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Justiça restaurativa no âmbito da mediação penal: uma proposta para o Brasil

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Academic year: 2021

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TAINARA MARIANA MALLMANN

JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO DA MEDIAÇÃO PENAL: UMA PROPOSTA PARA O BRASIL

Primeiro capítulo da monografia final do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, como requisito para a aprovação no componente curricular Pesquisa Jurídica.

DCJS - Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientadora: Dra. Joice Graciele Nielsson

Três Passos (RS) 2019

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RESUMO

A justiça restaurativa no âmbito da mediação penal, pode ser vista como uma alternativa para tratar da criminalidade de “menor gravidade”, auxiliando na diminuição da superlotação dos presídios brasileiros. O problema que se coloca, é justamente como a mediação penal restaurativa poderia caracterizar uma proposta inovadora em âmbito interno. A mediação penal no âmbito da justiça restaurativa, já se propagou em diversos países da Europa, e consiste em uma forma diferenciada de controle social, centrada especialmente na reparação do dano causado à vítima, e na responsabilização do ofensor. No processo, a vítima ganha voz e participa ativamente, e o infrator terá a oportunidade de desenvolver sentimentos de empatia, na medida em que escutará o que a vítima tem a dizer, e poderá perceber os danos que seu ato causou. A mediação penal em âmbito restaurativo, pode ser considerada como uma proposta adequada para o Brasil, entretanto, observando a experiência de Portugal, que já possui legislação regulamentando a prática, e um programa de mediação penal diretamente interligado a justiça comum, devemos examinar o que não deu certo e porque a prática não foi difundida da maneira esperada, para construir uma forma diferenciada de materializar a mediação penal restaurativa em âmbito interno. A pesquisa teórica será do tipo exploratória. Na sua realização será utilizado o método de abordagem hipotético-dedutivo, com os seguintes procedimentos: seleção bibliográfica, leitura e fichamento e reflexão crítica sobre o material selecionado.O método de interpretação será da interpretação sociológica por meio da análise prática como condição da historicidade.

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ABSTRACT

Restorative justice within the scope of criminal mediation can be seen as an alternative to treat “less serious” crime, helping to reduce the overcrowding of Brazilian prisons. The problem it poses is just like a restorative criminal mediation that can characterize an innovative proposal in the internal sphere. A criminal mediation in the context of restorative justice, which has already spread in several countries in Europe, and consists of a differentiated form of social control, focusing especially on repairing damage caused to the victim and holding the offender accountable. In the process, a victim gains a voice and actively participates, and the offender has the opportunity to develop feelings of empathy, measured in that he will listen or that a victim has a signal, and can perceive the damage that his act causes. A criminal mediation in the restoration sphere, can be considered as an adequate proposal for Brazil, however, observing an experience in Portugal, which already has regulations regulated in practice, and a criminal mediation program directly interconnected in the common justice, using what is not it worked and because the practice was not disseminated in the expected way, to build a differentiated way of materializing restorative criminal mediation internally. Theoretical research will be exploratory. In its realization, the hypothetical-deductive approach method will be used, with the following procedures: bibliographic selection, reading and fiction and critical reflection on the selected material. The method of interpretation will be sociological interpretation through practical analysis as a condition of historicity.

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SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO ... 5

1. JUSTIÇA RESTAURATIVA: TROCANDO AS LENTES DO PROCESSO PENAL PUNITIVISTA. ... 7

1.1 Fundamentos da Justiça restaurativa: lente retributiva versus lente restaurativa ... 7

1.2 A implantação da Justiça Restaurativa no Brasil ... 17

1.3 Regulamentação legal da justiça restaurativa ... 22

2. JUSTIÇA RESTURATIVA E MEDIAÇÃO PENAL EM PORTUGAL E NO BRASIL ... 29

2.1 A justiça restaurativa e a mediação penal em Portugal ... 29

2.2 Regulamentação legal da mediação penal em Portugal ... 35

2.3 Possibilidades e desafios da Mediação Penal no Brasil ... 41

CONCLUSÃO ... 54

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INTRODUÇÃO

A justiça restaurativa consiste em um modelo alternativo de resolução de conflitos, no qual participam vítima, infrator, comunidade e um facilitador. Poderá ser materializada através da mediação penal, na qual o mediador auxilia as partes a encontrarem uma solução reparadora. Portanto, o enfoque da presente monografia, é discutir sobre uma possível materialização deste modelo restaurativo no âmbito da mediação penal, como uma proposta inovadora para o Brasil.

Frente a este cenário, o problema que se coloca, é como a justiça restaurativa no âmbito da mediação penal poderia se caracterizar uma proposta inovadora e positiva para o Brasil? Diante deste problema, considerou-se, como hipótese inicial que a mediação penal interligada a justiça restaurativa, enquanto prática centrada na responsabilização do ofensor, é uma proposta interessante para o Brasil.

Visando alcançar uma resposta apropriada, o objetivo principal do trabalho consiste em analisar a experiência de Portugal na mediação penal restaurativa, para que em última instância se possa perceber se a proposta será adequada para o Brasil. Como objetivos específicos, tem-se a caracterização da justiça restaurativa como uma forma de resolução de conflitos sociais, bem como a conceitualização da mediação penal e a análise da experiência portuguesa, tudo isso visando explorar a possibilidade de implementação no Brasil.

No primeiro capítulo, busca-se caracterizar a justiça restaurativa sob uma perspectiva minimalista e maximalista, bem como, descrever o crime sobre uma lente retributiva e restaurativa. Posteriormente, será feita uma análise do instituto internacional que regulamenta a justiça restaurativa, nomeadamente a Resolução 2002/12, elaborada pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas – ONU, que resultou mais tarde, na elaboraçãoda Resolução 225/16 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça.

No segundo capítulo, delimitar-se-á no que consiste a mediação penal e como é operacionalizada em Portugal, esmiuçando os artigos de lei que regulamentam a prática, a iniciar com a recomendação nº (99) 19, que impulsionou a criação da Lei nº 21/2007. Posteriormente, será explicitado os motivos pelos quais a mediação penal em âmbito

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restaurativo não obteve o alcance desejado em Portugal. Por fim, coloca-se em pauta os principais desafios que as práticas restaurativas enfrentam para a implementação no Brasil.

Para obter uma resposta adequada a essa questão, será utilizado o método hipotético dedutivo, mediante a análise de artigos científicos e institutos legais que discorrem sobre o tema.

A mediação penal é considerada uma forma diferenciada de controle social, presente principalmente nos países da Europa. O que a presente monografia busca analisar, é a possibilidade de trazer esta ideia para o Brasil, nas hipóteses de crimes menores, como forma de resposta estatal voltada para a diminuição dos índices de reincidência e superlotação nos presídios brasileiros.

Esta justiça, vista por muitos indivíduos como “soft”, traz uma série de aspectos positivos, porque estabelece o diálogo entre vítima e infrator, e integra a comunidade na resolução do conflito.

No entanto, a experiência portuguesa não tem sido perfeita, havendo uma resistência por parte da população em difundi-la, sendo visualizada pela maioria como uma justiça mais branda. Para que esta alternativa chegue ao Brasil e de fato tenha a capacidade de fazer a diferença, é necessário demonstrar para a população que terá aspectos positivos para a vítima, infrator e comunidade.

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1. JUSTIÇA RESTAURATIVA: TROCANDO AS LENTES DO PROCESSO PENAL PUNITIVISTA

Nesta unidade, buscar-se-á estabelecer um conceito de justiça restaurativa, diferenciando a lente retributiva da lente restaurativa. Posteriormente, procede-se em um apanhado histórico para elencar as legislações pertinentes acerca da temática, nomeadamente a Resolução 2002/12 da ONU e em âmbito interno a Resolução nº 225 do CNJ.

A conceituação do termo ‘justiça restaurativa’ tem sido problemática ao longo dos anos. Para explanar essa questão é necessário invocar a perspectiva minimalista e maximalista, defendidas, respectivamente, por Tony Marshall e Balzemore e Walgrave.

O nosso sistema penal realiza-se, essencialmente, sob uma perspectiva retributiva, posto que, o crime é considerado uma violação contra o Estado. Este modelo apenas procura saber quem transgrediu a norma para aplicar a respectiva punição. De outro norte, temos a lente restaurativa, que considera o crime uma violação ao indivíduo, e por isso integra a vítima na resolução do conflito, objetivando a responsabilização do ofensor.

O modelo restaurativo surge primeiramente na Europa, Nova Zelândia, Estados Unidos e Canadá. Em um momento posterior traz reflexos em âmbito interno, o que resulta na edição da Resolução nº 225 do CNJ, refletindo a tendência internacional que já tinha se concretizado, inclusive, com a Resolução 2002/12 da ONU.

1.1 Fundamentos da Justiça Restaurativa: lente retributiva versus lente restaurativa

A justiça restaurativa é uma prática que ganhou força nas últimas décadas. Trata-se de um método inovador para a resolução de conflitos, com o objetivo de restaurar as vítimas e encorajar os infratores a se responsabilizarem pelos danos causados, visando reintegrá-los em sociedade (DOOLIN, 2015).

A justiça restaurativa surgiu como meio para atender as necessidades das vítimas, dos ofensores e da comunidade. Existem vestígios de práticas restaurativas no Código de Hammurabi, “o qual indicava medidas a restituição para as vítimas de crimes contra o patrimônio. Mas o modelo aplicado atualmente nasceu em meados da década de 1970, através

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de um psicólogo americano, Albert Eglash”. Assim, de acordo com Braga e Soares (2014, p. 142-143):

O objetivo do novo paradigma de justiça discutido neste trabalho é a reparação e cura para as vítimas. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração – ao invés de mais violação – deveriam contrabalançar o dano advindo do crime. Destaca-se que a cura para as vítimas não significa esquecer ou minimizar a violação. A intenção é provocar um senso de recuperação, numa forma de fechar um clico. A vítima supera o trauma se desconecta do dano que lhe causou sofrimentos e finalmente voltar a sentir que a vida faz sentido e que ela está segura e no controle. Enquanto o ofensor deveria ser incentivado a mudar. A cura abarca um senso de recuperação e esperança em relação ao futuro. Importante salientar que a cura não é somente para as vítimas, mas também para os ofensores, que devem ser responsabilizados, mas também ter atendidas as suas necessidades, a fim de que sejam resgatados neles princípios morais que sustentam o convívio social. Permite que através da responsabilização obtenham-se oportunidades para serem reintegrados na sociedade.

Uma das principais características dessa prática, é a informalidade relativa com o uso de um procedimento comunitário, no qual participam as pessoas envolvidas no conflito (na Justiça Criminal tradicional, há um ritual solene e público). “Isto porque as sessões ocorrem, preferencialmente, em locais comunitários, sem o ritual solene e o ambiente pesado do cenário jurídico” (PERES, 2015, p.02).

Frequentemente citada como a definição mais consagrada de justiça restaurativa, é a de Tony Marshall: “Restorative justice is a process whereby parties with a stake in a specific offence collectively resolve how to deal with the aftermath of the offence and its implications for the future”1 ( MARSHALL, 1999, apud DOOLIN, 2015, p.428).

Trata-se de uma definição minimalista, de caráter procedimental, na medida em que para Marshall, mais importante que a solução reparadora é a forma com que a obtemos. Sob essa perspectiva, não é permitido o uso de coação no processo restaurativo, tendo em vista a necessidade de estabelecer uma comunicação entre as partes, que não será alcançada mediante ausência de voluntariedade. Isto tem logo uma consequência prática, diminuindo o número de casos em que a Justiça restaurativa mostra-se adequada (BENEDETTI, 2009).

1 Tradução livre: “A justiça restaurativa é um processo através do qual todas as partes interessadas em um crime específico se reúnem para solucionar coletivamente como lidar com o resultado do crime e suas implicações para o futuro.” Perspectiva minimalista.

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Para Katherine Doolin (2015), a definição de Marshall não dá conta de esclarecer todo o alcance da justiça restaurativa, tendo em vista que não menciona valores que devem guiar a resolução do conflito, tampouco sua finalidade reparadora de danos.

Definição de perspectiva contrária a esta, é a de Balzemore e Walgrave: “every action that is primarily oriented towards doing justice by restoring the harm that has been caused by a crime”2 (BALZEMORE; WALGRAVE, 1999, p.48 apud BENEDETTI, 2009, p.45).

Este conceito é de perspective maximalista, focado no resultado restaurativo do processo. Sob essa perspectiva, legitima-se o uso de coação para a materialização da justiça restaurativa, tendo em vista que a solução reparadora nem sempre é alcançada em processos voluntários. Como consequência, aumenta-se o número de casos em que a justiça restaurativa mostra-se adequada (BENEDETTI, 2009).

Pontue-se que a perspectiva minimalista, defendida por Tony Marshall, é atualmente dominante quando o assunto é a definição do termo ‘justiça restaurativa’ (SLAKMON; PINTO, 2005).

A justiça restaurativa é “um movimento social global que apresenta enorme diversidade. O seu objetivo maior é transformar a maneira como as sociedades contemporâneas percebem e respondem ao crime e a outras formas de comportamentos problemáticos” (JOHNSTONE; NESS, 2007, p. 05 apud ACHUTTI, 2013, p.156).

A justiça restaurativa pode ser considerada “um processo que traz os atores e a comunidade afetada por uma situação problemática de volta à condição na qual o problema surgiu”, funcionando a partir do envolvimento direto das partes, que são responsáveis por encontrar uma solução para o caso (RUGGIERO, 2011, p. 101, apud ACHUTTI, 2013, p.158).

Faz-se imprescindível o envolvimento das vítimas e da comunidade no âmbito da justiça restaurativa, bem como, a definição clara do papel do estado neste processo. O ente governamental, não deve envolver-se de forma a tirar os valores restaurativos da prática, no entanto, deverá ser um apoiador e investidor de recursos, ajudando a criar as condições pelas 2 Tradução livre: “Toda a ação que é primariamente orientada na direção de fazer justiça por meio da restauração do dano que tenha sido causado pelo crime”.

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quais as vítimas, os infratores e a comunidade, em situações apropriadas, possam estar envolvidos na tomada de decisões sobre os resultados dos conflitos, bem como, assegurar as garantias processuais aos indivíduos (DOOLIN, 2015, p.430). In verbis:

Taking into account the importance of involving victims and communities in restorative justice, the role of the State should be defined in a way that does not intrude or take away from restorative values and the presence of the State party should not markedly affect the collaborative process. […] The State as an indirect or secondary stakeholder has a continuing and necessary role in enforcing legal safeguards and due process guarantees of victims and offenders. The State also has a vital role in providing the resources to support restorative practices and helping to create the conditions whereby victims, offenders and their communities, in appropriate situations, can be involved in the decision-making about case outcomes.3

A chave para alcançar a restauração no processo, está em fortalecimento, diálogo, negociação e acordo. Os profissionais que trabalham na área da justiça restaurativa, não devem dominar a sessão, tendo em vista que as vozes das partes envolvidas no conflito - infrator, vítima e comunidade - devem ser ouvidas (ASHWORTH, 2002).

Nesse sentido, Braithwaite (2002) no texto “setting standards for restorative justice”, destaca o princípio da não dominação como um standard importante em práticas restaurativas. Para o autor, este princípio descreve a necessidade de manutenção de equilíbrio entre as partes durante o processo restaurativo, não sendo permitida a dominação de um indivíduo sobre o outro.

Ainda dada a importância de estabelecer quais seriam as boas práticas aos processos restaurativos, o autor destaca três tipos de standards, quais sejam: standards constrangedores, que referem-se as regras básicas do processo de mediação (ex. manutenção do respeito na sessão), standards maximizadores, que refere-se aquilo que se procura alcançar com o processo e que será incentivado (ex. recuperação da dignidade da vítima), e standards emergentes, que

3 Tradução livre: “Tendo em vista a importância de envolver as vítimas e as comunidades na justiça restaurativa, o papel do Estado deve ser definido de uma forma que não interfira ou retire os valores restaurativos, e a presença do Estado Parte não deverá afetar de forma acentuada o processo colaborativo. [...] O Estado, como parte interessada, indireta ou secundária, tem um papel permanente e necessário na aplicação das garantias legais e das garantias do devido processo das vítimas e dos infratores. O Estado também tem um papel vital no fornecimento de recursos para apoiar práticas restaurativas e ajudar a criar as condições para que as vítimas, os infratores e suas comunidades, em situações apropriadas, possam ser envolvidas na tomada de decisões sobre os resultados dos casos.”

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refere-se aquilo que poderá surgir mas que não será incentivado (ex. pedido de desculpas) (BRAITHWAITE, 2002).

Sendo assim, o perdão é algo que poderá surgir numa sessão de mediação, e enquanto um standard emergente, terá que surgir sem a presença de incentivos. Sobre a temática, discorrem os autores (PEMBERTON; WINKEL; GROENHUIJSEN, 2008, p.16/17):

Forgiveness, in a psychological sense, can be defined as a willingness to abandon one‟s right to resentment, negative judgement and indifferent behaviour toward the ofender [...]Put more simply the three words ‘I forgive you’ express three separate things:

1 I have suffered harm or injury.

2 You are the source of that harm or injury.

3 But I am choosing to release you from your debt to me.4

A institucionalização de práticas restaurativas foi impulsionada pela Resolução 2002/12, elaborada pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas – ONU, que estabelece parâmetros básicos à justiça restaurativa. Na esfera nacional, as práticas restaurativas foram padronizadas por intermédio da Resolução 225/16 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça (LIMA; SECCO, 2018).

Apesar de haver regulamentação legal da prática, ainda há debates teóricos acerca de algumas questões que permeiam sua implementação, assim, a partir da posição de Lima e Secco (2018) ganham destaque os seguintes debates:

• Privatização do direito penal, que poderia acarretar na possibilidade de aplicação de punição desproporcional e o julgamento efetivado por pessoas sem poder legalmente constituído;

• Benefício exacerbado ao autor do fato, tendo em vista que o acordo restaurativo pode acarretar inclusive a extinção da punição nos moldes tradicionais;

• Poderá contribuir para um aumento da rede de controle penal, tendo em vista que a justiça restaurativa normalmente trata de casos de “menor potencial ofensivo” seja no âmbito da justiça criminal de adultos, – Juizados Especais Criminais - ou na

4 Tradução livre: O perdão, em um sentido psicológico, pode ser definido como uma vontade de abandonar o direito de ressentimento, julgamento negativo e comportamento indiferente em relação ao ofensor [...] Simplificando, as três palavras “eu te perdoo” expressam três coisas separadas: 1 Sofri danos ou ferimentos. 2 Você é a fonte desse dano ou lesão. 3 Mas estou optando por liberar você de sua dívida comigo.

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Justiça Juvenil. Grande parte destes casos “menos graves” em verdade, se tivessem sido solucionados na Justiça Comum, resultariam em arquivamento, receberiam advertência policial ou seriam redirecionados aos outros setores que não o criminal. Nesse sentido, a justiça restaurativa, acaba por contribuir para uma rede mais apertada de controle social, podendo ser comparada a uma rede de pesca, que a cada dia apanha peixes menores.

A tendência a aplicação da Justiça restaurativa em casos “mais graves”, desmistifica a ideia de que justiça restaurativa trata apenas de crimes leves, contribuindo para a diminuição do risco de aumento da rede de controle penal. Entretanto, a temática apresenta dificuldades na sua operacionalização (LIMA; SECCO, 2018).

Lima e Secco (2018) ainda mencionam a existência de alguns estudiosos que defendem a necessidade de ignorar o princípio da voluntariedade para efetivar a mediação penal nesses casos mais graves. Entretanto, segundo os autores, a supressão da voluntariedade poderia resultar em uma sobrecarga ao ofensor, porque além da natureza do crime ser obrigatoriamente de resposta penal, ainda teria que participar coercivamente no processo restaurativo.

Nesse processo, o empoderamento da vítima é essencial para o alcance de uma solução, bem como, a responsabilização do ofensor por todos os fatos. O diálogo torna-se um dos pilares dessa justiça (NETO; SPOSATO, 2019).

O modelo de justiça utilizado no Brasil é essencialmente retributivo, sendo que, esse fato implica na responsabilidade do Estado em punir o transgressor da norma penal. No entanto, “este modelo não vem apresentando resultados satisfatórios. O encarceramento deveria acatar as necessidades sociais de punição e proteção enquanto promove a reeducação dos ofensores, mas o que ocorre na prática é diferente disto, as cadeias tornaram-se sede de horrores” (BRAGA; SOARES, 2014, p.140).

A escolha da lente afeta aquilo que parece o enquadramento da foto, da mesma maneira que a lente que escolhemos para analisar o crime e a justiça afeta o que elegemos por variáveis relevantes. Destaca-se um conjunto de diferenças entre duas formas de ver o crime: a retributiva (sistema de justiça comum) e a restaurativa (justiça restaurativa) (ZEHR, 2008).

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O processo penal vê o crime através da lente retributiva, não conseguindo atender as necessidades da vítima e do ofensor e fracassando na responsabilização do ofensor pelo delito. “Tal incapacidade nos trouxe até a sensação de crise generalizada que vivemos hoje. Muitas reformas foram implementadas. As modas mais recentes são a monitoração eletrônica e a supervisão intensiva” (ZEHR, 2008, p. 08).

A razão dessa incapacidade, para Zehr, é a escolha de lentes. “Podemos adotar uma lente diferente, mesmo que ainda não seja um paradigma plenamente desenvolvido” (2008, p.08-09).

Há diferenças pontuais entre essas duas formas de ver o crime e a reação social. Pode-se destacar que, sob uma perspectiva retributiva, o crime é uma violação contra o Estado, Pode-sendo a justiça que determinará a culpa e promoverá dor no indivíduo, materializada através da punição. “justiça retributiva define o estado como vítima, define o comportamento danoso como violação de regras e considera irrelevante o relacionamento entre vítima e ofensor” (ZEHR, 2008, p. 09).

Na justiça restaurativa, entretanto, o crime é uma violação à pessoa e aos relacionamentos, originando ao ofensor, uma obrigação de corrigir os erros. A justiça restaurativa, envolve vítima, ofensor e comunidade na busca por uma solução reparadora ao delito (ZEHR, 2008).

Um dos fatores mais importantes que se coloca, é a possibilidade de restauração emocional das vítimas. In verbis: “Maybe the most important feature of a restorative justice conference for victims is the possibilities of emotional restoration that it offers”5(PEMBERTON; WINKEL; GROENHUIJSEN, 2008, p.11).

Ademais, o crime em primeiro lugar é uma violação cometida contra outra pessoa, por um indivíduo que talvez também possa ter sido alvo de violações. Sob essa perspectiva, a sociedade é uma parte interessada no resultado, e portanto, tem um papel a desempenhar (ZEHR, 2008).

5 Tradução livre: Talvez a característica mais importante de uma conferência de justiça restaurativa para as

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Sob uma perspectiva retributiva, os aspectos que formam a ideia de crime são os seguintes: 1) o crime é uma violação da lei; 2) os danos são definidos em abstrato; 3) o crime está em uma categoria distinta de outros danos; 4) o Estado é a vítima; 5) o Estado e o Ofensor são as partes no processo; 6) as necessidades e direitos da vítima são ignoradas; 7) as dimensões interpessoais são irrelevantes; 8) a natureza conflituosa do crime é camuflada; 9) o dano causado ao ofensor é secundário e 10) a ofensa é definida em termos técnicos e jurídicos (ZEHR, 2008).

Neste modelo de justiça, o Estado é sempre a vítima, e quem comete o crime age contra uma ordem estabelecida e regulada por um conjunto de normas abstratas que se impõem a todos. “E a relação do Estado com o criminoso é baseada em um recorte da existência do indivíduo, de tal maneira que se consiga ter como único foco o ato delituoso, desprezando contextos formadores e fatos determinantes que constituem a história de vida do indivíduo que cometeu o crime” (LIMA; SECCO, 2018, p. 447).

Sob a égide da retribuição, a principal meta é a punição daquele indivíduo que infringiu determinada normativa. “A determinação da culpa é vista como objetivo a ser buscado, a fim de se alcançar o objetivo principal que é a aplicação da pena, que representa (ou deveria representar) não só a retribuição pelo mal causado, mas também prevenção para novos delitos” (MONTOLLI, 2017, p.34).

A participação da vítima nesse processo, mostra-se como secundária e pouco valorizada. “A verdadeira vítima é sistematicamente excluída, suas necessidades e vontades são claramente ignoradas e, por isso, sua participação será reduzida a de uma testemunha de luxo, nos casos em que seu testemunho é indispensável” (MONTOLLI, 2017, p.35).

De outro norte, a justiça restaurativa, constitui um modelo que tem como principais pressupostos: 1) o crime é uma violação à pessoa; 2) os danos são definidos de maneira concreta em uma análise do caso; 3) o crime é um fato ligado a outros danos e conflitos, bem como, o crime é um tipo de conflito; 4) as vítimas são as pessoas e os relacionamentos, não o Estado; 5) Vítima e Ofensor são partes no processo, e não somente o Estado e Ofensor; 6) a preocupação central do processo são as necessidades e direitos da vítima; 7) as dimensões interpessoais são centrais; 8) a natureza conflituosa do crime é reconhecida; 9) o dano causado ao ofensor é

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importante e 10) a ofensa é considerada em um contexto total: ético, social, econômico e político (ZEHR, 2008).

A justiça restaurativa, portanto, enxerga um dano como uma violação ao indivíduo, diferindo-se do modelo retributivo no qual o crime é uma violação ao Estado. Sob essa perspectiva, deve-se ter em conta as necessidades da vítima, entretanto sem esquecer dos danos sofridos pelo ofensor (LIMA; SECCO, 2018).

Define-se justiça como restauração, sendo que, a sua principal meta é oferecer um espaço que possibilite o início da recuperação dos danos causados pelo delito. “Atos de restauração – ao invés de mais violação – deveriam contrabalançar o dano advindo do crime. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar” (ZEHR, 2008, p.13).

Quando há um dano sofrido em virtude de algum delito, a primeira questão que a justiça restaurativa procura enfrentar, é saber quem foi a vítima e quais as suas necessidades, enquanto que no modelo retributivo, a primeira preocupação é ‘quem fez isso e o que faremos com o culpado’ – e dificilmente vai além disso (ZEHR, 2008).

Pesquisas apontam que a maioria das vítimas são favoráveis a penas restaurativas que não envolvam encarceramento, além disso, frequentemente listam a reabilitação do ofensor como algo importante, tendo em vista que tratar o ofensor é uma maneira de prevenir delitos futuros (ZEHR, 2008).

Com efeito, deverá haver o empoderamento da vítima durante o processo, colocando-a como peça principal na delimitação de quais são as suas necessidades e como atendê-las. “As vítimas têm necessidade de segurança, reparação, justificação e empoderamento, mas precisam, especialmente, encontrar significado” (ZEHR, 2008, p. 18).

O empowerment é efetivado através da centralização da vítima na busca de soluções para o conflito. “O empoderamento da vítima é alcançado na medida em que é considerada personagem principal para a resolução do conflito. A imagem que se busca de que o infrator e a vítima não são adversários e que podem chegar juntos a uma solução para o conflito” (MONTOLLI, 2017, p.38).

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Sob uma perspectiva restaurativa, o crime não é um fato isolado dos fatores sociais, econômicos e políticos. “Assim, o modelo restaurativo propõe que a análise do ato delituoso seja realizada de forma individualizada, levando-se em consideração as peculiaridades do caso concreto. O delito não é considerado por si só, mas em um contexto social, econômico e político” (MONTOLLI, 2017, p. 36).

Sob uma lente restaurativa, as violações geram obrigações, e isso leva os ofensores a reconhecerem o mal que causaram e posteriormente, tomarem medidas para reparar. Nesse sentido (ZEHR, 2008, p. 20-21):

Corrigir é algo central para a justiça. Acertar o que está errado não é uma atividade periférica e opcional. É uma obrigação. Idealmente, o processo de justiça pode ajudar os ofensores reconhecerem e assumiram suas responsabilidades voluntariamente [...]Mas na maioria das vezes as pessoas aceitam essa responsabilidade com relutância no início. Muitos ofensores relutam em se tornarem vulneráveis ao tentar entender as conseqüências de seus atos. Afinal, construíram edifícios de estereótipos e racionalizações a fim de se protegerem exatamente contra esse tipo de informação. Muitos relutam em assumir a responsabilidade. Receber uma punição é mais fácil por uma série de motivos. Embora ela cause sofrimento por algum tempo, não envolve responsabilidades nem ameaça as racionalizações e estereótipos. Freqüentemente os ofensores precisam de forte incentivo ou mesmo coerção para aceitar suas obrigações. Pode-se pedir ao ofensor que aceite a obrigação de corrigir o mal. [...] Pode-se incentivá-lo fortemente a assumir a responsabilidade e encarar suas vítimas. Contudo, não se pode e não se deve obrigá-lo a isso. Com certeza não se deve coibi-lo a participar! Encontros forçados dificilmente serão bons, quer para o ofensor quer para a vítima, e o tiro pode sair pela culatra. Podemos solicitar que o ofensor corrija seu erro, mas ele não pode ser inteiramente responsável sem algum grau de vontade.

Sendo assim, a justiça restaurativa deve revestir-se de voluntariedade para que seja possível ascender à responsabilização do ofensor e verdadeira reparação dos danos causados pelo delito (ZEHR, 2008).

Deve-se destacar, que o ofensor também possui necessidades, que deverão ser atendidas no processo, objetivando a sua responsabilização: “A sociedade deve responder às vítimas, ajudando a identificar e atender suas necessidades. Da mesma forma, a comunidade deve atender às necessidades dos ofensores, buscando não apenas restaurar, mas transformar. A responsabilização é multidimensional e transformadora”. Ainda, Zehr exemplifica algumas necessidades dos ofensores (2008, p. 21-23):

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Precisam que se questionem seus estereótipos e racionalizações – suas falsas atribuições – sobre a vítima e o evento. Talvez precisem aprender a ser mais responsáveis. Talvez precisem adquirir habilidades laborais ou inter-pessoais. Em geral necessitam de apoio emocional. Muitas vezes precisam aprender a canalizar raiva e frustração de modo mais apropriado. Talvez precisem ajuda para desenvolver uma auto-imagem mais sadia e positiva e também para lidar com a culpa. Como no caso das vítimas, se essas necessidades não forem atendidas, os ofensores não conseguem fechar o ciclo.

Além de vítima e ofensor, a justiça restaurativa concede importância diferenciada a comunidade, reconhecendo não apenas que esta é uma vítima secundária do delito, mas também que possui um papel fundamental no enfrentamento/tratamento do delito. Esta participação da comunidade tem ocorrido nas práticas restaurativas, na qualidade de apoiadores ou facilitadores das partes envolvidas (LIMA; SECCO, 2018).

De acordo com Zehr: “a justiça restaurativa não é um mapa, mas seus princípios podem ser vistos como uma bússola que aponta na direção desejada. No mínimo, a justiça restaurativa é um convite ao diálogo e à experimentação” (2012, pág.23).

A existência de crise no sistema retributivo, não é uma percepção nova, tratando-se de um sistema “cujo artifício mais comum é a retribuição estatal para um rol cada vez maior de tipos penais, depara-se de um lado com um clamor generalizado por garantias, e de outro, a dogmática penal vive evidentemente um momento de expansão e desformalização” (NETO; SPOSATO, 2019, p.02).

Além disso, a crise no direito penal “começou aproximadamente nos mesmos anos, a partir dos questionamentos sobre o modelo clássico de ciência dedutivo-axiomática, abstrata e, sobretudo, alheia à realidade social do delito” (NETO; SPOSATO, 2019, p.03).

Detectada a crise no sistema de justiça criminal, pode-se notar que a justiça restaurativa surge como um método de possibilidades para evitar esta crise (NETO; SPOSATO, 2019).

1.2 A implantação da Justiça Restaurativa no Brasil

A justiça restaurativa surge em meados dos anos 1970,principalmente na Europa e nos Estados Unidos, onde foi criado o Instituto para Mediação e Resolução de Conflitos (IMCR),

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que iniciou os trabalhos da mediação vítima-ofensor. Após isso, a justiça restaurativa difunde-se na Noruega e no Canadá (PERES, 2015).

O fortalecimento desse novo paradigma ocorreu em 1989, quando o governo da Nova Zelândia regularizou e formalizou o procedimento restaurativo, com a finalidade de atingir os adolescentes infratores. As críticas e resultados dessa implementação foram extremamente favoráveis (PERES, 2015).

A partir da experiência da Nova Zelândia, a justiça restaurativa foi implementada em diversos lugares. “Na década de 1990, houve muitos projetos de vários países, para a implantação do método restaurativo, tanto no Poder Judiciário, quanto em escolas, delegacias etc.” (PERES, 2015, p.05).

A Nova Zelândia é considerada um dos países pioneiros quando se trata da introdução da via restaurativa no seio da justiça criminal. A experiência já ultrapassa 20 anos, e tem gerado resultados positivos no que tange a instauração de valores e processos de justiça restaurativa na justiça juvenil e também na de adultos. Com efeito, “as principais práticas que podemos destacar no âmbito da justiça restaurativa na Nova Zelândia são as reuniões de grupos familiares para jovens, o encaminhamento alternativo de jovens pela polícia e as reuniões restaurativas para adultos” (NETO; SPOSATO, 2019, p.10).

Os países africanos foram os mais beneficiados com o surgimento da prática naquela época, em virtude da gama de conflitos que surgiram no pós-Apartheid. Ademais, “em 24 de julho de 2004 a Organização das Noções Unidas, por meio do Conselho Econômico e Social, elaborou uma resolução, regulamentando a Justiça Restaurativa” (PERES, 2015, p.05).

No ano de 1999, inicia-se a primeira pesquisa brasileira sobre a temática, a cargo do Prof. Pedro Scuro Neto, no Rio Grande do Sul, buscando expandir os horizontes da prática judiciária brasileira sob o prisma restaurativo (ORSINI; LARA, 2012).

Ainda no mesmo ano, foi criada a secretaria da reforma do judiciário, órgão do Ministério da Justiça, que posteriormente, por intermédio de acordo de cooperação com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, iniciou o programa de Modernização da Gestão do Sistema Judiciário, “com a finalidade de expandir o acesso dos

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cidadãos à Justiça e reduzir o tempo de tramitação dos processos” (ORSINI; LARA, 2012, p.308).

Com efeito, no final do ano de 2004, e início de 2005, o PNUD disponibilizou apoio financeiro para viabilizar o início de três projetos-pilotos em práticas restaurativas no Brasil: o projeto de “Brasília, no Juizado Especial Criminal, o de Porto Alegre-RS, denominado Justiça do Século XXI, voltado para a Justiça da Infância e Juventude, e o de São Caetano do Sul-SP, também voltado para essa mesma seara” (ORSINI; LARA, 2012, p.308).

O projeto foi composto por duas dimensões: uma teórica e outra prática. A dimensão teórica consistiu na realização de seminários e publicação de obras coletivas, e a dimensão prática realizou-se através da implementação de projetos-pilotos restaurativos nas cidades de São Caetano do Sul, Porto Alegre e Brasília (NETO; SPOSATO, 2019).

A justiça restaurativa ganhou espaço e visibilidade acadêmica em algumas metrópoles brasileiras. “A partir de 2004, o tema passou a ser discutido em seminários e simpósios, em cidades como Porto Alegre, Araçatuba e Brasília, encabeçados por organizações e institutos que tinham o interesse de promover a disseminação da Justiça Restaurativa no Brasil” (NETO; SPOSATO, 2019, p.13).

Segundo Orsini e Lara (2012, p.309), a partir de 2005 uma série de eventos passou a tornar a justiça restaurativa alvo de debates:

Nos dias 28 a 30 de abril de 2005, foi realizado o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa na cidade de Araçatuba, Estado de São Paulo, que gerou a Carta de Araçatuba, documento que delineava os princípios da Justiça Restaurativa e atitudes iniciais para a sua implementação em solo nacional. Pouco tempo depois, nos dias 14 a 17 de junho de 2005, o conteúdo do documento foi ratificado pela Carta de Brasília, na Conferência Internacional “Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos”, realizada em Brasília. Da mesma forma, a Carta de Recife, elaborada no II Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, realizado na Capital do Estado de Pernambuco, nos dias 10 a 12 de abril de 2006, ratificou as estratégias adotadas pelas iniciativas de Justiça Restaurativa em curso. De 2006 até a presente data, os projetos de Justiça Restaurativa ganharam corpo, sem que fosse perdida a ideia de adaptação das práticas e princípios estrangeiros à realidade brasileira [...].

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A mediação, que é uma das práticas restaurativas mais utilizadas e todo o mundo, possui mais de 20 (vinte) anos de aplicabilidade no Continente Europeu, e em países como Estados Unidos e Canadá. De acordo com João e Arruda, essa prática traz uma série de benefícios: “fomenta-se o diálogo entre as partes, dando-se espaço para que elas expressem suas impressões acerca do delito, bem com suas implicações. Busca-se um meio de se reparar as necessidades da vítima de forma a se restabelecer o equilíbrio” (2014, p.198).

A origem do que hoje conhecemos como mediação vítima-ofensor, - que é uma forma de materialização da justiça restaurativa - remonta da década de 1970, em virtude do incidente ocorrido em Elmira, na província de Ontário, no Canadá, ocasião em que dois jovens foram acusados de praticar atos de vandalismo contra 22 (vinte e duas) propriedades. Na época, o juiz determinou que se fizessem encontros presenciais “entre as vítimas e os dois ofensores a fim de se chegar a um acordo de indenização. Acompanhados dos oficiais de condicional e do coordenador, os jovens visitaram as vítimas, negociaram o ressarcimento, e em poucos meses pagaram a dívida” (NETO; SPOSATO, 2019, p.09).

Neste momento surge a expressão VORP‟s (Victim Offender Reconciliation Programs/Programas de Reconciliação Vítima-Ofensor), bem como, as práticas restaurativas se expandem no Canadá. Mais tarde, por volta dos anos de 1977 e 1978, a experiência canadense chega aos Estados Unidos: “pesquisas realizadas nos Estados Unidos demonstraram como positivos os resultados das experiências restaurativas envolvendo vítima e ofensor, através dos VORP‟s” (NETO; SPOSATO, 2019, p.09-10). Ademais, ainda segundo os autores:

Praticamente todos os encontros chegaram a um acordo. Houve ínfimo percentual de insatisfação das vítimas e mais de 90% delas afirmaram que participariam novamente e recomendariam a amigos. A satisfação também se estendeu aos ofensores, com percentuais beirando a totalidade de envolvidos. Constatou-se redução nas taxas de reincidência dos ofensores inseridos no programa. Além disso, cerca de 80% das vítimas e ofensores sentiram-se tratados com justiça no seu caso em particular.

Após as experiências realizadas no âmbito de programas de reconciliação Vítima-Ofensor, essas práticas foram se difundindo em todo o mundo, “a Justiça Restaurativa difundiu-se e ganhou delineamentos diferenciados nos locais onde ia difundiu-sendo implementada. Podemos destacar a Nova Zelândia, a Austrália, a África do Sul e países da Europa, como Alemanha, Holanda, Inglaterra e Espanha” (NETO; SPOSATO, 2019, p.10).

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O movimento internacional de desenvolvimento de práticas restaurativas, remonta dos resultados de estudos referentes às tradições antigas que priorizavam modalidades de diálogos pacificadores e capazes de gerar consenso entre as partes, que se originaram com os povos de primeira nação e das culturas tribais africanas (LARA, 2019).

Por fim, cita-se o projeto de lei nº 7006/2006, alvo de uma série de arquivamentos e desarquivamentos. O referido projeto pretende regulamentar as práticas restaurativas no sistema de justiça criminal. “Além de estabelecer princípios e regras para os procedimentos restaurativos, o projeto contempla a criação de núcleos restaurativos junto a varas e juizados especiais criminais, onde possa ocorrer o encaminhamento de casos em que, [...] recomende-se o uso de práticas restaurativas” (NETO; SPOSATO, 2019, p. 14).

O projeto de lei supramencionado, sofre críticas severas. Para João e Arruda, há lacuna já no art. 1º, que estabelece a utilização da Justiça restaurativa em casos de crimes e contravenções penais, sem estabelecer, entretanto, quais seriam esses delitos. Nesse sentido, “A falta de um critério cria o risco de que só sejam encaminhados à justiça restaurativa os chamados crimes de bagatela, em conformidade com o pensamento dominante de que a justiça restaurativa despenaliza condutas que deveriam ser punidas pelo modelo tradicional de justiça criminal” (2014, p. 204).

É importante mencionar ainda, a crise instaurada no judiciário brasileiro, tendo em vista a quantidade imensa de processos e o crescente aumento das demandas. É possível afirmar que, no ano de 2016, tramitavam 74 milhões de processos, pendentes de análise e julgamento (ROSSINI; COUTO, 2018).

A crise no sistema de justiça criminal, materializa-se na falta de eficiência quanto ao fornecimento de resposta aos conflitos sociais, o crescente aumento da violência nos diversos setores da sociedade, e a superlotação carcerária, que resulta em um constante desrespeito a diversos direitos individuais. “A proposta da justiça restaurativa se apresenta neste contexto, como uma forma de alternativa à justiça meramente retributiva” (JOÃO; ARRUDA, 2014, p.191).

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Em relação às demandas já judicializadas, é possível identificar uma problemática: mesmo que “o Poder Judiciário paralisasse o recebimento de novas demandas, com os atuais índices de produtividade dos magistrados e servidores, seriam necessários aproximadamente três anos de trabalho para zerar o estoque processual” (ROSSINI; COUTO, 2018, p.219).

O acesso à justiça é a pedra de toque em qualquer estado democrático de direito, e pela sua relevância, deverá ser assegurada. Nesse sentido, surge a justiça restaurativa como uma alternativa para a resolução de conflitos, principalmente após o advento da Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (LARA, 2019).

A justiça restaurativa busca devolver o conflito para a sociedade, e traz uma proposta de resolução de conflitos baseada em fatores como a consensualidade, entendimento e diálogo, que ao mesmo tempo responsabiliza e acolhe os as partes envolvidas na infração (LARA, 2019).

1.3 Regulamentação legal da justiça restaurativa

A regulamentação da justiça restaurativa em âmbito nacional, foi impulsionada pela Resolução 2002/12, elaborada pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas – ONU, que resultou, mais tarde, na elaboração da Resolução 225/16 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça (LIMA; SECCO, 2018).

A resolução 2002/12, define justiça restaurativa como um processo restaurativo no qual participam vítima e ofensor, e quando apropriado outros membros da comunidade, procurando ativamente a resolução de questões oriundas do crime, normalmente com o auxílio de um facilitador. Pode se materializar através de mediação, conciliação, reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). In verbis (ONU, 2019):

I – Terminologia

1. Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos.

2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).

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O que se busca com o processo, é uma solução reparadora que poderá ser alcançada mediante acordo, podendo incluir: “reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes”. O acordo terá de conter apenas obrigações razoáveis e proporcionais, e deverá, quando apropriado, ser alvo de supervisão judicial ou incorporados às decisões e julgamentos, de modo a que tenham o mesmo status de qualquer decisão ou julgamento judicial (ONU, 2019).

Os processos restaurativos devem ser utilizados apenas mediante certeza da autoria do delito. A resolução destaca que os processos restaurativos deverão ser voluntários, ou seja, utilizados apenas quando houver o consentimento de vítima e infrator, com possibilidade de desistência a qualquer momento do processo. Os facilitadores deverão ser imparciais, honrando a dignidade das partes, e assegurando o respeito mútuo entre vítima e infrator (ONU, 2019).

Segundo a referida resolução, os programas de justiça restaurativa “podem ser usados em qualquer estágio do sistema de justiça criminal, de acordo com a legislação nacional” (ONU, 2019).

Vítima e ofensor, devem concordar sobre os fatos essenciais do processo restaurativo. A participação do ofensor não deverá ser utilizada “como prova de admissão de culpa em processo judicial ulterior” (ONU, 2019).

O processo restaurativo deverá assegurar as garantias processuais fundamentais. Nesse sentido, vítima e ofensor devem ter acesso a assistência jurídica, e quando necessário, a tradução e interpretação. “Menores deverão, além disso, ter a assistência dos pais ou responsáveis legais” (ONU, 2019).

O acordo efetuado entre as partes, deverá ter o mesmo status que as decisões judiciais. “Quando não houver acordo entre as partes, o caso deverá retornar ao procedimento convencional da justiça criminal e ser decidido sem delonga” (ONU, 2019).

Os estados-membros deverão buscar o desenvolvimento da justiça restaurativa em âmbito interno, “e a promoção de uma cultura favorável ao uso da justiça restaurativa pelas

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autoridades de segurança e das autoridades judiciais e sociais, bem assim em nível das comunidades locais” (ONU, 2019).

Ademais, segundo Braga e Soares (2014, p.144) a legislação brasileira proporciona algumas “portas de entrada” para aplicação de práticas restaurativas:

Na lei n° 9.099/95, Lei dos Juizados Cíveis e Criminais, é possível encontrar brechas que possibilitam a aplicação da justiça restaurativa, é só analisar os artigos 70, 72, 73 e 74 [...] Os citados artigos admitem que o magistrado aproveite a possibilidade de composição dos danos entre vítima e acusado, bem como, a aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, em que um procedimento a ser conduzido por um facilitador restaurativo. Outra brecha para implementação do molde restaurativo ao modelo de justiça criminal brasileiro é através da suspensão condicional do processo, que é utilizado quando atendida as hipóteses do art. 89 da Lei n° 9.099/95, ou seja, para crimes cuja pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano. [...]Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, vigorante através da Lei n° 8.069/90 prevê, mesmo que implicitamente, a implicação do modelo restaurativo, em vários dispositivos, como exemplo, o artigo 126.

Para dos autores Vilobaldo Cardoso Neto e Karyna Batista Sposato, a resolução 12/2012 da ONU, é responsável por definir três princípios fundamentais, quais seja: o programa restaurativo, o processo restaurativo e o resultado restaurativo. Ainda, conceitua cada um desses princípios (2019, p. 08):

O Programa Restaurativo é qualquer programa utilize processos restaurativos buscando um resultado restaurativo. O Processo Restaurativo se dá através do encontro entre vítima, infrator e, quando apropriado, outras pessoas ou membros comunidade, tentando solucionar as controvérsias decorrentes de um crime, orientados geralmente por um facilitador; e abrange a mediação, a conciliação, audiências e círculos de sentença. O Resultado Restaurativo é o acordo alcançado durante esse encontro (processo restaurativo), que inclui responsabilidades para o autor do ato delitivo, como reparação, restituição, prestação de serviços comunitários, intentando satisfazer as necessidades individuais e coletivas das partes e almejando a reintegração social da vítima e do infrator.

Em âmbito nacional foi editada a resolução nº 225, de 31 de maio de 2016, pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Os autores Matias, Santos e Soares, fazem uma análise da referida resolução, destacando: “A prática da Justiça Restaurativa é uma técnica que prima pela sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores objetivando alcançar a pacificação das relações sociais” (2018, p. 05/12). O art. 1º da resolução, descreve no que se constituem as práticas restaurativas (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019):

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Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma:

I – é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos;

II – as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras;

III – as práticas restaurativas terão como foco a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro.

O art. 2º §1º descreve acerca do princípio da confidencialidade, portanto, se por alguma razão o processo inicialmente encaminhado à justiça restaurativa retornar aos Tribunais, a informação obtida durante as sessões de prática restaurativa não poderá ser compartilhada naquele processo (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Ainda merece destaque, o princípio da voluntariedade, devendo o consentimento ser livre e espontâneo, assegurada a desistência a qualquer momento até a homologação do acordo. Ademais, “os participantes devem ser informados sobre o procedimento e sobre as possíveis consequências de sua participação”, o que traduz a ideia de um consentimento informado (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Na hipótese de haver acordo entre as partes, deverá ser homologado pelo Juiz competente, ouvido o Ministério Público. Não obtido êxito na composição, veda-se a utilização do insucesso para majorar eventual sanção penal, ou de qualquer informação obtida no âmbito da Justiça Restaurativa como prova (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Sobre o facilitador, descreve a referida resolução (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019):

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Art. 14. São atribuições do facilitador restaurativo:

I – preparar e realizar as conversas ou os encontros preliminares com os envolvidos;

II – abrir e conduzir a sessão restaurativa, de forma a propiciar um espaço próprio e qualificado em que o conflito possa ser compreendido em toda sua amplitude, utilizando-se, para tanto, de técnica autocompositiva pelo método consensual de resolução de conflito, própria da Justiça Restaurativa, que estimule o diálogo, a reflexão do grupo e permita desencadear um feixe de atividades coordenadas para que não haja reiteração do ato danoso ou a reprodução das condições que contribuíram para o seu surgimento;

III – atuar com absoluto respeito à dignidade das partes, levando em consideração eventuais situações de hipossuficiência e desequilíbrio social, econômico, intelectual e cultural;

IV – dialogar nas sessões restaurativas com representantes da comunidade em que os fatos que geraram dano ocorreram;

V – considerar os fatores institucionais e os sociais que contribuíram para o surgimento do fato que gerou danos, indicando a necessidade de eliminá-los ou diminuí-los;

VI – apoiar, de modo amplo e coletivo, a solução dos conflitos; VII – redigir o termo de acordo, quando obtido, ou atestar o insucesso; VIII – incentivar o grupo a promover as adequações e encaminhamentos necessários, tanto no aspecto social quanto comunitário, com as devidas articulações com a Rede de Garantia de Direito local.

Art. 15. É vedado ao facilitador restaurativo:

I – impor determinada decisão, antecipar decisão de magistrado, julgar, aconselhar, diagnosticar ou simpatizar durante os trabalhos restaurativos; II – prestar testemunho em juízo acerca das informações obtidas no procedimento restaurativo;

III – relatar ao juiz, ao promotor de justiça, aos advogados ou a qualquer autoridade do Sistema de Justiça, sem motivação legal, o conteúdo das declarações prestadas por qualquer dos envolvidos nos trabalhos restaurativos, sob as penas previstas no art. 154 do Código Penal.

Desde os primórdios da implementação da justiça restaurativa, na década de 1970, foi-se defoi-senvolvendo uma série de técnicas para a resolução de conflitos, como o VOP (processo vítima‑ofensor), a conferência familiar, o círculo restaurativo, o processo circular, entre outros. Seja qual for o método escolhido, deve ter a participação de alguns agentes indispensáveis: vítima, ofensor, familiares ou pessoas de referência para ambos, a comunidade direta ou indiretamente atingida pela ofensa e representantes da Rede de Garantia de Direitos - artigo 1º, caput, e incisos I e III, arts. 8º e 9º (SALMASO, 2016).

O parágrafo 2º do art. 1º revela que o procedimento restaurativo poderá ser aplicado concomitantemente ou de forma alternativa ao processo convencional. “Em assim sendo, é possível realizar o processo circular após a condenação, para o cumprimento da medida ou da pena, ou, ainda, para reintegração do egresso na sociedade”. Entretanto, se a justiça restaurativa se basear nisso, vai acabar perdendo sua força, sendo assim, o ideal para garantir melhores

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resultados, é a promoção do “desvio” do processo para as práticas restaurativas, e caso reste infrutífero, retoma-se o processo do ponto onde parou (SALMASO, 2016, p.43-44).

De outro norte, quando opta-se pela manutenção do processo convencional, que tramitará até o final, e sobrevindo condenação poderá ser feito um trabalho restaurativo com o ofensor com o fim de se qualificar e humanizar o cumprimento da pena ou para a reinserção social (SALMASO, 2016).

Nos termos do art. 7º, uma vez identificado que determinado conflito do âmbito de justiça possa ser resolvido sob as diretrizes da justiça restaurativa, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública, das partes, dos seus advogados e dos Setores Técnicos de Psicologia e Assistência Social, “poderá, de forma fundamentada, encaminhar o procedimento ou processo judicial, em qualquer fase de tramitação, ao Setor ou Núcleo de Justiça Restaurativa” Ainda para o autor (SALMASO, 2016, p. 42-44):

Feito o encaminhamento do conflito à Justiça Restaurativa, por primeiro, em uma etapa preliminar ao procedimento restaurativo propriamente dito, procura ‑se compreender e mapear, por um lado, os danos e as necessidades geradas para a vítima a partir da transgressão, como também as pessoas que para ela são referenciais e que, indiretamente, foram afetadas pela situação. Por outro lado, busca‑se também entender a história do ofensor, mormente no que tange às necessidades e omissões que acabaram contribuindo para a construção das escolhas erradas, bem como os seus sonhos e anseios, sem prejuízo de identificar as suas referências familiares e comunitárias. Esse momento prévio é de suma importância, pois, com base em tais informações, a equipe da Justiça Restaurativa poderá elaborar a melhor forma de conduzir o procedimento restaurativo, para fins de promover reconexões e a restauração das relações humanas rompidas, e, ainda, convidar, para estarem presentes no processo circular, as referências familiares e/ou comunitárias de ofensor e vítima, além de pessoas da comunidade indiretamente atingida e aqueles que, representantes ou não de entidades e órgãos da Rede de Garantia de Direitos, possam garantir suporte à reparação dos danos e à construção de novos caminhos.

Nesse encontro prévio, as partes são informadas acerca dos objetivos, implicações e princípios do procedimento restaurativo, como voluntariedade e sigilo, para que, ao final, o facilitador seja capaz de obter um consentimento livre e esclarecido - §§ 1º a 3º do artigo 2º da Resolução nº 225/2016 (SALMASO, 2016).

Em um momento posterior, tem‑se o procedimento restaurativo propriamente dito, no qual todos se encontrarão em local previamente designado. Nesse contexto, o papel do

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facilitador é de fundamental importância, sendo “ele quem coordenará os trabalhos, compartilhando as responsabilidades, de forma que todos tenham voz e escutem ativamente, de maneira ordenada e evitando‑se discussões” (SALMASO, 2016, p.46).

Apesar de inquestionável sua relevância para a difusão de práticas restaurativas no Brasil, a referida resolução não possui aplicação obrigatória pelos juízes e Tribunais, tendo em vista que, não tem força de lei por não ter passado pelo procedimento legislativo obrigatório (MEZZALIRA, 2018).

Por tudo isso, pode-se considerar que a justiça restaurativa tem se destacado em âmbito internacional como um mecanismo de resolução de conflitos, que integra vítima, infrator e comunidade. Busca essencialmente, a responsabilização do ofensor, e a devolução do conflito a vítima, que participará na busca por uma solução que tenha a capacidade de reparar os danos causados pelo delito.

Com a Resolução nº 2002/12 da ONU, percebeu-se uma preocupação em implementar essa prática em âmbito interno. Para isso, fora editada a Resolução nº 225 da CNJ, que, no entanto, não possui grande difusão e aplicabilidade, em virtude da ausência de força vinculante.

A justiça restaurativa é um mecanismo recente no Brasil, tendo potencial para ser uma forma adequada de resolução de conflitos no futuro. Uma das formas de materialização deste instituto é através da mediação penal, que será estudado na próxima unidade.

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2. JUSTIÇA RESTURATIVA E MEDIAÇÃO PENAL EM PORTUGAL E NO BRASIL

Nesta unidade, buscar-se-á fazer um estudo comparado entre a mediação penal em Portugal e no Brasil. Para isso, primeiramente coloca-se um apanhado geral da experiência portuguesa na mediação penal, fazendo inclusive, uma análise da legislação pertinente, para que posteriormente possamos analisar acerca dos desafios que pairam a implementação dessa prática em âmbito interno.

No Brasil, não temos a mediação vítima-ofensor restaurativa nos moldes daquela adotada em grande parte da Europa, isto porque, até o presente momento conseguimos apenas desenvolver alguns projetos-pilotos na área. Sendo assim, a justiça restaurativa no âmbito da mediação penal, é uma prática ainda considerada tímida no país.

A mediação penal é uma prática difundida em grande parte do mundo e utiliza-se de métodos restaurativos para alcançar seus objetivos. Portugal, visando acompanhar a tendência europeia, tem adotado a mediação penal há pouco tempo, obtendo resultados positivos para vítima, infrator e sociedade.

Entretanto, há ainda uma série de desafios a serem superados para a implementação desta prática em Portugal, e isto, devido ao fato de que a mediação penal restaurativa ainda é vista para grande parte da sociedade como uma justiça “soft” e despenalizadora.

Ademais, será necessário fazer um apanhado geral dos projetos-pilotos desenvolvidos no Brasil que envolvam a mediação penal. Posteriormente, será demonstrado que no âmbito do juizado especial criminal, temos presente a figura da ‘conciliação’, prática que chega mais perto dos preceitos restaurativos no Brasil.

2.1 A justiça restaurativa e a mediação penal em Portugal

As práticas restaurativas estão em evidência nos principais ordenamentos europeus, e mais recentemente nas discussões jurídico-políticas brasileiras. Trata-se de uma forma diferenciada de resolução de conflitos, sendo que, o surgimento remonta às experiências indígenas e aborígenes praticadas em comunidades tribais da Nova Zelândia, Austrália e

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Canadá. A justiça restaurativa materializa-se através dos seguintes institutos (OLIVEIRA, 2019, p.53/57):

Os instrumentos utilizados para o alcance das finalidades restaurativas são inúmeros, podendo-se apontar, dentre outros, as conferências de família (family group conferencing, tais como as realizadas na Nova Zelândia13), a

mediação vítima-infrator, os círculos restaurativos (sentencing circles

realizados no Canadá e EUA14), os painéis comunitários de reparação (community reparation boards), e ainda, os programas de restituição (restitution programmes). – GRIFO NOSSO.

Dentre as práticas restaurativas existentes, ao exemplo de conferências familiares, círculos de construção de consensos, círculos de sentença e mediação penal, destaca-se esta última, que surge como um conjunto de procedimentos alternativos (GAMA; SOUSA, 2016).

Sendo assim, a mediação penal é frequentemente citada como um instrumento apto para a efetivação de práticas restaurativas. “Em síntese, pode-se destacar, como requisitos essenciais: a) a existência de um conflito, b) a presença de pessoas que se opõem face a essa realidade e que se identificam perante ela como autor/vítima e, ainda, c) o envolvimento de um terceiro” (OLIVEIRA, 2019, p. 63/64).

Na mediação penal, há a possibilidade de negociação entre os participantes, conferindo-lhes voz ativa no processo. “Almeja-se, ao final, a reintegração das necessidades da vítima, do autor e, para alguns, também da sociedade, que permeiam desde a restauração dos danos causados pelo fato [...] até a consagração da pacificação social”(OLIVEIRA, 2019, p. 64).

Abre-se a oportunidade para a comunicação efetiva entre vítima e ofensor. Uma vez identificado o ofensor, para que possa ser prosseguido com o processo de mediação, é preciso haver responsabilização, ou seja, que o ofensor assuma a prática do delito em questão, bem como, que esteja disposto a reparar os danos. “Significa dizer que as práticas restauradoras devem ser resultantes de ato de vontade livre das partes, devendo-se primar pelo esclarecimento de seus pressupostos, ou seja, de suas funções e finalidades, sob pena da ocorrência de vícios de consentimento” (OLIVEIRA, 2019, p. 65).

A mediação no cenário português, apresenta-se como um processo estruturado que conta com a presença de um terceiro neutro e qualificado, que não demonstrará uma opinião acerca

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da lide em análise. “As partes são convidadas a dialogar e a evitar confrontos. Elas escolhem a técnica de resolução do litígio e devem esforçar-se activamente para encontrar a solução que mais lhes convenha” (MAGALHÃES, 2017, p. 157)

De acordo com Luísa Magalhães (2017, p. 167), as partes se tornam a pedra angular do conflito e os sujeitos da equação. O mediador, por outro lado “é uma entidade nova para as partes no contexto da discórdia, uma entidade isenta e desapaixonada, cujo contributo se centra, não no âmago da discórdia”. A autora descreve ainda, a importância que o mediador possui neste processo (p. 167/169):

Mas está tecnicamente preparado para conduzir o processo de mediação, fazendo a desejável “ponte” entre as partes. O que lhe exige uma elevada dose de flexibilidade, consoante o tipo de litígio que tem pela frente. Descortinar o que está latente no conflito, os reais interesses das entidades em confronto, é crucial para o êxito da mediação. [...] Daqui resulta, também, uma outra evidência: a de que a mediação é muito útil nos casos em que os mediados compreendem e desejam uma solução que preserve, e até melhore, o seu relacionamento actual e futuro. [...] Em resumo, portanto, o papel do mediador é, fundamentalmente, o de abrir e manter operativos os canais de comunicação entre as partes mediadas, ajudando-as a ultrapassar a angústia e os medos que as fizeram desfocar o cerne do problema para a litigiosidade pessoalizada, por forma a, assim, elas próprias descobrirem ou identificarem a verdadeira questão ou interesses em jogo e, conjuntamente, chegarem a uma solução genuinamente comprometida. O mediador, de facto, conduz o processo, mas o conteúdo do litígio pertence ás partes. Não lhe é permitido negociar ou aconselhar qualquer das partes, ou mesmo ambas, sendo-lhe expressamente proibido impor qualquer solução [...]. A doutrina denomina-o, genericamente, de “terceiro imparcial”, obviamente não com o alcance com que a expressão é usada, quanto ao posicionamento do juíz, no âmbito do direito processual civil 40, mas no sentido já acima debatido de facilitador, de agente de comunicação e de condutor da própria criatividade das partes na sua busca da solução.

A mediação penal em Portugal possui caráter facultativo, sendo um requisito “para que a mediação seja um sucesso – isto é, para que seja alcançado um acordo, é sobremaneira relevante, senão mesmo imprescindível, que a parte se sinta fortemente envolvida, que acredite na utilidade do meio, que se empenhe nele convictamente” (MAGALHÃES, 2017, p.172).

Ainda de acordo com a autora, o caráter obrigatório não parece estar de acordo com a vocação e destino da mediação penal. In verbis (p. 172/173):

Precisamente, a experiência que se conhece do sistema alemão, nos Estados em que foi adoptada a regra da mediação obrigatória, funda-se em razões de

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