiografia na História da Igreja, principalmente no que diz respeito à reconstrução de uma mentalidade, de uma cultura, de uma expressão de fé num período que mereceria mais atenção para o mundo acadêmico, tanto da Teologia como nas demais áreas do conhecimento.

O século XVIII foi bem intenso no que diz respeito à relação Igreja-Estado. Tal relacionamento nunca fora marcado pela lisura: desde Constantino até o sistema do Padroado. No entanto, o surgimento do Iluminismo como um forte movimento intelectual vai abalar a hegemonia do poder cultural que os jesuítas haviam construído desde sua fundação. Some-se a isso a crescente impopularidade dos inacianos junto às demais ordens religiosas contemporâneas2 e o fato de, por força da regra de Santo Inácio, os membros da ordem não poderem ocupar sedes episcopais, gerando uma falta de proteção para eles mesmos. As consequências da soma destes fatores são conhecidas: a expulsão da Companhia dos domínios portugueses e a sua supressão logo em 1773.

A figura do Pe. Gabriel Malagrida se encontra neste conturbado contexto. Quis, no seu entender, seguir a Jesus Cristo de perto, construindo uma vida santa. Em seus escritos tal propósito transparece, como em várias de suas biografias. Tal estilo de evangelização a que se propõe será adotada por outros religiosos nos séculos seguintes, como o Pe. Ibiapina, o beato

1 Cf. FENZL, Andrea; BARBIERI, Renato. Malagrida. [documentário-video]. Produção de Andrea Fenzl,

direção de Renato Barbieri. São Paulo, Videografia Criação, 2001. 1 DVD/NSTC, 73 min. color. som.

2Cf. DOMINGUES, Beatriz Helena. Disputas entre “Cientistas Jesuítas” e “Cientistas Iluministas” no mundo

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Antônio Conselheiro, Frei Damião, entre outros3. Uma santificação que parece estar associada à missão itinerante. E assim, faz sentido questionar o que, no século XVIII do Brasil Colonial, se entende por “santidade” ou qual era o modelo de santidade vigente.

Visto que contra Malagrida, que viveu para as missões, houve uma clara perseguição de Marquês de Pombal, acarretando na sua execução pela Inquisição, a Companhia de Jesus logo começa a produzir material de cunho apologético para fazer justiça ao mais novo mártir inaciano. Tais escritos são produzidos dentro de um esquema já conhecido no mundo medieval e bem presente no mundo de então: o estilo de Legenda Áurea, ou seja, nos moldes da vida de um santo. Assim, a visão de santidade no século XVIII do Brasil Colonial pode ser descoberta sob os contornos da vida de Malagrida.

Os modos de vida e de morte narrados pelos seus hagiógrafos reproduzem várias feitas de santos contidos na obra de Jacopo de Varazze. Para o momento, é possível apontar tais elementos na vida de Malagrida. Este esquema hagiográfico poderia ser um padrão. A base disso é que todas as biografias do Pe. Malagrida obedecem ao mesmo esquema tetrapartido, como a do Matias Rodrigues, do Paul Mury, a do Ilário Govoni – todos jesuítas – mostrando

um mundo no qual “há uma constante luta entre o bem e o mal, da qual nada e ninguém pode ficar alheio”4. No entanto, ainda que seja sabido que com a chegada do Iluminismo tal

espiritualidade tenha não atendido mais a necessidade tanto do clero quanto do povo, é importante notar que o que acontece na redação da história de Malagrida segue o esquema apontado pelo Hilário Franco Jr. no modelo hagiográfico.

Tal modelo não poderia ser resumido por uma pergunta simplista como: “é verdade o que o texto diz?” Ou “tudo isso foi inventado?”, pois o que interessa aqui é a mentalidade, o

simbolismo daquela geração; as representações de mundo. Em outras palavras, como que o mundo é visto pelos jesuítas e, de certo modo, pela população evangelizada por eles naquele período tão conturbado.

Para tal argumento, a utilização de textos da época é sentida, tanto em forma da língua arcaica, quanto editados no vernáculo contemporâneo, sempre de acordo com a fonte encontrada. A extensão de algumas citações de autores dos séculos XVIII e XIX não tem outra razão que apresentar a noção presente nas entrelinhas, visto que não trabalham com

3 Cf. COMBLIN, José. Padre Ibiapina. São Paulo:Paulus, 2011. Neste livro o autor faz uma breve apresentação

sobre o modo como Ibiapina desenvolve seu ministério no sertão nordestino. Faz parte de uma série que visa apresentar história da evangelização no Nordeste. Outro volume do mesmo autor se refere a Pe. Cícero.

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conceitos enciclopédicos, mas por meio de estilos e imagens literárias próprias de seu contexto barroco, de modo que cortar um pedaço poderia custar à compreensão do conteúdo.

O sentido do trabalho é, através de elementos históricos, literários e teológicos em torno de um personagem concreto, propor uma leitura sobre a figura de Gabriel Malagrida. Assim, o caminho a ser percorrido fará três paradas, com passagem pela História, Literatura e Teologia, na intenção de apresentar uma interdisciplinaridade entre elas, oferecendo subsídios para a compreensão do relacionamento entre o Homem e a Revelação.

Sendo assim, a primeira parte do nosso estudo intenta justamente apresentar de forma sistemática os elementos que marcam o período histórico em que o padre Malagrida viveu, de modo a contextualizar o Brasil colonial e identificar suas principais influências, sobretudo as referentes à Coroa. De fato, é a partir de uma perspectiva histórica da época que podemos situar que é inerente à vida de Gabriel Malagrida e de seus contemporâneos biógrafos.

A segunda parte desse trabalho está dedicada a uma breve análise das mais relevantes biografias de Malagrida. Nosso intuito é demonstrar com precisão que tais narrativas contém como pano de fundo comum os elementos que estão presentes na compreensão do que é santidade em meados do século XVIII.

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CAPÍTULO I

UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO DA COLÔNIA

“Os lusos mores coisas atentando

Novos mundos ao mundo irão mostrando ”5

“O objeto próprio, o constituinte essencial do cristianismo não é

uma ideia, ideologia, nem uma moral, mas uma Pessoa. Em última instância, não é senão uma relação entre as pessoas criadas e históricas, que participam existencialmente da mesma interpessoalidade divina. Por isso, o cristianismo compromete toda a

pessoa, a um nível concreto, absoluto e radical”.6

Qualquer coisa que possamos dizer a respeito do passado, não é capaz de abarcar sua totalidade, quando muito faz uma aproximação. A partir deste ponto de vista, numa primeira delimitação de nossa abordagem histórica, é que apresentamos a compreensão de que o século XVIII foi bem intenso no que diz respeito à relação Igreja-Estado. Tal relacionamento nunca fora marcado pela lisura: desde Constantino, nos primórdios do cristianismo quando o tornou religião oficial do estado, até o sistema do Padroado, em que os nomes para cargos eclesiásticos eram indicados pelo governante de Portugal. No entanto, o surgimento do Iluminismo7 como um forte movimento intelectual abala a hegemonia do poder cultural da Igreja Católica, sobretudo da Companhia de Jesus, uma vez que os jesuítas haviam construído desde sua fundação grande influência nesse campo.

No que diz respeito à história do Brasil, este século está dentro do período que didaticamente é chamado de colonial. São trezentos anos em que pouco se muda no contexto brasileiro. É praticamente a mesma paisagem desde quando o processo de colonização se

5 Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva, 2010. p.46.

6 DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-americana. V. II. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 32.

7 O Iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio.

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estabeleceu. Como se demonstrará a seguir, isto ocorreu porque a colônia e seus problemas eram encarados da mesma forma que os problemas em Portugal. As políticas e as medidas econômicas adotadas para esta porção do mundo são basicamente as mesmas, por princípio, o de relação metrópole-colônia. Haverá movimentos de reivindicação de políticas econômicas nos século XVIII que remontam ao século XVI.

1.1 O mundo no qual o Brasil colonial está inserido

Obviamente não podemos falar do século XVIII sem considerarmos os séculos anteriores e os movimentos que ali foram desenvolvidos. Toda a questão que tem como palco esse momento histórico é justamente em relação às potências marítimas (Portugal e Espanha) e o seu expansionismo que para dar fôlego as suas metrópoles e sair da saturada luta contra os árabes (mouros) que os cruzados, empenhados em conquistar o território onde estes residem e a Terra Santa, não conseguiram realizar. De fato, o embate com o mundo mulçumano provocou grande desgaste e uma necessidade de “navegar” em outros mares em busca de riquezas e da expansão da fé católica. Da mesma forma, a posterior questão com os protestantes gerou tantos confrontos que acabou por repaginar o mundo da fé e a visão do mesmo.

A aritmética neste sentido era muito simples, quanto mais índios convertidos, mesmo que à força, no Novo Mundo, mais “civilizados” e cristãos para a coroa-metrópole. Além disso, havia também uma grande possibilidade de que uma vez “civilizados” e cristãos, eles se tornassem aptos para o trabalho que era necessário na colônia, tendo em vista um melhor aproveitamento das riquezas contidas no Brasil, além de evitar também um gasto muito alto com a compra de escravos vindos da África.

O doze de outubro de 1492 sai de seu marasmo, se desprende do calendário e vai

retomar seu “lugar ao sol”, de esperanças e sonhos. A história que rompe com as camuflagens

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religiosa. Ele sentira desde o começo de seus Diários8 que o momento da expansão marítima chegara quando se realizava e comemorava a Reconquista9.

Colombo concatenou bem todos os acontecimentos e viu com muita lucidez a hora certa que abria espaço para o lançamento de sua tão almejada expedição. Era sempre uma grande aventura inusitada. Todo esse entrelaçamento de pessoas, de fatos, foi o que veio a tornar viável a descoberta da América e a determinar as condições de sua colonização.

Aumenta a vaidade de ter construído a uniformidade interior, que resultou da força da

ortodoxia e da valia dos “cristãos velhos”, dos espanhóis de boa casta. É o tempo de ir em frente com o expansionismo político e econômico. A unidade forte leva a propagar a fé e o império. Todavia, nos séculos subsequentes, o propagar assume o pleno significado de sua ambição histórica. Esta mentalidade impõe aos outros a fé cristã, levando a um processo de inchaço compreensível que concentra muita vaidade, instigando a ocupação de novos espaços, supostamente vazios de seus donos. O poder econômico, político e militar dá aos povos colonizadores, em relação aos seus dominados, força para dizer que todas essas terras estavam reservadas desde sempre aos “novos senhores do universo”.

Nós, pensando com a devida meditação em todas e cada uma das coisas indicadas, e levando em conta que, anteriormente, ao citado rei Alfonso foi concedido por outras cartas nossas, entre outras coisas, faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter a quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estivessem, e aos reinos, ducados, principados, domínios, possessões e bens móveis e imóveis tidos e possuídos por eles; e reduzir á servidão perpétua as pessoas dos mesmos, e destinar para si e seus sucessores os reinos, ducados, condados, principados, domínios, possessões e bens deles. Seus sucessores e o Infante, nas províncias, ilhas e lugares já adquiridos ou a serem adquiridos por eles, possam fundar e construir igrejas, mosteiros e outros lugares piedosos; e ao citado rei Afonso e seus sucessores, os que forem reis de Portugal doravante, e ao citado Infante, o concedemos e o permitimos.10

8 Diários da descoberta da América: era o diário de suas viagens. Cf. JOSAPHAT, F. Carlos. Las Casas, todos os

direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000. p. 20.

9 Os mouros (infiéis) foram definitivamente vencidos e expulsos da Espanha: a última batalha fora em Granada,

em 1492. Cf. Ibidem.

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A visão de um mundo a ser conquistado não é exclusividade do povo ibérico. O desejo de tal façanha já era contado desde Homero, Vergílio, e neste ínterim, por Camões em Os Lusíadas. O expansionismo deste povo é reflexo da própria natureza humana, como que num esquema de projeção, no qual o desejo de dominar está ligado à ideia de prosperidade que, não se queira ser simplista, em todos os tempos, esteve ligada à vontade divina, ao favorecimento dos deuses. O texto, como se percebe, mostra primeiramente o desejo de ir além; doravante, segue-se um embasamento, se não teológico, pelo menos devocional:

Nós, confiantes na misericórdia do próprio Deus todo-poderoso, e na autoridade dos seus santos apóstolos Pedro e Paulo, e nas palavras d’aquele que é o caminho, a verdade e a vida, e nos disse, na pessoa do mesmo bem-aventurado Pedro, de quem somos sucessor com igual autoridade, embora

não iguais méritos: ‘o que ligares na terra ficará ligado nos céus’; e

[confiante] na plenitude do poder que Nos foi dado pelos céus: concedemos igualmente e damos a todos e mesmo fiéis que com suas próprias pessoas se engajarem no exército dos mesmos Rei e Rainha para guerrear contra os mesmos sarracenos para conquista do dito reino de Granada, e que permanecerem [na tropa] pelo tempo que for estabelecido pelos tesoureiros de coletas dessa santa Expedição, designados conforme as circunstâncias, a remissão de todos os seus pecados e a indulgência como foi costume ser dada pelos Nossos Predecessores aos que partiram para reforço [dos combatentes] na Terra Santa, e como foi concedida em Ano Jubilar pelos mesmos Predecessores e por nós mesmo.

Decidimos sejam para sempre preservadas ao regaço dos santos Anjos, no céu, para permanecerem na felicidade eterna, as almas de todos aqueles a quem couber partir para essa santa Expedição. De tal modo que, se vier a acontecer que alguns deles partam desta vida se puserem a caminho para o prosseguimento de tão santa obra, poderão eles adquirir integralmente essa indulgência.11

A expansão portuguesa se dará nos moldes da espanhola, uma vez que ambas eram potências marítimas na sua época; a honra de lançar-se ao mar e apresentar novos mundos ao mundo conhecido é tema trabalhado por Camões, que explora, numa retomada de elementos

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clássicos do paganismo, somados a um pessimismo em relação à pequenez humana diante do vasto mundo, em versos de enaltecimento ao povo português. Pelo tamanho da obra, é perceptível que o orgulho dilatado deste povo era maior do que quaisquer princípios humanitários em relação aos povos indígenas, ou de outras terras conquistados.

No mar tanta tormenta, tanto dano Tantas vezes a morte apercebida Na terra tanta guerra, tanto engano

Tanta necessidade aborrecida Onde pode acolher-se um fraco humano?

Onde terá segura a curta vida ? Que este céu sereno não se arme Contra um bicho da terra tão pequeno12

(...)

Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso, Que para as coisas que eu do peito amasse

Tu fosses brando, afável e amoroso Posto que algum contrário lhe pesasse Mas, pois que contra mim te vejo iroso

Sem que eu merecesse, nem te errasse Faça-se como Baco determina Aceitarei, enfim, que fui mofina

Este povo, que é meu, por quem derramo As lágrimas que em vão caídas vejo Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo

Sendo tu tanto contra o meu desejo Por ele a ti rogando, choro e bramo E contra a minha dita, enfim, pelejo Ora pois, porque o amo, é maltratado, Quero-lhe querer mal: será guardado.13

(...)

Os vossos mores coisas atentando Novos mundos ao mundo irão mostrando14

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A história é cantada numa epopeia marcada pelos sacrifícios que justificam a vida. O mundo quinhentista é lugar do sagrado, um espaço de epifania. Por esse motivo, a expansão não pode deixar de ser lida como um fenômeno teológico. Ora, como missão é campo da Teologia. Foram estas nações que, com seu espírito desbravador, conseguiram levar a

“civilização” e a fé católica ao continente americano, promovendo assim, o choque de culturas e visões de mundo totalmente diversas, que não se entenderam muito bem, sobretudo no início.

Evidentemente que, como colônia portuguesa, e mesmo mostrando sinais de crescimento econômico, “especialmente após 1570, o Brasil, oitenta anos depois de descoberto, continuava a ser os fundos do Império”15, não podia nem se gabar de ter

universidades ou imprensa, tendo pouquíssimos edifícios nobres e quase nada de riqueza mineral que fosse visível. Já o pau-brasil permaneceu até o século XVIII um importante produto para a atividade econômica, porém, não podia por si só, sustentar a colônia.16 A união de Portugal com a Espanha em 1580 sob uma única coroa, que trouxera moedas peruanas ao Brasil em meados de 1585, favoreceu a vida econômica. No entanto, com o seu rompimento em 1640, ficou clara a dependência econômica do Brasil desta fonte de dinheiro. Assim, os portugueses retornaram novamente a prática do escambo.17

Todavia, os germes do futuro já haviam sido lançados na forma da cana-de-açúcar vinda de São Tomé no início do século XVI. Em meados do século XVII o Brasil, por ter algumas características favoráveis, como o clima e o solo, fará do açúcar o seu alicerce econômico.18 Os senhores de engenho se tornarão os homens ricos da colônia, pois o Brasil não tinha uma população indígena grande assentada e pagadora de impostos, e as riquezas minerais ainda estavam num futuro distante. Toda a produção de açúcar dependia dos colonos, que mesmo assim viam os custos agrícolas e industriais cair diretamente sobre si. Os senhores de engenho fizeram assim do Brasil uma colônia muito valiosa, e sem eles não haveria muita coisa para sustentar a região.

Assim, em 1609-11 e, como veremos, também em 1626, a Coroa adotou uma posição mais leniente do que deveria em relação às demandas dos

14 Cf. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. II, 39-40. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 46.

15 SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

p. 94.

16 Cf. Ibidem. 17 Cf. Ib. p. 95.

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fazendeiros. Os acontecimentos desses anos de fato deixaram claro, entretanto, que a Relação, que fora saudada pelos fazendeiros como uma aliada contra os comerciantes, era um órgão do governo real e, portanto, uma possível ameaça à elite canavieira.19

Posto isto, a figura dos jesuítas aparece no Brasil colônia como uma realidade vital, cuja notoriedade e estilo orientou a vida do Novo Mundo. Eles foram os desbravadores de um lugar tido por selvagem em suas terras. Por aproximadamente trezentos anos, a única estrutura de civilização presente na colônia era a Igreja. E em muitos casos, a representação da Igreja se dava pela presença jesuíta, pois onde chegavam se preocupavam logo em criar escolas, igrejas, oficinas, etc. Assim, a presença inaciana se dá justamente pela ausência do Estado de direito. Mesmo que possa soar como um Estado dentro de outro, na verdade o que parece é que num terreno onde não há um Estado de direito e as distâncias são continentais, os habitantes acabam por se organizar da forma que conseguirem, com as leis que conhecem.

O crescimento jesuíta vem acompanhado de dinheiro e poder, justamente por terem consigo a mão-de-obra indígena e controle sobre suas terras e produções. Com isso, os administradores da metrópole tinham o desejo de secularizar a atuação jesuíta, pois tendo isenções alfandegárias e controle da mão de obra, eles tinham a balança do mercado a seu favor.20 Para resolver esta organização indígena de domínio da Companhia de Jesus, é lançado o Diretório do Índio em 1757, cuja orientação é secularizar o território, a mão de obra e escoação dos índios, tirando dos religiosos esta receita e obrigando-os a viver de suas côngruas, além de passar a eles o direito de civilizar estes povos bárbaros.

Ao desenvolver a tese do estado ‘arruinado21’ Mendonça Furtado22 coloca em

movimento o espírito iluminista que fora assimilado por Marquês de Pombal. Pois fora desejo deste a supressão dos jesuítas de todas as colônias portuguesas, uma vez que via neles um entrave para o desenvolvimento e prosperidade de Portugal. Contudo, não é exagero lembrar que o iluminismo pombalino não passou de um despotismo esclarecido. Tanto ele, quanto

19 Ib., p. 124.

20 Cf. RAYMUNDO, Letícia de Oliveira. http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. Último

acesso em 15/03/2013.

21‘Tal ruína’ aparece sempre associada ao poder temporal dos eclesiásticos, os quais, ao contrário dos colonos,

possuiriam produtivas fazendas, grossos cabedais e se destacariam na extração das drogas do sertão em virtude de dominarem a principal mão-de-obra do estado, o índio. E no mais eram isentos do pagamento de impostos,

fazendo com que esta prosperidade não revertesse em benefício aos cofres públicos’ cf. RAYMUNDO, Letícia

de Oliveira http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf.

22 Sendo governador do Pará, acolherá as indicações da Metrópole portuguesa, neste caso contra o modo de

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Mendonça de Furtado, seu irmão, não negam a utilidade dos inacianos, visto que do Rio de Janeiro à foz amazônica as missões jesuítas tinham bons resultados, pois conseguiam converter gentios. O problema é que o campo de atuação deles era maior do que a sacristia:

Eram conselheiros das principais autoridades administrativas, construtores das maiores bibliotecas da Colônia, exploradores dos sertões, linguistas, médicos, arquitetos e artesãos dos mais diversos tipos, horticultores, criadores de gado, superintendentes de fazenda e administradores de imóveis urbanos. Por fim, foram os criadores do teatro brasileiro e os cronistas de todos os acontecimentos registrados na época.23

As funções de um Estado de direito se resumem em garantir a base para o desenvolvimento de seu povo, o que pode ser encontrado em filósofos iluministas chamados de contratualistas, como Locke, Hume, Rousseau, Voltaire, entre outros. No entanto, por mais de trezentos anos, este papel foi sendo feito nas colônias portuguesas pelas ordens religiosas e, de modo muito particular, pelos jesuítas.

Em poucos países da América uma língua indígena teve tanta difusão que o tupi antigo conheceu. Chegou a ser por séculos a língua da maioria dos membros do sistema colonial brasileiro, de índios, negros africanos e europeus, contribuindo para a unidade política do Brasil.(...) Em formas evoluídas, foi falada durante a metade da nossa história, mais que a língua portuguesa, até cerca de 1750, que só se impôs nacionalmente após a segunda metade do século XVIII.24

A influência foi tamanha que, diga-se de passagem, a língua comum, o nheengatu, era o tupi, não mais tal e qual falado pelos índios quinhentistas, mas transformado em língua literária pelos “soldados de Cristo”. O quadro só foi alterado com a ascensão de Pombal ao poder e a expulsão dos jesuítas de seus domínios.

Assim, a colonização do Novo Mundo dá significado ao desejo de expansão dos ibéricos e, para tanto, fornece elementos para a visão teológica do universo e para a construção de um mundo que tenha a Europa como centro. Neste aspecto, a sujeição de povos

23 SROUR, A. C. Introdução. In: MURY, P. História de Gabriel Malagrida. São Paulo: Loyola. 1992 p. XIV

XV.

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e de suas culturas acaba sendo justificável, se não necessária. É neste contexto que a Igreja está inserida.

1. 2 Os aspectos das relações sócio-políticas na colônia

O projeto político e econômico da metrópole é estabelecer em seus domínios um modelo humano e proveitoso de boa colonização, de modo que tanto mais servos trabalhando de boa vontade seriam menos difíceis de controlar e mais lucrativos para os donos de aquém e além-mar. Todavia, devido aos abusos para com os índios se fez necessário, tanto na América espanhola como no Brasil, fazer leis que dessem algumas garantias a estes, livrando-os de todo tipo de maus tratos, conferindo-lhes alguns direitos. Isso, no entanto, não era fiscalizado, até porque era devido, fazendo com que a situação permanecesse sem evolução.

Os escravos forneciam a mão de obra das fazendas de cana-de-açúcar, e adquiri-los representava grande despesa. De início, os índios cativos forneciam braços para as plantações, e na verdade continuaram a ser usados durante todo o século XVII, mas os escravos negros importados da África ganhavam cada vez mais importância como mão de obra nos engenhos. Em 1600, uma escrava negra era vendida na Bahia por cerca de 30 mil-réis e um escravo negro, por 40 mil-réis. Portanto, um engenho com 150 escravos comprometia cerca de seis contos de réis com sua força de trabalho. A união com a Espanha acabou provocando uma escassez de escravos negros na Bahia e os preços subiram. Contratadores portugueses importavam cargas de africanos para a América Espanhola, onde alcançavam ótimos preços. Com isso, o número de escravos disponíveis no Brasil caiu e, consequentemente, os preços aumentaram. A falta de negros no Brasil levou à volta do índio como trabalhador cativo e estimulou novos ataques às populações indígenas, especialmente na área de São Paulo. Os infelizes índios que caíam nas mãos dos paulistas eram vendidos a fazendeiros do Recôncavo e de Pernambuco.25

A base da economia e da política aqui no continente, evidentemente, não é a mesma da metrópole: a mão-de-obra escrava. A administração de assuntos referentes a esses e a outros temas será feita na metrópole, numa tentativa como que de controle à distância. Como se verá,

25 SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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as medidas serão tomadas por quem nunca aqui esteve, com as armas próprias exigidas pela lonjura: a força e a burocracia. No meio de tudo isso, a Igreja.

1. 2. 1 “Encomienda”26, “Requerimiento27 e o Estatuto do Índio28

Tendo formado um “grupo de trabalho”, denominado “junta de Burgos”,

ordenando, entre outros, por seus conselheiros Palácios Rúbios, Juan Rodríguez de Fonseca29 e alguns teólogos, o rei da Espanha procurou encaminhar a situação dos índios, encaminhando também a situação da escassez de mão-de-obra na América espanhola.30

A “junta de Burgos” vai elaborar sete Proposições que servirão como princípios

para a conclusão das Leis de Burgos. Tanto nas Proposições como depois nas Leis permanece a contradição entre a liberdade dos índios proclamada e o trabalho forçado exigido. Já em seu

preâmbulo as ordenanças de Burgos dizem que os índios são “por natureza inclinados à ociosidade e maus vícios (...), sem nenhuma virtude ou doutrina”.

“A primeira Lei indigenista vai forçar o deslocamento dos índios para os povoados dos espanhóis” e vai também ratificar a Encomienda. O superior dos dominicanos,

Pedro de Córdoba, viu nas Leis de Burgos “a perdição dos índios” e teve um susto em saber

que tais Leis haviam sido feitas por tantas e tais pessoas de tanta autoridade, solenidade e com tamanho consenso, fazendo parecer que ninguém podia realizar coisa alguma em contrário, a não ser que fosse tido como presunçoso e atrevido ou insano.

No entanto, por intervenção de Pedro de Córdoba, fora redigido em Valladolid

quatro “moderações”, com medidas protecionistas que, em 28 de julho de 1513, foram anexadas às Leis de Burgos.

Ordenanças para o tratamento legal dos índios inclinados à ociosidade e aos maus vícios: as Leis de Burgos (Burgos, 27. 12. 1512/23. 1. 1513).

26 Trabalho forçado em regime de semi-escravidão cf. Ibidem. pp. 112-124.

27É uma declaração de guerra ritualizada com o intuito de explicar a “razão da conquista” aos índios da América

Central (1524), de Yucatán (1527), da Guatemala (1530), do Peru (1532), da Venezuela (1534), do Panamá (1535), de Nova Granada (1537) e do Rio da Prata (1540), praticamente até a promulgação das Leis Novas, de 1542/43. Existem várias versões e adaptações do Requerimiento.

28 Datado de 1757.

29 Bispo de Palencia e depois, encomendeiro de 800 índios nas Antilhas.

30 No momento dos descobrimentos, durante todo o século XVI, a Espanha passa por uma crise econômica, e a

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Dom Fernando, (...). Eu e a sereníssima Rainha dona Isabel, minha cara e muito amada mulher, a santa glória tenha, sempre tivemos muita vontade que os caciques e índios da Ilha de San Juan chegassem ao conhecimento de nossa fé católica, e para mandamos fazer e foram feitas algumas ordenanças tanto por nós como por nossa ordem pelo comendador Bobadilla e pelo comendador maior de Alcântara, Governadores que foram à ilha de San Juan, e depois dom Diego Colombo, nosso Almirante, Vice-rei e Governador da ilha espanhola a das outras ilhas que foram descobertas pelo Almirante seu pai e por sua indústria, e nossos oficiais que residem na dita ilha, e segundo se viu por longa experiência, diz que tudo não basta para que os ditos caciques e índios tenham o conhecimento de nossa fé, que seria necessária, para sua salvação porque são naturalmente inclinados para à ociosidade e maus vícios de que nosso Senhor é desservido e não há nenhuma maneira de virtude nem doutrina, e o principal empecilho que têm para não se emendarem de seus vícios e de não lhes de ser útil nem impressa neles a doutrina, nem aceitam, é terem seus povoados e moradia tão longe como têm e afastados dos lugares onde vivem os espanhóis que daqui foram e vão povoar a dita ilha, (...)

Como se vê, o argumento utilizado aqui para justificar a domesticação do povo selvagem é a lógica militar do divide et impera, separando os indígenas de suas famílias e, sob o pretexto de incutir neles a fé católica. E como é perigosa uma mente ociosa, a proposta é preencher este tempo com trabalhos, ainda que contra a vontade deles (dos índios). E como o melhor modo de evangelização, segundo El-Rey, é o da proximidade aos povos já cristãos, seria oportuno que estes índios se ocupassem com os afazeres propostos pelos espanhóis, numa relação não de servidão como na Europa, mas de senhor-escravo. Assim é que se segue o teor do texto,

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espanhóis que há na dita ilha e para que ali sejam tratados, instruídos e olhados como se deve e sempre desejamos, mando que doravante se guarde e cumpra o conteúdo que segue.31

A lei de Burgos aparece essencialmente negativa, devido ao fato de que a

colonização é uma conquista com os “direitos” das guerras de conquista, a começar pela

escravidão. A escravidão era vista com “bons olhos”, justamente porque se tinha em mente que os índios eram incapazes de assumir suas responsabilidades e seu autodomínio.

Já o Requerimiento era dirigido ao povo e seus caciques antes do confronto

militar, para estabelecer os “critérios” de sujeição ou guerra justa. A intimação era dada, exigindo que se tais se sujeitassem à autoridade do Papa e do Rei da Espanha e abraçassem a fé cristã. A leitura do Requerimiento lhes era feita em latim ou em espanhol, só depois disso o imperativo, a intimação é dada aos índios. Tal Requerimento é oficializado em nome de

“Fernão V da Espanha domador de povos bárbaros”. É esse divino domador que denota e faz saber que “Deus uno e eterno criou o céu e a terra, e escolheu Pedro, para que de todos os homens do mundo fosse senhor e superior (...) lhe dando todo o mundo como seu reino,

domínio e jurisdição”. E mais: “um dos pontífices passados32 fez a doação destas Ilhas e da

Terra Firme do mar oceano aos ditos Rei e Rainha”.33

Se assim fizerdes, fareis bem, e aquilo a que sois tidos e obrigados, e Suas Altezas, e eu em seu nome, vos receberão com todo amor e caridade, e vos deixarão vossas mulheres, filhos e bens livres sem servidão, para que deles e de vós façais livremente tudo o que quiserdes e considerardes bom e não vos compelirão a vos tornardes cristãos, salvo se vós, informados da verdade, vos quiserdes converter á nossa fé católica, como fizeram quase todos os habitantes das outras ilhas e, além disto, Sua Alteza vos dará muitos privilégios e isenções, e vos fará muitas mercês. Se não fizerdes isso, ou maliciosamente vos demorardes, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei com poder contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneiras que eu puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Suas Altezas, e tomarei vossas pessoas e as de vossas mulheres e filhos eu os farei escravos, e como tais os venderei e disporei deles como Sua Alteza

31 SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América. Petrópolis: Vozes, 1992. pp. 657-658. 32 Alexandre VI.

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mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder, como a vassalos que não obedecem nem querem receber a seu senhor e a ele resistem e contradizem; e protesto que as mortes e danos que resultarem disso sejam por culpa vossa e não de Sua Alteza, nem minha, nem destes cavaleiros que comigo vieram, e de como digo e requeiro peço ao escrivão presente que mo dê por testemunho e assinado, e aos presentes rogo que disso sejam testemunhas. Assinado pelo bispo de Palencia, pelo bispo frei Bernardo, pelos membros do conselho e pelos frades dominicanos.34

Já o Diretório dos índios obviamente é posterior, mas vem no contexto de garantir a liberdade para os índios no Brasil. Liberdade essa que maldosamente é tida por Mendonça Furtado num linguajar malicioso que, ao defender a liberdade dos índios, não o faz por lhes querer bem, mas para quebrar a “cadeia” que se encontra nas mãos dos jesuítas e inviabiliza o progresso da colônia. No século XVIII a coroa portuguesa procurou reverter essa situação, convertendo essa dinâmica econômica em benefício do reino, bem como ampliá-la, inserindo-a no sisteminserindo-a de tráfico inserindo-africinserindo-ano, e consequentemente, no sisteminserindo-a mercinserindo-antil do Atlântico Sul.35

A questão indígena transforma o Brasil em um turbilhão dos interesses da Coroa portuguesa, dos jesuítas e dos colonos. A Relação36 é instaurada à Bahia e imediatamente “o caldeirão transbordou”. Os colonos portugueses conheciam de modo superficial as bases morais e teológicas da política indígena, e mesmo a Coroa tentando limitar a encomienda e reformar o repartimiento nas Índias espanholas, os senhores de engenho brasileiros ainda achavam que a encomienda, em sua forma pura, poderia ser estabelecida no Brasil. Tal opinião significava ignorar a defesa cada vez mais resoluta da liberdade indígena pela Coroa, como expressavam as leis de 1587, 1595 e 1605.37

Por estes motivos, fica difícil estudar o século XVIII sem levar em conta os processos de colonização desde a chegada dos europeus em solo americano. A mentalidade pouco mudou em trezentos anos, a ponto de senhores de engenho, desconexos da realidade internacional de sua época desejarem medidas políticas e econômicas em situações que poderíamos chamar de anacrônicas, pois só seriam válidas duzentos anos antes, aproximadamente.

34 SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual da América. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 674.

35 Cf. RAYMUNDO, Letícia de Oliveira. http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_informes_1.pdf. Último

acesso em 15/03/2013.

36 Tribunal Superior da Bahia, instituição judiciária e administrativamente estabelecida no Brasil em 1609. 37 SCHWARTZ, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Enfim, a Igreja aparece nesta parte da História pela “porta” da economia e da política, quando organiza o primeiro corpo de leis escritas nesta parte do mundo, mas fazendo uma leitura a partir da doutrina, ou seja, sua influência está agora inserida principalmente no campo político, mas também no econômico em que a partir dos princípios da fé cristã católica, as leis que dizem relação a essas áreas são elaboradas. Em 1707 são promulgadas as

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que tem por objetivo, a partir da legislação canônica, regulamentar a vida colonial em todos os seus setores, mas a partir da realidade eclesial. Sua capacidade de normatização abrange até a gana dos senhores de escravos, negros ou índios, proibindo o trabalho escravo em dias de domingo e dias santos38. Ora, se tal mandamento foi feito, é porque havia abusos. Se chega a virar lei, é por haver senhores que obrigassem escravos a violar o dia do Senhor. No entanto, por não haver uma forma de executar civilmente tais determinações, na defesa dos direitos fundamentais dos índios e negros, é uma lei difícil de por em prática. Em certa medida, por meio de abstração, é notória a busca pela legitimação do trabalho escravo indígena.

Assim, é também neste contexto que se entende, num Estado a ser construído, a mudança da Inquisição de um departamento eclesial para um braço armado do poder civil. Além disso, a ausência de forças controladoras da ordem social na Colônia era um problema a ser resolvido.

1. 3 aproximação do universo religioso colonial

A partir do século XVIII, uma santa ganhou um prestígio muito especial na colônia luso-brasileira: Rita de Cássia, a santa das ‘causas impossíveis’. Seu

culto se espalhou rapidamente em várias vilas e cidades, onde surgiram capelas e igrejas em seu nome; diversas localidades também foram colocadas sob sua proteção.39

A mentalidade religiosa do século XVIII não se dá de forma homogenia no mundo católico. Enquanto na metrópole o tom é dado pelo Iluminismo, nas colônias a questão é de sobrevivência. A devoção aos santos na colônia é bastante difundida a ponto de surgir uma

38 Cf. VIDE, S. M. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp. 2010. Título XIII §379. 39 AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

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‘teologia do favor’40 que consiste justamente no fato de acreditar que em razão dos santos

estar mais perto de Deus, eles podem assim, obter com mais facilidade os favores celestes ou graças para os pobres mortais.41 Condenados a viver na terra devido ao pecado original, os homens tinham perdido qualquer direito de serem beneficiados por Deus durante esta vida e depois da morte.42

De acordo com Arilda Inês Miranda Ribeiro, fora a confusão étnica dada no período colonial, por aproximadamente trezentos anos, a população feminina branca era composta de

“órfãs, ladras, prostitutas, assassinas, alcoólatras, entre outras. As que não fariam falta em Portugal” 43. Soma-se a isso o fato de homens e mulheres vindo com a intenção de voltar

depois de explorar a terra, sem a intenção de criar vínculos44. A colônia pode ser encarada, a partir daí, com um imenso purgatório.

Um testemunho sobre a situação da vida colonial, de modo particular no Nordeste, que é objeto desta parte do estudo, vem da pena de d. Joaquim Ferreira de Carvalho, de 1799, encontrado no rico trabalho de Pollyanna Gouveia de Mendonça45: “Tenho passado pelo

desgosto de não achar neste bispado nem letras, nem religião, nem costumes, e não havendo as primeiras, a falta da segunda e da terceira é consequência, sendo entre todos os mais

escandalosos os religiosos”.

O Concílio de Trento46 que tocara em questões delicadas que foram levantadas pela Reforma Protestante e também pretendia tomar pulso de todo um conjunto de reformas práticas, cuja falta, dolorosa e ressentida tinha gerado ou ao menos motivado o rompimento da cristandade após a grande crise que se delongava pelos séculos XIV- XVI. Entre essas questões nasceu a preocupação com vida do clero, que nem sempre se revelava como a mais

40 Cf. ib., p. 266. 41 Ibidem.

42 . AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

2005. p. 267.

43 RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres e Educação no Brasil colônia. Campinas: Ed. UNICAMP. 1987. p.

17.

44 Ib. p. 33.

45 MENDONÇA, P. G. Parochos imperfeitos. 2Tese de Doutorado em História UFF. Rio de Janeiro 2011. 341

p. 35

46“A reforma moral e intelectual do clero constitui uma das preocupações que mobilizam os sacerdotes reunidos

no Concílio de Trento (1545-1563). Nesse campo, a resposta à doutrina do sacerdócio universal, defendida pelos seguidores de Lutero, foi a revalorização da figura do padre e a reiteração do celibato clerical, instituído para toda a Igreja pelo IV Concílio de Latrão (1215). Procurava-se, assim, promover a formação de um clero mais austero em seus costumes, mais bem preparado intelectualmente, mais coeso enquanto corpo social hierarquizado e mais obediente a Roma. Para realizar essa tarefa foram mobilizados os bispos, que tiveram poder reforçado, e acionadas as justiças eclesiástica e inquisitorial, para punir as condutas consideradas desviantes. Como afirmou Delameau, ‘a história da Reforma católica demonstra que o novo esforço realizado para

evangelizar as massas não foi frutífero até que o episcopado decidisse velar mais ativamente que antes pelo clero

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católica. Assim, nasce com Trento o seminário para a formação do clero. Questão essa que acompanha a Igreja praticamente, por assim dizer, desde sempre, pois os limites do clero sempre foram motivo de grandes sofrimentos e cismas para a Igreja.

Apesar dos esforços de membros da Companhia de Jesus, o Concílio de Trento não teve quase nos dois primeiros séculos de vida colonial luso-brasileiro. Apenas na primeira metade do século XVIII surgiu um novo impulso por promover a doutrina tridentina, especialmente através das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707 por D. Sebastião Monteiro da Vide; alguns anos depois também o moralista baiano Nuno Marques Pereira tentou difundir esses princípios em sua obra Compêndio Narrativo do Peregrino da América; mas os resultados não foram muito expressivos.47

No fundo das questões do Concílio a questão crucial era a da centralização da hierarquia católica, num mundo moderno que se expandia, processo esse que hoje denominamos solenemente de globalização. Os bispos começaram a se ocupar de sua própria

reforma. Começaram abandonando o dever de “residência” na diocese. Pois em geral os bispos nobres viviam em seus castelos, palácios ou vilas familiares, governando e extorquindo as dioceses, tendo como mediador, administradores convenientes e submissos. Visavam ainda à questão de que os pastores deveriam estar junto de seus rebanhos, assumindo diretamente a responsabilidade da pregação, da catequese e da administração dos sacramentos. Esse era o modelo mínimo de assiduidade que o Concílio Tridentino visou implantar.

Com essa impostação tridentina, a formação da sociedade brasileira continuou tendo uma inspiração de viés medieval, isto é, recebendo uma tradição teológica que tem como base a noção de Cristandade, com a qual passou a ser identificado também o reino lusitano. Igreja e Estado são apresentados como duas realidades que devem permanecer juntas. Portanto, neste momento a reflexão teológica passa a ser feita com “o chão lusitano”

sendo este uma expressão da face católica.48 Esse estilo de teologia sendo assimilada a um reino católico, traz consigo a ideia do monarca ser alguém destinado por Deus e também uma

47 AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

2005. p. 8.

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concepção de eleição49 do povo português, isto é, povo eleito por Deus para levar a fé católica até o fim do mundo.50

A concepção da Igreja como Cristandade constitui a base de toda a construção teológica vigente no reino lusitano, e transplantada para a colônia brasileira. Ao longo dos três primeiros séculos de colonização lusitana perdurou no Brasil o modelo de Igreja – Cristandade. Tratava-se de uma reviviscência da concepção de Igreja que perdurara na Idade Média, e cujas origens remontavam ao século IV, quando Constantino assumira o governo do Império Romano, e se constituiu como um defensor e promotor da religião cristã.51

Tendo como ponto alto de sua expansão colonizadora a história lusitana fora iniciada através do território africano. Tendo um projeto de conquista territorial que tinha raízes profundas na tradição ibérica, quando os espanhóis iniciaram a reconquista do território dominado pelos árabes. Tanto o projeto hispânico como o lusitano de expansão territorial foram identificados com o conceito teológico de expansão da fé, principalmente através da luta contra os mouros, tidos como inimigos de Cristo.52

Portugal assumirá a vertente teológica da Península Ibérica que afirma que a propagação da fé deve ser feita para que os infiéis tenham acesso à salvação e nenhum venha a se perder, mesmo que isto signifique que seja necessário ser realizado a força pelos reinos católicos.53 Sob essa perspectiva, a vitória sobre os mouros era a vitória da cruz que se sobrepunha à meia-lua islâmica, difundindo assim ao mesmo tempo a civilização cristã.54 Então, aqueles da Península Ibérica são tidos como defensores da fé cristã e lutadores corajosos, merecendo deste modo todo o apoio da Santa Sé.

A monarquia portuguesa, por conseguinte, é exaltada pelo papa por sua atuação nas novas terras conquistadas, no sentido de difundir a fé e

49 O conceito de escolha divina não era privilégio dos portugueses, mas uma concepção teológica que fazia parte

da Península Ibérica. cf. ib., p. 37.

50 Cf. ib., pp. 9-11. 51 Ib., pp. 15-34. 52 Ib., p. 36.

53 O famoso teólogo espanhol Juan Gines de Sepúlveda defende tal argumentação e a explicita. cf. AZZI,

Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. pp. 39-40.

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promover a salvação das almas, responsabilizando-se, inclusive, pela celebração do culto católico. Trata-se, portanto, de uma verdadeira missão religiosa, e como tal reconhecida oficialmente pelo supremo magistério eclesiástico. Por essa razão, o representante de Cristo confere a D. Afonso e ao Infante D. Henrique todo o direito de dominação sobre os sarracenos e demais fiéis, bem como sobre as terras por eles habitadas.55

A conversão do gentil será tida sempre como algo necessário para a sua salvação, de modo que aquilo que for feito será compreendido como que para o bem deles. No mesmo patamar serão vistos os índios no Brasil, muito embora o Brasil não entenda a concepção de infiel como mouro, pois isto foi trazido na mala dos portugueses para a colônia. A expressão de fé indígena será vista pelos portugueses como algo de expressão diabólica.56

Substancialmente, o quadro religioso no Brasil neste sentido é ‘bem calmo’ congregando em

seu meio diversas realidades de fé que, mesmo perseguidas e condenadas, apontavam para um futuro de tolerância aparente inimaginável.

Tendo também a presença dos cristãos novos57 que foram enviados para cá, tendo em vista que a maioria daqueles que vinham para o Brasil não tinham fama muito boa, isto é, não faziam muita falta em Portugal. Todavia, o horizonte de fé do Brasil era todo com tecido português que recebera influência dos espanhóis levando adiante a expansão da fé como símbolo de um povo, uma nação. Portugal assume então, um caráter escatológico de povo eleito a espera da salvação.

A vida que teologicamente era tida como “dom de Deus” na colônia passou a ser “um bem em vista do colonizador”, ou seja, tudo era acomodado com as mais “santas” argumentações teológicas para favorecer a vida dos colonos. Para que tudo atingisse o seu objetivo de tirar proveito de tudo o máximo possível, mesmo com prejuízo daqueles que eram

tidos como “imagem e semelhança de Deus”, na colônia a imagem construída de Deus fora outra, consistia justamente em uma concepção em detrimento dos povos “gentios”. Para legitimar as arbitrariedades se fazia uso do direito de guerra como se tudo ali estivesse à disposição dos colonos. Assim sendo, do mesmo modo que se condenou a visão de fé dos

55 Ib., pp. 44-62. 56 Ib., pp. 63-93

57A perseguição e segregação dos judeus por parte das autoridades cristãs teve início em fins do século IV,

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índios, posteriormente foram feitas as mesmas coisas aos escravos negros e suas religiões de matriz africana.

Pelo que se vê, a paisagem pouco ou nada mudou ao longo do século. Se o campo da profissão de fé não encontrava espelho na Europa, no campo da disciplina o procedimento não era diferente. Segundo Mendonça, no período de um século, por 63 anos a sede do bispado do Maranhão ficou vacante58. O material humano é o mesmo, ao menos a grande maioria, durante o período colonial inteiro. É diante de um ambiente amplamente hostil que se dá a evangelização deste período. Diferentemente da metrópole, onde cada qual tem o seu papel definido na sociedade, os elementos novos das etnias negras e indígenas, com ampla variedade dentro de seus próprios grupos, são somados a este universo peculiar colonial, pois trazem consigo não só sua diferença física, como também o seu imaginário e seus valores culturais. Tudo isso se funde por aproximadamente 300 anos na colônia. Uma vida bruta.

Num lugar em que as pessoas estão para tirar o máximo de proveito da terra, longe das autoridades metropolitanas e de vínculos morais familiares, qualquer elemento que cheire prejuízo se torna uma séria ameaça. Então, as discussões tidas como iluministas não tinham um terreno fértil na colônia, pois a sobrevivência numa terra sem lei exige mesmo outro tipo de discurso, ou seja, a vida gritava mais alto.

A religiosidade popular assumirá um rosto muito particular aqui no Brasil: teremos muito santo (devoção) e pouca oração, as novenas terão aqui grande propagação. A religião não compreendida ganha ares de práticas supersticiosas. A prática dos jesuítas tinha uma mística diversa, isso desde os primeiros colonos. Sobretudo as duas devoções que vão marcar a sua pastoral: o Sagrado Coração de Jesus como símbolo da caridade, do amor a Deus e ao próximo; e Nossa Senhora da Boa Morte, que oferece um pouco de transcendência às pessoas que vivem apenas voltadas ao enriquecimento a qualquer custo, sem levar em conta modo como a pessoa deve estar no dia do encontro com Deus na hora da morte. Tais elementos vão contribuir para inculcar valores cristãos em sertanejos embrutecidos pela realidade da vida. O dado do sagrado é algo que permeia a vida de cada pessoa, pois esta foi criada aberta ao transcendente.59

58 MENDONÇA, P. G. Parochos imperfeitos. 2 Tese de Doutorado em História UFF. Rio de Janeiro 2011. p. 37.

59 A fé que um dado antropológico que condiciona a vida de cada pessoa, mesmo que esta diga que não tem fé,

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É possível estabelecer, didaticamente, uma fronteira entre dois universos do Brasil Colônia: o campo da civilização (algo que gira em torno de um terreno burocrático, herdado da metrópole) e o campo indígena. Alguns missionários começarão a deixar os índios viverem

a sua vida ‘primitiva’ e irão se dedicar aos colonos. Porém, os índios continuam ali a espera

de alguém que lhes estenda a mão e não somente queira trazer ‘a verdade’ para eles. Verdade

esta que em séculos anteriores se mostrou dolorosa para eles e para os negros e por muitos anos em diante ainda. Verdade que antes de qualquer coisa não era que os índios estivessem pedindo algo, mas somente tentando fazê-los compreender que eles eram índios, nem mais nem menos, ou seja, mereciam ao menos um pouco de respeito. As suas expressões não eram negação do mundo do branco, nem suas crenças coisa do diabo. A visão de mundo era diversa, pois seus valores também eram outros.

A ocupação do território brasileiro por parte dos lusos não foi feita de forma pacífica. Muitas tribos indígenas não se conformaram ao se verem privadas das regiões que então ocupavam, e passaram a reagir com violência: ataques a engenhos e fazendas, roubo de animais e objetos, morte de colonos.60

Muitos missionários aprovavam esse modo violento de proceder da ocupação portuguesa, e muitas vezes eram eles a incentivar por meio dos governadores e capitães as

“guerras santas” contra os índios. Já a sobrevivência indígena depois da guerra tinha como condição a adesão da catequese e sua posterior conversão à fé católica. A situação era conversão e submissão ou a morte, de modo que muitos preferiam a morte para não viver naquele pandemônio que se tornara a colônia depois da chegada dos espanhóis e portugueses na América. É importante salientar que não foram todos os missionários que tanto na América

espanhola como na portuguesa eram a favor d’aquilo que se fazia com os índios, alguns inclusive lutaram contra todo esse modo miserável de ação.61

fundamental. Posto isto, se compreende que toda pessoa em todo temo e lugar, é uma pergunta aberta, porém, não definitivamente, pois sua resposta se encontra no divino. Para um estudo sobre esta perspectiva, Cf. RUBIO, A. G. Elementos de Antropologia Teologica. Petropolis: Vozes. 2009. p.104.

60 AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Rio de Janeiro: Vozes,

2005. pp. 128-129.

61 Desde fins de 1515, sua vida se torna um vaivém entre os dois Mundos, o Velho e o Novo. Os objetivos e

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Então, a condição religiosa do continente é marcada pela confusão do papel da Igreja na missão. Mesmo vindo para anunciar a fé católica, sinônimo de evangelização no período, a Igreja, em suas diversas instituições religiosas e diocesanas, acabou sendo um instrumento de domesticação dos índios, civilizador dos colonos e concorrente econômico da Coroa, tomando medidas as mais das vezes contrárias ao próprio Evangelho, como denunciam Antônio Vieira, Bartolomé de Las Casas, Gabriel Malagrida, entre outros.

1.4 A vocação da Inquisição e seu papel no período colonial

Na Europa do século XIII, não havia a hegemonia cultural por todo o continente. Devido às grandes distâncias, à falta de formação do clero, falta de matérias de leitura, enfim, por diversos motivos, a cristandade não possuía uma interpretação igual das fontes da fé cristã. As interpretações divergentes começaram a ganhar uma proporção que comprometia a unidade religiosa. Exemplo disso são os albigenses, uma seita de cunho puritano e dualista que não aceitava o matrimônio e a riqueza deste mundo, oriunda do sul da França, em clara resposta às condições abusivas que o cristianismo de então se encontrava.

A heresia, já pelo fim do século XII, começou a propagar-se com rapidez tão assustadora, que punha em risco não só a fé cristã, mas também a ordem social. (...) Reuniu-se, em 1184, o sínodo de Verona, onde Lúcio III e Frederico I baniram os hereges e seus fautores e ordenaram aos bispos que fizessem vistorias pelos lugares suspeitos. As decisões de Verona foram confirmadas por diversos outros sínodos e, sobretudo, pelo 4º concílio de Latrão. 62

Foi neste século que surgem ordens mendicantes, por inspiração de São Francisco e de São Domingos; a reforma dos mosteiros, como a de Cluny, veio pouco antes, mas como resposta à decadência da vida regular. Também houve outras iniciativas não muito ortodoxas, como os albigenses e as beguinas de reformar o cristianismo. Como evitar tais desvios destas iniciativas, muitas das vezes promovidas sem má intenção e motivadas por uma interpretação errônea da tradição, já que o acesso à Sagrada Escritura era restrito?

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A Igreja e o Estado possuem uma interação. As iniciativas eclesiásticas, desde Carlos Magno, deveriam ser financiadas pela Coroa. E com esta não poderia ser diferente. As regiões dos albigenses não eram caracterizadas pela paz, pois a ideia de Estados nacionais não significa uma existência de ordem pública em aldeias e vilarejos, muitas vezes marcados pela miséria e pelas pestes. A justiça era feita pelas próprias mãos, com base em julgamentos públicos, sem direito de defesa. Assim, tal presença de inquisidores deveria ter o aparato do Estado para poder ter acesso a esses lugares.

Frederico II, por ocasião da sua coroação imperial (1220), ofereceu à Igreja o apoio secular e estabeleceu, em diversos decretos, a pena de morte contra os hereges. O mesmo fez Luís IX da França (1229). Depois da guerra dos albigenses, foi organizado, finalmente, no sínodo de Tolosa (1229), um tribunal próprio para atalhar a perversidade herética e, por bula de 1231, instituiu o papa Gregório IX a Inquisitio haereticae pravitatis.63

Henrique Mendes Lucarelli, em seu estudo sobre as visitações do Santo Ofício no período colonial, apresenta uma intuição acertada que parece coerente para interpretar até

mesmo este momento da história. Para ele, “a vida pública aqui é apresentada como sinônimo

de política, dessa maneira, é nas suas narrativas que encontro a proximidade capaz de unir a

história e a narração biográfica”64 Assim, a política é não só um escambo entre forças

institucionais, mas uma encarnação das escolhas dos sujeitos concretos. Isto para dizer que a mancomunação entre interesses Igreja e Impérios vai além de acordos baseados na intenção de salvaguardar o Evangelho e seus valores, de modo que as mais das vezes, salvaguardar o Evangelho significou ir por cima dele mesmo.

Se for ver bem, algum tipo de inquisição episcopal, no sentido de buscar aqueles que erram e trazê-los à ortodoxia, existia desde o período da Igreja pós-apostólica. Os castigos temporais, inclusive a pena de morte, passaram a existir com o Código Justiniano, com hereges adeptos do maniqueísmo, do donatismo e do priscilianismo.65

Contudo, ao longo da Idade Média, tal imagem vai ganhando um corpo e uma característica simbólica não projetada no começo, a ponto de que, para ganhar vida, precise se

63 Cf. ROMAG, D. Compêndio de História da Igreja. V 2. Petrópolis: Vozes, 1950. p. 210-211.

64 LUCARELLI, H.M.

Notas iniciais sobre a carreira dos Inquisidores que visitaram a America Portuguesa. In www.encontro2012.sp.anpuh.org/anais/17/1342391644_ARQUIVO_Anpuhtexto-HenriqueMendes

Lucarelli.pdf. Último acesso em 23 de abril de 2013.

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