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Kant: metafísica e política

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Academic year: 2021

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EDITORA DA UFBA Diretora Flávia M. Garcia Rosa

Conselho Editorial Angelo Szaniecki Perret Serpa Carmen Fontes Teixeira Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Fernando da Rocha Peres Maria Vidal de Negreiros Camargo Sérgio Coelho Borges Farias Suplentes Bouzid Izerrougene Cleise Furtado Mendes José Fernandes Silva Andrade Nancy Elizabeth Odonne Olival Freire Junior Silvia Lúcia Ferreira EDUFBA Rua Barão de Geremoabo, s/n Campus de Ondina 40170-290 - Salvador - Bahia Tel: (71) 2636160/2636164 edufba@ufba.br www.edufba.ufba.br

FUNDAÇÃO EDITORA UNESP Presidente do Conselho Curador José Carlos Souza Trindade

Diretor-presidente José Castilho Marques Neto Editor Executivo

Jézio Hernani Bomfim Gutierre Assessor Editorial João Luís C. T. Ceccantini

Conselho Editorial Acadêmico Alberto Ikeda

Alfredo Pereira Júnior

Antonio Carlos Carrera de Souza Elizabeth Berwerth Stucchi Kester Carrara

Loudes A. M. dos Santos Pinto Maria Heloísa Martins Dias Paulo José Brando Santilli Ruben Aldrovandi Tania Regina de Luca Editora Assistente Denise Katchuian Dognini

Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça de Sé, 108 01001-900 São Paulo-SP Tel: 11 32427171 Fax: 11 32427172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br

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Daniel Tourinho Peres

EDUFBA - UNESP Salvador-Ba

2004

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©2004 by Daniel Tourinho Peres Direitos para esta edição cedidos à Editora da

Universidade Federal da Bahia. Feito o depósito legal.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, a não ser com a permissão escrita do autor e da editora, conforme a Lei nº 9610 de 19 de fevereiro de 1998.

Revisão do autor Projeto capa e miolo

Angela Garcia Rosa Ilustração da capa

“Dois jogadores de cartas”, Cézanne, 1892-93

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Biblioteca Central - UFBA

(EDUFBA) (UNESP)

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia

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para URANIA e FERNANDO

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AGRADECIMENTOS 9

INTRODUÇÃO 11

MUNDO INTELIGÍVELE PRÁXIS: AFACULDADEDEJULGAR

ENTREOINTELIGÍVELEOEMPÍRICO 21

Juízo, Síntese e Sistema 25 Juízo Prático e Forma da Sociabilidade 39 A Passagem para o Direito 54 Do Direito aos Direitos 61

DETERMINAÇÃOE LIMITESDA PROPRIEDADE 75

O Estado da Questão 76

Estado de Natureza e Estado Civil: ainda às voltas com

a tese modal 81

Posse Inteligível, Posse Empírica e Aquisição 84 A Posse Ideal e o Postulado Jurídico como Juízo Sintético a priori 89 Síntese Intelectual e Síntese Empírica: a razão prática e o empírico 95

A POLÍTICANOS LIMITESDA SIMPLES RAZÃO 109

Teoria e Prática da Política 112 A Esfera Pública como Passagem 123 Opinião Pública e Propriedade 130 Da Idéia de República à Democracia Representativa 139

CONSIDERAÇÕES FINAIS 155

BIBLIOGRAFIA CITADA 161

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E

ste livro é o resultado, com poucas modificações, de minha tese de doutorado (Lógica, Metafísica e Política em Kant – um estudo sobre a faculdade de julgar prática), apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, no ano de 2002. Agradeço muito ao Prof. Dr. José Arthur Giannotti por ter, com sua amizade generosa e orientação rica e cuidadosa, reforçado em mim certas obsessões e in-cutido outras. Agradeço também aos Profs. Drs. Maria Lúcia Cacciola, Valério Rohden, Tércio Sampaio Ferraz Junior e Ricardo Ribeiro Terra pela atenção que concederam ao meu trabalho. Espero ter consegui-do incorporar algumas de suas sugestões. No Departamento de Filo-sofia da USP, gostaria de agradecer ainda a Maria Helena Barbosa e Marie Pedroso.

Durante meu período em São Paulo encontrei no Grupo de Ló-gica e Filosofia Política do CEBRAP e no Grupo de Estudos sobre a Filosofia Alemã do Departamento de Filosofia da USP um espaço para discussão franca e rigorosa. Além disso, Maria Lúcia me acolheu com carinho no seu seminário sobre a Crítica do Juízo, e Ricardo Terra e Marcos Nobre me convidaram para participar, também no CEBRAP, do “Grupo Temático Fapesp: Moral, Direito e Democracia – um es-tudo sobre obra de Jürgen Habermas”, onde pude apresentar resulta-dos parciais do que agora se transformou em livro.

Conforme o trabalho foi sendo feito, partes foram apresentadas em seminários, colóquios e congressos. Agradeço todas as observa-ções que me foram feitas por amigos e colegas, em especial a Carlos Nelson Coutinho, Denilson Werle, José Rodrigo Rodrigues, Luciano

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Codato, Luís Nascimento, Luiz Repa, Márcio Sattin, Marcos Nobre, Maurício Keinert, Paulo Licht dos Santos, Rosa Gabriella de Castro Gonçalves, Soraya Nour, Vinícius de Figueiredo, e também a Maria Fernanda, Moacyr Novaes, José Carlos Estevão, Marisa Lopes, Fernão Sales e Pedro Paulo Pimenta.

O Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia me liberou por um período de quatro anos para que o doutorado fosse feito. Agradeço a essa instituição, assim como a todos os colegas de Departamento, em especial ao amigo João Carlos Salles Pires da Silva, a oportunidade que me foi concedida.

Para a pesquisa, contei com o Apoio da Capes, Programa PICDT. Gostaria de estender tal agradecimento ainda a FAPESB (PRODOC: CADCT/UFBA) e ao CNPq, que financiam a continuidade de meus trabalhos.

Este livro é dedicado a meus pais, Urania e Fernando, cujo apoio e incentivo são constantes, e a Rosa e Paula, minha mulher e minha filha, que a cada dia me conquistam mais e mais e fazem com que tudo valha a pena.

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A

filosofia prática de Kant sempre despertou suspeita. Aquela que mais fama angariou para si tem sua origem, salvo engano, em Hegel: a moral kantiana não passa de um formalismo vazio, tautológico, incapaz de fazer frente a todo particularismo em que recai a razão que visa de modo imediato o universal. Com sua filosofia do direito a situação é ainda mais grave – para Schopenhauer ela não passa de uma obra que revela uma mente já cansada pela idade; além do mais, dá mostra de uma paixão cega pela simetria e, por aí, descamba no dogmatismo. Mas, é preciso convir, a crítica ao suposto formalismo vazio é aquela que tem mais peso e influência. Crítica que, contudo, escamoteia todo o esforço de Kant em construir passagens – seja entre razão teórica e razão prática, seja no interior de cada um desses domí-nios1. Deixando de lado a questão da alegada senilidade de Kant, a segunda crítica que lhe dirige Schopenhauer bem que está próxima da crítica hegeliana, uma vez que a paixão pela simetria é apenas apego ao formalismo, isto é, à idéia de sistema – se há princípios sintéticos a priori para a razão teórica, então tem de haver, custe o que custar, também para a razão prática.

Aqui se tem como pano de fundo para esta breve introdução es-sas duas objeções irmãs2. Trata-se então de analisar, no interior do sistema, no cruzamento de lógica, metafísica e política, o formalismo jurídico-político kantiano, mas justamente para mostrar que ele não se encontra indefeso frente a qualquer positividade e particularidade que se lhe apresente, mas vai navegando entre Cila e Caríbide. É o que já se via, desde o final dos anos de 1760, na reflexão 6634, por

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exemplo: “O princípio de Huchetson é não-filosófico, [primeiro] porque ele apresenta um novo sentimento como fundamento de ex-plicação; segundo, porque vê nas leis da sensibilidade fundamentos objetivos. O princípio de Wolff é não-filosófico, pois ele faz, de pro-posições vazias, princípios, e faz conhecer o abstractum de todos os qvasitis antes do fundamento de conhecimento do qvasitis. Como se quisesse buscar o fundamento da fome no desejo de felicidade.” (XIX, 120). Leva-se então a sério a idéia de sistema, ainda que não se vá analisá-lo em sua completitude. O que importa destacar é que tal idéia, na medida em que resulta da forma (lógica) da própria razão, acaba por exigir a unidade de razão teórica e razão prática, ou melhor, dos usos teóricos e práticos da razão, ela que governa nossos conheci-mentos em geral (KrV, B 860). É preciso porém acrescentar: ela go-verna os conhecimentos em geral, mas também as ações, isto é, a práxis - daí ela ser, por outro lado, prática (e isso, diga-se logo de passagem, como razão pura). Ou seja, tanto os objetos do conhecimento quanto as ações estão ambos subordinados às funções lógicas da razão, funda-mento objetivo da gênese das categorias teóricas, mas também das categorias práticas, ou seja, das unidades discursivas fundadoras de toda a objetividade. Pois uma categoria, seja ela teórica ou prática, na medida em que é um conceito, é uma unidade discursiva.

Se a relação, que Kant explora como fio condutor na primeira Crítica, entre tábua lógica dos juízos e tábua das categorias, entre fun-ções de unidade dos juízos e categorias do entendimento, ou seja, entre lógica formal e lógica transcendental, sempre gerou, para sorte da filosofia, mais controvérsia que consenso, o que dizer da tábua das categorias práticas! Se as categorias teóricas contam ainda, para sua compreensão, com duas versões da Dedução Transcendental, todo o de-senvolvimento da Analítica dos Princípios, e mesmo com o Esquematismo, com relação às categorias práticas Kant é de um laconismo poucas vezes visto: “Nada mais aqui acrescento para explicar o quadro pre-sente porque ele é por si mesmo bastante compreensível” (KpV, V, 67 – T. 81). Ele informa que a liberdade pode ser considerada como uma

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causalidade cujo fundamento se encontra fora do mundo sensível; que são as categorias modais que fazem a passagem dos princípios práticos gerais para a moralidade, e diz ainda por onde se deve come-çar em investigações que têm por objeto a práxis. Algo diferente do que ocorreu com a filosofia teórica, a tábua das categorias da liberda-de não ocupou tanto assim os estudos kantianos. Salvo juízo em con-trário, está para ser escrito um comentário que dê conta desse mo-mento da segunda Crítica. Com relação às categorias jurídicas a situa-ção ainda é mais inquietante. Nos Trabalhos prévios à Doutrina do Direito Kant desenvolve o esboço de umas tantas tábuas, mas quando o texto é publicado encontra-se apenas uma alusão a um de seus momentos: “os objetos do meu arbítrio podem ser apenas três” e isso “segundo as categorias da substância, causalidade e comunidade entre mim e o objeto externo, a partir das leis da liberdade” (MdS. VI, 247)3.

Isso significa, então, que Schopenhauer tem razão em sua de-núncia de apego à simetria? A aposta que se faz aqui diz que não. O título deste trabalho, Kant: Metafísica e Política, se tem algo de pre-tensioso, não se constitui em um blefe infundado. Na verdade as car-tas já estão em parte abercar-tas, pois se trata de um estudo sobre a facul-dade de julgar prática. De certo modo, o que se pretende é estabelecer ao menos um esboço de dedução metafísica dos conceitos jurídicos-po-líticos puros. Projeto que não é de forma alguma estranho às inten-ções de Kant, ainda que ele não o tenha realizado explicitamente na forma de uma dedução – pensada em termos kantianos, bem enten-dido. Assim, de forma alguma se quer afirmar uma intenção profun-da profun-da filosofia crítica, algo como um espírito que impõe correções à sua letra, muito pelo contrário. “Há muito que se deseja – e não se sabe quando, mas talvez um dia se cumpra esta aspiração – poder en-contrar, por fim, em vez da infinita multiplicidade das leis civis, os princípios dessas leis; só aí poderá residir o segredo de simplificar, como se diz, a legislação. Mas as leis são aqui apenas limitações da nossa liberdade que a restringe às condições que permitem a ela estar de acordo integralmente consigo mesma; referem-se, pois, a algo que

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é inteiramente de nossa própria obra e de que podemos ser a causa por intermédio desses conceitos” (KrV. B 358). Ora, o direito racional é aquele que, para Kant, deve estar no fundamento de toda legislação civil e nessa medida ele é, justamente, o conceito integrativo de todos os princípios das diversas legislações civis e de suas reformas. Mas o direito racional, como instância normativa às legislações positivas de-rivada da forma da razão, precisa ainda de uma passagem. Como Kant escreve na Doutrina do Direito, “todo Estado contém em si três pode-res, quer dizer, a vontade universalmente unificada em uma tripla pes-soa (trias politica): o poder soberano (soberania) na pespes-soa do legislador, o poder executivo na pessoa do governo (em conformidade com a lei) e o poder judiciário (como capacidade de atribuir a cada um o que é seu a partir da lei) na pessoa do juiz, idênticos [gleich] às três proposições de um silogismo prático: a premissa maior, que contém a lei de tal von-tade, a premissa menor, que contém o mandamento de proceder se-gundo a lei, isto é, o princípio da subsunção sob ela, e a conclusão, que contem a sentença judicial quanto ao que é de direito no caso em pauta” (MdS, VI, 312). Mas se então os três poderes do estado pare-cem ser “derivados” da forma do silogismo, por outro lado o silogismo tem a forma de um juízo, pois em primeiro lugar, as formas dos silogismos são tantas como as formas do juízo conforme exprimam uma categoria de relação (KrV B 361); não bastasse isso, tem-se ainda a seguinte passagem da primeira crítica: “a razão, no seu uso lógico, procura a condição geral do seu juízo (da conclusão) e o silogismo da razão não é, ele mesmo, mais do que um juízo [obtido] por meio da subsunção da sua condição numa regra geral...” (KrV. B 364). De modo semelhante, mais adiante: “A função da razão em suas inferências con-siste na universalidade do conhecimento por conceitos, e o próprio silogismo é um juízo determinado a priori em toda a extensão de sua condição” (KrV. B 378).

Mas buscar uma dedução metafísica de nada adiantaria, se não fosse igualmente encontrada uma “dedução transcendental”, quando então o uso da razão não é lógico e expresso na forma do silogismo,

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mas sim transcendental, isto é, expresso na forma juízo. Na segunda Crítica, após a tábua das categorias da liberdade, Kant se ocupa da típi-ca, isto é, do “esquematismo” da razão prátitípi-ca, ou melhor, da faculda-de faculda-de julgar prática. A rigor, é na típica que se encerra a faculda-dedução transcendental, tantas vezes procurada no faktum da razão. Pois é ela que torna imanente o uso dos conceitos práticos. Ora, o fio condutor que será perseguido aqui trata justamente de analisar a faculdade de julgar em seu exercício, faculdade que faz a passagem do transcendental (inteligível) ao empírico (sensível). Mesmo não chegando propria-mente à gênese de todos os conceitos práticos puros, acredita-se, con-tudo, que se conseguiu demonstrar ao menos duas coisas: (a) que Kant pensou tais passagens como parte constitutiva do sistema da prá-tica, e não como um mero apêndice ou agregado e (b) o modo como ela se dá via reflexão, isto é, via juízo reflexionante, ou seja, por meio do juízo que parte do caso em direção à regra, regra da qual ele já está de posse, porque a priori, ainda que ela só se torne clara em sua ção, ou seja, por meio de uma análise que parte do contexto de aplica-ção. Ora, tal reflexão cuida justamente de tornar claras as determina-ções que são exigidas pela razão, mas que empiricamente, isto é, his-toricamente, têm uma realização apenas precária. A racionalidade prá-tica, em seu âmbito jurídico-político, é então esse vai e vem entre instituições jurídicas históricas e seu correspondente inteligível, isto é, entre ser e dever-ser. Desse modo ela não resulta em um formalismo vazio; mas também não é, de modo algum, uma racionalidade subs-tantiva, nem tampouco aposta cega no empirismo. Além disso, de modo algum Kant pode ser acusado de ecletismo, ao tomar ora um princípio material, ora um princípio formal. Se ele distingue entre matéria e forma, como de resto já fazia a tradição, sua novidade con-siste justamente em dar o primado à ultima, vinculando-a, além dis-so, ao sujeito transcendental e à sua legalidade, que passam então a comandar a formação de esquemas, isto é, de representações que, pró-ximas da sensibilidade, acabam por representar os conceitos puros, ou seja, apresentam para tais conceitos seus objetos.

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Uma coisa, porém, deve se ter sempre diante dos olhos: se ambas as faculdades de julgar, teórica e prática, fazem um movimento que vai do discursivo ao sensível, ou seja, dos conceitos até à sensibilidade, tra-ta-se de um movimento análogo, ou seja, um movimento que, a des-peito de sua semelhança, guarda diferenças que não podem ser despre-zadas. Pois se as categorias teóricas sintetizam um múltiplo que é dado na intuição sensível, as categorias da razão pura prática sintetizam um múltiplo que é dado no nível do entendimento – e só então se irá bus-car a passagem para a sensibilidade, isto é, para o sentimento de respei-to. Como aqui se trata antes de tudo da razão jurídico-política, pode-se deixar de lado essa última passagem, relativa ao sentimento de respeito, na media em que a legislação jurídica deixa de lado a âmbito da inten-ção. Algo relevante, porém, será uma análise, mesmo breve, do senti-mento provocado pela Revolução Francesa. De todo modo, porém, éti-ca e direito estão maréti-cados pela tensão entre transcendência dos princí-pios puros e imanência da formação de seus esquemas - isto é, de suas apresentações sensíveis - em relação à práxis. Silber insiste nesse aspec-to da filosofia prática de Kant, mais exatamente em relação ao problema da realização do bem soberano como tarefa moral4. Aqui, transpõe-se tal problemática para o âmbito jurídico-político.

Parte-se então de uma análise mais geral do juízo e da faculdade de julgar prática em seu exercício, até se chegar ao direito propria-mente dito, ainda no primeiro capítulo. Tendo agora o direito em vista (segundo capítulo), a análise se concentra no problema da de-terminação da propriedade particular que, como posse empírica, é “esquema” da posse inteligível. Ou seja, procura-se mostrar como o conceito de posse inteligível, unidade discursiva, vai se inscrevendo no real. A determinação da propriedade é, por excelência, o problema da política, porquanto é a pretensão a uma posse jurídica (direito pri-vado) que obriga à formação e instituição de um estado civil, isto é, estado de justiça distributiva legislando quanto ao meu e teu jurídi-cos. Mas isso não significa que se compartilha da leitura liberal-con-servadora que muitos realizam de Kant. Bobbio é o melhor exemplo

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de tal leitura, ao afirmar que, para a filosofia jurídico-política de Kant, não é a liberdade como autonomia que realmente importa, e sim a liberdade negativa, liberdade como não-impedimento5. Essa se ex-primiria justamente no direito privado, insulado de toda interferência do direito político. Mas o problema da propriedade tem destaque en-tão por duas razões: primeiro porque, mesmo que ela seja “condição” para a autonomia dos indivíduos, ela não deixa de ameaçar tal autono-mia; segundo, porque no “Direito privado”, ao menos nos textos pre-paratórios para o que depois será publicado, Kant faz uma ampla aná-lise sobre a relação entre os conceitos jurídicos e seus esquemas.

A análise irá se concentrar, depois, em alguns elementos do di-reito político e da política propriamente ditos (terceiro capítulo). E aí se tem, mais uma vez, o movimento que vai dos conceitos puros da razão, isto é, das idéias, aos seus esquemas, ou melhor, à simbolização de tais idéias. Pois toda instituição jurídico-política historicamente construída é momento de realização da idéia república, isto é, da re-pública noumenon. Assim, a política como doutrina do direito posta em prática6 é aquela atividade que, a um só tempo reflexionante e determinante, caminha no sentido da correção de todas as pretensões jurídicas historicamente constituídas, ou seja, atividade de positivação da razão mas que, por conter em si um momento de negatividade, se sabe sempre precária.

Ora, a lógica transcendental não é, em uma de suas caracteriza-ções possíveis, a lógica da verdade (KrV, B 87)? Não é ela que instaura a possibilidade da verdade ou falsidade, e isso na medida em que ela contém as condições da validade objetiva dos juízos? Se assim é, ela ainda precisa, contudo, ser seguida de uma “lógica prática”, quando então os diversos juízos são confrontados não apenas com a experiên-cia, mas também com os juízos dos demais. O mesmo vale para os juízos práticos, quando então a primeira seria vista como contendo as condições de validade objetiva dos juízos práticos, isto é, a possibili-dade deles serem ditos justos ou injustos. Já a “lógica prática” teria, neste último caso, no uso público da razão, no exercício público da

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faculdade de julgar, a única pedra de toque da “verdade” dos juízos práticos. É nesse sentido, por exemplo, que a opinião do povo pode ser tida como fundamento subjetivo da determinação da proprieda-de, pois o fundamento objetivo resta sendo o conceito de uma posse simplesmente jurídica, e que um sistema de propriedade deve ser al-terado conforme se altere a opinião que o sustenta. Na verdade, essa opinião comum dá mostra de um acordo mais profundo, acordo que se apresenta no nível dos juízos, e não apenas quanto à adesão, ou ao assentimento, que se concede ao juízo. A formação de uma opinião pública esclarecida é portanto solidária com a boa formação de juízos, isto é, das decisões que são tomadas a partir de juízos bem formados. No final pode-se até afirmar que é um Kant pouco ortodoxo este que se desenha aqui, bem distante de qualquer hiper-racionalismo. Um Kant que abandona o ar rarefeito do a priori para se imiscuir na zona incerta das opiniões. Mas afinal, entre um ou outro Kant, quem possui a régua que deveria supostamente medir qual o mais fiel?

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NOTAS

1 Para uma leitura que insiste na construção das passagens, ver Ricardo Ribeiro

Terra, Passagens – Estudos sobre a filosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003.

2 O modo como Kant enfrenta tais questões, mas no período que vai de 1762 a

1772, em verdade mais vinculado ao problema da virtude do que ao problema jurí-dico, é analisado por Figueiredo, Vinícius B. de. 1762-1772 – Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da crítica kantiana. Tese de Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 1998, em especial Capítulo 3.

3 Para uma tentativa de sistematização dessas tábuas, ver Monika Sänger, Die

kategoriale Systematik in den ‘Metaphysichen Anfangsgründen der Rechtslehre’ – Ein Beitrag zur Methodenlehre Kants, Berlim, Walter de Gruyter, 1982, 197 a 241.

4 Silber, J. “Der Schematismus der praktischen Vernunft” in Kant-Studien 56, 1966. 5 Cf. Bobbio, N. “Kant e as duas liberdades” in _______, Ensaios escolhidos, trad.

Sérgio Bath, São Paulo, Chardim, s/d, p. 21 a 34.

6 A solução da difícil tradução de ausübende Rechtslehre por “doutrina do direito posta

em prática” foi proposta por Cruz, J. H. B. Autonomia e Obediência: o problema do direito de resistência na filosofia moral e política de Immanuel Kant, Tese de Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 2004.

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a filosofia prática de Kant, o conceito de mundo inteligível responde, antes de tudo, a uma exigência normativa. É ele que deixa entrever uma nova ordem (prático-racional), à qual o mundo moral, como mun-do humano, ou da ação, deve estar submetimun-do. O sis-tema de Kant, porém, não se contenta em afirmar tal normatividade; aponta, também, para o seu modo de realização, ainda que esta última resulte sempre pre-cária. Destarte, a alternativa entre formalismo vazio, tautológico, ou terrorismo da vontade pura, caminhos que aparentam ser os únicos possíveis para quem de-nuncia o normativismo supostamente excessivo de Kant, se mostra no fim das contas má leitura, de resto perdoável apenas ao se levar em conta que uma má leitura nem sempre significa equívoco ou cegueira fi-losófica. Pode-se dizer tudo de Hegel, menos que sua leitura seja sinal de tibiez, ou resultado de uma posi-ção filosófica atoleimada – o que também vale para Schopenhauer. Simplesmente é um outro ponto de vista, uma outra perspectiva filosófica. É claro que

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ela também tem seus custos, os quais, porém, não cabe analisar aqui. Mas não deixa de ser no mínimo irônico que a filosofia política tenha sofrido, ao menos dos anos setenta do século passado para cá, um novo impulso, movimento que em grande medida é acompanhado por uma reivindicação crescentede pertença à família kantiana1. E o que se quer dividir e apropriar de um tal espólio é, justamente, o seu formalismo. A grandeza da Kant está então em seu formalismo; sua fraqueza, porém, no caráter monológico que ele atribui à lei moral, ou seja: a lei moral não deixa entrever nenhuma dimensão de intersubjetividade, e o sujeito prático-transcendental é antes de tudo um solipsista, isto é, alguém que decide sozinho, a partir de uma ex-periência em pensamento, quanto à validade universal da máxima da sua ação. Para afastar tal objeção, não basta contudo afirmar que ela, na compreensão que tem do sujeito moral kantiano como membro de um mundo inteligível, acaba rompendo com uma cláusula restritiva imposta pelo próprio Kant, a saber: nada transpor para o mundo inte-ligível que dependa do empírico, mas apenas a “simples forma da con-formidade a leis em geral” (KpV, V, 70 – T. 84), tal como expressa no conceito de dever e na formulação do imperativo categórico. É preci-so, isso sim, analisar até que ponto e em que dimensão a filosofia prática kantiana permite, se é que não impõe, uma compreensão do mundo inteligível como instância intersubjetiva – isto é, que se tece entre sujeitos - e normativa de uma práxis social, (e, aqui no caso, jurídico-política) sem de forma alguma perder de vista o sentido da realização, em sociedade, da liberdade segundo leis universais2. Antes porém, cabe uma breve análise acerca da construção do sistema e do modo Kant pensa a relação entre síntese e juízo. Como resultado des-sa primeira parte, espera-se chegar a uma leitura do mundo inteligível não apenas como instância normativa à práxis, isto é, à experiência da liberdade. Certo, se por um lado o mundo inteligível resta, no limite, transcendente, por outro lado Kant não deixou de considerar a pers-pectiva de sua realização em um mundo etípico. Pois afirmar que a lei moral, que a faculdade de julgar irá traduzir na forma do tipo, fornece

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“realidade objetiva, se bem que apenas prática, à razão”, significa afir-mar que a lei moral “transforma o uso transcendente desta [da razão] em um uso imanente” (KpV. V, 48 – T. 61)

Kant insiste, um bom número de vezes, na unidade entre razão teórica e razão prática, de modo que toda diferença reside apenas em seus usos. Outra tese kantiana, que parece ser aceita sem maiores pro-blemas (ao menos por comentadores benevolentes), cuida de afirmar que a razão pura é por si mesma prática. Como afirma Riedel, esta última tese implica que deve haver uma faculdade de julgar pura prá-tica3. Essa implicação não deveria levantar contra si qualquer suspei-ta, uma vez que uma análise da faculdade de julgar se encontra pre-sente em um momento crucial da segunda Crítica, a saber, a “típica da faculdade de julgar prática pura”. O que, porém, parece levantar con-tra si um sem número de reservas, é uma oucon-tra conseqüência das duas teses, desta vez formulada por Silber: “desde que há apenas uma razão subjacente à variedade dos [seus] usos racionais, há do mesmo modo apenas um processo racional ou judicante em uma variedade de usos”, ou seja, “quer a faculdade de julgar opere em termos de conceitos do entendimento, quer em termos de idéias da razão práti-ca, o seu procedimento, a atividade da faculdade de julgar, é, em am-bos os casos, essencialmente o mesmo”4. Ora, como Kant escreve na abertura de Teoria e Prática, “é evidente que entre teoria e prática exi-ge-se ainda um intermediário formando a ligação e a passagem de uma a outra, por mais completa que seja a teoria; pois ao conceito do entendimento, que contém a regra, deve-se acrescentar um ato da faculdade de julgar permitindo ao prático decidir se o caso recai ou não sob a regra” (TP, VIII, 274 – T. 57).

Postos esses termos, uma análise da faculdade de julgar pode en-tão ser vista como fazendo parte da problemática mais geral da metafísica e que Kant formula, em carta de 1772 a Marcus Herz, na seguinte questão: “sobre que fundamento repousa a relação entre aqui-lo que chamamos em nós representação e o objeto” (X, 130); proble-mática tanto mais misteriosa quando a representação é um conceito

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a priori, isto é, um conceito puro do entendimento, uma categoria. A questão não se torna menos difícil quando a representação do objeto é pensada como sua causa, isto é, segundo a legislação da liberdade, a qual se exprime não em termos de conceitos puros do entendimento, mas como idéias da razão prática. Mais ainda, como Kant afirma na Fundamentação, apenas o homem, como ser racional, tem a faculdade de agir segundo a representação de leis (Grund, IV, 412 – T. 47), às quais devem estar submetidas as suas ações em vista de objetos, quan-do então se decide da possibilidade de querer ou não a ação (KpV, V, 57 – T. 72). Aqui, porém, não se pretende dar conta, em sua inteireza, da solução kantiana para o problema da metafísica, o que implicaria uma análise não apenas da primeira Crítica, mas sim das três Criticas e, no limite, de todo o sistema. Problemática mais modesta, trata-se ape-nas de saber sobre que fundamento repousa a relação entre nossos conceitos jurídicos a priori, por exemplo, o conceito de um meu e teu externos em geral, e um objeto como propriedade particular, ou seja, como se dá a passagem da universalidade do conceito, representação discursiva, ou refletida, para a particularidade do caso. Isso porém vai ficando mais claro a partir do que será tratado mais adiante, quando a análise se concentrar de forma mais direta sobre o problema dos con-ceitos jurídicos puros, esses que são, todos eles, “elementos metafísicos do fundamento” da Doutrina do Direito5. Por enquanto, cabe analisar a operação da faculdade de julgar em seu uso prático, em larga medida a partir de uma analogia com o seu uso teórico.

Neste primeiro capítulo deixa-se de lado, tanto quanto possível, a distinção entre ética e direito - a qual só comparece de modo mais efetivo no seu final -, pois o que está em jogo é a relação, no juízo, entre conceitos práticos, isto é, entre representações prático-discursivas (ou refletidas) e ação, ou melhor, entre conceitos puros práticos e ato a partir da liberdade. Se for exato, como afirma Eric Weil, que Kant não funda uma moral no sentido tradicional do termo, e sim um dis-curso sobre a moral, o qual se pretende absolutamente válido para todo ser dotado de razão6, é necessário pensar, por outro lado,

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a relação entre tal discurso e o conjunto dos sistemas de regras de conduta para situações concretas, relação que irá se tecendo por meio do exercício da faculdade de julgar.

Juízo, Síntese e Sistema

Todo juízo, não importa sua natureza, é uma ligação de conceitos sob a unidade da consciência. Tal afirmação vale não apenas para juízos sintéticos, mas também para juízos analíticos, nos quais, contudo, a condição da predicação é dada de modo imediato pelo próprio sujeito do juízo7. Ou seja, a distinção entre juízos analíticos e sintéticos não pertence à lógica, mas à lógica transcendental, na medida em que é nela que está em causa o fundamento da ligação de conceitos presente no juízo que se quer válido. Mas não é sobre este ponto que vale a pena insistir, e sim quanto ao fato de que também os juízos práticos, na medida em que são juízos, são ligações de conceitos, isto é, de unidades discursivas, de sorte que eles estão igualmente incluídos naquela ciência da simples forma do pensamento em geral, a que Kant chama de Lógica. Ora, se a lógica cuida, então, da forma do pensamen-to, isso significa que ela lida, na verdade, com as leis necessárias do entendimento e da razão em geral (Logik. IX, 13) para a ligação de conceitos em um juízo. Na Crítica da Razão Pura, será tarefa da dedu-ção transcendental, momento da lógica transcendental, justamente de-monstrar em que medida as funções de unidade lógicas são, ao mes-mo tempo, funções de unidade da intuição e que se chamam concei-tos puros do entendimento (KrV, B 105) para a determinação de um objeto x como objeto de conhecimento. E aqui, onde a tábua lógica dos juízos se mostra como fio condutor de uma tábua dos conceitos puros do entendimento, isto é, das categorias, na determinação do objeto de conhecimento, pode ser encontrada, mais uma vez, a clivagem do sistema kantiano em seu plano mais geral, a saber, a clivagem entre teoria e prática, entre filosofia teórica e filosofia prá-tica. Pois a reflexão transcendental, ao investigar a possibilidade de

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juízos sintéticos a priori, cuida de, separando o joio do trigo, expor o conteúdo transcendental que a faculdade de julgar em seu uso cognitivo põe como condição a priori para a constituição da objetividade teórica. Se há, então, um conteúdo transcendental que faz parte da constituição do objeto como objeto de conhecimento, não será tam-bém possível contar com um conteúdo transcendental prático, isto é, com um conteúdo transcendental que entre na linha de montagem da objetividade prática?

A primeira Crítica tem, no § 10, um de seus momentos cruciais. Nele, Kant afirma a introdução de um conteúdo transcendental na constituição da objetividade teórica: “O mesmo entendimento, pois, e isso por meio dos mesmos atos pelos quais estatuiu nos conceitos, mediante a unidade analítica, a forma lógica de um juízo, introduz também, mediante a unidade sintética do múltiplo na intuição em geral, um conteúdo transcendental nas suas representações do múlti-plo” (KrV. B 105). Sem pretender dar conta de tudo que está em jogo em tal passagem8, cabe apenas afirmar que tal conteúdo transcendental resulta da atividade que a faculdade de julgar, ou melhor, o entendi-mento, exerce sobre o múltiplo dado na sensibilidade sob a forma do espaço e do tempo. Se a matéria do fenômeno é dada segundo as for-mas do espaço e do tempo, a síntese que se exerce sobre tal matéria e a torna objeto de conhecimento dá-se conforme as formas lógicas do juízo são postas em atividade produtora sob condição sensível. É a partir de um tal exercício que as categorias têm sua aquisição originá-ria9, ou melhor, que o conteúdo transcendental é introduzido na re-presentação do múltiplo como objeto de conhecimento, de forma que, vista desta perspectiva, a representação pode ser dita conceito puro do entendimento. Muito bem: não era tarefa da Dedução Transcendental justamente mostrar a legitimidade do vínculo entre formas lógico-discursivas e dado sensível, ou seja, entre conceito e intuição? Se for esse o caso, quando se trata da razão prática Kant efetua uma guinada. Pois, como afirma Kaulbach, ele “concede, para as categorias da liber-dade, a prerrogativa de que o dado a que elas se devem referir,

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para que então possuam realidade objetiva, não se tem de esperar na intuição sensível (...) O dado, que está no fundamento [da realidade objetiva] das categorias práticas, encontra-se no pensamento; consis-te na ‘forma de uma vontade pura’, que ela irá compreender como ‘algo’ aquilo que vem a ser dado na própria razão”10. A síntese prática, presente no juízo prático, não se dá então, nos mesmos termos da síntese teórica, sob condição sensível, e sim sob a idéia de liberdade, a qual transporta o sujeito agente para um contexto no qual ele decide por uma ação e justifica o seu agir para a obtenção de um fim.

Se há, porém, um conteúdo prático transcendental, uma coisa pre-cisa ser posta desde o início. Não há qualquer razão de tipo substancial na filosofia de Kant, e se isso vale para a razão teórica, vale igualmente para a razão prática. Se fosse o caso, não seria esta a melhor forma de defender Kant dos ataques de Hegel, porquanto se estaria abrindo mão, na revolu-ção copernicana em filosofia prática, da sua característica mais marcante, a saber, o primado da forma sobre o conteúdo, o seu caráter procedimental11. Pois o conteúdo transcendental prático é em verdade a forma pela qual a diversidade dos desejos é submetida “à unidade da consci-ência de uma razão prática que ordena numa lei moral, ou de uma vonta-de pura a priori” (KpV, V, 65 – T. 79), isto é, a forma do vonta-dever tal como expressa em um imperativo categórico12. Ora, o conceito do dever é en-tão o primeiro conteúdo transcendental que a razão prática põe na deter-minação de uma ação como necessária segundo leis da liberdade. E é este conteúdo transcendental, forma da ligação de um múltiplo, que se apre-senta como síntese, ou melhor: a lei moral só é um princípio sintético, uma proposição prática sintética a priori, para um ser cuja vontade não se deixa determinar necessariamente por ela, de modo que para Deus, ou mesmo para qualquer outro ser racional que não seja finito, a lei não é representada na forma de um imperativo, não se exprime como dever, mas é, pelo contrário, uma proposição analítica que deriva do conceito de uma vontade perfeita13, ou seja, de uma vontade que não pode escolher outra coisa a não ser aquilo que a razão prática lhe representa como bom, isto é, como necessário (Grund. IV, 412 – T. 47).

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Afirmar, porém, que o conceito de dever é o primeiro conteúdo que a razão prática impõe à determinação da ação não significa atri-buir a ele, no domínio da razão prática, o mesmo estatuto que as cate-gorias do entendimento possuem no domínio teórico da razão. A ri-gor, quando se exprime o termo dever, trata-se muito mais de uma idéia do que de um mero conceito, mesmo que por esse se entenda um conceito puro do entendimento. Quanto a esse ponto, uma pas-sagem da primeira Crítica é esclarecedora:

O conceito é empírico ou puro e ao conceito puro, na medida em que tem origem no mero entendimento (não numa imagem pura da sensibilida-de), chama-se noção (notio). Um conceito extraído de noções e que trans-cende a possibilidade da experiência é a idéia ou conceito da razão. Quem uma vez se habituar a esta distinção achará intolerável ouvir chamar idéia a representação da cor vermelha, que nem sequer deverá chamar noção (KrV, B 377).

Uma categoria do entendimento, apesar de ser um conceito puro, não é uma idéia, e isso na medida em que tem sua origem a partir da atividade legisladora e objetivante que o entendimento exerce sobre a imaginação, atividade que resulta na formação de esquemas, sendo esquema “a representação de um processo geral da imaginação para dar a um conceito a sua imagem” (KrV, B 179). Uma idéia, por sua vez, tem sua origem no mero entendimento; mais ainda, a ela não corresponde nada na experiência. Ora, isso não pode significar, po-rém, que se está a atribuir à idéia de dever, idéia prática, a mesma função que se atribui às idéias no uso teórico da razão, a saber: uma função meramente reguladora da experiência, e não determinante. Tal não pode ser o caso, uma vez que o conceito de dever faz conhecer –e exige - uma determinação da vontade pela razão pura prática. Ora, essa determinação se faz conhecer por meio das categorias da liberda-de, mas apenas quando o momento da modalidade é considerado pela reflexão transcendental. Pois antes da introdução de tal momento, as máximas apenas operam sobre conteúdos fornecidos pela faculdade

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de desejar, permanecendo indeterminada sua relação com a razão pura prática em seu exercício (KpV, V, 67 – T. 80), ou seja, nada se decide quanto à aptidão da máxima particular para uma legislação universal da liberdade.

Uma vez dado este passo, que vai no sentido da análise dos con-teúdos transcendentais que a faculdade de julgar revela em seu exer-cício, já se está além da lógica, pois esta “trata das proposições práticas quanto à forma, as quais se opõem nessa medida às teóricas” (Logik. IX, 110). E como o que importa aqui é analisar a origem do conceito de dever no exercício da faculdade de julgar prática e na imposição de sua forma à diversidade dos desejos sob uma consciência, tal análise é, segundo texto da própria Lógica, tarefa da Metafísica (Logik, IX, 94), com o que as proposições práticas se distinguem das especulativas (Logik. IX, 110). Ora, na Fundamentação é possível ver Kant reafirmar esse mesmo movimento:

A questão que se põe é portanto esta: É ou não é uma lei necessária para todos os seres racionais a de julgar sempre as suas ações por máximas tais que eles possam querer que devam servir de leis universais? Se essa lei existe, então ela tem de estar já ligada (totalmente a priori) ao conceito de um ser racional em geral. Mas para descobrir esta ligação é preciso, por bem que nos custe, dar um passo além, isto é, para a metafísica, posto que para um campo da metafísica que é distinto da filosofia especulativa, e que é a metafísica dos costumes (Grund. IV, 426 – T. 66)14.

Todo o progresso, então, na investigação acerca dos objetos da filo-sofia prática vai no sentido da lenta construção do sistema da metafísica, isto é, do “sistema de conceitos racionais puros, independentes de qual-quer condição de intuição” (MdS. VI, 375). Mas antes de tal sistema ser apresentado como o conceito integrativo15 (Inbegriff) de todas as leis da razão pura prática e, mais ainda, como conceito integrativo de leis de-terminando a priori deveres particulares, ou seja, na medida em que tal sistema é o sistema das leis puras práticas em geral e dos deveres a elas correspondentes, abstração feita de toda e qualquer determinação

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particular, abre-se a perspectiva, para a razão prática, de uma outra le-gislação que não a lele-gislação da natureza, a saber, a perspectiva de um mundo inteligível e da legislação a ele correspondente.

Essa perspectiva se apresenta então na forma de um sistema da razão, de um duplo sistema, a saber: o sistema da natureza e o sistema da liberdade, conforme se tome a razão em seu uso teórico ou prático. Mas como compreender tal sistema em sua completitude? Onde co-meça e onde termina tal sistema16? O que importa ter presente é que o sistema, se tomado como filosofia, é mais amplo do que um siste-ma de conceitos racionais puros. A este respeito, usiste-ma passagem da Doutrina da Virtude é lapidar:

Se há, para um objeto qualquer (irgend einen Gegenstand), uma filosofia (siste-ma do conhecimento racional por conceitos), então tem de haver, para esta filosofia, também um sistema de conceitos puros da razão, independentes de toda condição de intuição, isto é, uma metafísica (MdS. VI, 375).

Reduzir, então, o sistema à metafísica, que dele é apenas parte inte-grante, pode levar a duas conseqüências: confunde-se o empírico com o racional, isto é, com o transcendental, ou afirma-se que a filosofia, ocupada que estaria em pensar o pensamento, perde todo e qualquer vínculo com o empírico. Kant denuncia e combate com vigor a primeira forma de equí-voco, infeliz aliança entre empirismo e racionalismo dogmático. Por outro lado, todo o seu esforço em construir passagens visa justamente evitar o segundo equívoco17. A primeira tarefa, porém, ainda que não seja a única, é a mais urgente. Antes de tudo, deve-se “indicar (angeben) os princípios da possibilidade” da razão prática em geral, “do seu âmbito e limites de um modo completo, sem relação particular à natureza humana”, isto é: o filó-sofo deve, antes de tudo, ocupar-se com o “sistema da crítica”, para que possa, depois, apresentar o “sistema da ciência” (KpV. V, 8 – T. 17), sistema da ciência que contém, além dos princípios puros, elementos também empíricos. A filosofia prática de Kant, se reconhece seu lastro na Crítica da Razão Prática, não se esgota nem se confunde com esta, a menos que se queira tomar os alicerces pelo edifício que se quer habitar.

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“À crítica da razão prática devia suceder o sistema, a metafísica dos costumes”, escreve Kant no Prefácio à Doutrina do Direito (MdS. VI, 205). Su-cessão lógica, isto é, imposta pelas razões da filosofia crítica. Ora, esta mes-ma “ordem de razões” se faz presente no Prefácio à segunda Crítica. Contu-do, esta referência a uma ordem de razões não está aqui para indicar que se busca chegar a um primeiro princípio, a uma primeira certeza, depois a uma segunda e assim por diante. Do movimento da reflexão presente na construção do sistema da liberdade, pode-se dizer que ele é circular; mas não por isso ele deixa de ser virtuoso, na medida em que a cada volta não mais se está no mesmo grau de objetividade. Na verdade, parece tratar-se muito mais de um movimento em espiral do que propriamente circular. A “divisão de todas as ciências práticas”, “com efeito, a determinação parti-cular dos deveres, como deveres humanos, a fim de os dividir, só é possível se antes o sujeito desta determinação (o homem) for conhecido segundo a característica (Beschaffenheit) com que ele é realmente (wirklich)” (KpV. V, 8 – T. 16). Mas como compreender este conhecimento do homem segundo as características com que ele efetivamente é? Parece ser o caso de se tomar a reflexão como partindo do homem tal qual existe empiricamente, para então avaliar, dentre as suas condições de existência, quais delas só poderiam ter origem na própria razão prática como razão pura. Em uma anotação posta à margem do seu exemplar das Observações sobre o sentimento do belo e do subli-me, Kant distingue seu método do método de Rousseau da seguinte forma: “Rousseau procede sinteticamente, e parte do homem natural; eu procedo analiticamente, e começo pelo homem civilizado”(XX, 14). Daí Cassirer poder afirmar, partindo desse texto, que “a metafísica não deve ser fundada sobre fatos inventados ou hipóteses improvisadas; ela deve partir do que é dado, quer dizer, dos fatos de que temos um conhecimento empírico. Nessa perspectiva, o único dado de que dispomos é o homem civilizado, e não o selvagem de Rousseau, que vaga solitário nas florestas”18.

A análise, porém, não é antropológica, mas lógico-transcendental; não se procede a uma simples descrição empírica da natureza humana e de sua experiência, mas se busca aquilo que, não obstante estar ope-rando nela, não tem nela a sua origem e fundamento19. E dentre essas

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condições de existência está o faktum da razão, consciência da lei mo-ral que não se confunde com nenhuma forma de vida momo-ral histori-camente determinada, isto é, com nenhuma moral (ética) vigente. Razão de conhecimento da liberdade, é o faktum da razão, consciência da lei moral, que torna possível pensar o conceito de liberdade como “predicado da causalidade de um ser fazendo parte do mundo sensí-vel” (KpV, V, 94 – T. 169), ao mesmo tempo em que abre, para este ser, a perspectiva de um mundo inteligível determinado de um ponto de vista prático, ou seja, de um ponto de vista não-especulativo, como reino dos fins. Mas que o ponto de vista seja prático; que a tábua das categorias por meio das quais se pensa o mundo da ação seja a tábua das categorias da liberdade, e não apenas a tábua das categorias do entendimento, a passagem de uma a outra tábua é efetuada pela facul-dade de julgar, na medida em que ela, por reflexão, encontra na razão prática pura a regra da síntese. A segunda Crítica, porém, não refaz tal passagem; antes a pressupõe, indicando apenas o caminho percorri-do: “Cedo compreendo que, uma vez que nada posso pensar sem categoria, tenho antes de procurar, para a idéia da razão sobre a liber-dade, com a qual lido, uma categoria e que é aqui a categoria da causa-lidade” (KpV. V, 103 – T. 119) isto é, a primeira das categorias dinâmi-cas, as quais, em sua síntese do múltiplo, não exigem, como as catego-rias matemáticas, a homogeneidade entre os elos por elas ligados: a condição e o condicionado, quando a primeira, a condição, a regra prática, deve ser ela mesma incondicionada.

É justamente em função da compreensibilidade de uma ação mo-ral, que inclui a noção de uma obrigação que não prevê exceção, que se busca um princípio incondicionado, a lei moral. Ocorre, porém, que em “ações efetivamente dadas na experiência como eventos no mundo sensível, não podíamos, escreve Kant, esperar encontrar uma tal liga-ção” expressa em uma obrigação moral. Desse modo, a causalidade da liberdade só podia então ser “buscada sempre fora do mundo sensível, no inteligível” (KpV. V, 104-5 – T. 121). Eis aí a presença forte do mun-do inteligível, ponto de fuga aparentemente inescapável da

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fundamen-tação kantiana da moralidade. No mais das vezes, como se costuma ler Kant, a relação entre sensível e inteligível é revestida de um caráter de exclusão absoluta, exclusão difícil de ser superada: mundo sensível e mundo inteligível são absolutamente externos um ao outro, e a ação moral aponta para a necessidade, quem sabe por milagre ou fortuna, de uma interseção entre ambos os mundos. Mas será esta a única leitura possível da relação entre mundo inteligível e mundo sensível? Será que não seria possível, mesmo necessário, encontrar um sentido mais fraco para a oposição entre eles, sentido este que indicaria, de um lado, a passagem de um a outro mundo, ao mesmo tempo em que apontaria, também, para o problema da aplicação da lei moral?

Ao se tomar o conceito de um mundo inteligível em seu sentido forte, isto é, como um mundo transcendente ao domínio da ação efetiva, mas não menos normativo em relação a este último, dificil-mente se escapa das objeções que, na esteira de Hegel, são feitas não apenas a Kant, mas a toda filosofia prática que vê seu fundamento em um princípio formal. Impotência do dever-ser ou terror da vontade boa, parece ser esta a única alternativa que resta a Kant. A idéia de um mundo inteligível, a idéia de uma legislação prática e de um mundo moral, se possui, na medida em que não se obtém no mundo sensível nenhuma realização que lhe seja plenamente conforme, um sentido transcendente inequívoco, conhece, por outro lado, a possibilidade de um uso imanente, uma vez que ele se põe justamente como ideal normativo para um movimento constante de aproximação em sua direção. É essa possibilidade que cabe agora analisar. E por uma ques-tão de mera justiça, é preciso enques-tão reconhecer: Kant é o primeiro a apontar para a impotência do dever-ser. Pois afirmar que a legislação prática, dever-ser determinando a existência do homem como ser su-pra-sensível, é a legislação de uma natureza submetida à autonomia da razão, ou seja, é a legislação de “um puro mundo inteligível cujo equi-valente deve existir no mundo sensível” (KpV. V, 43 – T. 56 – grifo meu), não é contar toda a estória. A esse mundo, que Kant não vacila em considerar como um arquétipo, vincula-se o segundo, isto é, sua

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existência no mundo sensível, mas apenas como efeito possível da idéia do primeiro, como mundo ectípico, natureza ectípica. “Pois, es-creve Kant, efetivamente, a lei moral transporta-nos, em idéia, para uma natureza em que a razão pura, se fosse provida de um poder físico a ela adequado, produziria o soberano bem, e determinaria a nossa vontade a conferir a sua forma ao mundo sensível como conjunto de seres racionais” (KpV. V, 43 – T. 56 – grifo meu)20.

Kant insiste, portanto, na irredutibilidade entre ser e dever-ser, na transcendência do dever-ser frente a qualquer uma de suas realizações históricas, isto é, no mundo sensível. Mas a passagem não está de ne-nhum modo vedada. Pois assim como toda teoria, como todo conceito teórico depende, para que não seja um conceito vazio, que um algo qualquer seja dado na intuição, como múltiplo a ser trazido sob a uni-dade transcendental da consciência, o mesmo vale para a razão prática e seus conceitos. Não menos do que as categorias do entendimento, tam-bém as categorias da liberdade devem poder ser aplicadas à experiência: “A razão pura contém assim, é verdade que não no seu uso especulativo, mas num certo uso prático, a saber, o uso moral, princípios da possibi-lidade da experiência, isto é, ações que, de acordo com os princípios morais, poderiam ser encontradas na história do homem” (KrV. B 835). E essa experiência, que se põe então como construção de um mundo moral, é porém marcada por uma tensão fundamental, na medida em que por meio dele não se compreende apenas o arquétipo, isto é, o dever-ser de nossas ações, mas também o efeito possível, no mundo sensível, deste dever-ser como princípio de determinação da vontade (KpV. V, 43 – T. 56). Tensão que de resto está presente ao menos desde a primeira Crítica, na qual é possível ler: “Chamo mundo moral, o mun-do na medida em que está conforme a todas as leis morais (tal como pode sê-lo, a partir da liberdade dos seres racionais e tal como deve sê-lo, segundo as leis necessárias da moralidade) (KrV B 836)21.

A idéia de um mundo inteligível como mundo moral é então uma tarefa que deve ser realizada22. É esta perspectiva de realização, de aplicação, que obriga agora a considerar a idéia de um mundo

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inteligível não apenas como uma idéia transcendente - isto é, de todo afastada do mundo sensível, e no qual, para ela, não se encontra, como bem moral que é, qualquer equivalente (KpV, V, 120) -, mas também de um ponto de vista imanente ao exercício da faculdade de julgar prática. Essa imanência, porém, não se dá, como no caso da razão em seu uso teórico legítimo, entre sínteses da intuição e conceitos do entendimento, mas sim entre entendimento e razão pura prática, ou melhor, na submissão da razão prática em geral (KpV. V, 66 – T. 80) às leis que determinam a priori o que se deve ou não fazer, e isto com a introdução, pela faculdade de julgar prática em seu exercício, das ca-tegorias modais da liberdade. Enquanto a razão, em seu uso teórico, conta, na aplicação das categorias do entendimento a casos in concreto que se apresentam como dados na intuição, com os esquemas da ima-ginação, a razão prática conta, para sua aplicação, não com a imagina-ção, e sim com o entendimento (KpV. V, 69 – T. 83). Assim, não é um esquema da sensibilidade que é submetido à uma idéia da razão, e sim uma lei do entendimento, a saber, o conceito de uma lei natural, mas apenas segundo a sua simples forma. A analogia é então completa, na medida em que, se na razão teórica ao conceito de lei da natureza correspondia um procedimento geral da imaginação, isto é, o esquematismo - representar a priori aos sentidos o que até então era simples síntese intelectual -, ao conceito de lei moral corresponde a “imposição” de um procedimento análogo, só que ao entendimento, isto é, à razão prática em seu uso geral e empírico23.

É então a razão pura prática que produz, ao exercer sua legislação sobre o modo de proceder do entendimento, o tipo, não o esquema, da lei moral. Como escreve Kant: “A regra da faculdade de julgar sob as leis da razão pura prática é esta: interroga-te a ti mesmo se a ação que projetas, no caso dela dever acontecer segundo uma lei da nature-za da qual você próprio faria parte, pode ainda ser vista como uma ação possível por meio de sua vontade” (KpV. V, 69 – T. 83). A razão, então, autoriza a faculdade de julgar prática a fazer uso da natureza sensível - conjunto sistemático de fenômenos sob leis - como tipo de

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uma natureza inteligível, tornando então possível um uso imanente de um tal conceito, a saber, do conceito de um mundo inteligível. Nessa autorização, é a conformidade a leis em geral da natureza que serve de modelo para a reflexão das ações humanas quanto à sua con-formidade ou não a uma lei, a qual contudo não é mais lei natural, mas lei da razão, ou melhor, legalidade da razão pura prática. Assim, apenas o conceito de uma conformidade à leis em geral é transferido para a determinação do conceito de um mundo inteligível24.

O tipo é então a representação, no nível do entendimento, da unida-de analítica do conceito unida-de unida-dever imposta pela razão pura prática e for-mulada nos termos do imperativo categórico. É ele que traduz e torna compreensível para um ser racional finito a exigência da lei moral. Do conceito de lei da natureza, até o entendimento mais comum faz uso constante, isto é, sabe encontrar casos concretos a que tal conceito corresponde. Ao fazer uso do conceito de lei da natureza - conceito que, de resto, possui uso empírico -, como tipo da lei moral, o entendimento, ou melhor, a faculdade de julgar, preenche assim o vazio que ameaçava o próprio conceito de dever moral. Um determinado caso e não outro deve ser julgado como submetido à legislação da natureza apenas como tipo; um determinado caso e não outro escapa da legislação da natureza e deve ser julgado sob a perspectiva da legislação da liberdade:

Assim julga mesmo o entendimento mais comum; pois a lei da natureza serve sempre de fundamento a seus juízos, e mesmo aos juízos de experiên-cia. Ele a tem sempre à mão; somente que, nos casos em que a causalidade deve ser julgada como causalidade por liberdade, ele faz dessa lei natural ape-nas o tipo de uma lei da liberdade, porque ele, sem ter nada em mãos que possa ser feito exemplo em casos da experiência, não poderia proporcionar o uso, na aplicação, para a lei de uma razão pura prática (KpV. V, 70 – T. 84).

O esquematismo pode percorrer dois vetores: ou bem tornar sen-sível um conceito do entendimento, quando o entendimento produz então a síntese da imaginação, momento em que a imaginação se diz produtiva, ou bem percorrer o sensível em direção à unidade do

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con-ceito, ou seja, é a faculdade de formar conceitos empíricos. Mas a típica é um procedimento especial, porquanto se trata do esquema de uma lei, de uma lei prática, a lei moral, e não de um conceito. Na Religião nos limites da simples razão Kant fornece a seguinte interpreta-ção ampliada do esquematismo: “tornar compreensível um conceito por meio de analogia com algo sensível” (Rel. VI, 65). Ora, é este procedimento que Kant analisará, ainda que não de modo exaustivo, no parágrafo 59 da Crítica do Juízo:

Toda hipotipose (apresentação, subjectio sub adspectum) é, como ato de tor-nar sensível [um conceito], dupla: ou bem ela é esquemática, pois que ao conceito que o entendimento conhece a intuição correspondente é dada a priori, ou bem ela é simbólica, pois que ao conceito, que só a razão pode pensar e ao qual não corresponde nenhuma intuição adequada, é subme-tida uma tal intuição, com o que o procedimento da faculdade de julgar é apenas análogo àquele que se observa no esquematismo, isto é, concorda com este apenas na regra do procedimento e não pela intuição, então ape-nas com a forma da reflexão e não com o conteúdo (KU. V, 351 – T. 84)

A um conceito da razão é submetida uma intuição, ou melhor, a uma idéia da razão pura prática, à idéia de lei moral, é submetido um conceito do entendimento, o conceito de lei natural, o qual, por sua vez, pode ser apli-cado a casos concretos. É esta submissão que produz o tipo, forma da lei moral sobre condição sensível. E o agente moral compara seus juízos prá-ticos singulares, todos eles formados sob condição sensível, isto é, circuns-critos em uma determinada situação dada, com o tipo da lei moral, efeito da razão sobre o entendimento: “Quando, escreve Kant, a máxima da ação não é constituída de maneira a sustentar a prova em geral [por compara-ção] da forma de uma lei natural, ela é moralmente impossível” (KpV. V, 69/70 - 84). Essa comparação, Kant afirma que não se deve contar nela o princípio de determinação da vontade, mas apenas o tipo para a apreciação da máxima – princípio subjetivo - segundo princípios morais - objetivos. Mas, ao mesmo tempo, é ela que faz conhecer ao menos uma determina-ção de um mundo inteligível cuja realizadetermina-ção se impõe como tarefa: sua legalidade.

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Na medida em que uma síntese empírica está submetida a uma idéia da razão pura prática e encontra nela seu fundamento e ex-pressão, a relação de uma a outra já não pode mais ser de transcendência. Assim, com a típica, a idéia de um mundo inteligí-vel torna-se, em seu uso, imanente ao exercício da faculdade de julgar prática. Na verdade, a típica é, por assim dizer, a autocom-preensão, sob condição sensível, isto é, empírica, da positivação da razão pura prática25. Positivação que se dá sob dupla face: ética e jurídica, a primeira que se ocupa da intenção do agente e faz da idéia de dever o móbil da ação moral, a segunda que visa tão-so-mente a exterioridade da ação, aceitando um outro móbil. Mas ambas vão se instituindo, a legislação ética em uma comunidade ética e que se chama igreja, a legislação jurídica no corpo político. A comunidade ética como igreja empiricamente constituída não é senão a realização da igreja espiritual, isto é, a comunidade ética dos seres racionais. A religião, como religião revelada, é positivação da razão, revelação da razão. Algo semelhante se dá com o direito positivo: ele é positivação do direito racional, cuja lei não espera a sanção do estado para vigorar como lei. Ambas as comunidades éticas e jurídicas historicamente constituídas são tidas por Kant como esquemas, ou melhor, símbolos, isto é, como realizações mais ou menos precárias da legislação da razão, ou seja, positivações mais ou menos “defeituosas” da razão. Mas o direito positivo não pos-sui em si o critério de sua correção, mas sim na razão, no direito racional, que deve também ele ser esquematizado. É no sentido do seu lento e contínuo progresso que os juízos práticos empiricamente formados recebem predicados da liberdade. A de-liberação, a determinação de um juízo particular, dá-se no âmbito de tais esquemas. Deste modo, o juízo não se forma no vazio de uma pura lei moral, mas na justa tensão entre sensível e inteligí-vel, tensão que revela a legitimidade de cada uma das pretensões privadas, seja quanto à felicidade, seja quanto a sua juridicidade.

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Juízo Prático e Forma da Sociabilidade

Do mundo inteligível, tudo o que pode ser afirmado é a sua lega-lidade, isto é, a sua conformidade a leis; mais ainda, leis que valem universalmente, que impõem uma ligação necessária entre A e B. As-sim, o que a lei moral obriga é que algo que vale para um sujeito em um estado qualquer de sua condição, deve igualmente valer para todo ser racional. Como já foi visto, essa ligação será expressa em um juízo; é ela, ao fim e ao cabo, que está contida no conceito de dever como representação discursiva. Ora, a pedra de toque de todo juízo moral, e mesmo de todo o dever, é o imperativo categórico, princípio de universalização das máximas, forma que a lei moral assume para um ser racional finito, quando se pode decidir pelo caráter sintético da proposição moral. Pois até então, quando não se tinha determinado a quem ela se dirige, restava também não decidida a questão quanto a ela ser analítica ou sintética. Mas a quem, cabe perguntar, ela se diri-ge? Ao ser racional que, se finito, tem em uma proposição exprimin-do um dever uma proposição prática sintética a priori.

Até aqui, nada de novo. Mas por que reduzir tal sujeito a uma autoconsciência solitária e que decide, por meio de uma experiência em pensamento, da universalidade ou não da sua máxima? Se o formalismo de Kant deve ser louvado, o caráter monológico da lei moral deve ser recusado em nome de uma intersubjetividade que se sobrepõe aos indivíduos e os constitui justamente como tais. Hegel, em sua juventude, teria intuído esse problema e solução, mas não o levou a cabo do modo como deveria ter feito. A razão comunicativa de Habermas prende-se a tal diagnóstico e pretende, justamente, rea-lizar aquilo que o jovem Hegel apenas esboçara26. Ao invés de uma experiência em pensamento – na vida solitária da alma, como diria Habermas – “a ética do discurso espera um entendimento mútuo so-bre a universabilidade dos interesses apenas como resultado de um dis-curso público organizado intersubjetivamente”27. Mas não é apenas quanto a esse ponto que a ética do discurso, a despeito do seu

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formalismo assumido, se sente obrigada a afastar-se de Kant, e isso justamente por crer que Hegel teria mesmo razão. Pois Habermas deve igualmente renunciar à “diferença categorial entre o reino do inteligível, ao qual pertence o dever e a vontade livre, e o reino do fenomênico, que entre outras coisas abarca as inclinações, os motivos meramente subjetivos e também as instituições do Estado e da socie-dade”28. Ora, na seção anterior procurou-se mostar que a típica, ou melhor, a faculdade de julgar prática, faz uso imanente do conceito de um mundo inteligível, de modo que há sim diferença categorial, mas não hiato intransponível. Agora, cabe justamente tentar mostrar como, a partir deste uso imanente, essa experiência em pensamento exige um “discurso” organizado intersubjetivamente, onde discurso quer dizer, reconstituída a terminologia kantiana, formação de um juízo (representação discursiva, ou refletida) por meio de sua apresentação. O melhor candidato para tal tentativa é, sem dúvida, o conceito de reino dos fins. Ocorre que mesmo na primeira formulação do im-perativo categórico, isto é, no primeiro tipo, já começa a se encami-nhar uma possível reposta para tal questão. Ora, as diversas formula-ções nada mais são do que “ umas tantas formulaformula-ções de uma só e mesma lei”, a lei moral, e toda diferença entre elas é mais subjetiva do que objetiva, isto é, umas mais do que outras aproximam uma idéia da razão da intuição, e então do sentimento (Grund. IV, 436 – T. 79). Daí Krüger ter razão ao considerá-las como tipos, interpretação que é seguida aqui29. Mas no que a primeira formulação – “age de tal modo que como se a máxima da tua ação se devesse tornar, por tua vontade, lei universal da natureza” (Grund. IV, 421 – T. 59) – importa para o pro-blema que está aqui em jogo? Na Fundamentação, ao menos nas duas primeiras seções, a argumentação de Kant percorre um duplo movi-mento: primeiro, ele procede analiticamente à investigação das con-dições transcendentais das relações práticas, isto é, relações que têm seus princípios na razão pura prática, e que portanto não derivam do mero instinto ou mesmo do hábito, isto é, não derivam da experiên-cia; segundo, ele apresenta uns tantos exemplos partindo de situações

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e relações reais de dever, ou ao menos que se acreditam reais30. Certa-mente os exemplos têm um estatuto problemático – e isso não apenas para Kant, mas para a filosofia em geral. Se eles nada valem em um contexto de fundamentação, valem porém no contexto de aplicação, isto é, de apresentação da lei moral, quando então se faz um uso imanente dos conceitos práticos, seja do conceito de dever e de lei moral, seja do conceito de mundo inteligível. Sobretudo, neles é feito um uso circunstanciado da lei moral, no qual a máxima particular da ação deve se mostrar como apresentação possível de uma lei univer-sal, ou seja, da lei moral; de modo algum, porém, se exige a identidade entre máxima e lei moral.

Como a Crítica da razão prática afirma, do mundo inteligível só se pode falar da sua legislação. Mas o que se ganha, então, com uma análi-se dos exemplos, isto é, da lei moral em análi-seu contexto de aplicação?

Por amor a mim mesmo, escreve Kant no primeiro exemplo, tomo como princípio abreviar minha vida... A questão consiste apenas em saber se tal princípio do amor de si pode tornar-se uma lei universal da natureza. Mas então vemos que uma natureza, na qual seria lei destruir a vida, e isso justamente pelo sentimento cuja função especial é de levar ao desenvolvi-mento da vida, estará em contradição consigo mesma, e assim não subsis-tirá como natureza (Grund IV, 422 - T. 60).

O que está em jogo nesse exemplo? O sujeito, como ser racional livre, decide por abreviar sua vida, decisão que é motivada por uma situação contingente a ele desfavorável. De toda forma, por pior que seja sua situação, ele ainda não perdeu, ao menos de todo, sua capaci-dade de reflexão. Mas toma tal decisão a partir de um sentimento que lhe é dado pela natureza, logo como ser sensível, como objeto submetido à legislação da natureza. Esse sentimento, que a natureza põe nele como objeto de sua legislação, tem justamente como função desen-volver a vida. Como pode o sujeito, agora como ser legislando para a natureza, justamente legislar contra a natureza? Esse outro eu, agora sensível, seria impiedosamente aniquilado. Esse eu natural é um objeto

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da natureza, mas é também ser racional. Ora, mesmo o dever perfeito que se exprime aí, dever perfeito para consigo, não é, de forma algu-ma, a expressão da identidade abstrata de uma autoconsciência, mas é, muito mais, a expressão de uma identidade que se sabe cindida e bus-ca reconstruir, via reflexão, sua união. Essa estrutura sintétibus-ca, na qual o eu (ser racional, legislador da natureza) está em relação com algo dele distinto (ser sensível, submetido à legislação da natureza), se re-vela ainda mais fortemente no segundo exemplo, até porque se trata de um dever perfeito para com o outro, isto é, um dever jurídico: se pergunta se a ação é justa (Grund, VI, 422 - T. 60).

Quando julgo estar em apuro de dinheiro, peço-o emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que isto jamais acontecerá. Este princípio do amor de si – ou da própria conveniência – pode talvez estar de acordo com todo o meu bem-estar futuro; mas agora a questão é saber se é justo (...) O que aconteceria se a minha máxima se tornasse lei universal? Vejo então imediatamente que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e concordar consigo mes-ma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria (Grund, IV, 422 - T. 60-61).

Por que ela se contradiria? Porque tornaria impossível o próprio meio pelo qual ela quer livrar-se do apuro, a saber, a promessa. Uma máxima que consistisse em uma falsa promessa só teria sucesso se permanece como máxima “secreta”. Ao exigir que ela possa ser uma lei da natureza, o imperativo obriga, justamente, a que ela se faça conhecer, que seja objeto de conhecimento ao menos possível. Assim, não seria de todo incorreto afirmar, por analogia, que este tipo obriga à publicização da máxima. Mas isso talvez seja ir longe demais. De todo modo, uma tal analogia não é imprescindível para o que se tenta aqui. Pois o que significa natureza? Segundo o § 16 dos Prolegômenos, natureza é “a existência das coisas na medida em que ela é determinada segundo leis universais”. Transformar a máxima da fal-sa promesfal-sa em lei univerfal-sal equivaleria a determinar que todos aqueles que se encontrassem em situação semelhante responderiam do mes-mo mes-modo, teriam sempre a mesma e única saída. Além do mais,

Referências

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