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O ensino de matemática : sentidos de uma experiência

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

JOSÉ EDUARDO DE OLIVEIRA EVANGELISTA LANUTI

O ENSINO DE MATEMÁTICA – SENTIDOS DE UMA

EXPERIÊNCIA

CAMPINAS 2019

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JOSÉ EDUARDO DE OLIVEIRA EVANGELISTA LANUTI

O ENSINO DE MATEMÁTICA – SENTIDOS DE UMA

EXPERIÊNCIA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração de Educação.

Orientadora: Profa.Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DE DOUTORADO DEFENDIDA PELO ALUNO JOSÉ EDUARDO DE OLIVEIRA EVANGELISTA LANUTI E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. MARIA TERESA EGLÉR MANTOAN.

CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

O ENSINO DE MATEMÁTICA – SENTIDOS DE UMA

EXPERIÊNCIA

Autor: José Eduardo de Oliveira Evangelista Lanuti

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan (orientadora) Profa.Dra. Adair Mendes Nacarato

Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado Prof. Dr. Rodrigo Barbosa Lopes

Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Junior

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Gilles Deleuze, em Diálogos, assim se referiu sobre a sua relação com Félix Guattari: “Nunca tivemos o mesmo ritmo, sempre em defasagem: o que Félix me dizia, eu compreendia e podia usá-lo seis meses mais tarde; o que eu lhe dizia, ele compreendia imediatamente, rápido demais para meu gosto, ele já estava noutra parte. Às vezes escrevemos sobre a mesma noção, e percebemos em seguida que não a apreendíamos do mesmo modo. Não reunimos duas noções, percebemos que cada uma tendia por si só em direção à outra, mas justamente para produzir algo que não estava nem em uma nem na outra” (DELEUZE, 1998, p.15). Foi assim que trabalhamos, que negociamos, todo o tempo, neste estudo que dedico à minha professora, intercessora,

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Sou grato...

À Antonia de Oliveira (Lina), Ana Cristina Evangelista e Maria Eduarda Escarelli, por entenderem as minhas ausências, por estarem sempre felizes com as minhas chegadas, por me permitirem construir, a cada dia, um sentido mais bonito para o amor;

Ao Fabio Takahashi, por não medir esforços para me ver feliz, por estar sempre disposto a me acompanhar em todas as minhas atividades, por me incentivar, me esperar. À

Teresa Takahashi, por me receber em sua casa, cuidar de mim e sempre me esperar com a minha

comida favorita. Obrigado pelo carinho expresso de diversos modos;

À minha orientadora, Profa.Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan, por ter me dado a oportunidade de aprender tanto ao seu lado, pela dedicação que tem pelos seus alunos, por ter me acolhido com toda a sua hospitalidade, pelas horas e horas lendo cada palavra dos meus textos, por ter entendido as minhas necessidades e dificuldades e, incansavelmente, ter me ajudado a superá-las;

Aos meus amigos e amigas do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED). À Maria Isabel Baptista, a Belzinha, como a Prof. Maria Teresa a chama, pela preocupação comigo, pela ajuda nos cursos de difusão que oferecemos na UNICAMP, por ter aceitado fazer parte da banca examinadora da minha defesa, por tratar os entraves do dia a dia de forma leve e, no final, sempre dizer que tudo é “festaaaaaaa”; ao Daniel Nascimento, pela delicadeza de me apresentar a faculdade, me mostrar a cidade entre uma aula e outra e de me deixar à vontade para discutir as minhas ideias; à Eliane Ramos e Lilia Barreto, que tão carinhosamente me acolheram, me receberam em suas casas, me ajudaram de diversas formas, me alegraram com cada gesto de cuidado, de carinho, me mostrando alternativas para os meus problemas nesse percurso; ao Gustavo Tomazi por ser tão dedicado aos assuntos do grupo de pesquisa; à Martinha Clarete Dutra dos Santos e à Meire Cavalcante, pelo exemplo de militância, de luta pelos direitos das pessoas com deficiência. Vocês são exemplos para mim! À Isabella Tegon e Jessica Maria, pelo carinho. À doce Vanessa Alves, que me tirou do sufoco em diversos momentos, sempre pronta a ajudar a todos. Obrigado a todos e todas por terem tornado mais alegre e colorida essa trajetória, as vezes tão solitária, que é o doutoramento. Que alegria fazer parte desse grupo!!!

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À minha professora Renata Portela Rinaldi, pela alegria de ser seu amigo, de saber que sempre acreditou que eu era capaz de concluir o Doutorado. Obrigado por confiar no meu trabalho, pela oportunidade de participar das suas aulas, por me dar a chance de aprender com cada uma das nossas conversas, dentro e fora da universidade. À professora Ana Paula Rescia, por me ajudar até altas horas, por torcer por mim. Como é bom saber que existem profissionais como vocês! Eu jamais esquecerei o que fizeram por mim!

Ao professor Rodrigo Barbosa Lopes, pela paciência ao me ouvir, por me atender diversas vezes para tirar as minhas dúvidas, por se dedicar tanto às minhas ideias, pelas horas de conversa e por me ensinar, pelo exemplo, como a generosidade e a amizade são as coisas mais belas que existem. Obrigado por, além de tudo isso, compor a banca examinadora da minha defesa;

Aos professores Guilherme do Val Toledo Prado e Adair Mendes Nacarato, pela dedicação e carinho ao ler o meu trabalho e contribuir tanto, com seus conhecimentos, desde a qualificação. Aos professores Wencesláo M. de Oliveira Junior e Dario Fiorentini que, tão prontamente, aceitaram o meu convite para compor a banca examinadora deste estudo;

Aos amigos e amigas do Centro de Promoção para a Inclusão Digital, Educacional e Social (CPIDES) da Unesp de Presidente Prudente/SP, em especial à Naiara Chierici e Paula

Masuyama que, pacientemente, me ouviram, vibraram a cada conquista e me deram força em

cada momento difícil. Como é bom saber que a amizade verdadeira independe da distância física. À Marcela Tinti, Janiele Santos, Gabi Alias, Gisele Araújo, Ana Mayra, Ana Virgínia,

Deborah Zaduski, Denise Albuquerque, Denise Trentin, Jane Santana, Paula Melques, Lívia Bardy, Soellyn Bataliotti e ao Matheus Amparo, obrigado pelo incentivo e por serem sempre

tão carinhosos comigo;

Aos professores do CPIDES, Klaus Schlünzen, Elisa Schlünzen e Ana Maria Osório pelas oportunidades que me ofereceram e por me incentivarem a lutar pelos meus ideais. À professora Danielle Ap. do Nascimento dos Santos, por ter me mostrado, desde a graduação, como é importante a gratidão. Sou grato a você por tudo o que me ensinou e por ter me ajudado a enxergar que um ensino que não é inclusivo não vale a pena;

Ao amigo Klinger Ciríaco, pela amizade sincera, pela preocupação em me ajudar com a leitura dos meus textos, por estar comigo em diversos momentos importantes da minha

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vida e torcer, mesmo à distância, para que eu conseguisse vencer. Obrigado também por compor a banca examinadora da minha defesa de Doutorado;

Ao Adriano Gomes Vasconcelos, meu grande amigo, que sempre se mostrou tão atento às minhas ideias, aos meus interesses pessoais e acadêmicos, por ter dedicado horas a conversar comigo sobre inclusão, escola... quanta generosidade! Obrigado pela sincera amizade e por todo carinho destinado a mim;

A todos da equipe do Colégio Jean Piaget, de Pirapozinho/SP, por me incentivarem a prosseguir meus estudos e serem tão generosos comigo;

Aos professores participantes da pesquisa, que permitiram a minha participação nos seus processos de formação e se dedicaram a um novo modo de ensinar;

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), agradeço o financiamento dos meus estudos, sob processo nº 2016/00978-9.

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RESUMO

Este estudo diz respeito às minhas experiências de formador de um grupo de professores que ensinam Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Os encontros de formação compõem o cenário principal das minhas memórias — a matéria-prima desta investigação. O problema que originou esta pesquisa foi a dificuldade de os professores entenderem o que é um ensino inclusivo e suas demandas. Meus objetivos, em decorrência, foram identificar as razões que levavam os professores a pensarem que o ensino precisava ser diferenciado para alguns estudantes e criar um entendimento sobre as contribuições de uma formação docente em serviço ao ensino para todos. Ao atualizar o passado, busquei trazer à tona os fatos que vivi e, ao estudá-los, à luz da filosofia deleuzeana, afirmar que se o ensino é uma emissão de signos e a aprendizagem é a experiência de encontro com signos, individualizar ou adaptar um conteúdo cabe exclusivamente àquele que aprende. A organização desta pesquisa em narrativas tem como referencial os conceitos deleuzeanos de séries, acontecimentos e platôs. Ao escrevê-las, concluí que a formação contribuiu para que os professores avançassem na compreensão da inclusão escolar superando o problema da pesquisa e estendendo essa superação às demais disciplinas do currículo.

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ABSTRACT

This paper is regarding my experience as a trainer for a group of Math teachers of early Elementary School. The training sessions with them set the main scenario of my memories – the core of this investigation. The problem that originated this research was the struggle those teachers had to understand inclusive teaching and their demands. My goals, in response, were to identify the reason which led those teachers to think that teaching had to be different for some students and build an understanding of in-service teacher training contributions to general teaching. By revisiting the past, I sought to expose facts from my experience and, by studying them under deleuzian philosophy's scope, to confirm that if teaching is considered an emission of signs and learning is considered the experience of engaging with signs, thus individualizing or adapting a content is entirely the learner's responsibility. The organization of this research in narratives has deleuzian concepts of series, events and plateaus as references. By writing them, I concluded that the training contributed to teachers striving towards comprehension of inclusive teaching, overcoming the research’s problem and extending this endeavor to the remaining subjects from the curriculum.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Minhas memórias são repletas de imagens. Neste documento...

Imagem 1 — Alunos no mercadinho ... 60

Imagem 2 — Professora do AEE atuando na sala de aula comum ... 62

Imagem 3 — Alunos realizando o “Passeio dos Números” ... 67

Imagem 4 — Alunos realizando atividade de ordenação dos números... 68

Imagem 5 — Professores explorando o Material Dourado... 76

Imagem 6 — Material produzido pelos professores para o estudo do sistema de numeração decimal ... 77

Imagem 7 — Fichas sobrepostas utilizadas na atividade de composição e decomposição dos números... 78

Imagem 8 — Professoras explorando as fichas sobrepostas... 79

Imagem 9 — Alunos utilizando tampinhas de garrafa para representar os numerais... 80

Imagem 10 — Professoras participando da oficina da Geometria... 85

Imagem 11 — Alunas na aula de Geometria ... 87

Imagem 12 — Professor e formador analisando uma filmagem da aula... 93

Imagem 13 — Alunos na loja de móveis...100

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AEE — Atendimento Educacional Especializado ATPC — Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo

CAAE — Certificado de Apresentação para Apreciação Ética CEP — Comitê de Ética em Pesquisa

DI — Deficiência Intelectual EE — Educação Especial

EPAEE — Estudantes Público-Alvo da Educação Especial

FAPESP — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo LEPED — Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença ONU— Organização das Nações Unidas

PNEE — Política Nacional de Educação Especial

PNEEPEI — Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva SD — Síndrome de Down

SRM — Salas de Recursos Multifuncionais TA — Tecnologia Assistiva

TCLE — Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TE — Tecnologia Educacional

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SUMÁRIO

NOTAS PRELIMINARES ... 14

DA ORGANIZAÇÃO DESTE ESTUDO EM SÉRIES E PLATÔS ... 17

PLATÔ I–DA COMPOSIÇÃO ... 20

1ª série – Da matéria-prima: a memória ... 21

2ª série – Da experiência ... 23

3ª série – Da escrita da experiência ... 30

PLATÔ II–DOS ACONTECIMENTOS ... 34

4ª série – O convite ... 35

5ª Série – A intenção dos professores ... 36

6ª série – O livro ... 39

7ª série – As razões ... 43

8ª série – Uma formação negociada ... 47

9ª série – O plano de ensino individualizado ... 51

10ª série – O mercadinho ... 59

11ª Série – A placa do carro ... 64

12ª série – O Material Dourado ... 72

13ª série – O limão... 82

14ª série – As narrativas ... 90

15ª Série – A loja de móveis ... 97

16ª série – A prova... 104

17ª série – A despedida ... 111

PLATÔ III–DOS EFEITOS... 112

NOTAS COMPLEMENTARES ... 117

REFERÊNCIAS ... 120

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Notas preliminares

Vinculei-me, em 2016, ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Desde então, venho sendo provocado a pensar a educação escolar não a partir de verdades já instituídas, mas da eliminação das transcendências (o que nos é imposto) e da composição com os elementos imanentes à escola: os professores, os alunos, as suas dificuldades reais, seus desejos e interesses.

Dediquei-me, primeiramente, a entender a questão de fundo de uma escola para todos — a diferença — conforme concebida por Gilles Deleuze e seus intercessores. Meus estudos levaram-me a distinguir a diferença na concepção platônica e aristotélica da concepção deleuzeana.

Platão concebeu a diferença como o elemento central de um mundo problemático. A partir dessa ideia, distinguiu o que considerava puro do impuro, o autêntico do inautêntico, as cópias bem-feitas das malfeitas em relação a um modelo previamente estabelecido — sendo as malfeitas nomeadas simulacro, como referiu Deleuze (2000) na obra Lógica do Sentido.

Ao contrário de Platão, Aristóteles não a captou, convertendo-a a um atributo fixo e externo ao ser: à diferença específica “entre” as coisas, empírica, mensurável e visível, como a cor, a raça, o gênero, a espécie, a multiculturalidade. Pensou-a como diversidade.

Deleuze (2006, p. 31), inspirado por Bergson afirmou na obra Diferença e

Repetição que “a diferença é interior à ideia, é o movimento criador, dinâmico, intensivo,

fundada no desigual”. Schöpke (2012, p. 155), ao se referir à obra deleuzeana, a denomina como “a expressão do próprio ser”. Este é o conceito de diferença com o qual me alinho: diferença que não é um atributo, mas própria univocidade de cada ser — o seu ineditismo. Portanto, é a partir desse entendimento que desenvolvo o estudo que ora apresento.

O estudo da filosofia apresentada por Gilles Deleuze e outros autores nos convida a desconstruir a análise puramente racional da escola. Nos traz a possibilidade de entendê-la a partir de uma pluralidade de sentidos.

Nosso tempo é demarcado pelo excesso de informações, de opiniões e de necessidades que se transformam instantaneamente. A multiplicidade de verdades, os modelos colocados em xeque, tudo isso, instaura um universo que nos convida à estranheza e nos

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convoca a um novo modo de pensar.

Precisamos perceber o que nos fere e nos mobiliza, pensar sobre as nossas ações, intencionalidades, sobre aonde queremos chegar, ou melhor, sobre como tem sido o nosso percurso, independentemente de qual tenha sido o ponto de partida. Nesse cenário incerto, em que as rotas já traçadas demonstram sinais de esgotamento, precisamos reinventar outros caminhos, abrir novas possibilidades que estejam coerentes com questões consentâneas ao presente para que a diferença flua.

Cada vez mais se acredita que a diferença é a causa de muitos problemas que vivenciamos. Então, são desenvolvidos métodos para contê-la, como se essa fosse a saída para se estabelecer uma ordem nesse mundo caótico, incontrolável. Nessa busca, tentamos definir “o que” somos e “o que” os outros são, e pouco nos dedicamos a conhecer “quem” somos e “quem” são todos aqueles que, como nós, não são delimitados por algum atributo e nem representados por uma categoria qualquer.

A diferença deve ser problematizada, nunca reduzida em suas potências. Temos de enfrentar os desafios que ela nos impõe. Mas, todos aqueles que têm, direta ou indiretamente, uma relação com a educação, podem perceber, facilmente, os esforços (inócuos) dos sistemas de ensino para que a diferença seja controlada nos espaços escolares. Tais esforços revelam-se de diversos modos: quando concebemos o ensino como uma transmissão de saberes prontos e acabados; quando entendemos a aprendizagem como uma capacidade de repetição do que fora ensinado — isto é, como recognição; quando valorizamos um único tipo de conhecimento e classificamos os nossos alunos a partir de uma avaliação, uma nota ou, ainda, quando pensamos que o ensino deve ser individualizado para alguns estudantes que não correspondem às exigências da escola.

É sempre bom estarmos atentos aos discursos e práticas, quase convincentes, que manifestam um desejo perverso de aproximar a diferença “do diferente” — construção social que advém da consideração da diferença de alguns alunos, apenas. Nessa direção, pensar em uma educação escolar para todos é considerar cada pessoa como um ser único que não cabe em um padrão e que, portanto, não pode ser comparada a outra, sob qualquer hipótese.

Afirma-se, ainda, que a diferença deve ser tolerada como se alguns seres ocupassem uma posição privilegiada em relação ao outro — “o diferente”. Essa é uma das causas da exclusão. “A diferença não pede tolerância, respeito ou boa-vontade. A diferença,

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desrespeitosamente, simplesmente difere”, como pensou Tomaz Tadeu da Silva (2002). Para que a diferença não seja desviada, capturada, camuflada e neutralizada na escola precisamos recriar o modo como ensinamos e entendemos a aprendizagem. Pensando nisso, cabem as seguintes perguntas: Como ensinar a partir da diferença de cada aluno? Como a escola pode ser recriada frente aos desafios da inclusão? O que se espera da formação de professores para um ensino inclusivo? Seria, de fato, a individualização do ensino para alguns alunos a saída para evitar a exclusão?

A diferença nos traz perguntas, nunca respostas; afirma a precariedade dos significados (que são generalizados, transcendentes, definitivos) e nos exige a criação de novos modos de problematizá-la. Esses modos (contingentes, efêmeros, locais, modestos) são os sentidos que damos ao que nos atinge, isto é, como lidamos com as nossas experiências. Pensar é reinventar. É preciso falar da criação traçando seu caminho entre impossibilidades.

A criação se faz em gargalos de estrangulamento. Se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível. É preciso lixar a parede, pois sem um conjunto de impossibilidades não se terá essa linha de fuga, essa saída que constitui a criação, essa potência do falso que constitui a verdade (DELEUZE, 1992, p. 167).

A impossibilidade de encontrar o significado definitivo da experiência que realizei, como formador de um grupo de professores dos anos iniciais do ensino fundamental, foi a minha constrição. Tal impossibilidade potencializou a invenção de novos sentidos à formação, e são essas criações que desejei narrar neste estudo. Afinal, como escreveu Manoel de Barros1, no poema O livro sobre nada, “tudo o que não invento, é falso”.

A filosofia deleuzeana tem me fornecido pistas para pensar nas bases sobre as quais um processo educativo inclusivo pode se sustentar. Os autores que escolhi como parceiros me permitiram fazer composições, seja pela aproximação ou distanciamento com suas ideias, e foram a minha inspiração para interpretar o que vivi com os professores na experiência educacional que trago nesta tese. Quando penso em interpretação, não me reporto à decodificação dos fatos a partir de pressupostos para o alcance de um significado dado como

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verdade, como pretendem os enfoques hermenêuticos {1}2, mas à realização de um movimento

modesto de criação de sentidos.

Quero “fazer do sentido o objeto de uma nova proposição, isto é ‘cuidar bem do sentido’”, como pensou Deleuze (2000), para que abra novas fendas, novas aberturas, necessidades, criações diante do caos do agora, desse plano incerto e movediço no qual estamos, do qual fazemos parte.

Da organização deste estudo em séries e platôs

A tarefa de comunicar os sentidos que criei ao reviver momentos de uma formação de professores não foi simples. A palavra representa precariamente o que senti e o que apreendi a cada atualização que fiz e faço do que vivi. Isto ocorre porque a experiência é algo que não pode ser representado. No entanto, ainda que a escrita não dê conta da simultaneidade das forças que me levam a pensar, ela é uma forma de tomada de consciência3, um movimento, um devir. Na obra O que é Filosofia?, a última escrita por Gilles Deleuze e Félix Guattari, os autores trataram do plano de imanência: um espaço que delimitamos e que “faz apelo a uma criação de conceitos” (1992, p. 60). Os planos de imanência que traçamos são as bases para a produção de sentidos ao que vivemos e, portanto, são terrenos férteis para a criação.

Neste estudo, os meus planos de imanência foram traçados quando pensei nos casos em que vivi, nas pessoas e coisas que fizeram parte deles e nas experiências que tive pelas escolas em que passei. Foram espaços compostos por pessoas, sentimentos, objetos, pensamentos e subjetividades que geraram “zonas contínuas de intensidades”, as quais Deleuze (2004, p. 166) definiu como platôs.

Em seu sentido literal, o platô é um tipo de relevo constituído por uma superfície elevada que se sobressai às outras. As exigências atuais a mim impostas na elaboração desse estudo — enunciar e desenvolver uma tese — formaram intensidades de forças que me mobilizaram a pensar sobre os fatos pedagógicos que vivi. Esses pensamentos foram atualizados pela memória e virtualizados pelos sentidos que criei, transformando-os em

acontecimentos, construídos e apresentados em séries. Os platôs são constituídos por séries de

2 Ver notas complementares.

3 A tomada de consciência, do ponto de vista cognitivo, é algo fugaz, que diz respeito aos meios que uma pessoa

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acontecimentos, e são, na verdade, blocos de acontecimentos que se relacionam, embora sejam

heterogêneos, isto é, distintos.

Os platôs não agrupam as séries de acontecimentos, não as organizam, não as definem. Eles dizem respeito às associações momentâneas que fiz para criar cada uma das

séries. Referem-se ao que, em um certo momento, agitou as minhas ideias em um ritmo que me

incitou e me possibilitou criar sentidos ao que vivi.

As séries, por sua vez, são lineares quanto a sua forma de organização, mas coexistentes, ou seja, podem ser combinadas de diversos modos, sem tenderem a uma uniformização lógica, ou ainda, convergirem para uma série final, conclusiva. Desta forma, meu texto foi organizado de forma linear, mas a sua linearidade não representa a simultaneidade presente nas séries que o compõe.

No Platô I do meu texto apresentei as composições que realizei para criar um conceito de experiência, fundamental neste estudo. Entendo que a criação de um dado conceito advém de agenciamentos, ou seja, é uma ousadia do pensamento, incitada pelos problemas que brotam da realidade. A criação de um conceito diz respeito aos meus modos de lidar com o que me afeta, e é justamente nessa construção que ocorre uma produção de sentidos sobre o que vivi. O conceito, ao contrário da definição, é particular, contingente. Analogamente, o conceito apresenta-se à definição como o sentido apresenta-se ao significado. Sem conceituar a experiência, inicialmente, pouco conseguiria produzir, pois a experiência é o plano que traço para pensar.

No Platô II, narrei os fatos pedagógicos da formação estudada e os personagens que os compuseram. Nele, inventei os sentidos para as relações que construí com os alunos e professores que comigo estiveram. Trata-se de inventá-los porque o que escrevi sobre eles são, de fato, criações minhas. O que eu escrevi expressa apenas o que eu pensei, parte de um olhar relativo e provisório.

No Platô III, sobrevoei todo o percurso vivido e estudado neste tempo. Na verdade, tratei de “sobrevoar os sobrevoos” que já fiz para compor os dois primeiros platôs. A partir dos efeitos de tudo o que virtualizei e representei no processo de escrita, apresentei os sentidos que dei para a formação docente, para o ensino e para a aprendizagem a fim de responder à pergunta que me desassossegava: como uma formação docente pode contribuir para um ensino inclusivo?

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As notas preliminares e complementares foram escritas para tratar de conceitos importantes a este estudo que, se fossem apresentados nas séries, talvez tirasse o leitor da imersão às narrativas.

Esse modo de organizar as séries foi inspirado na tríade que o professor Silvio Gallo apresentou na obra Deleuze & a Educação (2016): o traçado de um plano e seus conceitos, a invenção dos personagens que o compõe e a criação a partir disso. Ressalto que para escrever cada uma das séries repeti o mesmo procedimento: o traçado de um plano com seus personagens e a criação. E desse movimento fractal originou a presente tese.

O que pretendi, ao narrar as minhas experiências em séries de acontecimentos heterogêneos, não foi alcançar uma compreensão generalizada ou ultimar um entendimento sobre a educação escolar, o ensino, a aprendizagem. Ao tratar das diferenças que desafiaram as minhas certezas, do que aprendi por meio da improvisação de uma interpretação da realidade a partir de problemas e não de uma hipótese, faço um convite a um novo modo de pensar a pesquisa, a ciência, a produção de conhecimento. Com isso quero fornecer possibilidades para que outras pessoas, que se sentirem tocadas com o que narrei, possam combinar as séries do seu modo particular, demarcar novos planos e construir a sua própria obra.

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1ª série – Da matéria-prima: a memória

Iniciei pelo fim. Estava no final de um trabalho que realizei como formador de trinta e cinco professores e professoras que ensinam Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Eles atuam em quatro escolas da rede municipal de ensino de uma cidade do extremo oeste do estado de São Paulo.

Foi, sem dúvidas, de longe, de fora, que me conectei cada vez mais àquela formação e tomei consciência do que construímos juntos naqueles quase dois anos de trabalho. O meu distanciamento físico daqueles espaços, pessoas e objetos exigiu que eu me reaproximasse deles. Como Manoel de Barros, passei os dias ali, quieto, nas coisas miúdas. E me encantei.

Nesse retorno, passei a me constituir como um pesquisador — um estudioso do que fiz, do que aprendi, do que criei, do que deixei e, sobretudo, de como me transformei com o que eu trouxe das relações que construí nas escolas que passei. Na tarefa de pesquisar, foram as marcas do passado no presente que me importaram; foi a elas que recorri (e recorro) para pensar as minhas experiências, a minha própria vida. O fim da tarefa de formador, o início da atividade de pesquisador. Estive, na verdade, sempre em um novo começo.

Como Jorge Larrosa (2015, p. 18) escreveu em seu livro Tremores, também entendi que a experiência “não é o que se passa, é o que nos passa, não é o que acontece, mas o que nos acontece e ainda não é o que toca, mas o que nos toca e nos transforma”. Estudar a experiência vivida é sempre um movimento que, embora seja de volta, nunca retorna ao mesmo e, por isso, tanto me seduz. O estudo das diferentes vidas, valores, atitudes e crenças que compuseram a formação e, principalmente, dos seus processos de transformação, diz respeito ao que sou nesse momento. Nesse momento.

Conversei muito com a professora Maria Teresa Mantoan e com os professores sobre a formação que construímos, trazendo à tona os fatos que vivemos e que me possibilitaram entender que se o ensino é uma emissão de signos e a aprendizagem é a experiência de encontro com signos, individualizar ou adaptar um conteúdo cabe exclusivamente àquele que aprende.

A dificuldade dos professores para compreenderem essa questão me suscitou a seguinte pergunta: como uma formação docente em serviço pode ajudar os professores a entenderem que a inclusão escolar não depende da diferenciação do ensino a alguns alunos? Para responder essa pergunta, revisitei os dados criados: estudei as filmagens e as fotos das

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aulas de Matemática desenvolvidas, as nossas falas gravadas e transcritas nos meus relatos de campo. Nesse sentido, retornei ao que vivi a partir dos problemas que surgiram no processo investigativo. Isso, para mim, é fazer pesquisa.

Com este estudo pretendi, primeiramente, identificar as razões que levavam os professores a pensarem que o ensino precisava ser diferenciado para alguns estudantes, e também criar um entendimento sobre as contribuições de uma formação docente em serviço ao ensino para todos. Os dados foram criados e não coletados, pois advém das nossas relações interpessoais e dos nossos processos de transformação frente aos problemas encontrados ou criados por nós. Quantas vozes e silêncios, ditos e não ditos, explicações, situações não explicadas e não explicáveis compuseram aquela formação! Não há realmente como pensar em uma pesquisa puramente objetiva, linear, conclusiva.

A narratividade — o meu modo de estudar as minhas experiências — me possibilitou considerar elementos objetivos (fatos e matéria) e subjetivos (o que é emanado dos fatos para mim, o que sinto a partir do que vivi).

Uma dificuldade que encontrei diz respeito ao fato de eu ter trabalhado com muitas pessoas, por um longo período de tempo. Não é possível escrever sobre cada caso, cada fala, cada olhar, cada silêncio que percebi e que me afetou. A minha memória é seletiva e escrevo, hoje, sobre o que me afeta hoje. Quando escrevi, por exemplo, sobre o que “um professor”, “alguns professores” ou ainda “o grupo” criou a partir dos nossos encontros, o que eu trouxe foi a minha interpretação dos fatos. Foi apenas um modo que encontrei para me referir às percepções que tive dessas criações. É exatamente devido à impossibilidade de afirmar algo sobre outro que este estudo não se fundamentou na descoberta de verdades, mas na criação de sentidos.

Ter sido um dos personagens da formação me possibilitou contribuir diretamente com o seu processo de desenvolvimento e conhecê-la “de dentro”. Durante o tempo em que estivemos juntos, os professores e eu vivemos tantos momentos importantes, sobretudo do ponto de vista pedagógico, que senti necessidade de retomá-los. Refleti retrospectivamente sobre o que vivemos naqueles encontros de formação, em um processo que gosto de chamar de experienciação da experiência. Desloquei virtualmente os fatos ocorridos por uma via subjetiva, que me possibilitou lapidar a minha matéria-prima: a memória.

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Não associo a memória à reminiscência platônica que, sem liberdade para criar, volta-se ao que é imposto, peremptoriamente. Associo-a ao que afirmou Deleuze (2004, p. 45), que “diferenciar-se é o movimento de uma virtualidade4 que se atualiza”. O novo, não está no fato em si, mas no que transcende dele; não é apenas uma questão de relatar o passado, mas contar o que aprendemos ao consultá-lo. Trata-se da adaptação do passado para se interpretar o presente, “daquilo que Bergson chamou de atenção à vida”, conforme Deleuze (1999, p. 55).

Ainda que a nossa compreensão represente precariamente uma experiência (por tratar-se de um olhar, dentre infinitos possíveis), sempre temos algo a contar. O único erro seria tomarmos a nossa opinião como verdade, mas não tive essa pretensão. Quem sabe as minhas conexões, as minhas rupturas, as minhas paixões, os meus desejos, as minhas fugas, as escolhas que fiz para atualizar os casos que revivi, o que escrevi e o que eu decidi ocultar possam afetar outras pessoas a recriarem o seu modo de conceber o ensino, a escola, a educação?

Deleuze e Guattari afirmaram, em um dos trechos que considero como um dos mais interessantes do livro Mil Platôs, que:

Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade ou, ao contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isso, as linhas e as velocidades mensuráveis, constituem um agenciamento (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p.2).

Este texto é um agenciamento, uma produção do meu pensamento a partir dos modos que criei para lidar com aqueles que comigo estiveram nesse tempo de trabalho e que me possibilitaram tantas experiências.

2ª série – Da experiência

Um dia desses me encontrei com a professora Maria Teresa Mantoan. Enquanto aguardávamos o café que havíamos pedido, ficamos observando a rua, lá fora. Havia um casal sentado, uma moça com seu cachorro, alguns carros passando, muitas pessoas olhando os seus

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celulares. Ela me contou que Charles Baudelaire, um poeta francês do século XIX, escreveu, em algumas de suas obras, sobre o flâneur — um sujeito que tinha prazer em observar o cotidiano das cidades, experimentando-o, percebendo-o a partir daquilo que lhe afetava de uma maneira particular. Estávamos, naquele momento, realizando a flanêurie — o ato de apreensão daquele ambiente, como escreveu Walter Benjamin (1994a).

Ao chegar em casa, quis saber mais sobre o flâneur e pesquisei, na internet, textos sobre aquele personagem. Li que ele era um sujeito apaixonado pela cidade, padecia nela e daquilo que emergia em seu corpo (experiência) no contato com ela. Lembro-me do que pensei: o que será que Charles Baudelaire entendia por experiência ao associá-la à figura de um sujeito que “se deixava levar”, que se transformava a partir do que lhe afetava? Ao imaginar esse indivíduo passeando pelas ruas da cidade, lembrei-me da fase em que passei a frequentar as escolas em que fui formador, antes de assumir tal função.

Assim que recebi, da secretária municipal da cidade em que desenvolvi meu trabalho, o convite para ser formador dos professores, passei a visitar as escolas a fim de identificar possibilidades de contribuir com o trabalho desenvolvido por eles. Até a aprovação5 do meu projeto de pesquisa do Doutorado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), observei o cotidiano das escolas em que eu iria trabalhar: os encontros de formação, o recreio, as reuniões de pais e mestres, o trabalho na sala de aula comum e nas Salas de Recursos Multifuncionais (SRM). Esse período foi de outubro de 2015 a abril de 2016, e em maio do mesmo ano, com a aprovação do CEP, iniciei a minha participação como formador. Aqueles momentos de observação foram muito prazerosos e fecundos, pois me ajudaram a decidir que tipo de estudo eu faria a partir do meu trabalho de formador.

Ainda que eu partisse da asserção de que se ensina a todos os alunos sem individualizar o ensino para alguns deles, tinha consciência de que, para tal, não havia um modelo prescritivo a ser seguido. Entendi, então, que tal como um flâneur eu não desvelaria o que já estava dado, supostamente, como verdade, ou seja, eu não poderia ter a pretensão de encontrar um “modo adequado” de ensinar na perspectiva da inclusão. Sempre soube da

5 A pesquisa foi aprovada em maio de 2016 pelo comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de

Campinas (UNICAMP), CAAE: 54026216.6.0000.5404. Todos os professores participantes assinaram o Termo de Livre Consentimento e Esclarecido (vide apêndice) e autorizaram a divulgação de imagens para fins acadêmicos. Os pais/responsáveis pelos alunos também autorizaram a divulgação de imagens.

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impossibilidade de traçar um plano rigoroso para que as aulas ocorressem de uma determinada maneira. Portanto, o que sempre busquei foi construir com os professores modos de ensinar a todos os alunos e, com isso, aprender algo a partir dos encontros com aquelas pessoas que comporiam a formação.

Ao observar o movimento do cotidiano das escolas que eu visitava, fui definindo um plano de trabalho enquanto formador com objetivos claros, algumas estratégias em mente e com encontros organizados semanalmente, em um cronograma fixo. Busquei analisar a prática desenvolvida pelos professores ao ensinarem Matemática e a problematizá-la. Enquanto pesquisador, atentei-me aos detalhes, à imprevisibilidade, ao inusitado, ao que também não era dito ou mostrado, a elementos que estavam nos limiares entre os enunciados e as práticas: nas relações, na transição, no imaterial, no que eu sentia ao viver com aquelas pessoas, na intencionalidade embutida nas ações, no que não estava previamente definido — a não ser o meu desejo de apoiar os professores para desenvolverem um ensino inclusivo.

Via-me quase na figura de um flâneur. “Quase”, pois um flâneur não partia de um objetivo predeterminado, mas eu sim. No entanto, como ele, eu não hipóteses (que precisariam ser afirmadas ou negadas), e permitia-me ser afetado, ser ferido pela realidade em que estava naquele momento. Não coletei dados, mas os construí; tive consciência da necessidade de registrar o que eu via, mas registrei pela escrita, sobretudo, o que eu senti. Observei um cotidiano escolar e, ao me envolver com aqueles espaços e situações, tornei-me parte deles, modificando-os. Meu desejo ao experimentá-los não foi encontrar uma verdade, mas construir experiências.

O meu interesse pela experiência sempre me fez procurar textos sobre esse assunto. Ao compartilhar as minhas ideias com a professora Maria Teresa Mantoan, ela me apresentou Jorge Larrosa, um autor que entende a experiência a partir de uma desconstrução do perfil engessado atribuído a ela pela Ciência Moderna {2}, tal como referiu Boaventura de Sousa Santos (2010) em sua obra Um discurso sobre as ciências. As obras de Santos e de Larrosa me ajudaram a pensar e a escrever sobre o que seria experiência para mim. Tenho, então, procurado distanciá-la daquilo que eu percebo não ser próprio dela. O tecnicismo, por exemplo.

A discussão sobre o par ciência/técnica no campo educacional, realizada por Larrosa (2015), me deu pistas para entender que, nesse par, os professores são vistos como profissionais aplicadores das tecnologias pedagógicas produzidas pelos cientistas. Mediante

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isso, o trabalho docente é reduzido à aplicação de um método e, nessa direção, a experiência é entendida como o resultado dessa aplicação, que busca desvelar a verdade, que direciona as atividades humanas a um consenso — entendido como eficiência em uma perspectiva retificadora.

Sei que a experiência não produz um sujeito que sabe, mas sim um sujeito que aprende. A diferença entre saber e aprender não constitui apenas um jogo de palavras: saber está relacionado a uma reprodução automática de uma suposta e derradeira verdade; o aprender, por sua vez, é próprio de um pensamento autônomo, livre, inacabado.

Há alguns anos, ao conversar com uma amiga, também professora, compartilhei algo que sempre me incomodou na escola: a pouca autonomia que tínhamos para atuar em sala de aula. Enquanto professor de Matemática da rede básica de ensino, percebia que não podia decidir com meus alunos os temas que estudaríamos nas aulas; eu não sabia até que ponto os saberes que eles traziam das suas vidas fora da escola eram valorizados por aquelas atividades prontas que eu tinha de aplicar. Também não podia decidir entre propor ou não uma avaliação às minhas turmas. Sentia-me um aplicador do livro didático adotado pelas escolas, o que para mim se tratava de um ensino mecânico.

Discutimos, também, sobre a necessidade de valorizar as atividades práticas dos alunos, e então aquela professora me indicou textos sobre o Pragmatismo — escola filosófica que valoriza a relação entre teoria e a prática, entendendo-a como um modo pelo qual as hipóteses podem ser negadas ou confirmadas, e que é nesse processo que se dá a experiência.

Distanciando-me do par ciência/técnica, busquei no par teoria/prática possibilidades para modificar as minhas ações pedagógicas. Dentre outros livros, li a obra Democracia e

Educação, de John Dewey (considerado um dos fundadores do Pragmatismo), publicada em

1959. Nela, o autor afirma que a experiência compreende alguns princípios, dentre eles: (a) a dúvida; (b) a tentativa de interpretação dos elementos dados, atribuindo-lhes uma tendência para produzir certas consequências; (c) um cuidadoso exame de todas as considerações possíveis que definam e esclareçam o problema a resolver; (d) a consequente elaboração de uma tentativa de hipótese para torná-lo mais preciso e mais coerente, harmonizando-se com uma série maior de circunstâncias; (e) tomar como base a hipótese concebida, para o plano de ação aplicável ao existente estado de coisas; e (f) “fazer alguma coisa para produzir o resultado

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previsto e por esse modo pôr em prova a hipótese” (1959, p. 164). Lembro-me que, quando li esse trecho, intriguei-me.

Entendi que, na perspectiva deweyana, o ato educativo parte de um problema específico, e eu sempre acreditei nisso. No entanto, há a pretensão de que esse problema possa ser resolvido a partir da formulação de hipóteses que tenham coerência com instâncias maiores — os pressupostos, as possibilidades já oferecidas. Pergunto-me, ainda hoje: a aprendizagem realmente está condicionada à afirmação ou negação de uma hipótese inicial? Nesse movimento dialético, permeado de transcendências, qual a real valorização dada à criação do sujeito? Foi considerado que o aprender é, sobretudo, um processo imprevisível e involuntário, nem sempre vinculado às nossas escolhas?

Definitivamente, não consegui conceber a experiência do ponto de vista da necessidade, como nas teorias pragmáticas. Fui seduzido pela ideia do acidente, por aquilo que ocorre sem o excesso de previsibilidade. Nunca pensei o ensino a partir de uma irracionalidade, mas vejo a necessidade de uma ruptura com questões conceituais, epistemológicas e teóricas que anulam a importância das nossas percepções imediatas. Sei que a escola supervaloriza o conhecimento mediado, a informação, a explicação, a reprodução; delega, ao aluno, uma liberdade condicionada de aprender. Minha angústia é pensar como nós, professores e formadores, podemos devolver ao processo de construção do conhecimento o seu caráter aventureiro, tão menosprezado historicamente.

Sei que Dewey rompeu com a ideia de uma educação baseada puramente na teoria, na técnica, e, portanto, na generalização, mas esse rompimento não foi suficiente para superarmos o formato educacional estrutural em que a educação ainda se organiza — a partir de teorias uniformizadoras, em que o sujeito é “autônomo” para alcançar uma meta imposta por outrem. Que autonomia é essa?

A interpretação analítica e reflexiva da prática educativa centrada na comprovação da aprendizagem do aluno, tão defendida pelo Pragmatismo, não estaria relacionada às classificações dos sujeitos em “d-eficientes”, “especiais”, “de inclusão”, “adequados”, dentre outras determinações que tanto dificultam o trabalho pedagógico inclusivo?

O fato é que no par teoria/prática as experiências são entendidas como passíveis de serem controladas a partir dos resultados da ação prática. Com isso, a experiência é subvertida a um experimento.

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Apesar de ter me servido da relação entre prática e a teoria, pude, precisei e quis ir além. Não pretendi superar as ideias pragmáticas, mesmo porque não penso que uma ideia supera a outra, tampouco negá-las, pois sei da indiscutível importância para a época em que foram elaboradas; apenas construí a minha concepção de experiência a partir de uma composição com outros elementos.

Os pares ciência/técnica e teoria/prática já vêm demonstrando sinais de esgotamento, e essa crise nos convida a um novo entendimento da matéria: histórias locais no lugar da eternidade, ou ainda, como Boaventura escreveu, “em vez de determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade” (SANTOS, 2010, p. 48).

Esse trecho me fez pensar que se a educação fosse pensada a partir da impossibilidade de estruturar de forma lógica e linear o conhecimento humano, todos os alunos seriam, de fato, incluídos no processo educacional formal e regular. Em Tremores, Larrosa (2015) nos provoca a pensar a educação pelo par experiência/sentido, e, ao ler o que ele apresentou, fui me aproximando do que entendo hoje por experiência.

Contudo, foi o texto Experiência e alteridade em Educação, de Larrosa (2011), sugerido pela professora Adair Mendes Nacarato, que me afetou de verdade. Li e fiquei incomodado, fascinado! Sinto a necessidade de copiar, aqui, um dos trechos que mais me provocou.

A experiência supõe, em primeiro lugar, um acontecimento ou, dito de outro modo, o passar de algo que não sou eu. E ‘algo que não sou eu’, significa também algo que não depende de mim, que não é uma projeção de mim mesmo, que não é resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem de minhas representações, nem de meus sentimentos, nem de meus projetos, nem de minhas intenções, que não depende nem do meu saber, nem do meu poder, nem da minha vontade [...] Chamaremos a isso de princípio de alteridade (LARROSA, 2011, p. 5).

Quando li esse parágrafo, demorei-me a avançar no texto. Precisei “saborear” aquelas palavras. Assim como Larrosa, também entendi a experiência como algo que não está no meu controle, e a alteridade faz-me entender que, embora a experiência não dependa de mim, é em mim que ela acontece: eu sou o sujeito da experiência.

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Se a experiência é algo que me passa, me toca e me transforma, enquanto sujeito da experiência sou uma “superfície de sensibilidade”, como escreveu Larrosa (2011, p. 8), um corpo que padece, que muda, que pensa, que faz, que se transforma a cada encontro com algo que exige isso. O que para alguns é um fato qualquer, para mim pode ser experiência, dependendo do modo como lido, como ele me toca e me transforma. A essa liberdade Larrosa chamou de “princípio de subjetividade”.

Um flâneur quando sai pelas ruas, não apreende todas as coisas, apenas o que lhe intriga, ameaça, desperta, seduz. Entendi a experiência como o encontro com esse “algo” ou “alguém” que me atinge, tirando o meu pensamento da sua natural imobilidade. Talvez seja assim que Baudelaire a concebeu. Isso me faz lembrar o que Deleuze (2003) denominou por

signo na obra Proust e os Signos, no seguinte trecho:

Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja “egiptólogo” de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se tornando-sensível aos signos da doença. A vocação é tornando-sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos (DELEUZE, 2003, p. 4).

É isso: os signos são sempre emitidos, mas a experiência, por sua vez, acontece quando há um encontro pessoal com um deles. Não se trata apenas de uma ação empírica, de uma informação ou de uma verificação de hipóteses, mas de um encontro acidental, de uma colisão com algo (ou alguém) que nos emite sinais e nos força a pensar o que ainda não pensamos. O signo é, portanto, o acionador do pensamento, quando exerce uma força mobilizadora sobre nós. Por esta razão, o que representa um signo para um sujeito pode não representar para outro, já que é precisamente a contingência do encontro que ocasiona a experiência. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural, ele é, ao contrário, a única criação verdadeira.

Se pensarmos em uma aula, ou em um encontro de formação com professores, por exemplo, quantos e quais são os signos emitidos pelos mais diversos e imprevisíveis emissores? E quantos são os modos de interpretá-los? Se a experiência é o encontro com um

signo (sempre casual, local, pessoal), os sentidos da experiência são os diferentes modos de

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atualizáveis e referem-se a afectos e perceptos.

Conforme Deleuze (1992) nos ensina, perceptos são conjuntos de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam, não são, portanto, apenas percepções. Afectos, por sua vez, são forças e fluxos internos que mobilizam cada pessoa a tomar determinada posição, a pensar e fazer de determinadas formas em um dado momento. São mais que sentimentos, pois não são sensações simbolizadas, nomeadas por códigos, generalizadas. Afectos são modos singulares de sentir, devires incontroláveis que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro).

Pensar a educação nesse âmbito é superar o pragmatismo, considerando que a experiência não pode ser verificada, sistematizada, calculada. Um ensino para todos os alunos não pode estar relacionado unicamente ao par ciência/técnica e/ou ao par teoria/prática, mas a um par que relaciona a subjetividade a todos esses elementos: o par experiência/sentido.

Guattari (1992, p. 33) afirmou que “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriquece de modo contínuo sua relação com o mundo”. O ato de pensar, então, não está relacionado somente a calcular, a argumentar ou a julgar, mas principalmente à criação de sentidos ao que nos acontece. As minhas experiências — o que me acontece e me transforma — compõem o plano de construção da minha tese, por exemplo.

3ª série – Da escrita da experiência

Em abril de 2018 realizei o último encontro de formação com os professores. Até então, não havia conseguido escrever sobre o que acontecera neles. Confesso que, nesse tempo, até senti vontade de pôr no papel algumas coisas, mas, todas as vezes que sentava para escrever, as ideias escapavam. Fechava o caderno, elas ressurgiam. Se eu pudesse escrevê-las como conto minhas histórias aos meus amigos seria mais fácil, mas o rigor acadêmico freava o meu desejo. Confesso que escrever, para mim, é uma tarefa difícil, pois é uma tentativa de paralisar aquilo que está em constante movimento. No entanto, gostei desse desafio, pois é por meio dele que consegui organizar algumas ideias para comunicá-las.

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A professora Maria Teresa Mantoan e eu passamos a conversar sobre o delineamento metodológico do meu estudo. Eu ainda não estava satisfeito com o modo que havia encontrado para apresentar o que tinha aprendido com a formação de professores. Levei para um dos nossos encontros algumas narrativas que havia escrito. Estava um pouco envergonhado, elas não tinham uma sequência, estavam desorganizadas. Escrevi à mão, como prefiro fazer. Lemos juntos todas elas.

Sempre pensei a pesquisa a partir da coleta de dados, da organização desses em categorias e da sua análise a partir de indicadores. No entanto, ao contar para a professora Maria Teresa Mantoan o que eu mesmo havia escrito, percebi que estava na própria narratividade a construção dos sentidos das minhas experiências. Chegamos à conclusão, ao final daquele encontro, de que o estudo que eu vinha desenvolvendo tinha relação com o que Clandinin e Connelly (2015) definiram como Pesquisa Narrativa.

Como esses autores, também penso que pesquisar seja estudar uma experiência, mas perguntei-me qual seria o sentido de experiência para eles. No decorrer dos meus estudos, identifiquei que Clandinin e Connelly se basearam em Dewey para pensar a experiência.

(...) Dewey entende que um critério da experiência é a continuidade, nomeadamente, a noção de que a experiência se desenvolve a partir de outras experiências e de que experiências levam a outras experiências. Onde quer que alguém se posicione nesse continuum – o imaginado agora, algo imaginado no passado, ou um imaginado futuro – cada ponto tem uma experiência passada como base e cada ponto leva a uma experiência futura. Esse é, também, um pensamento-chave para nossas reflexões sobre Educação por que à medida que pensamos sobre o aprendizado de uma criança, sobre a escola, ou sobre uma política em particular, há sempre uma história que está sempre mudando e sempre se encaminhando para algum outro lugar (CLANDININ E CONNELLY, 2015, p. 30).

Eu diria que, para esses autores, estudar a experiência é retomá-la do ponto de vista de uma ação empírica, e que eles entenderam que uma experiência é a causa de outras, subsequentes. A noção de experiência que defendo, segundo os meus intercessores neste estudo, não se alinha com a base deweyana, e embora a organização desta pesquisa se expresse por meio de narrativas, o meu estudo não se enquadra na Pesquisa Narrativa tal qual Clandinin e Connelly (2015) a conceberam. A partir de Deleuze, entendo que estudar uma experiência não diz respeito a retomá-la do ponto de vista empírico, em uma sequência gradativa, mas tomá-la a partir da intensidade de cada experiência. Tenho consciência de que, ao narrar, não apenas

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estudo fatos passados, mas por meio de um pensar narrativo crio acontecimentos que são novas realidades.

Entendo a narratividade como uma organização intuitiva dos fatos e seus sentidos, que não está exclusivamente relacionada a uma ordem cronológica, a uma lógica consensual, a uma análise cartesiana baseada em prescrições, mas à nossa curiosidade, interesse, desejo e, principalmente, aos signos que nos atingem. O ato de narrar está, portanto, intimamente relacionado ao processo de criação de sentidos às nossas experiências.

Comumente consideramos a intuição como um sentimento ou inspiração. Não a entendo dessa forma. Inspirei-me em Deleuze (1999) que, ao se referir às ideias de Bergson, definiu a intuição como o método da diferença, desenvolvido para conhecer algo a partir da relação imediata, isto é, sem mediações com um objeto, pessoa ou um espaço qualquer. Embora eu também não associe a intuição a uma mera sensação, penso que, por ser livre de conjecturas, de suposições e de procedimentos definidos, essa tem mais a ver com um modo livre de operar, a partir do estabelecimento de problemas, do que com um método.

A intuição, ao contrário da análise, se limita a conhecer um objeto relativamente, já que retemos dele somente o que nos interessa para produzir conceitos. Como Deleuze e Guattari (1992, p. 46) escreveram, o conceito não se refere ao vivido, “mas consiste, por sua própria criação, em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido”. O acontecimento é o surgimento de uma singularidade.

Esse deslocamento é realizado pelo pensamento narrativo, impulsionado pela

intuição. Se a narratividade é o modo de ser da intuição, a escrita, por sua vez, é um processo

de exposição de conceitos elaborados na criação de sentidos.

Certa vez, o professor Rodrigo Barbosa Lopes leu para mim, em uma de suas aulas6, um trecho de um dos seus textos7, em que ele afirmou que escrever

6Refiro-me à disciplina Cartografias da diferença no pensamento educacional contemporâneo, oferecida pelo

Prof. Dr. Rodrigo Barbosa Lopes no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP), no 1º semestre de 2017.

7Artigo intitulado Esboço para um pensamento da diferença e do devir deficiente na educação, publicado em 2016

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(...) é um trabalho minoritário de pensar a vida, de produção do pensamento e, portanto, é inseparável do devir. É o enfrentamento com a tradição, é lançar o desafio de trabalhar os saberes formalizados, revisitar os autores e revisar os conhecimentos acumulados em face das novas exigências que a atualidade nos impõe (LOPES, 2016, p.4).

Quanta importância dada ao retorno! A exigência a mim imposta é enunciar e desenvolver uma tese, por meio da apreensão do que vivi e investiguei, exposta pela minha escrita. Escrever é um exercício que exige tempo, é reviver, é inventar sentidos. O tempo ao qual me refiro não é o dos relógios, dos calendários, é o tempo subjetivo, da intensidade. É nesse tempo que criamos sentidos às nossas experiências a partir do que somos, ou melhor, do que nos tornamos. Do que estamos nos tornando a cada instante. O que dura do passado é o que atualizamos dele, em um movimento que torna o passado e o presente coexistentes — a

duração, conforme Deleuze (1999) a definiu.

Às vezes, projetamos tanto o futuro que nos esquecemos que a vida é, na verdade, uma constante produção de passados, e que é recriando-os, pelos sentidos que a ele atribuímos em um dado momento, que nos constituímos no presente e podemos projetar as nossas ações futuras, seja enquanto aluno, professor, formador, pessoa. Cada observação, movimento, ação, pensamento e sentimento, ao ser criado, se transforma em passado, imediatamente. A transição do presente ao pretérito é instantânea, acontece sem que tenhamos a total compreensão do que fizemos, do que sentimos, de como a ação empírica e intelectual nos transforma.

Todas as vezes que leio o texto O Narrador (BENJAMIN, 1994b) fico fascinado pela importância dada ao ato de recordar. Gosto muito do trecho no qual ele escreve que um narrador as vezes “está longe”, pois é assim que me vejo: como alguém que está fisicamente longe do que narra e que precisa desse distanciamento para enxergar o que, até então, não conseguiu ver.

Sempre que leio algo, busco inventar os elementos que talvez não tenham sido expostos pelo autor e tento entender as escolhas que foram feitas por quem o escreveu para criar novos enredos — as minhas produções. Quando escrevo, também imagino quais serão as criações derivadas de cada escolha que faço, quem serão as pessoas que a minha escrita atingirá. No futuro, ao ler este texto, certamente interpretarei de um novo modo as experiências que aqui discorri, pois já serei outro. Para o momento, é isso.

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4ª série – O convite

A professora Maria Teresa Mantoan participou, em 2014, da minha banca de qualificação do Mestrado e, em 2015, da minha defesa. Nesses momentos pudemos conversar pessoalmente sobre as possibilidades que eu havia encontrado para ensinar Matemática a todos os meus alunos na rede estadual de ensino.

Até o momento só a conhecia por meio dos seus textos que eu havia lido e por algumas de suas palestras que eu havia assistido. Foram de valor inestimável as suas contribuições, que me possibilitaram desterritorializar o que era discutido em sua obra para o campo da Educação Matemática. Ao deslocar as suas ideias para o meu movimento singular de produção de sentidos, dei um novo rumo ao meu trabalho.

Em 2016 fui aprovado no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP, e a minha proposta de pesquisa, como no Mestrado, foi estudar as possibilidades de ensinar Matemática a todos os alunos, sem individualizar o ensino a alguns deles. No entanto, desta vez em uma formação em serviço, com um grupo de professores que ensinavam Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Eles já participavam de encontros de formação, mas não discutiam, especificamente, sobre o ensino de Matemática na perspectiva de uma educação para todos. Por eu ser formado em Matemática e em Pedagogia e ter desenvolvido a minha pesquisa de Mestrado sobre essa temática, a Secretária Municipal de Educação de uma cidade localizada no extremo oeste do estado de São Paulo me convidou para orientá-los. O convite surgiu a partir da dificuldade encontrada pelos professores para ensinar Matemática tendo como base os pressupostos da inclusão.

Esse grupo era constituído por 35 professores. Constatei que, para pensarmos de modo mais detalhado a respeito dos problemas vivenciados por eles, poderíamos nos organizar em grupos menores, pois essa forma de organização permitiria um olhar mais específico tanto para as necessidades de cada professor quanto para as de seus alunos. Após uma reorganização, os professores passaram a se agrupar, semanalmente, de acordo com o ano para o qual lecionavam, e os grupos foram assim constituídos: 10 professores do 1º ano, 16 dos 2º e 3º anos e 9 dos 4º e 5º anos.

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Eles atuavam em quatro unidades escolares: uma na zona urbana da cidade, duas unidades em distritos do município e uma escola situada na zona rural. Uma vez por mês fazíamos reuniões com todos os professores de todas as turmas para compartilharmos o que estávamos vivenciando.

Não baseávamos as nossas discussões em problemas amplos, não considerávamos a escola ou cada turma como um todo unificado. Pensávamos em cada caso, em cada aluno e em seus interesses, em um trabalho minoritário sobre os detalhes daquela realidade, voltado às minúcias de cada contexto específico. Foi um trabalho que se referia a processos singulares que ocorriam em cada sala de aula, com cada estudante, caso a caso, em um contexto mais específico, desconsiderado pelas macropolíticas educacionais.

A organização desses encontros, os temas neles abordados, as estratégias de ensino criadas e os métodos de reflexão desenvolvidos foram se construindo a partir das necessidades que o grupo apresentou no percurso de desenvolvimento da experiência de formação. Saímos de uma zona periférica de análise das práticas pedagógicas (que tentava articular teoria e prática, desconsiderando os interesses dos professores) para infiltrarmo-nos nos problemas colocados pelo próprio grupo, nas experiências daquele universo que foi cada encontro.

5ª Série – A intenção dos professores

A solicitação para que houvesse uma formação em serviço que abordasse o ensino de Matemática na perspectiva da inclusão escolar veio do próprio grupo docente, e isso facilitou o meu trabalho. Roberta, D. Nilza e Fernanda, professoras com as quais eu passei a trabalhar, haviam sido minhas professoras do Ensino Fundamental; sentia-me feliz com aquele reencontro, pois era uma maneira de contribuir com o trabalho delas, uma nova oportunidade para aprendermos uns com os outros.

Para que eu pudesse conhecer melhor as dificuldades apontadas pelo grupo e planejar o meu trabalho a partir delas, marcamos uma reunião com todos. Apesar de estar há oito meses envolvido com aqueles sujeitos, foi a partir do momento que iniciei o meu trabalho como formador que me dei conta da responsabilidade que havia assumido. Foi difícil encarar

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todo o grupo sem saber quais eram as suas expectativas, quais seriam as questões apresentadas e as condições que teríamos para discuti-las. Sentia-me estranho, exposto, uma sensação parecida com a que tive no meu primeiro dia de aula como professor. Sentia-me na obrigação de mostrar o que eu entendia sobre o ensino Matemática, sobre conceitos específicos da área e sobre inclusão escolar. Não sabia por onde começar.

Primeiramente, combinei com eles que gravaria algumas falas8, filmaria e fotografaria alguns momentos da formação para depois retomá-los. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Solicitei a eles que colocassem as suas expectativas em relação aos encontros de formação, e D. Nilza disse que gostaria de falar a respeito. O silêncio foi interrompido e isso me aliviou. Ela não se intimidava, não tinha medo de expor as suas ideias e isso me ajudou muito a entender as suas concepções.

D. Nilza nos contou que na escola em que trabalhava havia alunos “bem atrasados na Matemática” e que era possível comprovar o que dizia com base nas avaliações realizadas por eles. Disse que as suas dificuldades e as dos demais professores estavam relacionadas, primeiramente, à identificação dos Estudantes Público-Alvo da Educação Especial (EPAEE)9 — aqueles que, segundo ela, necessitavam de um acompanhamento do especialista que atuava na Sala de Recursos Multifuncionais (SRM). D. Nilza disse, ainda, que nas SRM eram elaborados planos de atividades adaptadas aos EPAEE para que eles fossem incluídos nas salas de aula comum. Os demais professores concordaram.

Aquela manifestação confirmou aquilo que eu já havia notado no período de observação: por considerarem a diversidade e não a diferença em si, alguns professores acreditavam que a inclusão escolar estava relacionada à elaboração de planos de ensino específicos para cada “categoria de aluno” e que era no Atendimento Educacional Especializado (AEE) que esse trabalho se realizava. Confesso que, naquele momento, tive medo de não conseguir desenvolver um trabalho de formador que contribuísse com uma mudança no trabalho pedagógico daquele grupo. Em diversos momentos fiquei desanimado e pensei em desistir. No entanto, a cada sentimento de desânimo, sentia que aqueles problemas apresentados me afetavam de tal maneira que já eram meus. Eu já fazia parte deles e eles de mim, eu sabia que

8 As falas citadas direta ou indiretamente neste documento foram gravadas nos encontros de formação e transcritas

por mim em meus relatos de campo.

9EPAEE são estudantes com deficiência (Auditiva, Física, Intelectual e Visual), Transtornos do Espectro Autista

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