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A potência poética nos ensaios de Paulo Leminski

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Academic year: 2021

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A POTÊNCIA POÉTICA NOS ENSAIOS DE PAULO LEMINSKI

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Literatura. Orientador: Profª. Drª. Susana Célia Leandro Scramim.

Florianópolis 2019

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DEDICO Às minhas razões de ser: Rosilda Margarida e Gesivaldo Zanella

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À minha orientadora, professora Susana Scramim, pela confiança, pelo incentivo e pela paciência em todo esse tortuoso caminho de mestrado. Aos professores Joca Wolff e Jair Tadeu da Fonseca pelas observações na banca de qualificação. Ao meu amigo e professor Caio Ricardo Bona Moreira por acender em mim a vontade da pesquisa e dar o primeiro pontapé para que eu chegasse até aqui.

Aos meus pais, Rosilda e Gesivaldo, pelo apoio, pelo afeto e por compreenderem minha necessidade em estar longe. Obrigada por me fazerem forte pra segurar as pontas e conseguir terminar essa pesquisa. Aos meus irmãos: Aline, Camile, Jessica e João Pedro, por serem quem são.

Aos amigos/as de perto e de longe. Em especial à Gili, Ju, Mariane e Stephany, pelos anos de amizade, suporte e carinho.

Ao Eduardo, por não largar minha mão, por seu meu refúgio e fazer a vida mais leve.

À CAPES pelo apoio financeiro, à Universidade Federal de Santa Catarina e todos/as os/as funcionários/as, professores/as e colegas do Programa de Pós-Graduação em Literatura, pela acolhida e compartilhamento de conhecimento.

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Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, E as estrelas lá no céu Lembram letras no papel, Quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? Paulo Leminski

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A presente dissertação busca conciliar o caráter intelectual de Paulo Leminski às suas facetas como poeta, agitador cultural e produtor multimídia. Analisamos o ensaísmo buscando compreender de que forma esses textos nos ajudam a delinear um perfil de poeta-crítico a Leminski e de que maneira o texto ensaístico trabalha para potencializar a poesia sobre a qual reflete. Esta pesquisa está dividida em dois momentos principais: o primeiro a discussão a respeito dos gêneros sobre o qual nos debruçamos e o segundo tendo os textos de Leminski como foco de análise. Para realizar nossas leituras e conseguir aproximar esses dois tipos de texto, usamos da liberdade do ensaio enquanto gênero híbrido. Para conseguirmos manter nosso recorte, dividimos a análise em outros três subcapítulos, escolhendo, em primeiro momento, textos ensaísticos que versem sobre a poesia, em segundo momento, textos que carreguem fortes marcas poéticas, como poemas-críticos ou ensaios poéticos. O terceiro momento de análise é uma passagem rápida, mas que não poderíamos deixar de mencionar, sobre as cartas de Leminski enviadas a Régis Bonvicino e publicadas em Envie meu Dicionário. Buscamos colocar esses textos epistolares no horizonte da pesquisa, não nos alongando em analisá-los com a complexidade que merecem, mas não os descartando, pois há neles marcas ensaísticas relevantes à nossa pesquisa.

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RESUMEN

La presente disertación busca conciliar el carácter intelectual de Paulo Leminski a sus facetas como poeta, agitador cultural y productor multimedia. Analizamos el ensayismo buscando comprender de qué forma esos textos nos ayudan a delinear un perfil de poeta-crítico a Leminski y de qué manera el texto ensayístico trabajan para potenciar la poesía sobre la que refleja. Esta investigación está dividida en dos momentos principales: siendo el primero la discusión acerca de los géneros que nos ocupamos y el segundo teniendo los textos de Leminski como foco de análisis. Para realizar nuestras lecturas y conseguir aproximar estos dos tipos de texto, usamos la libertad del ensayo como género híbrido. Para lograr mantener nuestro recorte, dividimos el momento de análisis en otros tres subcapítulos, eligiendo, en primer momento, textos ensayísticos que versan sobre la poesía, en segundo momento, textos que carguen fuertes marcas poéticas, como poemas críticos o ensayos-poéticos. El tercer momento de análisis es un paso rápido, pero que no podríamos dejar de mencionar, sobre las cartas de Leminski enviadas a Régis Bonvicino y publicadas en Enviar mi Diccionario. Buscamos colocar esos textos epistolares en el horizonte de la investigación, no nos alargando en analizarlos con la complejidad que merecen, pero no los descartando, pues hay en ellos marcas ensayas relevantes a nuestra investigación.

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character with his facets as a poet, cultural agitator and multimedia producer. We analyze the essayism seeking to understand how these texts help us to delineate a profile of Leminski's poet-criticism and how the essay text works to enhance the poetry on which it reflects. This research is divided into two main moments: the first is the discussion about the genres on which we focus and the second having Leminski's texts as the focus of analysis. To accomplish our readings and to be able to bring these two types of texts together, we use the freedom of the essay as a hybrid genre. In order to maintain our clipping, we divide the analysis into three other subchapters, choosing, first, essay texts that deal with poetry, second, texts that carry strong poetic marks, such as poem-critical or poetic essays. The third moment of analysis is a quick passage, but we could not fail to mention, about the letters of Leminski sent to Régis Bonvicino and published in Envie meu dicionário. We seek to place these epistolary texts on the horizon of the research, not lengthening in analyzing them with the complexity they deserve, but not discarding them, because there are relevant essay marks in them to our research.

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INTRODUÇÃO...13

Traços de vida...19

1. BUSCANDO O SENTIDO: Por que ensaios?...27

2. QUESTÕES DE GÊNERO...36

2.1. Que sei eu?: Os caminhos do ensaio...36

2.2. As margens do poético...47

3. DAS MARGENS AO CENTRO...53

3.1. Quem não reflete, repete: pensando poesia...54

3.2 Pensar poesia e fazer poesia...78

3.3 Cartas e Alguma Crítica: O ensaísmo em Envie Meu Dicionário...90

COMENTÁRIOS FINAIS...96

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INTRODUÇÃO

O gatilho desta pesquisa se deu devido à necessidade de conciliar o caráter intelectual de Paulo Leminski às suas já famosas facetas como poeta, agitador cultural e produtor multimídia. Alçar Leminski a um patamar de pensador da cultura fundindo-se às facetas citadas, nos dá a oportunidade de criar uma presença mais completa do escritor, ainda que não totalmente fechada ou concluída.

A construção desta pesquisa tem como base os textos ensaísticos de Paulo Leminski. As análises que fizemos destes textos visam construir essa face intelectual do poeta e pensar em como o escritor incorporou a sua poesia nos textos críticos que produziu.

Os dois gêneros trabalhados nesta dissertação caminham nos limites da forma que lhes foi atribuída, às vezes pulando para fora desse contorno e passeando por entre outros tipos. O ensaio e a poesia, que aqui são tratados, têm um encontro entre si após suas respectivas metamorfoses ao longo das suas evoluções como gênero. A obra em que nos debruçamos nos oferece uma perspectiva de aproximação entre esses dois tipos de texto.

Em 1986, três anos antes de falecer, o poeta curitibano Paulo Leminski condensa em um livro aproximadamente dez anos de suas atividades como crítico e publica, neste mesmo ano, a primeira coletânea de ensaios intitulada Anseios Crípticos (Anseios teóricos): Peripécias de um investigador na busca do sentido no torvelinho das formas e das ideias. A escolha do extenso subtítulo já traz uma ideia do que o autor pretendia com seus textos e ao pensa-lo juntamente com a obra em si podemos perceber alguns traços interessantes que nos guiam por dentro do livro e da proposta que o autor nos apresenta com ele.

A primeira edição, cujo título citamos acima, não traz na capa que o livro contém textos ensaísticos, assim, em primeiro e leigo contato, não sabemos o que as páginas seguintes nos trarão, o título sugere que são incursões pelos pensamentos do poeta, porém não indica

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que gênero foi escolhido para tal. Característica essa que nos faz pensar que o autor sabia que os textos que reunia naquele exemplar não se encaixariam perfeitamente na definição do gênero ensaio e quis brincar com esse fato, trazendo já no título uma indefinição e abertura para a leitura do exemplar.

A indicação do gênero do livro vem em forma de uma paronomásia, recurso muito usado por Leminski em seus poemas para explorar as semelhanças sonoras e/ou gráficas das palavras. Como, por exemplo, no poema contido no livro Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase:

ameixas ame-as ou deixe-as

Além da paródia com o slogan do período da ditadura militar — ―Brasil, ame-o ou deixe-o‖ — o poeta joga com a semelhança sonora das palavras, usando o mesmo recurso do título do livro de ensaios para criar esse momento de ilusionismo poético, que torna o poema uma surpresa.

O uso da paronomásia, para Emmanuel Santiago, cria ―uma fresta na casca de rotina que torna a realidade opaca, uma nova perspectiva que permite captar as coisas sob ângulos insuspeitados‖ (2017), o que confirma o caráter inventivo do livro base desta pesquisa. ―Ensaios críticos‖ foi substituído por ―Anseios crípticos‖ e essa troca também nos traz uma prévia do que encontramos nas páginas seguintes.

Em ensaio sobre o livro de Leminski, Rita Lenira de Freitas Bittencourt, comenta sobre as intenções do poeta ao organizar uma edição crítica de seus ensaios:

Interessado em levantar polêmicas e em provocar discussões, mais do que referendar verdades ou defender posições estéticas estáticas e/ou estáveis, o poeta tangencia a estranheza e não tem medo de enunciar paradoxos, de confessar anseios e receios ou de admitir incompletudes, tanto em relação a sua própria formação quanto ao caráter do seu trabalho poético, tornando-se um texto problema para as antologias e análises que tentam determinar um lugar onde acomodá-lo, (2010, p. 246).

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Assim, o poeta se mostra aberto a mostrar suas contradições e expressar seus anseios, que são críticos, mas também, e acima de tudo, são crípticos, ou seja, pensamentos e questionamentos antes velados e que agora são postos à luz. O poeta, sempre tão certo e cheio de si, em vários de seus ensaios, admite suas faltas, tanto na sua formação quanto na sua obra, e confessa algumas de suas incompletudes.

A segunda parte do título da obra original, ―Peripécias de um investigador na busca do sentido no torvelinho das formas e das ideias‖, indica uma proposta de trabalho cheia de desdobramentos, são anseios, mas também são tentativas na busca do sentido. Investigações de alguém que além de criar viu a necessidade de pensar o que estava fazendo e o contexto em que estava inserido.

Max Bense, comenta que

Escreve ensaisticamente quem tenta capturar seu objeto por via experimental, quem descobre ou inventa seu objeto no ato mesmo de escrever, dar forma, comunicar, quem interroga, apalpa, prova, ilumina e aponta tudo o que pode se dar a ver sob as condições manuais e intelectuais do autor. (2014).

O ensaio seria uma forma desassossegada e ansiosa de escrita. O anseio trazido por Leminski, além de uma paronomásia em uma troca de vogais, é a base da sua produção crítica e do gênero que se propôs a escrever.

Maria Esther Maciel comenta sobre os motivos que fizeram vários poetas adotarem essa postura crítica, fundindo suas produções literárias à sua crítica.

Seduzidos pelas construções da razão crítica, muitos poetas modernos converteram a poesia em espaço de reflexão crítica e de debate sobre si mesma, propondo também suplementar o trabalho criativo através de textos teóricos sobre questões pertinentes ao fazer literário, ensaios sobre outros autores e obras que lhe são afins, bem como reflexões mais generalizadas sobre a poesia e a cultura do seu tempo e do passado. Pode-se dizer

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que essa prática, fundada na aliança explícita entre criação e reflexão, marcou pelo menos metade da história da poesia moderna ocidental e ainda vigora, com outros matizes, no cenário crítico contemporâneo, remontando inegavelmente a uma das vertentes poderosas do Romantismo: a dos alemães de Jena, em fins do sec. XVIII. (MACIEL, 1999, p. 19)

Em vários trechos de entrevistas, cartas e até ensaios, não é raro ver Paulo Leminski falando sobre como sentiu que era importante pensar sua obra de maneira mais crítica. ―Quando comecei a mostrar minha lírica em meados dos anos 1960, senti, braba, a necessidade da reflexão‖ (2012, p. 17) e a partir dessa necessidade que o poeta curitibano começa suas atividades como comentarista e crítico em jornais e revistas de grande repercussão e nas chamadas ―nanicas‖

,

como eram chamadas as revistas independentes. Dentre as de maior tiragem podemos citar o jornal Folha de São Paulo, Revista Veja, Diário do Paraná e Gazeta do Povo. Dentre as revistas alternativas citamos a revista Raposa Magazine, Revista Invenção e Código.

A segunda parte do livro crítico, com 21 textos, recebe o nome de Ensaios e Anseios Crípticos e sairia somente em 2001, ou seja, quinze anos após a publicação da primeira edição e doze anos após o falecimento do poeta. Segundo os editores responsáveis, a ideia de dividir o livro em duas partes surgiu do próprio Leminski, porém a demora entre as partes deveu-se à crise na editora Criar, responsável na época pela obra, e ao extravio dos originais que dariam sequência à publicação. (BITTENCOURT, 2012, p. 247).

Em 2011, a Editora Unicamp reuniu, em um só livro, as duas coletâneas de ensaio e mais tarde, em 2012, lançou uma edição ampliada, contendo mais oito ensaios inéditos, inaugurando a ―parte

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três‖ dos Anseios Crípticos1

. Tanto a edição de 2001 quanto de 2011, não permaneceram com o título original dado por Leminski, talvez por questões editoriais, os dois exemplares trazem como título Ensaios e Anseios Crípticos, tirando o extenso subtítulo e o caráter de indefinição do gênero que citamos acima.

Observamos nos ensaios que o poeta tenta equilibrar-se entre sujeito poeta e sujeito crítico, fundindo-se e tornando-se ora um poeta-crítico ora um poeta-crítico-poeta, onde apesar da necessidade da reflexão e da teoria, não deixa que uma se sobressaia à outra, como comenta que aconteceu com alguns poetas da sua geração: ―A maldição de pensar fez suas vítimas: em minha geração, vi muitos poetas se transformarem em críticos, teóricos, professores de literatura.‖ (LEMINSKI, 2012, p. 17).

O que o autor propõe em ―Ensaios e Anseios Crípticos‖ são as peripécias de uma investigação, como trazia o título original, uma busca de sentido que não seria estável, mas sim uma apresentação ―no espaçotempo de um só livro, o panorama de um pensamento mudando‖ (2012, p. 18).

Leminski definiu a primeira parte como sendo mais ―teórica‖. Nela, observa-se uma linguagem mais coloquial e básica, o poeta ensaia algumas de suas opiniões e explora as variações de seu pensamento. Aqui os temas são variados, como: música, política e questões sociais

.

Na segunda parte, a mais ―prática‖, Leminski foca em análises de obras e autores, sobretudo, daqueles pelos quais nutria admiração intelectual e que de alguma maneira o ajudaram a construir seu papel como leitor, como: Brecht, Rimbaud, Haroldo de Campos, Sartre, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Dante, Whitman, Fante, Jarry, Ferlinghetti, Mishima, Becket, Joyce e Petrônio.

1 Infelizmente a edição de Ensaios e Anseios Crípticos organizada por Paulo Franchetti e publicada em 2012 pela Editora Unicamp não traz datas e nem uma possível ordem cronológica dos textos, o que dificulta na contextualização dos ensaios, porém, quando se opera uma investigação do material digital com mais cuidado, conseguimos datar alguns textos a partir de suas publicações em jornais e revistas, sendo assim, qualquer contextualização datada que pudemos trazer durante a pesquisa foi tirada do material digital disponibilizado em CD-ROM pelos detentores dos direitos da obra de Leminski e não da edição publicada pela Unicamp. Lamentamos também a terceira parte do livro ser acrescida de somente mais oito textos, pois há, com uma investigação mais profunda, mais textos inéditos que poderiam fazer parte da publicação, deixando o livro mais completo.

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A investigação que aqui fizemos surgiu ao pensar o livro de ensaios Leminski concomitantemente às reflexões sobre o lugar do poético nesses textos. A intercalação entre poesia e ensaio, o desmonte do verso e a quebra da prosa são questões as quais exploramos nessa pesquisa, bem como as reflexões que o poeta traz acerca do fazer poético e assim traçamos uma aproximação entre as duas produções do escritor e construímos e compreendemos seu perfil de intelectual.

Não nos voltamos aqui somente ao Leminski como crítico, analisando seus ensaios e textos no lugar em que eles são colocados, mas como o autor é incisivo em se colocar como poeta à frente de qualquer outra delimitação, buscamos trazer aquilo que margeia sua obra poética para o centro dela, pensando a obra crítica como poesia e a poesia como obra crítica. Assim, os textos que aqui são analisados, ainda que não sejam formalmente tratados como produção poética, mostrarão a relação de proximidade entre poesia e crítica nos ensaios de Leminski, não somente em relação ao conteúdo e forma, mas também na ideia do poeta como um ser que pensa sua arte e seu papel como sujeito poeta.

A pesquisa se estrutura de forma que o primeiro capítulo propõe uma reflexão sobre a escolha em estudar os ensaios de Leminski e o porquê do gênero ter sido escolhido para abarcar a crítica do poeta.

O segundo capítulo aborda as questões dos gêneros que nos propomos a pensar: o ensaio e a poesia, levantando algumas questões históricas e suas marcas nos textos analisados.

O terceiro capítulo busca uma divisão dos textos sobre os quais nosdebruçamos. Em primeiro momento, selecionamos os textos em que Leminski pensa sua própria produção poética. Em segundo, pensamos os textos críticos em que há fortes marcas características dos textos considerados poéticos e alguns poemas críticos. Em terceiro, último e sucinto, pensaremos os textos contidos em Envie meu Dicionário, rastreando nas cartas elementos característicos do ensaiar de Leminski.

Como caráter introdutório e para compreendermos algumas questões que serão levantadas posteriormente julgamos necessário um pequeno passeio pela vida de Paulo Leminski. Não nos prendemos a dados biográficos de forma detalhada, pois a vida do poeta já é bastante conhecida, mas sim retomamos alguns acontecimentos que julgamos relevantes.

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Traços de vida

Nascido em 24 de agosto de 1944, o curitibano Paulo Leminski foi, e é, uma das figuras mais marcantes da literatura brasileira. Se aventurou em todas as vertentes da literatura e apesar de não estar no eixo central da literatura brasileira conseguiu se estabelecer e ganhar repercussão nacional.

Soube ser, à sua maneirar com alguma bazófia, um intelectual informado e culto, versado em línguas, a par das tendências teóricas em voga, próximo às vanguardas literárias, ao mesmo tempo em que mergulhava na contracultura, flertando com o orientalismo, protagonizando revoluções comportamentais, encarnando a figura do poeta maldito, do inococlasta, do outsider. (SANDMANN, 2010, p. 7)

Mostrou-se interessado em literatura desde muito novo, principalmente após estudar por cerca de dois anos no Mosteiro São Bento, em São Paulo. Em 1963 participa da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, onde conhece Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, fundadores da poesia concreta a quem Leminski muito admirava.

Em texto publicado originalmente em 1983, na primeira edição de Caprichos & Relaxos e republicado como apêndice do Toda Poesia, Haroldo comenta esse encontro:

Foi em 1963, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, que o Paulo Leminski nos apareceu, dezoito ou dezenove anos, Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos, como se fosse um discípulo zen em Bashô, o Senhor Bananeira, recém-egresso do Templo Neopitagórico do simbolista filelênico Dario Velloso. Noigandres, com faro poundiano, o acolheu na plataforma de lançamento de Invenção, lampiro-mais-que-vampiro de Curitiba, faiscante de poesia e de vida. Aí começou tudo. Caipira cabotino [...] ou

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polilingue paroquino cósmico, como eu preferiria sintetizar uma fórmula ideogrâmica de contrastes, esse caboclo polaco-paranaense soube, muito precocemente, deglutir o pau-brasil oswaldiano e educar-se na pedra filosofal da poesia concreta (até hoje o caminho da poesia brasileira), pedra de fundação e de toque, magneto de poetas-poetas. (CAMPOS, 2013, p. 394).

Em Envie meu Dicionário, Leminski também relembra esse encontro:

Eu tinha dezessete anos quando entrei em contato com Augusto, Décio e Haroldo. O bonde já estava andando. A cisão entre concretos paulistas e neoconcretos cariocas já tinha acontecido. Olhei e disse: são esses os caras. Nunca me decepcionei. Neste país de pangarés tentando correr na primeira raia, até hoje eles dão de dez a zero em qualquer desses times de várzea que se formam por aí. Só que descobri que há uma verdade e uma força nos times de várzea, nessa várzea subdesenvolvida, que eu quero. (LEMINSKI, 1999, p. 208)

Esse primeiro contato é essencial à obra do poeta, pois imediatamente identificou nos versos concretistas um caminho poético bastante conveniente ao seu estilo. Como comenta Dinarte Albuquerque Filho: ―mais do que influência [...], a aproximação se deu em função de uma similaridade de projetos e busca que Leminski já exercitava e iria demonstrar ao longo de sua produção‖ (2009, p. 16).

Ao perceberem na poesia de Leminski ecos do que chamavam de plano-piloto para poesia concreta2, os irmãos Campos e Décio Pignatari publicam 5 poemas de Leminski na Revista Invenção, o anunciando como um jovem poeta dedicado aos estudos de idiomas, que organizava grupos de poesia experimental e dirigia uma página chamada Vanguarda em um jornal paranaense. ―[...] já tinham o que contar sobre

2 Manifesto publicado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos na Revista Noigrandes 4, em 1958. Disponível em < http://tropicalia.com.br/leituras-complementares/plano-piloto-para-poesia-concreta>.

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ele, dados relevantes que o ligavam à poesia concreta, e que o tornavam interessante para a publicação por ser um bom exemplo da repercussão das ideias concretistas em uma geração mais nova, fora do eixo Rio-São Paulo‖, declara Tarso de Melo, em Envie meu Dicionário (1999, p. 260). Este é o movimento que impulsiona Leminski para se estabelecer como poeta e o que leva também a uma primeira definição de seu trabalho poético.

O poeta ganha alguma notoriedade quando em 1975 publica o romance-ideia Catatau, ao qual se dedicava desde 1968. Leminski diz que a ideia da prosa-experimental surgiu quando em uma de suas aulas de história abordava a invasão holandesa no Brasil.

A princípio a criação se deu em forma do conto intitulado ―Descartes com lentes‖ e foi posto à prova no Concurso de Contos do Paraná, em 1968, porém não foi premiado. ―A vida do Catatau já começou sob o signo do equívoco e do quiproquó‖ (LEMINSKI, 2004, p. 271). Nos anos seguintes o conto foi se metamorfoseando em Catatau, ―o texto de 1968 já explorava a descontinuidade que seria responsável por colocar o Catatau no rol do experimentalismo da década de 70.‖ (MOREIRA, C., 2006, p. 16).

Nos nove anos de preparação desse ―texto de pensamento‖, que vai do fracasso do concurso até o seu reconhecimento pela crítica da época, fragmentos foram sendo reunidos, apontamentos foram sendo produzidos e esquemas foram sendo montados no que ficou conhecido como a ―Oficina do Catatau‖ [...] ―Oficina do Catatau‖ é um conjunto de anotações feitas pelo escritor. Elas se relacionam com a produção do romance-idéia e podem ser encontradas na Fundação Cultural de Curitiba, no acervo do poeta. A pasta da oficina traz até um desenho de Occam, bem como algumas experimentações com palavras-valise. (MOREIRA, C., 2006, p.17).

Após a publicação de Catatau, a crítica se mostrou bastante entusiasmada com a criação do jovem poeta. Eduardo Milán, poeta uruguaio de vanguarda que foi secretário pessoal de Octavio Paz, publica um comentário sobre o livro na Revista Muda de 1977: ―A más de diez años que Paz dijera que la vanguardia poética estaba en Brasil.

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[...] Segue siendo difícil encontrar, en lengua española, niveles poéticos igualables a los de Augusto-Décio-Haroldo. [...] Y al nível de los más jovenes: raro encontrar experimentos de formulación teórica tan precisa como Catatau‖ (2010, p. 221)3

.

Antônio Risério, em texto intitulado ―Catatau: Cartesanato‖, publicado originalmente na Revista José em 1976, também faz comentários positivos sobre a obra de Leminski.

Digamos que o Catatau ocupa um lugar raro na prosa literária brasileira. O que pintou depois das aventuras textuais de Guimarães Rosa? Quase nada. Uma exceção, sem dúvida é o livro-viagem Galáxias, de Haroldo de Campos. Por tudo isso, o Catatau é uma surpresa e uma alegria. Não só em termos brasileiros. O livro de Leminski deve, sem esforço, ser colocado ao lado do que há de melhor na produção literária do continente. Ao lado de Cortázar, do melhor Cortázar, aquele da Prosa del Observatorio, e do cubano Cabrera Infante, por exemplo. (2010, p. 232- 233).

Em 1976, ainda sob os holofotes de Catatau, Leminski publica em parceria com o fotógrafo Jack Pires o volume Quarenta clics em Curitiba. A primeira edição de poesias de Leminski contava com fotos da cidade de Curitiba e poemas em folhas soltas que podiam ser lidos em conjunto com as imagens. Também em meados de 70, Leminski começa a trabalhar como publicitário, profissão que exerce por muito tempo e lhe garante o sustento.

Além de vender produtos, Leminski era publicitário de si próprio. O famoso bigode, que viria a se tornar marca de seus best-sellers, e a voz sempre em tom mais alto que o redor, eram táticas de valoração da auto-imagem. Segundo Miguel Sanches Neto, essas estratégias, dentre outras, serviria para que Leminski alçasse voos

3

Há mais de 10 anos Paz dizia que a vanguarda poética estava no Brasil. [...] Segue sendo difícil encontrar, em língua espanhola, níveis poéticos iguais aos de Augusto-Décio-Haroldo. [...] E no nível dos mais jovens: raro encontrar experimentos de formulação teórica tão precisa quanto Catatau‖ (1977, p. 26, tradução nossa).

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maiores, saindo de um cenário de produtor provinciano para se tornar em ícone da poesia nos anos 80. (SANCHES NETO, 2003, p. 54).

Leminski, sempre atento à programação visual de seu texto, investia também na programação visual de si mesmo (...). Homem de marketing, o primeiro poeta brasileiro a usar de forma tão premeditada a publicidade, transformando a si próprio em um signo, ele produziu-se para entrar na história da cultura brasileira não como um intelectual, mas como as estrelas de nossa MPB. (SANCHES NETO, 2003, p.60).

O exemplo de tornar-se signo, citado por Sanches Neto, vem do poema publicado em Caprichos & Relaxos, onde Leminski aparece vestido de quimono e abaixo de si a palavra ―kamiquase‖:

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Aqui, o poeta se põe como signo. É o criador e ao mesmo tempo a criatura. Para Paula Moreira, ―A ideia de uma auto-programação com fins de depuração da própria imagem entra em consonância com diversas estratégias do escritor para a construção de uma representação de si, para performaticamente construir a imagem pela qual quer ser reconhecido como poeta e intelectual.‖ (2011, p. 13).

Já ―em alta‖, em 1980, Leminski publica Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase e Polonaises, na mesma época suas composições musicais são gravadas por artistas como Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Itamar Assumpção, entre outros artistas da época, o que empolga os críticos ainda entusiasmados com Catatau.

Em 1983, publica Cruz e Sousa – O negro branco e Bashô – A lágrima do peixe, duas biografias e neste mesmo ano publica Caprichos & relaxos, pela editora Brasiliense. No ano seguinte, ainda pela Brasiliense, publica o romance Agora é que são Elas e a biografia Jesus a. C. Neste mesmo período se dedica aos seus trabalhos de tradução e publica Um atrapalho no trabalho de John Lennon, Sol e aço de Yukio Mishima, O supermacho de Alfred Jarry, Giacomo Joyce de James Joyce e Satyricon de Petrônio.

Em 1986 publica, como já citado, uma pequena coletânea de ensaios, a biografia intitulada Leon Trotski – a paixão segundo a revolução e mais algumas traduções. Nos próximos anos publica Distraídos venceremos, Fogo e água na terra dos deuses – poesia egípcia antiga e Guerra dentro da gente (TONON, 2014).

Leminski teve uma vida intensa e regada a álcool, fator que levaria à sua morte no dia 7 de junho de 1989, aos 44 anos. Deixou eternizada uma vasta e expressiva obra desenvolvida durante sua breve vida.

A sucinta e prolífica trajetória de publicações serve para mostrar que estamos diante de uma produção elaborada em um breve espaço de tempo e que se lança em direções variadas, como evidenciam as referências tão díspares a que o poeta se dedicou em traduções e biografias, como pelas variadas esferas de trabalho – poesia, prosa, crítica, música, tradução, publicidade, televisão (TONON, 2014, p. 10).

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Após as considerações sobre a obra de Leminski e a ênfase que seu nome teve na mídia nos anos seguintes à sua morte, a obra do poeta se divide em dois principais momentos, 1989 e 2001, sendo o último ainda em construção.

Nos anos após a morte do poeta foram publicados os livros de poemas La vie en close (1991) e O ex-estranho (1996), as cartas trocadas com Régis Bonvicino no livro Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica (1992), uma segunda edição de Catatau (1989) e vários eventos, principalmente em Curitiba, em homenagem ao poeta.

O apogeu leminskiano de 2001 se inicia com a publicação da biografia O Bandido que sabia latim de Toninho Vaz. Nos anos seguintes republica-se Catatau, Agora é que são elas, Ensaios e Anseios Crípticos, a reunião das quatro biografias no livro Vida e Toda Poesia, obra com toda a obra poética do autor e que foi sucesso de vendas. Assim, Leminski tem seus livros reeditados e sua obra volta às prateleiras, museus, etc.

A obra de Paulo Leminski é carregada de intencionalidade e excepcionalidade, sendo uma aparição no cenário literário brasileiro, na segunda metade do século XX, em que ―a multiplicidade de tarefas, de línguas, de gêneros, de veículos em que ele circulava deixa, paradoxalmente, a lembrança de uma inteireza: a integridade de uma vocação de poeta que ele, obstinadamente, cumpriu‖ (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.240) e que ainda hoje, pouco mais de 20 anos de sua precoce morte, desperta interesse e admiração por parte de leitores e críticos. (MACHADO, 2011, p. 154)

Em Vida, livro que reúne quatro biografias escritas por Leminski, o poeta fala sobre a perpetuidade das obras de arte que em vários casos superam a vida de seus criadores. O autor cita que:

existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores frutos do trabalho humano: eles sobre-vivem ao autor, são uma vingança da vida contra a morte. por outro lado, só podem fazer isso porque são morte: suspensão do fluxo de tempo, pompas

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fúnebres, pirâmides do Egito‖ (LEMINSKI, 1990).

O autor cujo trabalho norteia nossa pesquisa foi exemplo da sua própria teoria, suas obras ultrapassam sua curta vida e sobrevivem até hoje, mais de 20 anos após sua morte. As várias atividades que nosso personagem inquieto exerceu mostram que seu trabalho se preocupou em justapor poesia, crítica e, segundo palavras de Caetano Veloso em prefácio do livro Envie meu dicionário, pôr sua literatura na perspectiva da vida (2007, p. 27). Assim, esta pesquisa pretende captar essa (con)fusão que Leminski fazia entre sua vida e obra, vislumbrando em seus ensaios os seus imbricamentos e o panorama de seu pensamento mudando.

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1. BUSCANDO O SENTIDO: Por que ensaios?

O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo. Relação, não coisa, entre a consciência, a vivência e as coisas e os eventos. O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O sentido do ato de existir. Me recuso a viver num mundo sem sentido. Estes anseios/ensaios são incursões conceptuais em

busca do sentido Por isso o próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação. Só buscar o sentido faz, realmente, sentido. Tirando isso, não tem sentido. (Paulo Leminski em Ensaios e Anseios Crípticos)

Estamos lidando com uma produção que, apesar de findada, se encontra em progresso, é um labirinto de um pensamento que se modifica, como diria o próprio Leminski. Logo, dentro dos textos que lemos vemos algumas contradições, também pelo momento em que foram escritos, já que existem distâncias de tempo significativas entre os primeiros e últimos ensaios. Em trecho do primeiro ensaio contido no livro, Leminski diz que preferiu não atualizar e/ou ajustar seus textos antigos, mesmo com as mudanças de teorias e pensamentos. O autor diz: ―não me interessou mostrar apenas um estágio determinado de homogeneidade teórica‖ e continua dizendo que se diverte em pensar que em vários momentos de sua escrita está brigando consigo mesmo (LEMINSKI, 2012, p. 18).

Leminski não buscava verdades absolutas em sua busca pelo sentido, queria nos mostrar seu interior e sua visão do mundo e das coisas simples. O autor nos fala sobre a intenção de seus ensaios: ―Preferi apresentar, no espaçotempo de um só livro, panorama de um

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pensamento mudando‖. (2012, p. 18). Percebe-se que a escolha do ensaio como ferramenta para expor as mudanças que aconteciam em seu pensamento, foi apropriada, pois o gênero permite essa metamorfose.

Esse panorama de um pensamento mudando faz jus ao que Adorno acreditava sobre o ensaiar. Para o autor, o ensaio ―não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim‖ (2003, p. 17); assim é da natureza do ensaio não querer finalizar o pensamento sobre determinada coisa, nem cristalizá-lo numa visão única, mas sim colocar no texto um leque de possibilidades e caminhos que naquele momento não passem de um experimento teórico.

Para Max Bense, o ensaio seria um terreno intermediário entre o estado estético da criação e o ético da convicção ou ainda, entre a poesia e a prosa. Para o autor, esse terreno teria um aspecto iridescente, ―oscilando numa ambivalência entre a criação e a convicção, ele se fixa na forma literária do ensaio.‖ (2014).

Não são raras as vezes em que Leminski se declara majoritariamente como poeta, dizendo que gostaria de ser conhecido por sua obra poética ―o resto é resto‖. ―vai vir o dia/ quando tudo que eu diga/ seja poesia‖, dizem seus famosos versos, mesmo e independente da sua vasta gama de outras atividades literárias. Essas declarações nos mostram que apesar das suas múltiplas atividades a poesia seria sua principal bandeira.

O ensaio, segundo Theodor Adorno, possui ―certa autonomia estética, que facilmente pode vir a ser acusada de ter sido emprestada da arte, da qual, no entanto, o ensaio se diferencia tanto pelos meios que emprega, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade, despida de sua aparência estética‖ (1986, p.169). Sendo assim, por mais próximo que o ensaio esteja da arte, ele ainda não garante o caráter artístico para ser considerado, pela maioria, como produção literária.

Para conseguirmos aproximar os dois gêneros basilares da pesquisa, usamos principalmente a autonomia estética citada por Adorno e as declarações de Leminski sobre ser poeta, concomitantemente com suas outras atividades tentando assim aproximar sua obra crítica à poética.

Sobre o material usado na pesquisa, a princípio, nossa fonte principal de investigação e captação dos textos seria a segunda edição de Ensaios e Anseios Crípticos (2012), publicado pela Editora da Unicamp, onde os textos críticos de Leminski estariam reunidos em duas partes principais e uma terceira parte ampliada. Porém, como já dito,

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encontramos muitas limitações ao trabalharmos com uma fonte única de pesquisa, a começar pela falta de data e, por consequência, de contextualização dos textos. Por conseguinte, optamos aqui por usar os textos contidos no acervo digitalizado realizado pela família do poeta.

O método usado foi o de rastrear no arquivo digital os textos contidos no livro para poder datá-los, depois selecionamos textos que não estavam reunidos neste livro que pudessem nos ajudar a delinear o perfil de Paulo Leminski como pensador crítico ou/e os que tratavam do seu fazer poético ou de terceiros.

Ainda que outros textos contidos no arquivo nos ajudassem a percorrer os caminhos que pretendíamos nesta pesquisa, precisamos selecioná-los para que nossa atenção fixasse nos textos que carreguem caráter ensaístico. Essa seleção nos ajuda a manter nosso recorte, mesmo que em alguns momentos nos aproximemos, em menor extensão, das cartas, depoimentos e entrevistas.

O gênero ensaístico foi chamado por Adorno de ―forma híbrida‖, ou seja, junto dele há as fugas das formas e a dissolução das fronteiras ou, como veremos mais à frente, o que Haroldo de Campos chamaria de ruptura dos gêneros. Essa queda de barreiras é um dos problemas a ser colocado aqui. Se os gêneros estão sempre em miscelânea e se tornando diferentes do que já foram nomeados, é preciso cuidado ao estabelecer e selecionar gêneros.

Outro ponto que nos faz parar e olhar o material que analisamos mais atentamente são os veículos onde foram publicados. Como dissemos, vários textos foram retirados de revistas e jornais e apresentam (em minoria) até marcas de narração, o que nos preocupa por estes serem definidos como crônicas, afinal ―feito para imprensa, é de se imaginar que a ―vida útil‖ do texto seja menor do que aqueles produzidos com fins, digamos, mais intransitivos.‖ (MOREIRA, P., 2011, p. 41)

Sobre a classificação dos textos de Leminski, Paula Moreira diz:

Há de se notar, todavia, que a publicação de

Anseios Crípticos (Anseios Teóricos): Peripécias de um investigador do sentido no torvelinho das formas e ideias (1986) deu-se ainda em vida do

autor, com a reunião de produções por ele chamadas de ensaísticas. Diz textualmente Paulo

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Leminski: ―Estes anseios/ensaios são incursões conceptuais em busca do sentido‖. (2012, p. 41)

Assim, temos a nosso favor a própria classificação que Leminski dá aos seus textos que, apesar de terem sido publicados em jornais ou revistas, carregam consigo o título de Ensaios e não crônicas. Assim, esses textos que usaremos já nascem misturando-se a outros gêneros.

Sobre esse hibridismo de gêneros, Haroldo de Campos, em Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana, traz um panorama positivo sobre o que ele chama de destruição dos gêneros.

A ―mistura de gêneros‖ que, na teoria clássica, seria o correlato negativo dos ―gêneros puros‖, transforma-se desse modo numa categoria metodicamente produtiva. Superada a rígida tipologia intemporal, com propensões absolutistas e prescritivas, a teoria dos gêneros passa assim, na poética moderna, a construir um instrumento operacional, descritivo, dotado de relatividade histórica, e que não tem por escopo impor limites às livres manifestações da produção textual em suas inovações e variantes combinatórias. (CAMPOS, 1977, p. 282).

Neste mesmo texto, Haroldo mostra como o hibridismo dos gêneros ganha força no período da Revolução Industrial. Segundo o autor a emergência da mass media e da grande imprensa teve grande influência nos rumos da literatura. ―A linguagem descontínua e alternativa vai encontrar na simultaneidade e no fragmentarismo do jornal seu desaguadouro natural‖ (1977, p. 285). A mistura de gêneros seria, portanto, uma ―técnica de descoberta criativa‖ (1977, p. 286).

Haroldo traz Sousândrade como precursor brasileiro da ruptura dos gêneros e cita o poema O Guesa como a obra exemplo disso.

Na obra de Sousândrade, insulado patriarca latino-americano da poesia de vanguarda, consuma-se de maneira flagrante a dissolução dos gêneros. Seu

Guesa [...] escapa às classificações habituais. O

próprio poeta achava que seu poema não era dramático, nem lírico, nem épico, mas se aproximava antes da narrativa. ―Poema-romance‖,

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chamou-o um de seus contemporâneos, Joaquim Serra. (CAMPOS, 1977, p. 289-290)

Pensamos essa ruptura de gêneros para compreender o hibridismo do trabalho ensaístico de Leminski e de que forma o poeta aproveitou essa dissolução de barreiras para definir seus textos como ensaios, os incluindo na seleção de seus textos teóricos-críticos e os publicando como tal, mesmo que alguns deles sejam pensados e tragam características de outras formas textuais.

Essa ruptura se apresenta também no já citado título da primeira edição de textos ensaísticos publicados pelo poeta ainda em vida: Anseios crípticos: anseios teóricos: peripécias de um investigador do sentido no torvelinho das formas e das idéias. O título não traz a palavra ensaio, apenas insinua. Assim, não mostra, no primeiro contato com o leitor, o que vem a seguir, permanece um mistério até que se abra o livro.

No lugar da palavra ensaio definindo seu livro logo na capa, Leminski usa Anseios, aquela obra que o leitor tem em mãos é fruto de um desejo intenso de reflexão, há ali o caráter teórico, há a crítica, mas principalmente uma individualidade que só o ensaio poderia carregar naquele momento, talvez venha daí a definição do gênero que contradiz o poeta. ―Coloca, dessa forma, consciente e teoricamente, o eu, a presença do sujeito que escreve, que anseia, que deseja, que investe o afeto. Indicia também uma concepção do escrito ensaístico como a aliança entre a postura científica, teórica e a pessoalidade‖ (MOREIRA, P., 2011, p. 42).

Indo adiante na discussão, é interessante pensar, a princípio nos dois gêneros basilares da pesquisa: o ensaio e a poesia. Com isso, apesar do próprio Leminski não gostar de amarras e definições, o aproximaremos do conceito de poeta-crítico, para que a partir daí tracemos seu perfil como intelectual e fecharmos nosso recorte.

Quando se propõem a escrever textos críticos, os poetas tendem a borrar os limites dos gêneros e escrevem não somente sobre assuntos relativos ao fazer poético, mas também sobre obras que lhes serviam como referência para sua própria produção.

Para Maria Esther Maciel, os poetas que conciliam poesia e crítica veem a necessidade de transformar seus textos em meios de debates atraídos pelas construções da razão crítica. Dessa forma, o trabalho poético vira também espaço de reflexão sobre si mesmo

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atuando como complemento do trabalho criativo através de textos que abordem questões importantes sobre o fazer literário, sobre autores e obras e reflexões gerais sobre a poesia e a cultura. (MACIEL, 1999, p. 19).

A autora diz ainda que essa prática de fundir a criação e a reflexão marcou boa parte da história da poesia moderna ocidental e ainda permanece, com outras perspectivas, na crítica contemporânea, remetendo a uma das grandes vertentes do Romantismo: a dos alemães de Jena no século VIII. O grupo de Jena ―inaugurou um modelo poético inovador, que tinha como princípio a reflexão crítica realizada por meio do fragmento literário‖. (KÜHN, 2018, p. 19).

O fragmento 24, publicado na revista Athenäum, criada pelos irmãos Schlegel, aponta o fragmento como um aspecto imposto às obras antigas e como princípio criativo presente na concepção das obras modernas: ―Muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas obras dos modernos já o são ao surgir‖ (SCHLEGEL, 1997, p. 51). Dessarte, o que confere o caráter de novidade ao fragmento, no Romantismo alemão, é a finalidade concedida pelo grupo de Jena, que o associa como forma de expressão filosófica e literária, e como instrumento de crítica e polêmica a combater qualquer forma de pensamento apresentado em um sistema enrijecido. Os fragmentos escritos por Novalis e Schlegel representam um lugar de confluência da teoria com a palavra poética e de construção do conhecimento científico-filosófico a partir da autorreflexão. (KÜHN, 2018, p. 19)

A poesia aliada à crítica foi consolidada pelos românticos alemães e virou recorrente entre os escritores modernos que queriam uma maneira de compreender a poesia que faziam. Essa prática ganharia força porque não haveria princípios estéticos que guiassem uma produção comum, mas sim formas poéticas individuais onde cada poeta construísse seus valores próprios ou procurasse por referências em outros poetas.

Maria Esther Maciel aponta que é a partir de Charles Baudelaire que a fusão poesia e crítica se consuma, ―evidenciando o surgimento

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efetivo da poesia moderna e a crise dos valores metafísicos que marcaram a corrente idealista do Romantismo. Ao culto do significado e das profundezas subjetivas, sobrepõem-se a valorização dos aspectos materiais da palavra e o destronamento da ilusória plenitude do "eu" poético‖. (MACIEL, 1994, p. 79).

Ainda para a autora, os poetas modernos após Baudelaire atribuíram a si próprios a missão de teorizar um novo conceito de poesia. Daí e de outras ações anteriores, surgiram os poemas-críticos e outros textos críticos em prosa em forma de ensaios, manifestos, fragmentos, cartas, que até os dias de hoje complementam e ajudam a elucidar as produções poéticas de seus autores.

Além de Baudelaire, há outros nomes fundamentais ao estabelecimento da poesia-crítica, como, Stéphane Mallarmé, Ezra Pound, T. S. Eliot, Paul Valéry, Haroldo de Campos, João Cabral de Melo Neto, e outros que fizeram da crítica um complemento às suas obras criativas.

A intenção desses poetas era, a princípio, a de dar ao leitor um norte de leitura das suas obras ou daquelas que julgavam ser essenciais para si. Para Ana Kühn, a partir disso, esses poetas concebem uma espécie de crítica baseada em escolhas subjetivas. ―As obras escolhidas pelos poetas para embasar a sua crítica justificam-se pelo pressuposto do sim, pois tratam apenas de autores que lhes interessam, por isso elegem produções que estejam em consonância com o seu método inventivo‖. (KÜHN, 2018, p. 21).

Sobre poetas-críticos e críticos-poetas, Jair Tadeu da Fonseca comenta:

Ambas as tendências [...] surgem como uma alternativa e mesmo combate à crítica ―impressionista‖, não especializada, que através de crônicas jornalísticas, ―tece comentários‖ de curto folego sobre ―assuntos literários‖, e que imperou até os anos 40/50. A partir daí, o que passa a balizar a produção crítica é o critério de

especialização, à luz do qual o que menos

interessa é o registro pessoal/ anedótico/biográfico ou até encomiástico que antes predominava. Passam a ocupar espaços da crítica literária dos jornais os professores universitários, especializados em literatura, e os poetas, especialistas em escrever versos. Ambos

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priorizam a analise dos textos literários e do contexto cultural em que eles podem ser situados. (FONSECA, 1998, p. 28).

Em As fronteiras da crítica, T. S. Eliot define a crítica feita por poetas como ―crítica de oficina‖, pois as obras que se propõem a refletir estão de acordo com seus respectivos processos de escrita. Porém, o pensador afirma que esse tipo de crítica tem algumas limitações, pois os poetas escolhem versar sobre determinados autores e deixam outros de fora.

Esse gênero de crítica da poesia feita por um poeta, ou o que chamo de crítica de oficina, tem uma óbvia limitação. O que não tem nenhuma relação com a própria obra do poeta, ou o que lhe é desfavorável, está fora do alcance de sua competência. Outra limitação da crítica de oficina é que o julgamento crítico pode revelar-se pouco confiável fora de sua arte. Minhas avaliações de poetas permaneceram razoavelmente as mesmas durante toda a minha vida; em particular, minhas opiniões sobre um certo número de poetas vivos continuaram inalteradas. (ELIOT, 1991, p. 149).

Segundo Eliot, a crítica encontra sua completude quando tem ligação com o trabalho criativo do escritor. Em geral, o que observamos são poetas elaborando bons textos críticos sobre obras e artistas com os quais possuem afinidade, criando assim, em alguns casos, uma ―crítica de oficina‖ superior à crítica comum feita por escritores não-poetas.

Na verdade, o que Eliot (1991, p. 145-146) também observa é que a crítica feita por poetas aborda apenas casos específicos: é o poeta retratando a sua condição de leitor, dos leitores e obras pelas quais possui estima intelectual. Contudo, o que o autor reavalia é que a crítica legítima não deve tratar apenas de uma interpretação, da visão do poeta, mas deve proporcionar ao leitor da obra aspectos importantes que ele poderia deixar escapar em sua leitura. Assim, o escopo da crítica literária estaria relacionado com a própria literatura, sua apreciação e entendimento. (KÜHN, 2018, p. 23)

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Pensar os poetas-críticos é refletir também sobre o lugar de Paulo Leminski como intelectual. Afinal, os textos escritos por esse tipo de crítico são meios de ampliar as visões do leitor sobre seu próprio fazer poético e expor seus anseios.

Esses textos, além de surgirem em forma de ensaios, muitas vezes se configuram através de cartas, pois, como no caso de Leminski e Bonvicino, essas correspondências ganham caráter de crítica-ensaística, pois são trocas de reflexões entre poetas que se mostram inquietos sobre seu trabalho criativo e seus contextos.

Dito isso, nossas reflexões trarão os textos que Leminski definiu como ensaio enquanto fonte principal. Para fonte secundária, visamos as cartas trocadas por Leminski e Régis Bonvicino, publicadas pela primeira vez em 1992 em Uma carta uma brasa através e republicadas em Envie meu Dicionário,em 1999. Pelas cartas, de maneira menos aprofundada, buscaremos alguns traços que nos ajude a compreender a crítica construída pelo poeta ao longo dos anos.

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2. QUESTÕES DE GÊNERO

Antes de entrarmos nas análises específicas dos textos produzidos pelo poeta Paulo Leminski, acreditamos ser fundamental traçar algumas linhas acerca dos gêneros nos quais encontramos quando pensamos na obra ensaística de Leminski.

Obviamente, percorremos os caminhos tortuosos do gênero ensaio, para que a partir dessas reflexões possamos compreender as características que Leminski traz à sua crítica e o com quais olhos a leremos nos capítulos de análise.

Também trazemos as questões relevantes a respeito do gênero poético. Tendo como pano de fundo principalmente os estudos sobre poesia de Giorgio Agamben, pensamos em como o texto poético se comporta fora do verso, no conceito de prosa poética e quais caminhos levaram Leminski a apagar as margens dos gêneros de textos que se propôs a escrever.

Do mesmo modo, ainda pensando nas potências poéticas dos escritos críticos de Leminski, consideramos as peculiaridades a respeito dos poetas-críticos para pensar as cartas trocadas entre Leminski e Bonvicino, pois nelas também há um encontro entre o ensaio e a poesia.

2.1.

Que sei eu?: Os caminhos do ensaio

É importante salientar que o ensaio enquanto gênero literário ainda causa algumas divergências, principalmente devido a sua liberdade. De um lado, teóricos argumentam que a flexibilização na definição do gênero se deve às variações de um país para outro, porém mesmo com essas diferenças, ainda consideram o ensaio como gênero formal como qualquer outro.

Outros teóricos — sendo estes a maioria — não definem o ensaio nas formas tradicionais de gênero, mas sim apegam-se somente ao caráter individual de cada ensaísta para tentar delinear o estilo de escrita, não tendo então ―O‖ ensaio de maneira delimitada e singular, mas sim os ensaios, variando e individualizando-se conforme cada escritor (KOVALSKI, 2013, p. 09). Portanto, apesar do ensaio não ser posto como gênero formal, dissemina uma espécie de liberdade pessoal entretecida a partir de conhecimentos de vida, reflexões e bagagem de cada autor, muitas vezes englobando mais que uma área de conhecimento.

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O ensaio como gênero textual surgiu por volta do século XVI, mais precisamente com Michael Eyquem de Montaigne, em 1580, que publicou pela primeira vez uma coletânea de textos e a intitulou Essais, propiciando um impulso ao texto subjetivo.

Filho de Pierre Eyquem de Montaigne e Antoinette Louppes Villeneuve, Michel Eyquem de Montaigne foi criado com o latim sendo sua língua materna, o que lhe deu oportunidade de contato com várias obras clássicas, responsáveis por parte de seu comportamento e conhecimento como intelectual.

Formou-se em direito e tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux, na França. Após a morte do pai, por volta de 1568, Montaigne decide largar o cargo público e se isolar, com toda sua biblioteca, na torre do castelo da família Montaigne, onde começa a dedicar-se ao seu individualismo, escrevendo assim, seus ensaios. ―Imaginamos Montaigne, pelo que nos diz, recolhendo-se deliberadamente ao terceiro andar de sua torre [...] Lê, medita, escreve.‖ (MOREAU, 1961, p. 5).

Montaigne faleceu em 1592, enquanto preparava a edição final de seus Ensaios.

Um livro em que, sem estudo e sem artifício, o autor apresenta seus humores e sua condição. É êle próprio que êle põe em cena em seus escritos, e tal é a sua franqueza que o vemos por inteiro. Eis, pelo menos, o desígnio, a profissão de fé. E por certo o retrato de uma alma, e através desta, da natureza humana, constituiria um documento inapreciável da psicologia introspectiva. (MOREAU, 1961, p. 24).

Foi a maneira com que o pensador francês idealizou seus ensaios que os relaciona com o modo com que o gênero é usado hoje em dia, principalmente pelos escritores-críticos. O que observamos na obra de Montaigne nos ajuda a pensar nos traços do ensaio e a partir daí compreender por que esse foi o meio escolhido por Leminski para conceber sua crítica

Conforme sua produção aumentava Montaigne passou a indagar que tipo de literatura estava fazendo e acredita-se que a partir desses questionamentos é que surge o termo Ensaio.

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Do baixo latim, a palavra ensaio vem de exagium, que significa balança, já ensaiar deriva de exagiare, que significa pesar. Neste sentido, podemos pensar a balança e o ato de pesar como um processo anterior à ação, estando assim fora do agir. Uma preparação para a real ação, um ensaio.

Pensando nos mesmos núcleos, temos exigere, do latim exigir, e sabendo que Montaigne tinha acesso à língua citada, podemos traçar um caminho onde o termo ensaio passeie por todas esses núcleos etimológicos.

O ensaiar como ato de ponderar, pesar o pensamento e pô-lo em equilíbrio e/ou uma exigência do ser que lê e medita, uma reflexão quase que espontânea, algo que brota e exige ser registrado. ―O ensaio seria a pesagem exigente, o exame atento, mas também o enxame verbal cujo impulso se libera‖ (STAROBINSKI, 2011, p. 14).

É quase impossível passar pelas questões etimológicas da palavra ensaio e não relacioná-la ao fato de que Michel de Montaigne ao se recolher em sua biblioteca mandou gravar em sua medalha uma balança com os dizeres “Que sais-je?” [Que sei eu?]. Pensando em todas as questões etimológicas, constatamos que dar o nome de ensaios aos seus textos não parece ter sido uma escolha aleatória. ―Este emblema – decerto destinado, quando os pratos estão à mesma altura, a aludir à suspensão do espírito – representava também o próprio ato do ensaio, o exame da posição do fiel.‖ (STAROBINSKI, 2011, p. 14).

Ensaio significa tentativa. Podemos bem nos perguntar se a expressão deve ser entendida no sentido de que aqui está se tentando escrever sobre alguma coisa – isto é, no mesmo sentido em que falamos das ações do espírito e da mão – ou se o ato de escrever sobre um objeto total ou parcialmente determinado se reveste aqui do caráter de um experimento. Pode ser que ambos os sentidos sejam verdadeiros. O ensaio é expressão do modo experimental de pensar e agir, mas é igualmente expressão daquela atividade do espírito que tenta conferir contorno preciso a um objeto, dar-lhe realidade e ser [Sein] [...] o ensaio prepara substratos, ideias, sentimentos e formas de expressão que algum dia virão a se tornar prosa ou poesia, convicção ou criação. O ensaio significa,

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nesse sentido, uma forma de literatura experimental (BENSE, 2014).

Montaigne não se definiu como precursor do gênero, pois, familiarizado com a Literatura Grega, acreditava que seus textos, que eram sem dúvida interlocuções com as epístolas de autores como Sêneca e Plutarco, seguiam o mesmo gênero clássico. Porém, a escrita de Montaigne traz vários aspectos novos e importantes, como não ter sido escrita dentro de qualquer forma ou estilo pré-determinado.

Observando o ensaísmo que Montaigne inaugurou, encontramos questões e argumentos que correspondem com sua individualidade. A pluralidade de temas que o ensaio permite vem dessas escolhas do precursor do gênero, pois os temas do ensaísmo montaigniano vão de conteúdos como política, filosofia e ética, até temas mais cotidianos, como: ociosidade, medo e idade. O autor os escreve para si mesmo e de si mesmo, tornando-se ―matéria‖ do livro e trazendo para o gênero todo o individualismo que ele carrega.

Tais apontamentos podem ser comprovados no texto de abertura do livro, intitulado ―Do autor ao leitor‖, onde Michel de Montaigne adverte o leitor sobre as páginas seguintes.

Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé. Adverte-o êle de início que só o escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interêsse que poderia ter para ti, nem pensar na posterioridade. [...] Voltei-o em particular a meus parentes e amigos e isso a fim de que, quando eu não fôr mais dêste mundo [...] possam nêle encontrar alguns traços de meu caráter e de minhas idéias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentarter-me-ia sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. [...] Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria dêste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de

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tão mínima importância. (MONTAIGNE, 1961 p. 97)

O livro de ensaios ganhou notoriedade de imediato, tendo um número copioso de leitores não somente na França, mas no exterior. Após a primeira publicação em 1580, Montaigne continuou ampliando seu livro, adicionando novos textos e incluindo trechos nos ensaios existentes, de modo que o autor conseguiu publicar edições estendidas a cada dois anos até 1588, formando um rico trabalho em três volumes que englobava 107 ensaios de temas variados.

Em ―É possível definir ensaio?‖, Jean Starobinski comenta que Montaigne, ao escrever seus ensaios, não faz do livro um diário íntimo e nem uma autobiografia. Seus textos ultrapassam o individual e buscam vivências externas que servem para suas investigações acerca do humano. ―Ele se pinta olhando-se ao espelho, certamente; mas, com frequência ainda maior, ele se define indiretamente, como que se esquecendo de si‖ (STAROBINSKI, 2011, p. 19).

Os Essais de Montaigne foram traduzidos para o inglês já em 1603, por John Florio, disseminando não só o termo em si, mas seu estilo e foi principalmente a partir de Francis Bacon, que se passou a escrever ensaios em outros lugares da Europa, gerando mais metamorfoses no estilo criado por Montaigne, deixando clara a questão de individualidade de cada autor que se propusesse a ensaiar.

Si comparamos un ensayo cualquiera de Montaigne —"Des menteurs", por ejemplo— con otro semejante de Bacon —"Of Truth"—, se observa que mientras Montaigne lo basa en "vivencias", Bacon lo hace en "abstracciones". El ensayo de Montaigne gana en "intensidad", el de Bacon en "orden". El primero es más "natural", el segundo más "artístico". El primero intensifica lo "individual", el segundo lo "prototípico". En Montaigne, en fin, domina la intuición "poética", en Bacon la "retórica". Así, desde sus comienzos, Montaigne y Bacon representan dos opuestas posibilidades de ensayo, que profetizan el futuro individualista del género: El ser de Montaigne está en sus ensayos, tanto como el de Bacon en los suyos. Unos y otros son exponentes de sus

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personalidades y preocupaciones. (GOMÉZ-MARTÍNEZ, 1992, p. 23)4

Além de Francis Bacon, o ensaio como conhecemos hoje ganhou quase que a mesma definição nos dicionários pelo mundo afora por ter sido representado, a partir de uma tradição ensaística deixada por Montaigne, por escritores como Joseph Addison, Samuel Johnson, Charles Lamb, William Hazzlit, Miguel de Unamuno, Virgínia Woolf, José Ortega y Gasset, Jorge Luis Borges, Roland Barthes, etc. (KOVALSKI, 2013).

O ensaio de hoje em dia, apesar das metamorfoses naturais ocorridas no gênero, continua com as bases de Montaigne e de Bacon. No ensaio de Cynthia Ozick, intitulado ―Retrato do ensaio como corpo de mulher‖, a autora diz que ―Se existe alguma informação num ensaio, é sempre algo corriqueiro, e, se contém opiniões, não serão necessariamente confiáveis a longo prazo [...] é o movimento de uma mente livre quando brinca‖. (2011 p. 7).

Em busca do perigo, ou seja, da aventura, talvez o ensaio possa alcançar aquele lugar interdito ao homem sisudo, ao perito que não consegue rir de si mesmo, afirmar os seus disfarces, apaixonar-se pela linguagem, ler de forma sempre diferente os mesmos textos, dar um passo para trás sem com isso retroceder no caminho ou desviar os olhos do presente impalpável para captar nessa manobra de pensamento, outros tempos, outros compassos, outras músicas, outras formas de interferir na vida

4

Se compararmos um ensaio qualquer de Montaigne – ―Des menteus‖, por exemplo – com outro semelhante de Bacon – ―Of Truth‖ – se observa que enquanto Montaigne ganha em ―intensidade‖, o de Bacon em ―ordem‖. O primeiro é mais ―natural‖, o segundo mais ―artístico‖. O primeiro intensifica o ―individual‖, o segundo o ―protótipo‖. Em Montaigne, no fim, domina a intuição ―poética‖, em Bacon a ―retórica‖. Assim, desde o começo, Montaigne e Bacon representam duas possibilidades opostas do ensaio, que profetizam o futuro individualista do gênero: O ser de Montaigne está em seus ensaios, tanto quando Bacon nos seus. (GOMÉZ-MARTÍNEZ, 1992, p. 23, tradução nossa)

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