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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes

Existência e escritura em Cioran

Tese de doutorado

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes

Existência e escritura em Cioran

Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Área de concentração: Filosofia das Ciências Humanas

Orientador(a): Profa. Dra. Jeanne-Marie Gagnebin de Bons

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Folha de aprovação

MENEZES, R. I. R. S. (2016) Existência e escritura em Cioran. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes. Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Aprovado em: ____ / ____ / _______

Banca examinadora:

Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________

Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________

Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________

Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________

Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________

Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________

Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________

Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________

Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________

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~ Resumo ~

Cioran (1911-1995) é um pensador romeno-francês que não teria o direito de reclamar por ser incompreendido e ignorado, pois ele mesmo fez da marginalidade um imperativo filosófico e um estilo de vida. Onze anos após o seu falecimento, em Paris, e cem anos após o seu nascimento, na Transilvânia, este autor, estrangeiro em mais de um sentido, permanece em grande medida desconhecido pelo público brasileiro, acadêmico ou não, fazendo prevalecer sua aura de obscuro e um sem-número de lendas e rumores sobre a sua vida, a sua personalidade, o seu pensamento. Dito isso, e vontade de marginalidade à parte, Cioran é um pensador que não pode ser – e não permanecerá sendo por muito tempo – ignorado ou desprezado, seja pela Academia como pelos círculos intelectuais com as mais diversas orientações ideológicas. Ainda mais quando se trata de pensar problemáticas, tão atuais quanto preocupantes, como a ascensão do fundamentalismo e do fanatismo, religioso ou de outra natureza, o ateísmo, o ceticismo e o niilismo no século XX, a angústia, o desespero, a necessidade metafísica do homem e o sentido da transcendência, o sofrimento, a morte, o suicídio, o mal, enfim, uma gama de questões altamente relevantes do ponto de vista da filosofia e também de outras disciplinas, como a psicologia e a história. Na primeira parte desta investigação, pessimismo filosófico e misticismo apofático convivem na metafísica existencial de Cioran, uma filosofia religiosa da existência que, sem se pautar pela fé em verdades relevadas e pela adesão a autoridades externas, busca pensar a condição e a existência humanas de acordo com aquilo que é mais urgente e essencial no animal metafísico, segundo o autor: a sabedoria antes que a ciência, a libertação pela desilusão e pelo não-saber antes que a salvação pela crença e pelo conhecimento, a necessidade de absoluto em detrimento da ilusão do devir, o enfrentamento da contingência inerente à existência, e particularmente à existência humana, tragicamente dotada de uma consciência, de uma liberdade, de um destino. O “pensamento orgânico” de Cioran é inseparável, como ele o reitera, de sua experiência de vida, notadamente a insônia à qual ele atribuiria, posteriormente, o mérito ou a culpa da sua bendita, maldita lucidez: um estado de espírito incompatível com a vida, tornando-a um “estado de não-suicídio”. Se há pessimismo, ceticismo, niilismo e misticismo na soma de atitudes que é a obra de Cioran, atitudes que podem ser justamente modalizadas como atitudes frente ao problema do mal, todas essas tendências emanam da lucidez gestada a partir de suas noites em branco. Em um segundo momento, nos voltaremos à questão da écriture cioraniana, com tudo o que ela implica, diferentemente da escrita romena, em termos de estilo, preocupação com a forma e estetização do discurso. Pretendemos mostrar como o “Adeus à filosofia” declarado por Cioran no Breviário de decomposição, concomitantemente à guinada literária e à acentuação do princípio fragmentário que precede sua obra francesa, é a expressão paradoxal de um pensamento da negação que, “traindo” a filosofia com a poesia, a música e a mística, não deixa de prestar uma homenagem inaudita ao pensamento e à própria Filosofia, doravante irreconhecível. Por fim, argumentamos que a obra francesa de Cioran representa, em forma e conteúdo, a consequência necessária e a expressão exata de um pensamento lúcido e orgânico que descobre na escritura de si o destino da filosofia e no “estilo como aventura” o grande heroísmo do escritor moderno. Em Cioran, Filosofia e Literatura se juntam numa fuga para dentro do niilismo, como forma de resistir às tentações do nada.

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~ Abstract ~

Cioran (1911-1995) is a Romanian-French thinker who would not have the right to complain about being misunderstood or even ignored, inasmuch as he begged to turn marginality into a philosophical imperative and a lifestyle. Eleven years since his death, in Paris, and one hundred since his birth, in Transylvania, this one author, the perfect stranger in more than one sense, remains largely unknown by the Brazilian audience, scholarly or not, in such a way that his shady aura, so to speak, as well as countless legends and rumors prevail about his life, personality and thought. Having said that, and apart from his own will to marginality, Cioran is a thinker who just can’t – and will not remain as such for much longer – ignored or spurned, be it by Academia as such or by particular intellectual milieus with varied ideological outlooks. All the more when it comes to reflect upon problems which happen to be just as prevailing as worrying, such as the rise of integralism and of fanaticism, be it religious or of any other kind, atheism, skepticism and nihilism in the XXth century, anguish, despair, the metaphysical need of mankind and the sense of ultimate transcendence, suffering, death, suicide, evil, finally, a wide range of questions which are all highly relevant from a philosophical standpoint and also that of human sciences. In the first part of this inquiry, we aim at showing that philosophical pessimism and apophatic dwell mix up in the existential metaphysics of Cioran, a religious philosophy of existence which, not being guided up by the faith in revealed truths and by the adhesion to external authorities, aims to think human existence and condition according to that which is most imperious and essential, in Cioran’s view, when it comes to the metaphysical animal: wisdom rather than science, deliverance by disillusion rather than salvation by faith and knowledge, the need for the absolute to the detriment of the delusions of becoming, coping with the contingency inherent to existence, namely human existence, tragically gifted with reflexive consciousness, freedom, a destiny. Cioran’s organically existential thought is inseparable from, as he puts it, from his own life experience, namely the insomnia to which he accredits the merit or the fault for his blessed, for his cursed lucidity: a state of mind incompatible with life, turning life into a “state of non-suicide”. If there is pessimism, skepticism, nihilism, mysticism within the sum of attitudes that composes the works of Cioran, such attitudes which might as well be modalized as reactions to the problem of evil, all these tendencies emanate from insomnia-bred lucidity. Secondly, we shall turn our attention to the topic of Cioran’s

écriture, with everything it implies, differently than his Romanian writing, as far as style,

concern for expression and the aestheticizing of discourse are concerned. We aim at showing that the “Farewell to philosophy” enounced by the author in A short history of decay (Précis de decomposition), parallel to his literary turn and the radicalization of the fragmentary principle that precedes his French writing, is the paradoxical expression of a negation-driven thought which, by “betraying” Philosophy with Poetry, Music and Mysticism, cannot help but pay an unheard-of tribute to Human thought and to Philosophy itself. Finally, we argue that Cioran’s French works represent, by its form and content, the necessary consequence and exact expression of a lucid, organic thought, which discovers in the écriture de soi the very destiny of Western Philosophy, and in “Style as adventure” the highest form of modern -thought heroism.

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3 A todos os que estão fugindo...

In memoriam:

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~ Agradecimentos ~

Primeiramente, a minha orientadora, Jeanne-Marie Gagnebin, pelo acolhimento, pela liberdade concedida e pela confiança depositada ao longo de todo o percurso até a conclusão desta tese. Pela orientação atenta e cuidadosa, pela leitura crítica e interessada. Agradeço também pela paciência, pela compreensão, pela sensibilidade dosada com rigor, e também pelas proveitosas críticas, às vezes duras, porém, necessárias, para me fazer extrair de mim mesmo o melhor – o essencial– que eu poderia apresentar sobre um autor como Cioran.

Aproveito para agradecer a Vera, secretária do programa de pós-graduação em Filosofia da PUC-SP, pela atenção e solidariedade em questões burocráticas e outras. E também os professores Marcelo Perine e Peter Pal Pelbart, pela atenção e pelo apoio oferecido em diferentes momentos.

Ao ex-professor Edélcio Gonçalves de Souza, à Capes e seus funcionários, pela confiança e seriedade com que me apoiaram financeiramente ao longo desta pesquisa. Sem a bolsa, esta tese não teria vindo a ser.

A minha mãe e ao meu pai, por me suportarem até hoje, e não apenas isso: por me criarem com tanto amor e dedicação, e por ser deles que eu herdei a combinação genética que me tornaria tão “cioraniano”. Graças a vocês, eu tenho uma “alma”. Como poderei demonstrar gratidão por terem-me trazido a uma vida que eu execro por amar demais? Obrigado, pois se eu não existisse, não teria tido a trágica alegria de conhecer Cioran. Dedico esta tese, com toda a paixão, com todo o amor louco que investi nela, a vocês.

A Edilza, que mora no meu coração, e de cuja distância eu não posso me esquecer por um instante sequer, pelo amor de segunda mãe, pelas orações, pelo exemplo de vida.

A minha tia filósofa querida, Lêda, pelo apoio e pelo afeto, pela disponibilidade e pelo espírito pragmático na revisão dos textos e referências (sem você, eu não teria decido fazer aquela “reversão”). Quero registrar meu profundo reconhecimento e meu sincero agradecimento pelos reflexos positivos de sua presença nessa última etapa do doutorado. Você foi mais importante do que imagina.

A minha querida tia Fátima, pelo carinho, pela disponibilidade, pelo auxílio no início do doutorado. Você também foi mais importante do que imagina.

Aos amigos de caminhada e de parada, distantes ou próximos, recentes e antigos, brasileiros e estrangeiros, discentes e docentes:

À querida Ana Sampaio, pela sincera e duradoura amizade, pelos bons e maus momentos juntos, pela cumplicidade no silêncio, pelas lições e pelas trocas, por toda a ajuda inestimável, tanto prática quanto simbólica. Obrigado por ser minha amiga! Pela paciência e pela doação...

Ao Tomás Troster, também pela sincera e duradoura amizade, pelas trocas e discussões, pelas “esporádicas – porém intensas (sic) –revisões e traduções”, pela amizade em suma, digna dos estoicos. Trinca!

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5 A Rodrigo Adriano Machado, pela amizade em Cioran e outros outsiders, pela cumplicidade na escrita, pela companhia de périplo, mas também pela paciência e pela compreensão, pela sensibilidade enorme, e sobretudo pela amizade.

A Nitiren Queiroz, pela cumplicidade mais que teórica em matéria de místicaS e de espiritualidade, pela sensibilidade cada vez mais rara a esses temas tão caros a mim e ao autor que é objeto desse estudo; presença ativa e crítica ao longo do meu percurso intelectual-acadêmico desde o mestrado, pelas contribuições virtuais e reais, pelos encontros, conversas, pelo aprendizado inestimável sobre filosofia budista.

A Laurène Camara-Strzempa, pela amizade em Cioran, pela intensa troca sobre Cioran e afins, pelo aprendizado na langue de l’amour, pelos silêncios e ausências, pelo coração, pelo amor que transcende a vida. Sache que mes silences toujours de toi seront empreints / Sache que dans le silence, je ne t’aime pas moins…

Ao Prof. Flamarion Caldeira Ramos, pelo diálogo, pelas trocas, pelo aprendizado, pelos encontros em Cioran. Pela compreensão e sensibilidade em momentos de crise e de ausência, pela confiança, pelo apoio, pelas críticas, pelas aulas de pessimismo. Pelos livros, pelos cafés e especialmente pela amizade.

À socrática Profa. Rachel Gazolla, pela paixão da Ideia, pelo acolhimento, pela confiança, pela compreensão, pela sinceridade e pela leitura crítica de textos que compõem esta tese. Eu prattein.

À Profa. Sílvia Faustino pela cumplicidade soteropolitana, pelo aprendizado mesmo à distância, pela leitura crítica de textos que compõem esta tese.

À Profa. Mihaela-Genţiana Stănişor, pelo voto de confiança inicial, pela acolhida, pela solidariedade, pelo aprendizado, pelas conversas, pelas críticas construtivas e pelo apoio, pela sinceridade, pela romenidade, pela amizade em Cioran. Pa! Também a Răzvan Enache pela amizade, pela fraternidade, pelas conversas, pelo aprendizado sobre a Romênia, pelas tardes inesquecíveis em Pereira (Asta nu se face!).

À Profa. Maria Liliana Herrera, pela divina hospitalidade (virtude de ouro para os gregos), pela confiança, pela generosidade, por toda a atenção e o carinho em minhas idas ao colóquio de Pereira, tanto como antes e depois, pelas trocas, pelas conversas, pelas caminhadas, pelos artigos e pela entrevista, pelos cafés e pelo pôr-do-sol de Pereira. Pela amizade. E também a Carlos Ossa, pela acolhida, por toda a atenção e o carinho, pelas lições de ciência moderna e outros assuntos, pela música, pelas piadas colombianas, pela deliciosa risada.

Ao Prof. Alfredo Abad, pela acolhida, pelo aprendizado sobre Nietzsche e Gómez Dávila, pelas trocas, pela entrevista concedida, pela amizade em Cioran. Também agradeço ao Prof. Juan Manuel pela acolhida, pelo aprendizado em Platão e filosofia antiga, pelas críticas construtivas e pela amizade.

Ao Prof. Joan Marín, pelas leituras e comentários, por todo o apoio, pela generosidade e amabilidade, pelos livros e pela música.

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6 Ao Prof. Massimo Carloni, pelas leituras e comentários, pela generosidade de compartilhar fontes e textos inéditos no Brasil (no Portal EMCioran/BR), pelas indicações sobre a mística oriental em Cioran e pelo aprendizado. Também gostaria de agradecer a Renzo Rubinelli pela cooperação em torno de Cioran, pela amabilidade, pelo aprendizado de um pouco de italiano, pela generosidade de compartilhar materiais sobre Cioran e sobretudo pela belíssima entrevista concedida ao meu blog sobre o autor.

A Ciprian Vălcan, pelas leituras, comentários e críticas, pela prontidão em ajudar e orientar a respeito do meu projeto, sobretudo no início, quando suas observações especializadas não poderiam ter sido mais oportunas.

Ao Prof. Aurélien Demars, pelo aprendizado sobre Cioran e temas relacionados, pelas sugestões e críticas, pelas fecundas e inesquecíveis conversas no colóquio de Pereira.

Ao Prof. Paulo Piva, pela amabilidade incondicional, pelos encontros, pelas conversas, pelo aprendizado sobre Cioran e sobre o ceticismo, pela generosidade em compartilhar materiais sobre Cioran, pelo interesse vivo em minha pesquisa.

A Fernando Klabin, pelo aprendizado do romeno e da cultura romena, pelos livros, por toda a ajuda na intermediação que me abriu as portas à maioria das fontes estrangeiras que utilizei nesta pesquisa.

Ao Prof. Luiz Cláudio Gonçalves, pelas co-traduções, pelas indicações, críticas de tradução e outros comentários, pelas conversas fecundas sobre Cioran e temas relacionados, pelo esforço em introduzir Cioran em um curso de Filosofia brasileiro.

A José Ignacio Nájera, pelos artigos, leituras críticas e comentários.

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~ Índice ~

Resumo ... 1

Abstract ... 2

Dedicatória ... 3

Agradecimentos ... 4

Epígrafes ... 9

1. Introdução ... 10

Cronologia resumida ... 27

2. Existência ... 52

2.1. Retrato de um pensador existencial extemporâneo: o “antifilósofo ... 52

2.2. Intuicionismo trágico, paradoxo, aporia: do existencial ao essencial ... 60

2.3. Pessimismo e metafísica: a falência da Razão face ao problema do mal ... 66

2.4. Cioran, leitor de Schopenhauer e Nietzsche ... 71

2.5. Tragédia, pessimismo, niilismo: problemáticas existenciais do devir ... 96

2.6. Presenças francesas no pensamento de Cioran: Pascal e os moralistes ... 115

2.7. Existencialismo, niilismo, gnosticismo ... 123

2.8. Byronismo, espiritualismo, poética da decepção: Cioran no auge da modernidade ... 136

2.9. A presença de Dostoiévski na obra de Cioran ... 145

2.10. A romenidade de Cioran: zădărnicie, nimicnicie, “realidades do meu sangue” ... 148

3.Para uma filosofia religiosa da existência ... 168

3.1. Insolações místicas: a formação pela insônia e a lucidez luciferina ... 168

3.2.La lucidité complète, c’est le néant: solidão, désœuvrement e a vida como estado de não-suicídio ... 190

3.3. O riso na Queda: lucidez e frivolidade ... 213

3.4. A metafísica existencial de Cioran: a Queda no tempo e o drama religioso da existência ... 219

3.5.A Queda no tempo ... 225

3.6. A consciência como fatalidade: uma antropologia da enfermidade ... 246

3.7.O “animal indireto”: revezes de um eterno convalescente ... 258

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3.9.A “tentação de existir”: lucidez, negação e paixão do absurdo ... 318

3.10. O indestrutível no homem ... 329

4.Escritura ... 346

4.1. Escrita, escritura: écriture e princípio de estilo... 346

4.2. As provas e tribulações de mudar de idioma ... 355

4.3. Écrituree lucidez: o escritor como “escrevente” de si mesmo ... 372

4.4. Lucidez e seriedade, écriture e frivolité: a “dialética da indolência” ... 385

4.5. Lucidez, negatividade, desengajamento ... 409

4.6. Escrituras paralelas: Cioran e Blanchot ... 417

4.7. Formas literárias:aforismo, fragmento, ensaio... 454

4.8. A escritura como terapêutica: a desforra da criatura frente a uma Criação sabotada ... 488

5. Conclusão ... 516

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9 Louco não é o homem que perdeu a razão. Louco é o homem que perdeu tudo, menos a razão.

G. K. Chesterton

Não queria viver em um mundo isento de sentimento religioso. Não me refiro à fé, mas a essa vibração interior que vos projeta em Deus e, às vezes, para além Dele.

Cioran

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1. Introdução

E.M. Cioran, Emil Cioran, ou apenas Cioran (como passaria a assinar a partir de seu penúltimo livro), é um pensador-escritor de origem romena e expressão francesa. Pouco conhecido no Brasil, por conta de sua marginalidade voluntária e também do pouco tempo desde que seus livros começaram a ser publicados (século XX), o autor romeno de expressão francesa, falecido em 1995, em Paris, conta com poucos leitores brasileiros, sendo menos ainda adotado como objeto de estudos nas universidades do país, o que reflete a diferença de realidade acadêmica em comparação com outros países, tanto europeus (França, Alemanha, Itália, Espanha, e a própria Romênia) quanto americanos (do norte, do centro e do sul, do Canadá à Argentina, passando por Estados Unidos e México, Colômbia e Venezuela). Esta tese busca apresentar o autor romeno-francês ao estudante de Filosofia e ao público brasileiro em geral, especializado ou não, oferecendo uma visão compreensiva e contextualizada de sua obra em relação à sua biografia, peculiarmente marcada pela experiência do estrangeirismo e do bilinguismo.

Nosso objeto privilegiado de análise é a obra francesa de Cioran e o trabalho da écriture que lhe corresponde, com tudo o que essa écriture implica em termos de estilo, preocupação com a forma, estetização do discurso, para além de um pensamento (conteúdo) que, se se pretende anterior, cronológica (período romeno) e logicamente falando (um pensamento de natureza metafísica, portanto, trans-histórico), tende a ser, no limite, inseparável da expressão (forma), da linguagem (em língua francesa), que será considerada, em território linguístico francês, como um absoluto, o “destino” do pensar e do ser: o universo reduzido à fraseologia. A prioridade concedida à produção francesa do autor romeno, a partir do Breviário de decomposição–seu livro de estreia no “idioma emprestado” (1949) –, não significa que pretendemos ignorar os precedentes romenos da obra francesa de Cioran, ou mesmo apartá-los do corpus francês de sua obra. Muito pelo contrário: mesmo reconhecendo a ruptura e o corte mais do que linguístico operado por Cioran em sua nova

écriture, a começar pelo supramencionado Breviário, pensamos que o “caso” (E.M.) Cioran,

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11 A prioridade se justifica pelo fato de que, na dialética entre continuidade e descontinuidade, ruptura e prolongamento, a obra francesa de Cioran, conforme distinta da romena, é a culminação, a partir de uma decisão capital – o abandono do idioma materno e a adoção de um idioma outro –, de toda uma vida, de todo um pensamento que já vinha sendo gestado desde a juventude, resultando em 7 livros no idioma original, dois dos quais traduzidos e editados no Brasil. Como observa Patrice Bollon, um de seus mais importantes biógrafos, o Breviário de decomposição representa uma morte e um segundo nascimento (la seconde naissance) de Cioran. Em francês, ele terá a sorte e o azar, a oportunidade e a inconveniência de reescrever-se, des-escrever-se, criar-se e destruir-se poeticamente (uma poética da desnaturação, em grande medida), como forma de enfrentar seus traumas e vergonhas e de conjurar suas obsessões de sempre, bem como os fantasmas que o atormentam – passados e presentes – ao ponto de tirar-lhe o sono.

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12 nossos pensamentos e sobretudo aqueles, dir-se-ia mais “profundos”, que participam dessa zona de claro-escuro no limiar entre a luz do espírito e a escuridão da alma. O idioma estrangeiro, logo a écriture, será o instrumento ideal para uma missão paradoxal, dir-se-ia mesmo impossível: “pensar contra si” como forma de cuidado de si (souci de soi), alegrar-se por possuir um “saber triste”, acentuar o exílio como forma de retorno, a queda como ascese, a negação como estilo de vida, a vida como “um estado de não-suicídio”.

A compreensão da obra romena de Cioran é sobremaneira importante à medida que toda a sua obra, inclusive a francesa, fora concebida na atmosfera atual ou no recordo lúcido da insônia, mal que o fustigaria a partir da juventude, e de cuja experiência inicial resultaria seu primeiro livro, Nos cumes do desespero (1934). O seguinte, O livro das ilusões, recentemente publicado no Brasil, em português, retoma o mesmo espírito noturno e hiperconsciente do primeiro, e os ecos dessa experiência capital, de onde a lucidez (lucidité) que será, ao nosso ver, a palavra por excelência a sintetizar o pensamento de Cioran, se fazem perceber até o seu último livro, Aveux et anathèmes (“Confissões e anátemas”) publicado em 1987, portanto 8 anos antes de sua morte. É a partir da experiência da impossibilidade do sono, da vigília ininterrupta e degradante, e da disposição da lucidez ambientada ao longo das intermináveis nuits blanches, que pretendemos abordar temas tão significativos quanto controversos, em se tratando das tendências de pensamento contempladas na obra de Cioran, como o pessimismo, o niilismo, o cinismo, o ceticismo, o misticismo e o ateísmo. Nossos objetivos teóricos são dois:

(1) Um pensador existencial extemporâneo: itinerários da lucidez, transfiguração mística e a filosofia religiosa da existência

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13 a graus cada vez mais elevados de insegurança”, portanto, muito mais do que apenas um exercício filosófico desinteressado e impessoal.

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pré-14 conceito a respeito do sujeito (sujet1), às vezes por puro desconhecimento, às vezes por

má-fé.

Nenhum autor mais extemporâneo no século XX, tanto pelo teor quanto pelo estilo anacrônico da sua écriture, do que o autor de Le mauvais démiurge. Como observou um comentador, o transilvano exilado em Paris não escreve para a maioria, para as massas, senão para as consciências, individualmente consideradas, em sua singularidade, em sua solidão, numa relação dialogal e convivial – sempre diferente, sempre renovada, sempre outra – de consciência para consciência. Daí o seu “existencialismo”, forçando um pouco a barra, ser não um humanismo, no sentido que Sartre o define, nem tampouco um ateísmo, mas um

espiritualismo, na linha dos espiritualistas russos, de Dostoiévski a Chestov, de Tolstoi a

Berdiaev, de Rozanov a Merejkovski. O seu pensamento existencial se distingue do existencialismo, digamos do de Sartre, por ser uma filosofia religiosa da existência concebida como uma metafísica existencial, cujo princípio intuitivo é a ideia da Queda (no

tempo2). Antecipamos que o religioso entendido por Cioran não tem nada a ver com o que

Bergson define como as formas “fechadas” de religião e de moral, notadamente a religiosidade convencional, dogmática, submetida a uma autoridade eclesiástica, nem tampouco com a fé em Deus. Cioran distingue entre religiosidade (convencional) e sentimento religioso da existência (subversivo, solitário, místico), sendo que este último prescinde de toda fé e adesão a instituições depositárias de verdades reveladas. Nenhum filósofo, caso pudermos admitir que estamos, afinal de contas, falando de um (ao menos por formação, senão por vocação), mais obsedado por Deus, palavra que abunda como uma pletora inesgotável através de seus escritos. Nos confins da solidão, nas profundidades do monólogo, Cioran não encontra senão Deus como interlocutor, e essa figura incerta, evocada na ausência da fé e na presença angustiante de uma dúvida que não quer calar (Cioran é um “duvidador nato”), oscila entre um Deus bondoso, porém, impotente e fracassado, solitário e infeliz, e um Deus perverso, ou no mínimo incompetente, ativo e criador, dificilmente distinguível do próprio diabo (herança de um dualismo gnóstico-maniqueu): o “funesto

1 Em francês (como em inglês, subject), tanto “sujeito”, em oposição a objeto, quanto “assunto”.

2 Conforme ao título de um de seus livros franceses: La chute dans le temps (1964), volume importante, como outros no conjunto de sua obra, romena e sobretudo francesa – pensamos em La tentation d’exister, editado em Portugal, mas também em Le mauvais démiurge e Écartèlement, também ensaísticos e inéditos no Brasil – já que, constituído(s) exclusivamente de ensaios (à exceção de A tentação de existir, Le mauvais démiurge e

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15 demiurgo”. Mas, no limite de sua sede de transcendência, o que Cioran vislumbrará, e desejará como forma última de libertação, tendo ultrapassado tanto Deus quanto o diabo, o Ser supremo e o anjo decaído promotor do nada, o vazio, ou mais precisamente, a vacuidade (sunyata), cujas lições ele extrai de suas leituras orientais, notadamente budistas. Mas, como ele mesmo afirma, somos “espermatozoides verbosos”, estamos “quimicamente ligados à Palavra” e a “nossa loquacidade é pré-natal”, o que torna difícil para ele, Cioran, e para nós, ocidentais, dialogar com o vazio. Em todo caso, trate-se de remontar ao cristianismo e ao judaísmo, trate-se de remontar ao budismo ou ao taoísmo, o itinerário existencial de Cioran é, antes que filosófico, místico; espiritual, antes que puramente racional; em busca de uma sabedoria, antes que da ciência. Não é nosso objetivo provar que Cioran é um grande pensador ou um filósofo de primeira linha, como reza certo preconceito academicista, mas antes que ele é um pensador místico, ou simplesmente, um místico (sem fé, muitas vezes amargo), o que significa, em grande medida, não um “pensador”, não um “filósofo”.

Uma de nossas hipóteses, a se confirmar ao longo desta investigação – tendo partido da tese de que o pensamento de Cioran constitui-se como uma metafísica existencial, e por isso mesmo uma filosofia religiosa da existência1 é que uma das grandes preocupações de

Cioran, elevada ao nível de uma obsessão quase que cotidiana, conforme depreende-se da leitura de seus livros, é com o problema – originalmente metafísico, senão teológico – do mal, cujos primeiros capítulos históricos antecedem em muito a modernidade, mas que adentra os tempos modernos adaptando-se ao progresso do pensamento e da ciência, secularizando-se e naturalizando-se, portanto. Cioran é um pensador preocupado em pensar o mal na existência, um mal misterioso e profundo que não se reduz à causalidade resultante de circunstâncias contingentes e fatores social ou politicamente determinados, e que se traduz na ideia paulina do “mistério da iniquidade”. De onde a filosofia do mal que está visceralmente ligada à sua metafísica existencial. O que não significa que ele seja um paranoico atormentado com perigos e inimigos imaginários. Uma das grandes dificuldades do leitor contemporâneo, e talvez seja verdadeiro que tanto mais quanto ele for jovem, tem a ver com certa resistência, e mesmo preconceito, em relação a tudo o que remete à religião, ao sagrado, à mística, a Deus enquanto símbolo aproximativo de um absoluto inefável e infinitamente transcendente. Cioran tinha sua explicação para isso: somos demasiado apegados ao Tempo, à duração conforme a entende Bergson, tendo-nos feito consubstanciais

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16 a ele, e particularmente à História, de que se tem uma consciência manifestamente orgulhosa e secretamente infeliz, enquanto se ignora, desconsidera, despreza – entre angústia e tédio – tudo o que conduz para fora do Tempo e da História, ou seja: à Eternidade, ao Infinito, ao Absoluto. Essa resistência será um obstáculo ao leitor de Cioran, uma vez que toda a obra de Cioran, tendo como ponto de partida a existência e a experiência ordinária nos limites da percepção comum, extrapola intuitivamente o âmbito do devir, constituindo-se como uma série de negações e afirmações, dúvidas e contradições, paradoxos e aporias, de alguém que reconhece em si, para sua alegria e infelicidade, “a paixão do absoluto em uma alma cética”. Cioran (cujo pai era sacerdote da Igreja ortodoxa romena) se apresenta como um pensador religioso sem a fé, até porque, para ele, o sentimento religioso da existência, que se exprimiria mais bem em termos de vibração, ou mesmo intensidade, não se define pela fé, independendo dela. É preciso haver-se com o fato de que Cioran, como Pascal e Baudelaire, não passa sem a ideia do péché originel (“pecado original”), destituída de toda conotação religiosa, apenas enquanto hipótese antropológica intuitivamente empírica (no sentido em que Bergson diz de sua filosofia que ela é uma metafísica empírica, uma “auscultação espiritual”, partindo sempre da intuição). A julgar pela história humana e pela experiência cotidiana, nada mais verossímil do que a hipótese de uma corrupção natural, ontológica assim como moral, inerente à condição humana desde sua origem. A hipótese do pecado original, de uma natureza humana corrompida e corrputivel, e como que selada por uma maldição imemorial (de onde o “Advento da consciência”, título de um dos aforismos do Breviário), é indispensável para Cioran face à realidade persistente de um mal trans-histórico que recai diretamente sobre o homem, senão sobre a natureza em geral (hipótese gnóstica radical, à la Sade). Cioran é, como pretendemos mostrar, mais e menos do que um filósofo, um autêntico místico, ainda que sem absoluto (o que não é, segundo Cioran, condição sine qua non da mística), mais do que um pensador existencial, um pensador existencial religioso, imbuído de um sentimento religioso sem fé. Divino ou negativo, desde que se percebe a existência como um milagre e o tempo como um sucedâneo da eternidade, seja ele pleno de sentido ou degradado, sinônimo do mal, está-se no terreno do religioso, não do filosófico, pelo menos no contexto da modernidade pós-iluminista. Não por acaso os títulos de seus livros: Lágrimas e santos, Breviário de decomposição, A queda no tempo, O funesto

demiurgo, Confissões e anátemas...1 Nem todos sentem essa mesma paixão, nem todos têm

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17 essa mesma experiência contraditória dilacerada entre a existência e o absoluto. Talvez isso conte positiva ou negativamente, no sentido de despertar o interesse e a vontade de adentrar o seu pensamento, ou então causando desinteresse e decepção. Em todo caso, a presença desses temas, ou dir-se-ia mesmo dessas obsessões, como o próprio Cioran as qualifica, revela um pensador cujo suposto ateísmo deve ser seriamente reconsiderado.

Em concordância com Philippe Tiffreau, para quem “Cioran é anarquista nas bordas, niilista no meio e místico no centro”, tentaremos demonstrar que, dentre as diversas categorias filosóficas comumente empregadas para caracterizar o pensamento de Cioran (a mística não é uma categoria filosófica), a que melhor se adequa é a de pessimismo, admitindo-se (contra Nietzsche) que é possível postular um pessimismo sem que isso signifique niilismo. Pois, onde Nietzsche, ou um nietzschiano, acusaria niilismo e impotência, Cioran fala em mística e em necessidade (besoin) de absoluto, portanto, uma vontade ativa, insaciável, dir-se-ia mesmo afirmativa, por mais que seja uma afirmação paradoxal e mesmo equívoca, não o mesmo tipo de amor fati idealizado por Nietzsche. Pensamos mesmo que o cinismo, no sentido filosófico clássico, é – guardadas as devidas diferenças e a distância histórica que separa Cioran de um Diógenes1 uma referência mais

apropriada do que o niilismo (uma vez mais, admitindo-se que cinismo, enquanto filosofia socrática, não é o mesmo que niilismo) para interpretar a negatividade e a violência crítica de seu pensamento. Cioran é, no fundo, incuravelmentecético, um “duvidador nato”, como ele mesmo afirmou a Sylvie Jaudeau; suas negações mesmas não são por vezes senão dúvidas agressivas e ansiosas, um ceticismo flutuante e nunca totalmente cético. Pessimista, e não niilista, pois, muito embora fortemente influenciado por Nietzsche em sua formação inicial, ainda na Romênia, Cioran voltaria as costas, posteriormente, ao “ídolo de juventude”, de modo que toda sua obra francesa, a começar pelo Breviário de decomposição, emana um espírito de pessimismo e mesmo de um niilismo desabusado e irônico, na antípoda da filosofia do amor fati e do eterno retorno do mesmo. Cioran se fará um perito em Decadência, um especialista no problema da morte e na “hermenêutica das lágrimas”, um teórico do Pior. Se assim é, e se há pessimismo, cinismo, niilismo, ceticismo, ateísmo e misticismo combinados em seu pensamento explosivo, dentre tantas outras tendências mais ou menos heteróclitas, se, enfim, o seu pensamento se constitui como uma metafísica existencial negativa, é em sua experiência de vida (le vécu, em francês; Erlebnis, em alemão)

1 A quem ele dedicará, como meio de afirmar sua própria identidade enquanto pensador, um aforismo do

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18 e, particularmente, em sua insônia – de onde a lucidez que ele se reivindica – que devemos buscar o princípio de tudo isso; e também, em um segundo nível de leitura, em suas influências livrescas, nas causas exteriores e casuais que assomam-se para constituir o seu pensamento e a sua personalidade. Por fim, cumpre elucidar destarte que, se há pessimismo em Cioran, deve-se ter o cuidado de não filiá-lo automaticamente a Schopenhauer, o patrono do pessimismo moderno e, não obstante, apenas o iniciador de uma tradição (sobretudo alemã, mas não apenas) de pessimismo em filosofia que teria muitos outros capítulos e muitos outros representantes (na medida em que a causa pessimista pode contar com muitos adeptos), como por exemplo o obscuro Philipp Mainländer, que Cioran leu e com o qual mantém afinidades significativas em termos de pensamento. Em todo caso, o pessimismo de Cioran se distingue tanto do de Schopenhauer quanto do de Mainländer, como ademais de todo pessimismo filosófico alemão do século XIX, em que ele, fiel à uma exigência fragmentária introduzida por Nietzsche no pensamento filosófico ocidental, é resolutamente antissistemático, e portanto intuitivo, experimental, vivido, mais do que teorizado e formalizado em doutrina filosófica.

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19 para a indiferença muda do universo, despertar, enfim, para si mesma, para o próprio escoamento no devir da duração, consciência do tempo, da finitude, da morte.

(2) A lucidez e a “écriture como destino”: retrato do “antifilósofo” como um “sofista das Letras”

Nosso segundo objetivo teórico, tendo apresentado o pensamento existencial de Cioran, é abordar a questão da écriture, do trabalho intransitivo (Barthes) e criador (Berdiaev) de escrever, a escritura tomada como performance mais do que como discurso de verdade, a linguagem dobrada sobre si mesma, o absoluto literário, para empregar a expressão de Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe para designar o ideal do Romantismo de Iena, o princípio de estilo, a estetização (diríamos mesmo artificialização, concomitantemente à certa poética da desnaturação), ou, nas palavras de Cioran, escrevendo em francês: “O universo reduzido às articulações da frase, a prosa como única realidade, o vocábulo retirado em si mesmo emancipado do objeto e do mundo: sonoridade em si, cortada do exterior, trágica ipseidade acuada a seu próprio acabamento.” Trata-se de mostrar, que mais e menos do que um pensador ou filósofo, Cioran trabalhou para ser, no exílio, um escritor, um escrevente de si, um “secretário das próprias sensações”. Será consumado, na écriture, um princípio afirmado de forma incipiente de seus primeiros livros, e que se formulará, no Breviário, como um “Adeus à filosofia”. Esse adeus já vinha sendo gestado (como a lucidez) e planejado desde Nos cumes de desespero, expressão viva e direta do mal da insônia. Em francês, Cioran explorará as virtudes literárias (prosaicas, poéticas) da linguagem, dando às suas ideias uma expressão suntuosa (aparentemente superficial e afetada, do ponto de vista estético) que está na raiz dos debates sobre o estatuto de sua obra, a meio caminho entre o pensamento filosófico e a expressão literária, e a sua própria identidade enquanto intelectual, pensador e/ou escritor.

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20 senão de vocação – e, cumpre dizê-lo, não a vocação do filósofo como acadêmico, mas do filósofo como artista, e, senão como sábio, como aspirante à sabedoria (sagesse). Talvez, pode-se dizê-lo, Cioran é demasiado místico para ser filósofo; por outro lado, cético demais, pensador demais para fazer uma carreira religiosa feliz. A hipótese que nos move nessa démarche filosófica, partindo de um pensamento lúcido sobre a existência em direção à

écriturecomo destino” e ao estilo como princípio de expressão e de vida indissociável de

uma existência na e pela Palavra – apontando no sentido de uma “ética da elegância”, em que a elegância, no caso, recobre, para além da superficialidade da aparência, um profundo significado ético e espiritual – é que esse desdobramento (literário, etc.) de seu pensamento no exílio está diretamente relacionado, em termos de causa e efeito, ao itinerário místico da lucidez conforme praticada por Cioran a partir da experiência da insônia e mesmo depois de recuperar o sono. A obra francesa de Cioran não poderia ser mais fiel ao que viveu e pensou o nosso autor expatriado, sendo a expressão clara e distinta do seu ser mesmo, com tudo o que ele carrega, admitidamente, de contradição, conflito, impasse, sofrimento. Nenhuma obra mais confessional do que a sua, dir-se-ia indecentemente sincera, no sentido resgatado por Michel Foucault da parrhesía cínica, esse tudo-dizer, doa a quem doer, o que vale em primeiro lugar para si mesmo. A sua escritura autobiográfica, já em gestação nos anos romenos, alcançará, em francês, o paroxismo de uma autoexposição indolente, uma forma de autoconfissão disfarçada, despudorada e ambiguamente descuidada em relação a certas intimidades (Cioran diria “profundidades”), enquanto o autor fala, como pretexto de objetividade filosófica, do mundo e de Deus, dos seres e do Ser.

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21 denomina désœuvrement: “inoperância”, “desobra”, ou mesmo “desobramento”.1 Trata-se

da criação sem obra, da obra inoperante, auto-refutatória, sempre inacabada e interminável, em um sentido não isento de familiaridade com a noção, proposta por Camus (O mito de

Sísifo), de “criação sem futuro”. Não é outra a causa, ademais, da sua decisão de ser, como

um “epígono de Jó”, um Privat Denker, um penseur privé: “pensador privado”, ou seja, na antípoda da figura do filósofo enquanto intelectual engajado e figura pública, sujeita ao aplauso e à vaia. O discurso lúcido e negativo de Cioran em francês, de um pessimismo tão atroz que se torna paradoxalmente não apenas suportável, como reconfortante, estimulante, descreve um programa de desengajamento sistemático de todas as causas, de todos os ideais, de todas as ilusões, o eu “incluído”. Cioran buscará realizar, no exílio (que é, mais do que geográfico, metafísico), uma condição limite cuja possibilidade ele havia apenas vislumbrado ainda na Romênia: o homem-fora-de-tudo, essa aventura metafísica negativa, esse heroísmo de um cadáver adiado, essa não-pertença essencial, não-adesão a nada, nem ao ser nem ao não-ser, nem à vida nem à morte, nem a este mundo nem a nenhum outro mundo, e nem, sobretudo, a si mesmo.

Esperamos ter algum êxito no sentido de mostrar como há, efetivamente, todo um pensamento, no limiar do claro-escuro entre as profundezas insondáveis da alma e a clarividência ordenadora do espírito, por detrás das aparências altamente rebuscadas da

écriture de Cioran: no caso, um pensamento existencial profundo e exigente, paradoxal e

abismal –lúcido–, sendo a existência, resultado da “queda no tempo”, ela mesma a duração dessa “queda”, a problemática fundamental da qual partiremos. E quanto mais poético, literário e subjetivo tende a ser o seu discurso, notadamente em sua fase francesa de maturidade, mais esse pensamento, essa ideia, essa intuição se exprime da maneira mais pura e atual que ela poderia alcançar. Como afirmamos, sua obra francesa, culminação paradoxal e sombria de toda uma vida e de todo um pensamento, “destino” paradoxal de um penoso itinerário da lucidez cujo mérito ou culpa não é senão da insônia, essa vigília ininterrupta, essa “ausência criminosa de sono”. Cioran realiza, à sua maneira, o ideal nietzschiano do filósofo-artista, tendo no Grande Estilo a consequência última de uma intuição trágica a respeito da existência e da vida mesma. Nenhuma distinção, em seu discurso, entre intuição poética e intuição filosófica, a filosofia sendo (ou devendo ser) uma forma de criação, de invenção, como concurso tempestuoso das paixões, das sensações, dos sonhos e pesadelos,

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22 das nostalgias e das melancolias, alegrias e tristezas – numa palavra: da subjetividade (“o homem interior”) – porque é aí, naquilo que segundo Cioran há de mais profundo e de mais vital, mas não racional nem lógico, que reside, se possível, o verdadeiro, o universal, o absoluto.

Por fim, escrevendo, Cioran escreveu sobre si, sobre sua existência e seu vazio, sobre sua solidão e sobre seus desencontros com Deus, sobre sua vida e sua morte, o que equivale a dizer: no entendimento dele, não havia maneira melhor, mais profunda, mais séria, mais verdadeira em suma, de falar sobre a existência e o vazio, a solidão e Deus, a vida e a morte, do que falar delas a partir de si mesmo, daquilo que é mais original e íntimo no próprio ser, na própria duração. Por detrás de todo pessimismo, de todo niilismo, de todo cinismo, enfim, de toda negatividade, há algo, um brilho distante, uma fulgurância tênue que prefigura o despertar de uma existência transfigurada, enfim liberta de toda ilusão e de toda espera, de uma atitude perante a vida que não pode mais ser dita nem pessimista nem muito menos otimista, nem niilista nem anti-niilista, nem cínica, nem moralista, nem cética, nem dogmática, nem ateia nem teísta, nem gnóstica nem agnóstica, nem positiva nem negativa, enfim, de uma plenitude vazia em que alegria e tristeza são igualmente indiferentes, igualmente passados. Há, em certos momentos da obra de Cioran, o vislumbre de um Indestrutível que não poderia ser positivamente definido nem conhecido, mas cuja presença interior sobrevive à travessia de todos os céus e de todos os infernos, às mais profundas dores e à mais atroz das incertezas, despertando no homem a revelação paradoxal da vida como algo lucidamente impraticável, e por isso mesmo irresistível.

Antes de fazermos uma cronologia resumida, algumas observações de ordem metodológica. Uma vez que o nosso objeto de investigação privilegiado é a obra francesa de Cioran, sem desvinculá-la da romena, e uma vez que o Breviário de decomposição1 é um livro singular no conjunto da obra de Cioran como um todo, por representar o ponto de virada, a transição, a ruptura, a morte e o renascimento para uma nova existência, transfigurada pelas “insolações místicas” da lucidez, ele será uma de nossas bases teóricas

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23 diretas, tendo em vista nossos propósitos específicos e o recorte temático de nosso objeto de análise. A justificação de dar mais ênfase ao Breviário, no conjunto de seus livros franceses e, ademais, no conjunto de sua obra como um todo, se dá, ademais, pela dupla razão de que este é um dos livros mais conhecidos de Cioran, no Brasil e fora dele, e também porque o próprio autor costumava responder, a todo aquele que lhe perguntava por qual livro começar, que qualquer livro era um bom começo, pois não há, segundo ele, progressão em seu pensamento (metafísico e fragmentário). Sendo assim, propomos o acesso ao pensamento de Cioran, não fortuitamente, pelo seu primeiro livro francês, pelo seu nascimento enquanto autor de língua francesa e “exilado metafísico”, o “homem-fora-de-tudo”, idealmente lúcido e idealmente fracassado (raté), o que, no caso, oculta um profundo e secreto triunfo – sempre insatisfeito, sempre insuportável.

Paralelamente ao Breviário, definiremos duas outras bases teóricas complementares no contexto da obra francesa de Cioran: no caso, dois de seus livros eminentemente ensaísticos, La tentation d’exister (1956) e La chute dans le temps (1964), particularmente em virtude de dois ensaios que julgamos fundamentais para compreender o pensamento existencial de Cioran: “L’arbre de vie” (A árvore da vida), abrindo o segundo, e o homônimo “La tentation d’exister” (A tentação de existir), encerrando o primeiro. Ainda em La tentation d’exister, será o caso de nos debruçarmos mais demoradamente em textos fundamentais para se compreender o que está em jogo, distintamente de sua escrita romena, na écriture de Cioran, tais como “Le style comme aventure” (O estilo como aventura), “Lettre sur quelques impasses” (Carta sobre alguns impasses) e “Démiurgie verbale” (Demiurgia verbal). O Breviário também é um livro importante, em toda sua singularidade lírica, neste sentido muito próxima de seus primeiros escritos romenos,1 comparada com a

secura, o laconismo e a sobriedade poética praticados nos livros seguintes, mesmo aqueles ensaísticos. Faremos dialogar os livros franceses de Cioran (não apenas os que definimos como fontes primárias, como todos os demais2), aos quais recorreremos pontualmente com

o fim de apontar continuidades, relações, variações, contradições e coerências.

1Nos cumes do desespero (1934), O livro das ilusões (1936) Schimbarea la faţă a României(“Transfiguração da Romênia”, 1936) Lacrimi şi sfinţi (Lágrimas e Santos, 1937), Amurgul gândurilor (“O crepúsculo dos pensamentos”, 1940), ÎndreptarPătimaş(“Breviário dos vencidos”, 1944), e o recém-descoberto Razne (algo como “extraviado”, “perdido”, “desgarrado”), último manuscrito em romeno de Cioran, quando já vivia em Paris, vindo a ser publicado postumamente.

2Silogismos da amargura (1952), História e utopia (1960), Le mauvais démiurge (1969), De l’inconvenient

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24 Após sua morte, a companheira de Cioran, Simone Boué, descobriu, perdidos ou escondidos, no apartamento em que viveram desde 1960, dezenas de cadernos de anotações e experimentações, anedotas e biografemas, ideias e reminiscências, muitos deles contendo aforismos idênticos aos que seriam publicados em seus livros. A própria Simone se deu o trabalho de datilografá-los todos e providenciar sua publicação, pela mesma editora que publicou todos os livros franceses de Cioran. O resultado: os Cahiers, mantidos numa constância diária entre 1957 e 1972 (descobriu-se recentemente outra leva de cadernos, posteriores a 1972), e que fazem parte, como os livros publicados deson vivant, de nosso objeto de investigação, sendo portanto parte integrante do conjunto de nossas fontes primárias (a escritura francesa de Cioran). Paralelamente aos Cahiers: 1957-1972, porém com um nível de importância teórica menor, incluímos também as entrevistas de Cioran, a maioria delas reunidas no volume Entretiens, também publicado pela Gallimard, um ano após a morte do autor (1996). Elas serão relevantes sempre que sentirmos a necessidade ou a conveniência de recorrer a comentários extra-obra, num registro discursivo não escrito, mas verbal (com tudo o que isso implica em termos de comunicação e apresentação das ideias), para esclarecer ou ilustrar um ponto nodal de seu pensamento, conforme posto em cena em sua écriture.

Ainda no âmbito das fontes secundárias, menção seja feita à fortuna crítica, recente porém volumosa, produzida em torno do pensamento e da vida de Cioran. Tem-se registros de estudos acadêmicos sobre o autor romeno de expressão francesa desde meados da década de 1960. O filósofo espanhol Fernando Savater, grande responsável por introduzir e promover, na década de 1970, a obra de Cioran na Espanha, onde, em meio à ditadura franquista, seria bem acolhida e celebrada pelos intelectuais de esquerda (El aciago

demiurgo, um dos primeiros livros traduzidos por Savater, seria banido pela censura por seu

teor blasfemo e anti-católico). Savater é um dos pioneiros nos estudos acadêmicos sobre este autor tão avesso à Academia, e que se dizia indiferente tanto ao destino de seus livros quanto ao fato de tornar-se objeto de estudo acadêmico; em 1972, ele publicaria Ensayo sobre

Cioran, resultado de seu doutorado em Filosofia tendo como objeto a obra de Cioran, em

uma época em que Cioran não era amplamente conhecido nem mesmo dentro da França. Cada vez mais, e pode-se dizer seguramente a cada ano, multiplicam-se as publicações, acadêmicas ou não, dedicadas a Cioran. Em 2011, a Gallimard incluiu, em seu rol de

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25 “imortais”, a coleção Pléiade, as Œuvres de Cioran (apenas francesas), numa edição crítica luxuosa, recheada de comentários e notas sobre cada um dos livros e textos. Tanto na França, quanto na Alemanha, na Espanha, na Itália, em Portugal e na Romênia, como também nos Estados Unidos, no Canadá, no México, na Colômbia ou na Argentina (e, pouco a pouco, no Brasil), cada vez mais pessoas descobrem Cioran e se interessam por sua leitura, seja com fins acadêmicos, seja apenas pelo prazer do texto. No Brasil, em que os estudos sobre Cioran estão apenas engatinhando, escassas são as publicações dedicadas à sua obra. Não pretendemos dialogar exaustivamente com os comentadores de Cioran, passados e presentes (e eles são legião), mas tão-somente à medida que seus estudos contribuam diretamente para enriquecer, ou questionar, as teses que pretendemos problematizar e desdobrar a partir de uma análise filosófica do pensamento de Cioran.

Por fim, não deveremos dialogar apenas com os comentadores de Cioran, mas também com aqueles autores (filósofos, pensadores, escritores) circunscritos no círculo hermenêutico do nosso autor, a partir de suas leituras e encontros, da Antiguidade à modernidade, do Ocidente ao Oriente. Um autor como Cioran, tendo em vista a natureza fragmentária e infinitesimalmente complexa de sua obra, faz com que toda erudição, toda contextualização seja, no limite, insuficiente para dar conta de compreender a profundidade e a complexidade do seu pensamento. Admitimos desde já, e nos desculpamos por ela, nossa limitação e deficiências, seja em matéria de erudição quanto em matéria de domínio de línguas estrangeiras,1 a começar pelo próprio romeno, importantes quando se trata de ter

amplo acesso a tudo o que se produz e publica sobre Cioran. Por essa razão, não daremos conta de aportar ao leitor uma leitura intensiva e extensiva de todas as referências de Cioran, filosóficas e/ou outras, limitando-nos muitas vezes a indicar relações e a levantar hipóteses, sem pretender respondê-las exaustivamente. O que, por outro lado, não seria forçosamente o caso, uma vez que, pelas mesmas características apontadas acima (escritura fragmentária,

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26 complexidade), corre-se muitas vezes o risco de projetar em Cioran a imagem de um Nietzsche ou de um Schopenhauer, perdendo de vista toda a singularidade e originalidade do autor, para além de suas afinidades de pensamento com outros autores, de sua época ou do passado.

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CRONOLOGIA RESUMIDA

A guisa de contextualização

Emil Cioran nasceu em 8 de abril de 1911, em Răşinari, pequeno vilarejo dos Cárpatos, uma região montanhosa na Transilvânia. Era o segundo de três filhos, tendo uma irmã mais velha (Virginia) e um irmão caçula (Aurel. Seu pai, Emilian, era um pope ortodoxo ao estilo bizantino. Elvira, sua mãe (nascida Comaniciu) vinha de uma nobre família. Sua biografia nos faz começar em um cenário idílico – le paradis terrestre – que oculta, por detrás de sua paz e tranquilidade, os germes do desassossego. O caso Cioran não pode ser devidamente compreendido, no contexto da cultura filosófica e literária do século XX, sem um mínimo conhecimento prévio de sua assim chamada romenidade.

Detalhe curioso: Cioran não nasceu na Romênia. Digamos que, antes de ser oficialmente romeno, ele é transilvano.1 A Transilvânia (Ardeal em romeno; Erdely em

húngaro) pertencia, à época, ao Império Austro-húngaro, não fazendo parte do grande reino da Romênia (constituído, então, pela Moldávia e pela Valáquia, que formam, hoje, junto com a Transilvânia, as três grandes regiões da atual Romênia). A Transilvânia voltaria a integrar o grande reino da Romênia em 1920, em virtude do tratado de Trianon. Cioran é um filho do império, nasceu em uma região dividida entre duas, três identidades culturais e étnicas distintas, e cujas fronteiras mudavam frequentemente. A família Comaniciu, de sua mãe, havia ascendido ao título de nobreza transilvana graças ao avô de Cioran, Gheorghe Comaniciu, que era notário público sob o império austro-húngaro. Seus pais, que estudaram em escolas magiares, falavam entre eles amiúde, em casa, o húngaro. Aos dez anos, Emil se mudaria, por decisão de seu pai, preocupado com sua educação, para a cidade vizinha, capital do condado (judet) homônimo, Sibiu, para estudar em um dos primeiros liceus de língua romena da Transilvânia desde a reintegração, além de viver em uma casa de família alemã para aprender o idioma mais influente naquela parte da Europa.

Cioran experimentou, desde cedo, na dinâmica da experiência cotidiana, uma espécie de divisão, de duplicidade em termos de identidade (linguística, cultural, espiritual). Os elementos que permitem precisar a identidade romena de Cioran são, em primeiro plano, a língua (proscrita, em grande medida, dos assuntos públicos e inclusive da educação) e a

1“Eu me sinto romeno e húngaro na alma, e talvez mais húngaro que romeno.” CIORAN, E.M., Cahiers:

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28 religião: o latim,1 herdado dos antigos colonizadores romanos, antes mesmo da chegada do

cristianismo (séc. IV), e o cristianismo ortodoxo herdado do bloco bizantino. Remotamente, os romenos – e particularmente os transilvanos – reivindicam a ancestralidade dos Dácios e Getas, povos indo-europeus por vezes relacionados aos Trácios. As expedições ao Oriente, na Antiguidade, permitiriam aos Gregos conhecer esses povos e suas culturas. Heródoto os menciona em suas Istoriai, e é provável que o culto dácio a Zalmoxis, deus da saúde e da imortalidade, esteja na base do pitagorismo, por intermédio do orfismo, de origem trácia. Costuma-se dizer – e Cioran o reitera em um aforismo2 que os Dácios e Trácios choravam

pelos recém-nascidos, enquanto que comemoravam a morte como uma libertação e o retorno a Zalmoxis.

Um dos temas centrais das conversas de Cioran – e cuja recorrência3 só reforça a

identidade, a singularidade que ele, enquanto autor de língua francesa, intenciona para si mesmo – é a sua infância excepcionalmente feliz, em contraste com “tudo o que veio depois”,4 ou seja, a partir da mudança obrigatória para Sibiu, para começar seus estudos

escolares. Ele passa sua infância descalço e livre para brincar no riacho atrás de casa ou nos bosques aos pés dos montes Cárpatos. Ele contará mais tarde que uma de suas ocupações prediletas era conversar com os camponeses e pastores, mas também com os bêbados e “fracassados” na taverna local. Mas o “paraíso terrestre”5 não era perfeito assim. Toda essa

liberdade para viver como um pequeno selvagem, e que durou apenas meses, tinha um preço, uma razão de ser, que provavelmente não escapou à criança: em setembro de 1916 (Cioran

1 O romeno é a única língua românica do mundo influenciado pelo eslávico, o que a torna um idioma latino peculiar. Além disso, muitas das palavras romenas vêm do magiar (húngaro), do turco e do grego. “O romeno, mistura de eslavo e de latim, é um idioma desprovido de elegância, mas tão poético quanto possível, aberto como nenhum outro aos acentos de Shakespeare e da Bíblia.” CIORAN, E.M., Entretien avec Gerd Bergfleth, in: Entretiens, p. 143 (tradução nossa)

2 “Trácios e bogomilos: não posso esquecer que frequentei as mesmas paragens que eles, nem que uns choravam pelos recém-nascidos e que os outros, para inocentar a Deus, responsabilizavam Satã pela infâmia da Criação.” IDEM, De l’inconvenient d’être né, in: Œuvres, p. 1283 (t.d.a).

3 Notadamente, nas entrevistas que ele deu, vivendo na França, para jornalistas, filósofos, escritores e historiadores de diversos países. Reunidas no volume Entretiens (Gallimard, 1995).

4“Se eu tivesse tido uma infância triste, eu teria sido muito mais otimista em minhas ideias. Mas eu sempre senti, mesmo inconscientemente, esse contraste, essa contradição entre minha infância e tudo o que veio depois. Isso me destruiu interiormente, de alguma maneira.” CIORAN, E.M., Entretien avec Helga Perz, in: Entretiens, p. 33 (tradução nossa)

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29 tinha, portanto, 5 anos), Emilian, seu pai, seria preso pelas autoridades húngaras (no início do ano seguinte, a sua mãe teria o mesmo destino, sendo presa e levada para outra prisão, onde ficaria apenas por três meses) A razão é que a Romênia entra em guerra ao lado da Entente contra o Império Austro-húngaro, e o pai de Cioran, como muitos outros padres e intelectuais romenos da Transilvânia, seria acusado de separatismo. Durante o tempo em que seus pais estiveram presos, as três crianças ficariam sob os cuidados da avó.1 Outra anedota

recorrente nas entrevistas de Cioran é sobre sua primeira crise (precoce, aos cinco anos) de ennui,2 que ele interpretará como o thauma,3 e o trauma, que daria início ao seu itinerário da

lucidez. Talvez seja apenas uma coincidência, talvez não, que esse acesso de melancolia, tão intenso que seria lembrado para sempre,4 tenha ocorrido no mesmo ano em que seu pai fora

preso, 1916. O ennui precoce implicará a descoberta de que o tempo existe, a tomada de consciência negativa do fluxo temporal, do devir, da duração da consciência na duração; implicará, portanto, a perda da inocência, a saída da “infância do mundo” e a iniciação nos assuntos da consciência. Não é outra a fonte vivida do aforismo sobre a “desarticulação do tempo”, em Breviário de decomposição:

Os instantes sucedem-se uns aos outros: nada lhes empresta a ilusão de um conteúdo ou a aparência de uma significação; desenvolvem-se; seu curso não é o nosso; contemplamos o seu fluir, prisioneiros de uma percepção estúpida. [...] Quem não conhece o tédio encontra-se ainda na infância do mundo, quando as idades esperavam para nascer; permanece fechado para este tempo fatigado que se sobrevive, que ri de suas dimensões e sucumbe no limiar de seu próprio... porvir, arrastando com ele a matéria, subitamente elevada a um lirismo da negação. O tédio é o eco em nós do tempo que se dilacera... a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que sustenta – ou inventa – a vida.5

1“O ‘natural’ é histórico e deve ser lido como tal. Assim, se a criança de seis anos de idade está ‘livre’ para perambular no riacho de água fria, não é simplesmente porque ela vive num vilarejo bucólico, em que as regras dos adultos não se aplicam. É porque o ano é 1917, o último ano da Primeira Guerra Mundial, e a criança está sob os cuidados precários de uma avó idosa, sobrecarregada com tarefas domésticas e com a gerência de uma pequena venda de doces e tabaco para sustentar a casa. Os pais da criança estavam ‘ausentes’ porque eram prisioneiros políticos em campos de concentração húngaros, presos por suas simpatias nacionalistas. O paradoxo não poderia ser maior: a criança estava livre porque seus pais estavam presos.” ZARIFOPOL-JOHNSTON, I., Searching for Cioran, p. 32 (tradução nossa)

2Frequentemente traduzido por “tédio”. “Fastio” é outra opção interessante. Manteremos, aqui, o original em francês, para preservar certa densidade semântica que se perde por conta da conotação de superficialidade, de ausência de ocupação, comumente implicada em “tédio”: trata-se de um tédio melancólico, ansioso, angustiado, um sentimento de vazio e de insignificância, talvez já contendo em latência o desespero que será o tema-título do primeiro livro de Cioran.

3 No sentido grego de espanto, fascínio, assombro, do vergo thaumázein.

4“Foi durante a Primeira Guerra. Eu tinha cinco anos. Uma tarde, de verão sem dúvida, tudo o que me rodeava se perdeu, se esvaziou de sentido, se congelou: uma espécie de angústia insuportável. Sem poder formular o que se passava comigo, dei-me conta da existência do tempo. Nunca pude esquecer essa experiência. Falo do vazio essencial, que é uma tomada de consciência extraordinária da solidão do indivíduo.” CIORAN, E.M., Entretien avec J. L. Almira, in: Entretiens, p. 122.

(34)

30 Outro episódio marcante em sua infância é contado por seu irmão, Aurel.1 Cioran,

que praticava o violão, rejeitaria veementemente, aos quatorze anos, o instrumento, mergulhando nos livros e tornando-se um leitor insaciável. Seus cadernos de estudos a partir de então revelam, por citações no original ou em romeno, uma leitura atenta de Diderot, Balzac, Tagore, Soloviev, Lichtenberg, Dostoiévski, Flaubert, Schopenhauer e Nietzsche.2

Excelente aluno, matricula-se na seção de Humanidades, aprendendo o latim, o alemão e o francês. Vivendo em Sibiu (aonde sua família se mudaria, em 1924, em razão de Emilian ter sido nomeado protopope e conselheiro metropolitano da catedral local), frequentará a biblioteca Astra e a biblioteca do palácio Brukenthal, onde conhecerá o filósofo Erwin Reisner. Ao final da juventude (por volta de 1928), mais uma frustração: Cioran estava apaixonado, em segredo, por uma moça do liceu, e, um dia, lendo Shakespeare em um parque, a viu de mãos dadas com o aluno mais bobo de todos. Naquele momento, tomaria a decisão de nunca mais se apaixonar.

Pelas circunstâncias politicamente instáveis dos anos que marcaram sua infância, Cioran terá seus documentos de identidade desatualizados até 1928, quando os regularizará para obter cidadania romena e ir estudar na universidade da capital, Bucareste. Em 1928, matricular-se-á no curso de Letras na Universidade Nacional de Bucareste, com especialização em Filosofia. É por volta dessa época, entre seus últimos anos vivendo com a família, em Sibiu, e os primeiros anos universitários em Bucareste, que a insônia entrará em sua vida. Como no caso de muitos outros autores, do presente e do passado, a insônia desempenhará um papel decisivo na genealogia do pensamento de Cioran, estando diretamente implicada na lucidez (lucidité) que será um motivo central em sua obra. No caso de Cioran, a insônia é sintomática de uma conjunção de fatores, subjetivos e objetivos, que culminarão na impossibilidade de dormir, na impossibilidade de viver e de morrer. Será um princípio de elevação e queda, iluminação e desorientação, êxtase e agonia. “O fenômeno capital, o desastre por excelência, foi a vigília ininterrupta, esse Nada sem trégua. De madrugada, eu passeava horas a fio por ruas desertas ou, às vezes, pelas ruas assombradas por solitárias profissionais, companheiras ideais nos momentos de inquietação suprema.”3

1 Notadamente, no documentário Apocalipsa dupa Cioran, disponível no Youtube. A informação é confirmada pelos biógrafos e pela cronologia da edição da Pléiade (Gallimard, 2011).

Referências

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