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Dos ossos aos corpos: um estudo comparativo entre práticas de Antropologia Forense

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

VICTÓRIA FRANCO MARTIN

DOS OSSOS AOS CORPOS

Um estudo comparativo entre práticas de Antropologia Forense

NITERÓI 2018

(2)

VICTÓRIA FRANCO MARTIN

DOS OSSOS AOS CORPOS

Um estudo comparativo entre práticas de Antropologia Forense

ORIENTADOR:

PROF. DR. LUIZ FERNANDO ROJO

Niterói, RJ 2018

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Antropologia da Universidade

Federal Fluminense, como

requisito à obtenção do título de Bacharel em Antropologia.

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Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com informações fornecidas pelo autor

Bibliotecária responsável: Thiago Santos de Assis - CRB7/6164

M383o Martin, Victória Franco

Dos Ossos aos Corpos : Um estudo comparativo entre práticas de Antropologia Forense / Victória Franco Martin ; Luiz Fernando Rojo, orientador. Niterói, 2018.

48 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em

Antropologia)-Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Niterói, 2018.

1. Antropologia. 2. Antropologia cultural. 3. Antropologia física. 4. Antropologia criminal. 5. Produção intelectual. I. Rojo, Luiz Fernando, orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

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-VICTÓRIA FRANCO MARTIN

DOS OSSOS AOS CORPOS

Um estudo comparativo entre práticas de Antropologia Forense

Aprovada em __ de _____________ de 2018.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Rojo – UFF

Orientador

____________________________________________ Profª Drª Lucia Eilbaum – UFF

____________________________________________ Profª Drª Joana D‘Arc Ferraz – UFF

NITERÓI 2018

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), como requisito à obtenção do título de Bacharel em Antropologia.

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Dedico este trabalho a todas as vidas interrompidas, vítimas do racismo institucional e da LGBTfobia, corpos que mesmo após a morte continuam sendo violentados e deslegitimados pelo país que mais mata negros e LGBTs no mundo...

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha mãe, Arlete Franco Martin, por ser sempre minha inspiração e ter me ensinado a seguir meus sonhos; ao meu pai, Marco Antônio Martin, por me ensinar a ser quem sou e por todo apoio incondicional; e à minha irmã, Lívia Franco Martin, por ser essa mulher inspiradora, tal qual nossa mãe, e por nossa parceria não só nas discussões acadêmicas mas na lida com a vida. Essa conquista não é minha, é nossa.

Ao agradecer minha família, não poderia deixar de agradecer imensamente à minha namorada, noiva e companheira, Julia Paiva Magalhães, que acompanhou de perto momentos de alegria, de desespero, de esperança e desesperança em meio a esse caminho trilhado, não só por mim, por nós. Agradeço pelo apoio, pelo incentivo, pela parceria na realização de grandes feitos dentro e fora da universidade. É um prazer poder caminhar lado a lado e crescermos juntas.

Agradeço imensamente ao meu orientador, Luiz Fernando Rojo, pela paciência, pela amizade e pelo incentivo nos momentos de incerteza. Gratidão, sobretudo por acreditar em mim, ainda no segundo período, quando nem eu mesma acreditava, e é claro por iluminar os caminhos do pensamento antropológico nessa jornada que trilhei durante esses quatro longos anos.

Mas não posso deixar de ressaltar que a orientação é um processo e uma construção coletiva de aprendizados e ensinamentos compartilhados com muitxs que cruzaram meu caminho nessa jornada. Tive o privilégio e a honra de ser orientanda, enquanto bolsista de iniciação científica na Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ), de Flávio Coelho Edler, a quem serei eternamente grata por ter me introduzido ao mundo da História das Ciências e da Saúde e por fazer com que eu me apaixonasse por esses saberes e me inspirasse a ir além. Cada livro, cada palavra, cada abraço, cada olhar de cuidado e preocupação mudou os rumos da minha trajetória e da minha vida. E é com muito carinho que digo que espero algum dia ser tão grande em excelência, inteligência e virtude quanto você.

Agradeço, também, às duas professoras que escolhi como pareceristas dessa monografia: Lucia Eilbaum, cujas reflexões em suas disciplinas e atividades tanto me auxiliaram nas construções analíticas desse trabalho, além de seu sempre atencioso olhar e apoio; e Joana D‘Arc Ferraz, cujo nome já diz muito, professora e amiga a quem devo muito minha eterna gratidão pelo apoio incondicional em especial no final desse caminho tortuoso,

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sempre me inspirando a seguir em frente e afiar as unhas para prosseguir cavando esse túnel, que é a jornada acadêmica, com as mãos.

Além disso, gostaria de agradecer a todxs xs professorxs e amigos que contribuíram na minha formação, e sobretudo aos que me tocaram profundamente com seus ensinamentos e mudaram minha forma de enxergar e vivenciar o mundo, incluindo o acadêmico. E também aos amigos e colegas que compartilharam e influenciaram nessa minha trajetória e contribuíram para este trabalho direta ou indiretamente.

Enfim gostaria de agradecer à Flávia Medeiros, cujo trabalho me inspirou e que me auxiliou na entrada em campo, e a todxs xs funcionárixs do IMLAP que me acolheram e auxiliaram na construção das reflexões que apresento neste trabalho.

Após e a partir deste meu primeiro trabalho de campo, surgiu a oportunidade de atuar enquanto voluntária junto ao GTP, o qual me ajudou a consolidar este trabalho em termos de riqueza antropológica. Não posso deixar de relembrar a honra de ter convivido com cada um que compõe esse grupo, os quais compartilharam seus conhecimentos comigo generosamente e me permitiram fazer parte deste projeto incrível, tão necessário para nossa sociedade e para nossa História, que me emociona. Não posso deixar de agradecer em especial à Márcia Lika Hattori, Ana Paula Tauhyl, Aline Oliveira e Renato Panunzio, profissionais excepcionais, pelos conselhos e todo o apoio que recebi de vocês nessa caminhada, além de servirem de inspiração. Fico feliz e muito grata em ter encontrado pessoas tão especiais nesse caminho.

Por último, porém não menos importante, agradeço ao Grupo Diversidade Niterói (GDN), por ter me acolhido e me ensinado tanto sobre o movimento social e sua importância na cidade. É uma honra poder compor essa frente de luta junto a pessoas tão incríveis como Bruna Benevides, Felipe Carvalho, Vinicius Coelho, Theodoro Carvalho e outrxs que admiro muito e levo no coração. Vocês também foram fonte primordial de inspiração para esse trabalho.

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lápide 1

epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta. Nada deixou escrito.

Este silêncio, acredito, são suas obras completas.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo levantar questões e reflexões acerca da Antropologia Forense e suas práticas laboratoriais sob o viés da Antropologia Cultural/Social. Em termos específicos, a Antropologia das Ciências, que problematiza o suposto caráter objetivo, neutro e apolítico dos saberes científicos, permeia meu trabalho, que busca compreender de que modo a produção destes saberes, em diferentes contextos e processos de legitimidade, não só produzem os corpos humanos simbólica e socialmente, como também os afetam materialmente. Assim, elegendo a morte como principal forma de aproximação da materialidade dos corpos, construo essa problemática com base em um trabalho etnográfico multi-situado, desenvolvido entre 2015 e 2016: primeiro, no laboratório do Serviço de Antropologia Forense do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IMLAP), principal unidade da região metropolitana do Rio de Janeiro; e segundo, no laboratório do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF), onde atuei como voluntária em um projeto de identificação de desaparecidos políticos intitulado Grupo de Trabalho Perus (GTP). Nesses ambientes, predominam os discursos científicos biomédico e jurídico-legal, cabendo ressaltar que há uma construção institucional dos mortos que se dá através do encontro e confronto desses discursos, que atribuem e legitimam significados referentes a estes ―corpos‖, dentre os processos de identificação, pela e na burocracia pública que, trabalhando com sua noção estatal de identidade, estabelece o lugar social do defunto, ou seja, aquele conjunto de ossos que simbolizam um corpo, um cidadão, um indivíduo e uma pessoa morta. Nesse sentido, os discursos se chocam e ao mesmo tempo se complementam num processo de construção, significação e resignificação dos remanescentes ósseos humanos que, embora carreguem o estigma da morte, dão vida ao laboratório de Antropologia Forense e têm vida social dentro e fora dele, o que reflete nas práticas e no manuseio dos mesmos. Ora os corpos são ossos, ora os ossos são corpos. De que forma a técnica científica lida, delimita, constrói e destrói esse limiar? Seguindo a premissa de Donna Haraway (1995), de que não existiria o olhar ―da ciência‖, mas sim dos ciêntistas (localizados geográfica, histórica, social e culturalmente), analiso comparativamente dois contextos que embasam suas práticas em teorias científicas distintas, explicitando como isso impacta não só no cotidiano institucional, mas também nas leituras simbólicas dos ossos aos corpos.

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ABSTRACT

This work aims to raise questions and reflections about Forensic Anthropology and its laboratory practices under the bias of Cultural / Social Anthropology. In specific terms, the Anthropology of Sciences, which problematizes the supposed objective, neutral and apolitical character of scientific knowledge, permeates my work, which seeks to understand how the production of these knowledge, in different contexts and processes of legitimacy, not only produce the human bodies symbolically and socially, but also affect them materially. Thus, choosing death as the main way of approaching the materiality of bodies, I construct this problem based on a multi-situ ethnographic work developed between 2015 and 2016: first, in the laboratory of the Forensic Anthropology Service of the Afrânio Peixoto Medical Legal Institute ( IMLAP), main unit of the metropolitan region of Rio de Janeiro; and secondly, in the laboratory of the Center of Forensic Archaeology and Anthropology (CAAF), where I volunteered for a project to identify political disappeared persons named Grupo de Trabalho Perus (GTP). In these environments, biomedical and legal-legal scientific discourses predominate, and it is important to emphasize that there is an institutional construction of the dead through the encounter and confrontation of these discourses, which attribute and legitimize meanings referring to these "bodies", among the identification processes , by and in the public bureaucracy that, working with its state notion of identity, establishes the social place of the deceased, that is, that set of bones that symbolize a body, a citizen, an individual and a dead person. In this sense, the discourses collide and at the same time complement each other in a process of construction, signification and resignification of human bones remnants that, although bearing the stigma of death, give life to the laboratory of Forensic Anthropology and have social life inside and outside it, which reflects in the practices and the handling of the same. Now bodies are bones, and bones are bodies. In what way does scientific technique read, delineate, construct, and destroy that threshold? Following Donna Haraway's (1995) premise that there would be no "science" look, but rather with the scientists (geographically, historically, socially, and culturally located), I comparatively analyse two contexts that support their practices in distinct scientific theories, as this impacts not only on institutional daily life but also on the symbolic readings of bones to bodies.

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LISTA DE SIGLAS

IML Instituto Médico-Legal

IMLAP Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto GTP Grupo de Trabalho Perus

CAAF Centro de Arqueologia e Antropologia Forense SDH Secretaria de Direitos Humanos

CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos OEA Organização dos Estados Americanos

UNIFESP Universidade Federal de São Paulo UFF Universidade Federal Fluminense UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

A Morte, uma introdução ao fim ... 13

O Eu, uma apresentação (d)a vida ... 17

O Corpo, dos fragmentos à vida ... 19

CAPÍTULO I Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IMLAP), Rio de Janeiro A Morte Institucionalizada ... 22

A Travessia ao Mundo dos Mortos ... 24

IMLAP, o submundo ... 25

O Necrotério ... 26

O Laboratório de Antropologia Forense ... 27

CAPÍTULO II Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF), São Paulo A Vala Clandestina de Perus ... 29

Vestindo o Jaleco ... 30

Lavando Objetos Mortos e Memórias Vivas ... 31

CAPÍTULO III Corpos Múltiplos Laboratórios de Corpos ... 35

Objetos Mortos Vivos ... 38

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Corpos Matáveis x Corpos Vivíveis ... 44 Morte: um apelo à vida ... 45

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13 INTRODUÇÃO

A Morte, uma introdução ao fim

Demora-te sobre minha hora. Antes de me tomar, demora. Que tu me percorras cuidadosa, etérea Que eu te conheça lícita, terrena Duas fortes mulheres

Na sua dura hora. (...)

Hilda Hilst

(...) Morte, imagina-te.

Hilda Hilst

Eu estava apreensiva. Era a primeira vez que visitava um necrotério. Tudo era novo e intrigante. O cheiro forte, um misto de produtos químicos, corpos em estado de putrefação e sangue seco, preenchia o lugar como as águas dando sentido ao leito de um rio. Eu podia sentir pela frieza, pela iluminação insuficiente e pela falta de assepsia que aquele ambiente era habitado pela morte, e de fato não era feito para ser convidativo aos vivos.

Eu havia entrado pela recepção e sido levada diretamente à sala de Antropologia Forense, ou ―santuário dos ossos‖, como tomo a liberdade de me referir aqui neste momento, em tom lúdico. Lá eu encontrei aquele que me guiou durante toda minha estadia, o qual chamarei de Caronte1, em alusão à mitologia grega. Tomada pela ânsia de me encontrar com a morte, face a face, o questionei, embora não fosse de sua alçada, sobre o caminho que percorriam os cadáveres que adentravam aquela instituição. Ele tomou isso como um desafio e, tal qual o personagem mitológico que inspirou seu nome, guiou-me para que eu visse com meus próprios olhos.

1

Na mitologia grega, Caronte é o barqueiro do mundo inferior, que transporta as almas dos recém-mortos em um barco sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos.

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14 O longo corredor que unia todas as salas do necrotério era como o curso principal do rio Estige e Aqueronte que desembocava justamente onde Caronte queria me testar, digo, levar: ―a geladeira‖. Ao nos depararmos com uma grande porta de aço inoxidável, ele puxou a manga do jaleco, para não encostar na maçaneta, abriu uma fresta e me olhando como se dissesse ―não era isso que você queria?‖ me convidou a entrar.

Sem hesitar dei dois passos, adentrando aquilo que parecia uma gigantesca e extensa caixa metálica refrigerada. Estruturas de aço que se assemelham a prateleiras se estendiam por toda a extensão das paredes tanto horizontal, quanto verticalmente. A sala estava repleta de corpos, empilhados do chão ao teto, do início ao fim, cada qual em sua respectiva maca. De onde eu observava só conseguia ver nitidamente os pés pálidos e etiquetados. Passei não mais de três segundos contemplando, embora parecessem uma eternidade.

Saí e disse um simples ―ok‖ e ao julgar pela expressão em sua face, talvez Caronte esperasse de mim outra reação, talvez por eu ser mulher, talvez por ser a morte um tabu. Mas este é um assunto para ser explorado mais profundamente ao longo deste trabalho. De fato foi um ritual de passagem, saí do mundo dos vivos para visitar os mortos, e fui reconhecida enquanto potencial navegadora daquele rio que demarcava a fronteira entre os mundos. Mas, ainda assim, eu era estranha àquele lugar. Todos ali tinham uma função e não se resignavam à contemplação, até mesmo os microrganismos incansáveis a decompor a matéria orgânica dos corpos. A morte era seu ofício, ou melhor, ―matar a morte‖ institucionalmente falando. Todos os dias os funcionários do Serviço de Necropsia do IML, trabalham no limiar, cada qual lidando com aqueles corpos à sua maneira, para manter essa fronteira.

De fato, tratar sobre morte não é uma tarefa fácil, não a toa diversos pensadores dedicaram livros inteiros à reflexão sobre um dos tabus mais arraigados em nossa sociedade. José Carlos Rodrigues, em seu livro Tabu da Morte, busca demonstrar como, para nós, a morte seria algo a ser evitado, afastado e escondido e a problematiza enquanto objeto de estudos focalizando sua dimensão social, profundamente associada às concepções ocidentais de corpo, pessoa e indivíduo.

E é assim, inspirada pelos poemas de Hilda Hilst, em sua obra Da Morte. Odes

Mínimas e pelo Tabu da Morte, literalmente, que inicio este trabalho, construído ao longo de

quatro longos anos de trajetória acadêmica. E, assim como Caronte, abro as portas e me proponho a guiar-lhe pelo mundo dos mortos, e consequentemente dos vivos, incitando reflexões essencialmente antropológicas sobre a construção social e cultural de nossos corpos e nossa relação com a vida e a morte.

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15 A morte sempre me inspirou a pensar a influência do social sobre a materialidade dos corpos. Os corpos me fascinam, pois é através deste que nos fazemos presentes e vivenciamos este mundo. De forma relevante, Marcel Mauss (1950) postula, em seu trabalho

As Técnicas Corporais2, que o corpo é um conjunto de atributos biológicos, psicológicos e sociais, além de ser o objeto técnico primeiro e mais natural do ser humano. O homem seria então um ser ―bio-psico-social‖. Ou seria essa concepção apenas mais uma ficção que constrói social e culturalmente nossos corpos dessa maneira?

Cultura, objeto tão caro aos antropólogos... Vos convido a refletir junto a mim: será que a cultura, tão incerta, diluída, abstrata e intocável é capaz de modificar algo tão sólido e palpável quanto o corpo? Decerto estudos como o elaborado por Anthony Seeger (1980) sobre o significado dos ornamentos corporais entre os Suyá - tribo indígena sul-americana que utiliza discos labiais e nos lóbulos das orelhas, dentre outras formas de ornamentação corporal, como por exemplo escarificações, - ajudaria a ilustrar essa possibilidade. Para eles, tais ornamentos não são simples decorações, são símbolos que unem os polos dos fenômenos naturais (os órgãos e os sentidos) à ordem social e moral, ou seja, são formas culturais de internalização de valores literalmente corporificados, através da representação simbólica de seus artefatos corporais. Enquanto para nós poderia ser considerado uma forma estranha de mutilação corporal, afinal nossas técnicas e rituais para com o corpo são outros. ―Culturas diferentes enfatizam e definem os significados de órgãos e faculdades de formas diferentes‖ (SEEGER, 1980) e isso impacta diretamente na construção dos corpos.

Seeger analisa, então, o corpo enquanto conjunto de símbolos inter-relacionados dentro de um tempo e um espaço social. Nesse sentido, cada corpo representa um discurso, uma linguagem e, carregado de símbolos, significa e é significado em seu contexto cultural, e somente a partir deste. Destaca-se, ainda, que a construção corporal dos Suyá e sua percepção de corporalidade difere da nossa, uma vez que a própria noção de corpo é histórica, social e culturalmente formada.

Seeger, Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro (1979) aprofundam a questão ao afirmar que o tema da corporalidade se dá dentro de uma preocupação mais ampla: a definição e construção da pessoa pela sociedade, pois a produção física de indivíduos se insere em um contexto voltado para a produção social de pessoas, membros de uma sociedade específica. Eles acrescentam ainda:

2

Marcel Mauss é um importante autor para a Antropologia Clássica. Seu trabalho As Técnicas Corporais se encontra no livro Sociologia e Antropologia, Vol. 2 (1974).

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16

―(...) o corpo, afirmado ou negado, pintado ou perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano. Perguntar-se, assim sobre o lugar do corpo é iniciar uma indagação sobre as formas de construção da pessoa.‖ (SEEGER et al., 1979)

Portanto falar sobre o corpo é falar, também, sobre a sociedade na qual este está inserido. Dessa maneira, defendo que as formas como uma cultura lida ou deixa de lidar com os seus mortos, corpos estes construídos nesta e por esta, diz muito sobre ela.

Mas por que iniciar um trabalho falando sobre a construção do corpo e da pessoa na sociedade indígena? Apenas para fazer jus e reforçar estereótipos sobre o ofício do antropólogo e sua obsessão pelos ―outros‖, tão distantes, ―exóticos‖ e diferentes de nós? Não, eu escolhi trazer essa referência pois pensar a alteridade nos faz refletir mais profundamente sobre nós. E é justamente pensar como nós pensamos, lidamos e produzimos conhecimento sobre os corpos, utilizando-me da morte como via de aproximação da materialidade destes, o cerne da reflexão proposta por este trabalho.

Saber que diferentes culturas tratam e significam seus corpos de maneiras diferentes e que isso afeta sua materialidade, e consequentemente sua aparência, é apenas o início, o qual a referência trazida nos ajuda a ilustrar. Pretendo chegar ainda numa dimensão mais interna dos corpos, e é nesse sentido que falar sobre os ossos se torna um diferencial nesta reflexão.

Para David Le Breton (2011), ―falar do corpo nas sociedades ocidentais hoje é suscitar a evocação do saber anatomofisiológico sobre o qual se apoia a medicina moderna‖. Isso quer dizer que o saber biomédico é a representação oficial do corpo humano na sociedade ocidental moderna, e é a partir deste saber que concebemos, intervimos e produzimos o corpo e seus desdobramentos. Portanto, essa produção de conhecimento científico sobre o corpo se torna objeto imprescindível de análise na construção deste trabalho.

Enfim pretendo explorar/investigar e evidenciar a construção físico-socio-cultural dos corpos a partir de um estudo comparativo entre práticas de Antropologia Forense em dois contextos distintos: no Instituto de Medicina-Legal Afrânio Peixoto (IMLAP), no Rio de Janeiro, e no Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF), em São Paulo. Evidenciando a rotina burocrático-científica nestas instituições, busco traçar uma análise que demonstre como, dos ossos aos corpos, nossa cultura incide sobre a materialidade e estabelece fronteiras entre natureza e cultura, as quais pretendo questionar. Para isso, é preciso problematizar a própria produção científica, tanto biomédica, central nessa reflexão, quanto a própria produção antropológica.

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17 Acerca disso, Dona Haraway (1995), defende que não existiria o olhar ―da ciência‖, mas sim dos cientistas, sempre localizados num espaço geográfico, temporal, cultural, social e etc. Sendo este um trabalho que corrobora com esta premissa, seria incompleto e incoerente não falar sobre mim, meu lugar de fala e este espaço de onde falo e produzo essa monografia.

O Eu, uma apresentação (d)a vida

Sou quem sou, em meu corpo Ou meus versos

Estou Meu olhar me mostrou Confundiu Refletiu Exitou Mas jurou honrar A morte Do alto da vida Ossos e partes Conjuntos, metades Histórias memórias (Des)Humanidades Antropologicas lógicas Sem sentido Um mundo social Funcional? Estrutural? Construído Tocar e sentir Objetos incertos Da vida da morte Tentando (re)existir Pessoas, aves, insetos À deriva, sem sorte Esperando a Biologia Se concretizar No pó da ficção De que algum dia Não precisaria de nós Para se sustentar Se é que somos materiais Com e sem alma ou explicação Lhes apresento um mundo de ossos e corpos,

do qual aqui se encontra apenas uma ponta, um caminho, um fim,

uma introdução...

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18 Falar sobre nós mesmos é difícil. A suposta primazia da objetividade na academia por vezes sublima a subjetividade que nos guia em nossas pesquisas. As normas nos prendem e formatam, mas a fim de romper essa barreira inicio essa seção com este poema autoral que versa sobre mim e o próprio corpo desta pesquisa.

Assim, tomarei este espaço, que teoricamente reflete grande parte do acúmulo de conhecimento de quatro anos de estudos no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), e o construirei, na medida do possível, à minha maneira, recheando de poesia e destaques subjetivos este trabalho acadêmico. Esta será minha forma de resistência à uma lógica produtivista de ensino, que tem adoecido, principalmente mentalmente, grande parte dos estudantes.

Sou paulista, nasci na cidade de São Paulo em 1997, quando a tecnologia da internet ainda estava se desenvolvendo e se popularizando. Decerto não fiz parte da ―geração smartphone‖, que já nasce com um em mãos, mas certamente contei, não muito mais tarde, com a facilidade que estes trouxeram. Sou formada como técnica em Química e quebro os paradigmas da divisão das ciências em Exatas, Humanas e Biológicas. Nem, ao menos, acredito nessa separação, mas se fosse crucial a rotulação eu seria das três áreas, uma vez que graduada em Antropologia, estarei o mestrado em Saúde Coletiva.

É importante dizer que sou branca, economicamente minha família pode ser considerada classe média e isso está diretamente ligado ao fato de eu ter chegado até aqui e poder escrever essa monografia. Infelizmente o ensino superior continua a ser um privilégio de uma classe minimamente mais abastada no Brasil, mesmo com todos os esforços dos últimos governos para tentar mudar essa situação. Ainda assim, a taxa de evasão, principalmente na graduação, é alta, e ao analisar o perfil destes sabemos que a grande maioria é negra e pobre. Corpos socialmente marginalizados.

Além disso, sou uma mulher cisgênera, o que significa que desfruto do privilégio de não ser marginalizada socialmente por me adequar ao gênero feminino que me foi designado ao nascer, a partir da minha genitália. O saber biomédico influencia nossos corpos desde o nascimento, e a divisão binária dos sexos sustenta toda uma estrutura sociocultural de morais e valores, que pretendem estabelecer e reforçar o que é ser homem e o que é ser mulher, bem como a sexualidade de cada um.

Sou lésbica. Desvio do padrão heteronormativo que a sociedade patriarcal brasileira faz questão de reforçar, principalmente através de preceitos cristãos tomados como hegemônicos. Integro, hoje, o Grupo Diversidade Niterói (GDN), um coletivo LGBT+ que se

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19 propõem a refletir sobre essas questões e a realidade de que o Brasil é um dos países que mais mata essa população no mundo, buscando melhorias a partir do movimento social.

Para mim, dizer quem se é, evocando categorias identitárias, é um ato de resistência dentro de um modelo de produção de conhecimento que precisa de mudanças, que precisa considerar as pessoas que o produzem e se tornar ―mais humano‖, principalmente se tratando das Ciências Humanas. Há muito a ser feito, principalmente se considerarmos os retrocessos vividos em 2018, momento de onde escrevo.

É importante situar nosso trabalho. Sendo assim, os situarei brevemente dizendo que a onda conservadora e liberal cresceu no país e culminou na eleição de um homem claramente fascista. Marielle Franco, vereadora negra e lésbica do Rio de Janeiro, foi brutalmente assassinada e nada foi feito quanto à investigação real de sua morte. O número de travestis e transexuais mortxs na rua só aumenta, bem como o número de desaparecidos. E essas são motivações suficientes para trazer o tema dos corpos e da morte nesta monografia.

Meu corpo e meus ossos se transformaram nesse longo processo de construção das análises que aqui apresento. Espero que este corpo (textual), que se confunde ao meu, afete-o minimamente e o faça refletir sobre questões a muito tempo evitadas, mascaradas e renegadas. Afinal, poderia ser o meu corpo no lugar daqueles que confrontei no IML, vítima de homofobia. Mas eu ainda possuo o privilégio da vida e nesse momento o da fala, podendo transformar este espaço em instrumento de luta, além de produção de conhecimento.

Há muita vida na morte, mas há também muita morte em determinadas vidas...

O Corpo, dos fragmentos à vida

Eu seria o primeiro a romper os laços entre a vida e a morte, fazendo jorrar uma nova luz nas trevas do mundo. (...) restabelecer a vida nos casos em que a morte, no consenso geral, relegasse o corpo à decomposição. (...) Coletava ossos dos necrotérios e profanava, com os dedos, os recônditos do corpo humano. (...) O necrotério e o matadouro eram minhas fontes usuais de suprimento, e não poucas vezes minha própria natureza repugnava esse tipo de atividade. Passaram-se os meses de verão, enquanto eu continuava entregue de corpo e alma à minha tarefa. (...) Com uma ansiedade que quase chegava à agonia, recolhi os instrumentos a meu redor e preparei-me para o ponto culminante do meu experimento, que seria infundir uma centelha de vida àquela coisa inanimada que jazia diante dos meus olhos. (...) Mais mutáveis que os acidentes da vida são os da própria natureza humana. Eu trabalhara duramente durante dois anos para infundir vida a um corpo inanimado. Para tanto sacrificara o repouso e expusera a saúde.(...)

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20 Esse conjunto de palavras que aqui se encontra não busca o pó (mesmo que virtual) de uma estante, pois de pó já basta nosso futuro quando nem mesmo nossos ossos suportarem mais habitar este mundo. Tal como Dr. Victor Frankstein, trabalhei dias, meses e anos para criar este corpo (textual), o qual pretendo dar vida a partir da morte.

Pretendo construir o todo textual de forma fragmentada (em subtítulos) preenchendo-o cpreenchendo-om ppreenchendo-oesias diversas que versam spreenchendo-obre a mpreenchendo-orte, além das análises em si. E assim cpreenchendo-ompreenchendo-o preenchendo-os ossos, um a um, talvez formem um corpo que só ganhará vida a partir de cada um que se permitir refletir a partir deste que aqui nasce para subverter uma lógica acadêmica, enquanto pretende mesclar arte (referências poéticas e literárias) e ciência, fazendo-se um corpo potência. Um corpo resistência, cheio de vida enquanto a morte nos espreita tão de perto.

Ao construir minha criatura, retomo a questão proposta por Rodrigues (1983): ―é possível falar cientificamente sobre a morte?", que nos remete à análise crítica que Thomas Laqueur (2001) empreende dessa autonomia adquirida pelo discurso científico biomédico, que incide, não só sobre a constatação da morte, mas sobretudo sobre o corpo. A construção binária da categoria do sexo, enquanto inscrição corporal, também aparece enquanto chave de análise, o que me leva, ainda, a uma reflexão acerca dos discursos de gênero na ciência.

Aproximando-me de uma perspectiva relacionada à Antropologia das Ciências, que ainda vem sendo consolidada enquanto área de estudo, procuro articular diversos elementos para construir uma análise sobre práticas distintas de Antropologia Forense, a partir de um viés social/cultural.

Para tanto, pareceu-me perfeito desenvolver uma etnografia multisituada, no IMLAP, situado na região central do Rio de Janeiro, e no CAAF, na cidade de São Paulo. Articulando estes dois campos, cada um com suas especificidades, busco através de uma análise comparativa levantar questões acerca do corpo, de gênero, da materialidade, da ciência biomédica articulada ao discurso legal e, finalmente, de direitos humanos e políticas públicas.

Optei por realizar duas etnografias, que se interconectam através da análise comparativa. Tomo a liberdade de referir-me a tal enquanto etnografia multisituada, uma vez que o olhar antropológico se volta às mesmas questões em ambos os campos, a fim de construir uma visão complementar daquela que tem sido meu objeto maior de estudos: a Antropologia Forense.

Primeiramente, estabeleci o IMLAP como meu primeiro campo, onde me propus a observar em primeira instancia questões de gênero atreladas ao tema da morte que perpassa todo este trabalho. No entanto, acabei concentrando minhas observações no Laboratório de Antropologia Forense e suas práticas.

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21 A partir deste primeiro contato, surgiu a oportunidade de trabalhar como voluntária em um projeto de identificação de desaparecidos políticos, o Grupo de Trabalho Perus (GTP), que desenvolvia suas atividades no laboratório do CAAF, vinculado a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e a Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Acatei a oportunidade e decidi estender meu trabalho de campo à essa nova experiência, tendo em vista que o GTP traz uma outra perspectiva de Antropologia Forense, o que afeta diretamente sua metodologia.

Sendo assim, explorarei separadamente a escrita etnográfica de cada campo, atendo-me priatendo-meiraatendo-mente à descrição minuciosa e detalhada de cada ambiente e suas respectivas práticas em dois capítulos. Subsequentemente, traço minhas construções analíticas, no terceiro capitulo, comparativamente e dialogando com o referencial teórico. Por fim, apresento meus apontamentos e considerações finais. E assim completo este corpo fragmentado.

(23)

22

CAPITULO I

Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IMLAP), Rio de Janeiro

A Morte Institucionalizada

(...) Já o verme – este operário das ruínas – Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

Antes de tudo, precisamos compreender qual o lugar da morte em nossa sociedade, como ela é tratada e significada por nós, para enfim chegarmos ao(s) corpo(s) e sua materialidade. Philippe Ariès (1982), quando ressalta o corpo e a morte tomados, por si mesmos, como objetos de estudo científico e afirma que "hoje estuda-se a doença e não a morte, exceto no caso muito especial, mais marginal do que outros, da medicina legal" (pg. 387), deixa evidente a associação intrínseca da morte à doença pelas ciências médicas na modernidade.

A partir dessa noção, a causalidade da morte é significada culturalmente, obedecendo a um sistema de classificação de mortes-evento3 que possui uma implicação prática em nossa sociedade (RODRIGUES, 1983). Qualificamos a morte em função de sua causa, que pode ser: natural, provocada por doença ou estado mórbido (velhice); ou não-natural (causas externas), decorrente de lesão provocada por violência (homicídio, suicídio, acidente) ou morte suspeita.

Atestar a causa de uma morte é, segundo a legislação nacional, um ato médico e, portanto, lidar com a morte compete primeiramente às instituições de saúde e em casos de óbito por causas não-naturais, ou seja, que fogem à normalidade, os corpos devem ser encaminhados ao Instituto Médico-Legal (IML), que não deixa de ser uma unidade policial especializada.

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23 É no IML onde os discursos biomédico, jurídico-penal e burocrático se encontram, onde se emprega "o rigor da ciência a favor da justiça"4 e o trabalho de perícia se faz fundamental. Lá o corpo é pensado sob uma lógica cartesiana, a qual distingue alma e corpo, transformando-o em um mero acessório, que, de uma perspectiva anatômica, o torna objeto da ciência médica (LE BRETON, 2011). Isso nos faz refletir sobre quais seriam as implicações dessa configuração ontológica específica, a partir da qual se organizam as relações dentro do Instituto, sobre os corpos.

Lá, foge-se da ideia de censura da morte, trabalhada por Rodrigues (1983), pois lá esta faz parte da rotina enquanto acontecimento e seu tratamento é crucial para a organização, principalmente burocrática, da nossa sociedade. Há, para tanto, uma construção institucional dos mortos, através da qual se atribuem e legitimam significados referentes a estes pela e na burocracia pública que, trabalhando com sua noção estatal de identidade, estabelece o lugar social do defunto (MEDEIROS, 2014).

A pesquisadora Flávia Medeiros (2012), em sua dissertação de mestrado, defende que a função desta instituição estaria atrelada à um processo contínuo de "matar o morto", ou seja, de desvinculação total daquele indivíduo de sua vida social. Esse processo se iniciaria desde a entrada do corpo no IML até o momento da emissão da Declaração de Óbito, na qual se reconhece, perante a lei e o Estado, a morte de alguém. Haveria aí, então, uma liminaridade entre vivos e mortos, visto que as autoridades policiais e funcionários do instituto, é que decidem sobre a "vida dos mortos", tendo de lidar diretamente com os corpos e suas relações sociais, tangenciando-as.

Minha aproximação com o campo se deu através da disciplina Teorias Antropológicas de Gênero, ministrada pelo meu orientador Luiz Fernando Rojo, em 2016, na UFF. Meu trabalho final teve como objetivo investigar a incidência da dimensão do gênero (incluindo classificação do sexo) sobre a materialidade dos corpos. Escolhi o IML central do Rio de Janeiro como alvo de observação, enquanto ponto de congruência entre morte e gênero para desenvolver minhas análises, estabelecendo um recorte específico de corpos culturalmente significados (vítimas ou criminosos) aos quais me detive a observar e estudar.

O Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto (IMLAP) é um órgão público subordinado à Secretaria de Estado de Segurança Pública através da Superintendência de Polícia Técnica Científica, localizado no Centro do Rio de Janeiro. Para lá são encaminhados cadáveres

4 Frase presente em panfletos produzidos pela ABC (Associação Brasileira de Criminalística), em parceria com a APCF (Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais), nos quais destaca-se a importância da perícia na elucidação de crimes.

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24 humanos envolvidos em acidentes ou algum tipo de ocorrência policial para que sejam identificados e determinada sua causa mortis através de procedimentos técnicos no âmbito médico-legal. Além disso, o IMLAP conta com um diferencial: o Serviço de Antropologia Forense, único no Rio de Janeiro, que será central neste trabalho que versa sobre ossos e corpos.

A Travessia ao Mundo dos Mortos

lá embaixo vai ter o que eu acho

Paulo Leminski

O primeiro passo para inserção em campo, foi estabelecer um contato virtual prévio com um dos papiloscopistas legistas5 do IMLAP, intermediado pela pesquisadora Flávia Medeiros, a fim de marcar o melhor dia e horário para minha primeira visita ao Instituto, a qual ficou agendada para o dia 29 de fevereiro de 2015. Após esse primeiro contato com o campo, retornei ainda dia 14 de março de 2015, totalizando duas visitas, e tive, ambas as vezes, como principais interlocutores o referido papiloscopista legista e um perito legista responsável pelo Serviço de Antropologia Forense do IMLAP.

Meu acesso ao campo foi minimamente limitado e não pude, em minhas visitas, assistir aos procedimentos de necropsia, mas todas as informações descritivas e elucidativas dos locais e processos foram construídas através de observação, entrevistas e conversas estabelecidas em campo, com os interlocutores citados e alguns outros eventuais funcionários.

A fim de desenvolver os objetivos de análise propostos da melhor maneira possível, optei metodologicamente pela observação de perto e de dentro (MAGNANI, 2002), além da aplicação de entrevistas sem questionário previamente estruturado (flexível de acordo com o informante).

É importante ressaltar que este estudo antropológico se pretende a partir da relação social dos vivos em sua interação com os mortos, bem como seu processo de significação neste contexto específico. Assim o tipo de observação escolhido reflete o meu esforço em me aproximar do campo e do objeto, estudá-lo e tentar compreendê-lo em seus moldes a partir do

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25 encontro, do estranhamento e da afetação que este produziu em mim, construindo um novo arranjo de percepções e entendimentos da morte e do corpo.

IMLAP, O Submundo

[...] Morrer tão completamente Que um dia ao lerem o teu nome num papel Perguntem: “Quem foi?...” Morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome.

Manuel Bandeira

O Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto, localizado na Av. Francisco Bicalho, nº 300, no Centro do Rio de Janeiro, consiste em um prédio amplo de três andares, sendo somente o primeiro destinado aos atendimentos ao público; o segundo e o terceiro seriam reservados, respectivamente, à administração e aos laboratórios de análises clínicas. O IMLAP é dividido em dois serviços: o Serviço de Clínica Médica, responsável pelas perícias em vivos (corpo delito); e o Serviço de Necropsia, que lida direta e exclusivamente com os mortos. Minha observação limitou-se ao Serviço de Necropsia, restrito a uma parte do primeiro andar, que por sua vez, é divido em diversos setores e laboratórios, que compartilham e fragmentam as funções destinadas ao exame, à identificação e à liberação do cadáver (MEDEIROS, 2014).

Os corpos que chegam ao IMLAP são, antes de tudo, divididos em duas categorias: cadáveres recentes, cuja integridade corpórea encontra-se preservada; e casos especiais (ou difíceis), nos quais o corpo encontra-se consideravelmente deformado, como no caso de cadáveres putrefatos, carbonizados, amputados e esqueletizados. Os primeiros seguem para o necrotério e ficam sob a tutela dos técnicos e auxiliares de necropsia, papiloscopistas e peritos médico-legistas, que efetuarão seus respectivos procedimentos técnico-científicos, necessários para a identificação do morto e determinação de sua causa mortis. E os outros são enviados ao Laboratório de Antropologia Forense, onde os procedimentos de análise são outros. Há, portanto, uma divisão primária dos cadáveres num âmbito geral que se expressa na prática social e na organização burocrática dentro do Instituto.

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26 O Necrotério

O Mapa Olho o mapa da cidade Como quem examinasse A anatomia de um corpo…

Mário Quintana

Primeiramente, ao conhecer as instalações me atentei ao caminho que os cadáveres recentes percorrem no interior da instituição, desde o momento de sua entrada até o de sua liberação para sepultamento. Estes são trazidos pelo ―rabecão‖, veículo do Corpo de Bombeiros responsável pela remoção de cadáveres, e adentram pelos fundos, sendo depositados em uma sala primeira, sem discriminação alguma de sexo ou idade. Ali os corpos ficam expostos lado a lado em macas de metal, cada qual com uma etiqueta presa ao pé, sem qualquer cuidado higiênico-sanitário e são constantemente assediados por moscas. Essa sala dá acesso a um corredor que interliga duas salas de necropsia, uma de radiologia, uma de armazenamento dos instrumentos de papiloscopia, uma de digitação dos laudos de necropsia, reservada aos médicos legistas, e a chamada "geladeira", ao final deste.

Os cadáveres são levados individualmente às salas de necropsia onde peritos legistas, em conjunto com os técnicos e auxiliares, lavam e depois examinam o corpo exterior e interiormente a fim de determinar a causa da morte, documentada através do "Laudo de Necropsia". Em outro momento, o papiloscopista colhe as digitais do defunto e as leva para a sala de Identificação Necropapiloscópica, localizada fora da área do necrotério, onde se realiza o trabalho de comparação das digitais com as que constam nos documentos oficiais de identificação (comumente RGs) do suposto indivíduo. Findados estes procedimentos, se necessário examinar detalhadamente possíveis fraturas ósseas, os corpos seguem antes para a sala de radiologia, para fins de complementação do ―Laudo de Necropsia‖. E, por fim, são armazenados na "geladeira", que consiste em uma grande sala totalmente revestida em aço inoxidável e altamente refrigerada, onde os corpos são armazenados em estruturas de aço que se assemelham a prateleiras que se estendem por toda a extensão das paredes tanto horizontal, quanto verticalmente. Interessante ressaltar que nesta sala também não há divisões em função de sexo ou idade. Lá permanecem os corpos até que todos os procedimentos burocráticos tenham sido concluídos para a sua liberação. Saem, então, pelo mesmo local de entrada, em macas metálicas, e são encaminhados diretamente para os carros funerários.

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27 Gostaria de me estender um pouco mais sobre a sala de Identificação Necropapiloscópica, onde o papiloscopista, que só lida com cadáveres recentes, deve preencher o "Laudo de Identificação Necropapiloscópica", ao qual se anexa uma ficha, onde o mesmo coleta as impressões digitais, que serão devidamente comparadas, comprovando ou não a identificação do cadáver. Um fato específico me chamou a atenção: há uma distinção de cores dessas fichas em função do sexo, sendo a vermelha destinada às mulheres, e a preta aos homens. Meu interlocutor ao notar meu interesse afirmou morrerem (de causas externas, não podemos nos esquecer) muito mais homens do que mulheres, por preencher muito mais fichas pretas. Quando questionado acerca de casos de indivíduos intersexuais6, afirmou ter de levar em consideração aspectos sociais apontados pelos familiares, que vêm fazer seu reconhecimento, na hora do preenchimento dos laudos, caso não conste nos documentos.

De forma geral, os corpos são categorizados, quando possível, em uma "Guia de Remoção de Cadáver", onde busca-se especificar: sexo, cor, idade, cabelo, barba, nacionalidade, cicatrizes, tatuagens, defeitos físicos.

O Laboratório de Antropologia Forense

ANATOMIA É triste ver-se o homem por dentro: tudo arrumado, cerrado, dobrado como objetos num armário.

[...]

Cecília Meireles

Posteriormente, busquei analisar o espaço do Serviço de Antropologia Forense localizado, juntamente com a sala de guarda de evidências criminais, em um corredor anexo ao corredor central, que interliga todas as salas citadas do necrotério. Habitado principalmente por cadáveres esqueletizados, conta com um laboratório simples e uma sala anexa, reservada à digitação do "Laudo de Exame Antropológico", onde se traça um perfil biológico, amparado em medições osteométricas comparadas e analisadas estatisticamente. É dessa forma mais "exata" que se faz a perícia neste ambiente, diferente do complexo procedimento biomédico desenvolvido nas salas descritas anteriormente.

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Pessoas que nascem com genitália e/ou características sexuais secundárias que fogem aos padrões morfológicos socialmente determinados para os sexos masculino ou feminino.

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28 Uma informação importante também seria o fato de que os antropólogos forenses no Brasil seriam todos médicos ou odontólogos de formação, o que já exprime uma problemática: a de que a episteme dominante seria a do discurso médico-científico, faltando, portanto, uma perspectiva antropológica social/cultural nas análises feitas.

O Serviço de Antropologia Forense tem como função classificar: sexo, idade, estatura e ancestralidade (cor presumida). Todas essas categorias são entendidas como fatores de individualização, que constróem o ―perfil biológico‖ dos indivíduos, importantes no processo de identificação legal dos corpos.

O laboratório é habitado por diversos objetos e instrumentos imprescindíveis para as análises, tais como: livros e manuais antigos, réguas, paquímetros, escalas, papel, lápis, caneta, mesas retangulares de aproximadamente 2 metros de comprimento, comumente sobre elas uma toalha azul ou preta, câmera fotográfica, caixas destinadas ao armazenamento de ossadas não identificadas, e, é claro, ossos.

Observa-se que todos os esforços periciais giram em torno da identificação individual de cada um dos corpos. Há, porém, um grande choque epistemológico, ainda fundamentado na oposição natureza/cultura, entre as Ciências Forenses e as Ciências Sociais, cada qual norteada por suas configurações ontológicas específicas, evidenciado principalmente na divergência em suas as definições do conceito de identidade. A este estaria profundamente atrelada a discussão de gênero, segundo Butler (2003), que em sua teoria considera que a identidade seria algo construído por diversos fatores socioculturais, perpassando por uma dimensão interseccional que tornaria o gênero indissociável de outros fatores como classe e raça, por exemplo. Isso se choca com o modo como esse mesmo conceito é tratado dentro do IML, que entende a identidade como um fato e não uma convenção, consistindo em ―uma soma de fatores que tornam uma pessoa igual a ela mesma e diferente de todas as outras, ou seja, um conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa‖ (COUTO, 2011).

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CAPITULO II

Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF), São Paulo

A Vala Clandestina de Perus

Suas armas foram partidas ao mesmo tempo que seu corpo. E, se acaso sua alma existe, com melancolia reorda o entusiasmo de cada morto.

Cecília Meireles

Em 1990, foi descoberta no Cemitério Dom Bosco, localizado em Perus, zona norte de São Paulo, uma vala clandestina da década de 1970, durante a qual ainda estava em vigência a Ditadura Militar no Brasil. Foi justamente nesta época que o país assistiu à uma mudança nas formas de eliminação pela repressão política: de mortos oficiais reconhecidos pelos órgãos repressivos a desaparecidos, cujo destino não se sabe ao certo (HATTORI et al, 2016). Deste modo, a abertura da vala trouxe a possibilidade de resgate e um pouco mais de esclarecimento dessa sombria parte de nossa história, através do processo de identificação das mais de mil ossadas exumadas.

A partir de então, suscitaram-se diversos processos judiciais e investimentos em pesquisas e esforços para dar conta do tratamento de todo esse material, que envolve não só os ossos, mas também um série arquivos e documentos que ajudam a compreender a malha burocrática através da qual fez-se desaparecer indivíduos que eram perseguidos pelos militares, em São Paulo. Além disso, através do processo de identificação das ossadas, abria-se a possibilidade de colocar fim ao sofrimento dos familiares daqueles que ficaram conhecidos como desaparecidos políticos, muitos dos quais até hoje buscam saber o destino de seus entes. No entanto, pouco mais de 25 anos após a descoberta da vala, o processo de identificação das ossadas segue a um ritmo lento.

Atualmente, a análise dos remanescentes ósseos humanos da Vala Clandestina de Perus está sendo realizada por uma equipe multidisciplinar, contratada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, conhecida como Grupo de Trabalho Perus (GTP), constituído em 2014. Este projeto de identificação das ossadas e busca por aproximadamente 45 desaparecidos políticos, que segundo estudos preliminares possuem maior probabilidade terem sido inumados em Perus, possui um fundo extenso de pesquisas e

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30 aplicação de uma gama de conhecimentos específicos, visando a especificidade desse caso, que possibilitou sua existência.

Deste empreendimento científico, onde não predomina somente a epistemologia médica e odontológica, como é usual e exclusivo no Brasil, obteve-se um projeto estruturado sob uma nova abordagem teórico-metodológica, guiada pela ótica latino americana de Antropologia Forense, a qual envolve basicamente quatro etapas para atuação nestes contextos: 1) Pesquisa Preliminar, 2) Levantamento de dados Ante-Mortem, 3) Análise Post-Mortem, 4) Análise genética (HATTORI et al, 2016). Este projeto, em sua terceira etapa, tem sido realizado por arqueólogos, bioantropólogos, historiadores, fotógrafos, voluntários de diversas instituições de ensino do país, médicos e odontólogos legistas (muitos provindos dos IMLs de todo o Brasil) em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), no Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF), espaço cedido pela universidade.

Importante ressaltar que este trabalho tem seu foco somente em parte da terceira etapa, que envolve: abertura das caixas que contém os remanescentes ósseos, limpeza dos ossos, análise bioantropológica e guarda.

Vestindo o Jaleco

(…) A maior pena que eu tenho, punhal de prata, não é de me ver morrendo, mas de saber quem me mata.

Cecília Meireles

Como citado anteriormente, a partir do primeiro contato que tive com o campo no IML, surgiu um convite para que eu integrasse o GTP como voluntaria, auxiliando na abertura das caixas e higienização dos ossos. Acatei essa oportunidade, aproveitando-me do fato de ser de São Paulo e minha família residir lá. Fui convidada a uma primeira visita, ao laboratório, onde tive um breve ―curso‖ preparatório de algumas poucas horas, ministrado por alguns integrantes do GTP, com o auxílio de uma apresentação de slides, cuja finalidade era ―sensibilizar‖ e preparar os voluntários na lida diária com os ossos, além de transmitir os cuidados necessários a serem tomados e a história da vala e toda a tragetória que aqueles corpos percorreram até chegar lá, crucial para integrar e sintonizar a equipe sob um objetivo comum.

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31 Após esse momento, fui informada de que eu até poderia auxiliar naquele mesmo dia, mas que eu precisaria de um jaleco para adentrar o laboratório e manusear os ossos. Como eu não possuía um, voltei no dia seguinte após providenciar um jaleco branco simples. Rememorei os tempos de técnico, onde outrora o jaleco me outorgava uma autoridade outra que nada se assemelhava àquele contexto. O laboratório agora era outro, não mais o de Química, repleto de vidrarias e substâncias aguardando serem misturadas e descobertas, mas o tão sonhado laboratório de Antropologia Forense, onde a dimensão biológica era mais forte que a ―exata‖ e onde eu lidaria com ―substâncias‖ completamente distintas e vivas, de certa maneira, em termos de memória. Além dos instrumentos outros que me auxiliariam na minha rotina de trabalho.

Para minha surpresa, não era muito incomum que aqueles que trabalhavam lá escolhessem utilizar jalecos de outras cores, principalmente preto. Nesse momento, refleti sobre o contraste da ascetismo médico, que tanto presa pela higiene com seus jalecos brancos. Lá, quanto mais sujo o jaleco, mais a vida estava sendo extraída daqueles fragmentos mortos. A tarefa de limpar os ossos, ironicamente, nos sujava, e o jaleco servia justamente para proteger nossas vestes, além é claro das luvas que devíamos utilizar diariamente. Era crucial usar as luvas para poder tocar os ossos. Nunca antes um jaleco havia sido tão útil. Chegava a ser simbólico que médicos mantivessem tão limpos e brancos seus jalecos, assegurando a vida, enquanto nós usáva-mos preto para lidar com a morte. Foi então que percebi a importância, sobretudo simbólica de um simples jaleco, que automaticamente lhe confere um status de ―detentor (e produtor) do conhecimento‖, mesmo que por baixo dele haja uma pessoa leiga.

Sendo assim, utilizei a observação participante para produzir esta etnografia, tendo em vista minha atuação como voluntária no GTP durante 5 meses (de agosto a dezembro de 2016), por pelo menos 3 dias por mês, auxiliando na abertura das caixas e limpeza dos ossos. Além de conversas informais e entrevistas sem questionário previamente estruturado.

Lavando Objetos Mortos e Memórias Vivas

Lego-te os dentes. Em ouro, esmalte e marfim. Entre sarrafos e palha O baço dos meus ossos. Procura na tua balança

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32 Minha couraça. Meu bandolim. Escrita e torso. Pesa-me a mim. Minhas funduras E o gume do meu desgosto. Procura, na minha hora, Entre sarrafos e palha O que restou de mim À tua procura.

Hilda Hilst

Ao adentrar o laboratório todos os funcionários e voluntários devem assinar o livro de presenças. Este serve como uma espécie não só de memória institucional, mas de controle das pessoas que assistem o projeto, que fazem com que haja certa rotatividade na composição da equipe. Cada um desempenha uma função nessa etapa de análise post mortem, no entanto há uma considerável mobilidade quanto ao que se realiza durante uma jornada de trabalho no GTP. A equipe é multidisciplinar, o que faz com que pessoas com conhecimentos diferentes se juntem em prol do mesmo objetivo e a troca desses conhecimentos é fundamental.

Antes de tudo, é necessário elucidar o caminho que as ossadas percorrem no local de trabalho, desde a abertura da caixa, onde são armazenados, até sua guarda. Mas para que se compreenda melhor, o prédio do CAAF conta com: uma sala de recepção repleta de cadeiras; uma copa, onde os funcionários e vigias podem fazer suas refeições; uma pequena sala de guarda de materiais de limpeza; uma ante-sala onde há um armário, para que as pessoas possam guardar seus pertences e colocarem seus jalecos; um banheiro unissex com duas cabines; o laboratório, que conta com duas pias industriais, duas mesas grandes de organização e análise das ossadas, três mesas com computadores, as fotos dos rostos dos 45 desaparecidos políticos procurados coladas na parede esquerda, uma pequena sala reservada ao corte e extração do DNA para análise/identificação genética (que ainda não foi iniciada), e uma porta, que revela uma escada que dá acesso ao andar inferior. O andar inferior possui uma sala com senha que contém as caixas, uma sala de secagem dos ossos e um espaço arejado e bem iluminado, onde se abrem as caixas.

O processo de abertura das caixas é repleto de especificidades e é sempre realizado por três ou quatro pessoas: a coordenadora de limpeza, um dos fotógrafos e um ou dois voluntários. Cada caixa recebe um número de identificação e o mesmo deve estar presente durante todo o caminho que os ossos que cada uma guarda percorre. As caixas são abertas uma a uma. Apoia-se a caixa sobre uma mesa e o processo se inicia com a coordenadora

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33 supervisionando e produzindo um relatório a cada caixa aberta. A caixa é fotografada com uma plaquinha indicando sua numeração e uma escala em papel.

Os voluntários abrem as caixas e tiram de dentro diversos sacos, que guardam diferentes partes do esqueleto humano. A cada saco retirado uma nova fotografia é realizada. Há sempre, também, a possibilidade de serem encontrados objetos (como, por exemplo, medalhas, botões, catéteres e etc.) ou porções de cabelo junto aos ossos, na caixa. Estes são devidamente ensacados, fotografádos e acompanham os ossos até que voltem novamente à caixa para a guarda. Muitas pessoas passam mal, principalmente ao verem cabelos e precisam até mesmo se retirar do local e pedir para que algum outro colega dê continuidade à atividade. Tais coisas, personificam aqueles ossos, tão objetificados no dia a dia, e resgata o tabu da morte, causando emoções como asco, nojo, aflição, agonia e etc.

Enfim, os sacos são abertos e os ossos em si, após serem fotografados, são organizados em uma grande peneira retangular marcada com a numeração da caixa. Os ossos são devidamente contados para o relatório e ao final do processo temos como resultado: um relatório de duas páginas (uma folha frente e verso) que também é fotografado, diversas fotografias de cada passo realizado para a abertura da caixa e dos sacos e o chamado "travesseirinho", uma categoria local utilizada para se referir ao embrulho em formato de travesseiro que se faz de todos os sacos vazios, os quais estavam presentes na caixa. Segundo a coordenadora e o fotógrafo, quando questionados, a importância desse "travesseirinho" está em se guardar provas criminais, já que todo o processo de tratamento destas ossadas possui implicações jurídicas.

Após a abertura, a peneira contendo os ossos é levada para o laboratório, onde os ossos passam por um processo de lavagem. Na pia, os voluntários utilizam bacias e escovas de dentes para a lavagem que é feita apenas com água, para não danificar o material genético. Feito isso, os ossos molhados voltam para a peneira que segue para a sala de secagem, onde as peneiras ficam suspensas em uma espécie de estante, durante um dia, para que a água escorra e evapore, até que os ossos estejam completamente secos.

Após a secagem, os ossos seguem para as mesas de análise onde peritos médicos ou odontólogos-legistas em conjunto com os pesquisadores antropólogos forenses do projeto remontam o esqueleto humano de cada remanescente a partir do material ósseo encontrado em cada caixa. Feito a organização dos ossos sobre a mesa, alguns fragmentos ósseos são colados em seus lugares, há uma certa reconstituição dos ossos fragmentados, e a análise se inicia a partir do preenchimento de um laudo/relatório, que reúne diversos gêneros de informação que aquele esqueleto transmite. Características como presença de cabelos, lesões

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ante mortem, patologias, arcada dentária, medições ósseas que remetem ao sexo, idade e

estatura do indivíduo, dentre várias outras, são levadas em consideração e anotadas detalhadamente.

Os esqueletos são fotografados na mesa de análise juntamente com seu número de identificação. Depois seguem para a mesa de fotografia de detalhes relevantes para a análise, como por exemplo perfurações e lesões ante mortem significativas, indicativos de patologias ósseas, dentre outros. Ali mesmo, os ossos são embalados em um saco plástico resistente e guardados novamente em suas caixas de origem, que já foram devidamente lavadas e secadas pelxs voluntárixs. As caixas voltam para a sala de guarda e assim a "peregrinação burocrática" (FREIRE, 2015) das ossadas termina. Cada caixa, ao fim deste processo, resulta em uma pasta com o número da caixa, contendo todos os relatórios e laudos de análise produzidos e qualquer outro documento relevante referente à caixa.

Cada número supostamente refere-se a um indivíduo (mesmo que haja ossos a mais), que precisa ser resgatado e é construído, não só burocraticamente, no cotidiano. Antes há o esforço de percebê-los enquanto pessoas dotadas de relações sociais, para depois estabelecê-los enquanto indivíduos portadores de direitos, num esforço de fazer valer tais direitos mesmo após a morte, reconhecendo-os enquanto humanos (FREIRE, 2015; VIANNA & FARIAS, 2011). Todo esse esforço existe pois há uma demanda, uma busca por justiça por parte dos familiares dessas vítimas do Estado, que outrora lhes tirou a qualidade de humanos, dentro do sistema classificatório que os deixou de fora da classe de seres que mereciam ter seus direitos preservados, assim como acontece ainda hoje de modo mais encoberto com os jovens das periferias, negros, pobres (FERREIRA, 2013; MEDEIROS, 2014; VIANNA & FARIAS, 2011), bem como travestis e transexuais que morrem todos os dias em busca de seus direitos, dentre eles o de simplesmente existir/viver (FREIRE, 2015).

Esses ossos, portanto, se transformam em corpos documentais, legitimando os direitos que não foram respeitados em vida, ressignificando e reclassificando esses sujeitos, que a burocracia ajuda a construir (FERREIRA, 2013; MEDERIOS, 2014). Os documentos mais relevantes são as próprias ossadas (em seus detalhes e estado de conservação), as fotografias e os relatórios gerados em cada passo, que juntos configuram sujeitos legítimos de direitos, como diz Lucas Freire (2015): "as peregrinações burocráticas fazem parte de um processo que produz 'sujeitos legítimos' para reclamar direitos na esfera judicial".

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CAPITULO III

Corpos Múltiplos

Laboratórios de Corpos

Morrer é nada, passado, Mas a vida inclui viver A morte multiplicada – sem O alívio de morrer

Emily Dickinson

Ao tratar de dois laboratórios, este prórpio termo para se referir ao ―local onde se produz ciência‖ pode ser tomado como um ponto congruente entre ambos os contextos. Destaco a rotina institucional burocrática, totalmente documentada para fins de comprovação científica, e a fragmentação de tarefas entre os que lá trabalham e dão vida àquele lugar e àqueles objetos específicos que lá se encontram. Como diria Bruno Latour (1997): ―dir-se-ia que o trabalho de todos eles é guiado por urn campo invisível, ou que eles formam um quebra-cabeça quase terminado e que talvez chegue a se completar‖ (p. 11).

Entretanto, no Serviço de Antropologia Forense do IML apenas, no máximo, duas pessoas (médico ou odontólogo forense e estagiário), dividem as tarefas de um laboratório de Antropologia Forense, enquanto no CAAF o laboratório era habitado por mais de cinco profissionais (equipe multidisciplinar), com conhecimentos específicos diversos.

Os corpos são produzidos cientificamente a partir de manuais e livros de referência antigos, dificilmente revisados, que muitas vezes não condizem com a realidade material confrontada, e os corpos são enquadrados em padrões fictícios criados em outra época, lugar e etc. Isso acontece com menos intensidade no GTP por se tratar de uma equipe multidisciplinar, voltada a um caso específico de identificação de pessoas. Em contrapartida, no IML os funcionários que lá trabalham, após serem aprovados no concurso público, passam obrigatóriamente por, pelo menos, seis meses de estudos na Academia de Polícia, na qual policiais especializados ensinam um ofício, principalmente quanto à metodologia a ser utilizada, a novos policiais, sempre pautados nos mesmos referenciais teóricos tanto biomédicos, quanto jurídicos.

Enfim, a ciência opera com a criação de padrões para classificar os corpos, os quais ela encarrega de criar um ―amparo (justificativa), supostamente, material‖. E assim os corpos

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