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OS ESTIGMAS SOBRE O CAMPO E O RURAL NO AMBIENTE ESCOLAR

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Academic year: 2021

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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CURSO DE LICENCIATURA EM GEOGRAFIA

ALICE APARECIDA CAPUCHO

OS ESTIGMAS SOBRE O CAMPO E O RURAL NO AMBIENTE ESCOLAR

Nova Venécia 2019

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ALICE APARECIDA CAPUCHO

OS ESTIGMAS SOBRE O CAMPO E O RURAL NO AMBIENTE ESCOLAR

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Coordenadoria do Curso de Licenciatura em Geografia do Instituto Federal do Espírito Santo, Campus Nova Venécia, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Jaime Bernardo Neto

Nova Venécia 2019

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C255e Capucho, Alice Aparecida

Os estigmas sobre o campo e o rural no ambiente escolar / Alice Aparecida Capucho. – Nova Venécia, ES: IFES, 2019.

46 f. : il. 30 cm

Orientador: Jaime Bernardo Neto.

Monografia (Graduação) – Instituto Federal do Espírito Santo, Coordenadoria de Graduação em Licenciatura plena em Geografia, 2019.

1. Estigmas. 2. Campo. 3. Rural. 4. Educação do campo. I. Jaime Bernardo Neto. II. Instituto Federal do Espírito Santo. III. Título.

CDD 22: 907 Rogério Luiz Pin Callegari CRB - 624 ES

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela vida e saúde que Ele me concedeu.

À minha família, em especial aos meus pais, Joel e Marileti, por todo amor, apoio e incentivo que serviram de alicerce para as minhas realizações.

Ao meu noivo, Bruno pelo companheirismo e por estar sempre ao meu lado desde início do ensino médio.

Aos amigos que encontrei ao longo do curso, Bruno, Murilo e todos da turma Geo 03, que ajudaram a tornar essa caminhada mais leve. E em especial a Marcela, Fabiana e Tharyne pelos áudios e mensagens de ajuda mútua e incentivo e pelos momentos de descontração nesta reta final.

Ao meu professor e orientador Jaime pelas valiosas contribuições dadas durante todo o desenvolvimento dessa pesquisa.

A todos os educadores por todo o conhecimento compartilhado que contribuíram com a minha formação acadêmica e profissional.

A todos os entrevistados que se dispuseram a expor suas experiências de vida, fundamental para realização dessa pesquisa.

Também agradeço com muito carinho ao Instituto Federal do Espírito Santo -

Campus Nova Venécia, como um todo, por todas as experiências que me

proporcionou ao longo de oito anos, desde 2012 quando iniciei minha trajetória nessa instituição com o ensino médio.

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RESUMO

Considerando a perspectiva hegemônica urbanocêntrica da sociedade atual, na qual o campo é visto como atraso e a cidade como sinônimo de desenvolvimento, partimos do pressuposto de que os alunos camponeses quando inseridos em escolas urbanas sofrem com a estigmatização atrelada aos conteúdos rurais. Nesse sentido, buscamos demonstrar a relevância de uma educação apropriada para esses sujeitos, avaliando como os estereótipos reproduzidos no ambiente escolar impactam negativamente na reprodução social do campesinato. Para isso optamos por uma abordagem metodológica de caráter qualitativo em que foram entrevistadas pessoas que possuem o modo de vida ligado ao campo e que passaram pelo processo de escolarização na cidade. Dialogamos ainda com professores de uma escola situada na sede do município de Nova Venécia – ES que atende um grande número de estudantes que residem no interior. A partir da análise das entrevistas ficou evidente que as escolas de viés urbano reproduzem os estigmas sobre o campo e o rural e que esses alunos ao internalizá-los, o que tende a leva-los a ao associar sua identidade camponesa ao sofrimento e ao sentimento de inferioridade e por esta razão a querer se desvincular dela.

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ABSTRACT

Considering the hegemonic urban-centric perspective of today's society, in which the countryside is seen as backwards and the city as a synonym of development, we assume that peasant students, when inserted in urban schools, suffer with stigmatization linked to the rural contents. In this sense, we aim to demonstrate the relevance of an appropriate education for these individuals, evaluating how stereotypes reproduced in the school environment negatively impact the social reproduction of the peasantry. Therefore we opted for a methodological approach of qualitative character in which people who have a way of life linked to the countryside and who went through the schooling process in the city were interviewed. We also dialogued with teachers of a school located in the city of Nova Venécia - ES which serves a large number of students residing in the interior. From the analysis of the interviews, it was evident that urban bias schools reproduce the stigmas over the countryside and the rural and that these students, when internalizing them, tend to want to detach themselves from their peasant identity for associating it with suffering and the feeling of inferiority.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1 REFLEXÕES TEÓRICAS E CONCEITUAIS ... 12

1.1 O CAMPESINATO E O MOVIMENTO CAMPONÊS ... 15

1.2 AS REPRESENTAÇÕES DE CAMPO E CIDADE NO IMAGINÁRIO MODERNO E SUAS INFLUÊNCIAS SOBRE OS PROCESSOS IDENTITÁRIOS DOS CAMPONESES ... 21

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ... 26

2.1 SUJEITOS DA PESQUISA ... 27

2.1.1 Caracterização da escola ... 28

3 A MANIFESTAÇÃO DOS ESTIGMAS SOBRE O CAMPO E DO RURAL NO AMBIENTE ESCOLAR ... 30

3.1 A MANIFESTAÇÃO DOS ESTIGMAS SOBRE O CAMPO E O RURAL POR MEIO DO BULLYING – AS RELAÇÕES INTRADISCENTES ... 30

3.2 O ESTIGMA SOBRE O CAMPO E O RURAL NAS RELAÇÕES ENTRE EDUCADORES E EDUCANDOS ... 39

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 43

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INTRODUÇÃO

As comunidades camponesas, assim como toda a sociedade, vêm sendo transformadas pelo desenvolvimento do capitalismo, sobretudo a partir do início do processo de industrialização. Com os avanços tecnológicos decorrentes desse processo e a consequente supervalorização das cidades e dos conteúdos urbanos em detrimento dos rurais, o campo passa a ser visto como atraso, como algo a ser superado.

Diante dos estigmas associados ao campo e ao seu conteúdo, a tendência é que os jovens camponeses busquem se desvincular dos conteúdos rurais e até mesmo do campo,buscando desassociar suas identidades dos mesmos. A partir da minha experiência de vida, que apesar de morar na cidade está muito ligada ao campo e ao rural, é notório o quanto essa visão subalternizada dos conteúdos rurais é prejudicial à reprodução do campesinato quando internalizada pelos sujeitos. Percebo, por exemplo, que pais camponeses muitas vezes optam por matricular seus filhos em escolas situadas na cidade, considerando-a mais adequada, já que o campo é sinônimo de atraso, ruim, “sem futuro”, ignorância etc., ao passo que a cidade, por sua vez, é associada ao desenvolvimento.

Escolas de viés urbanocêntrico, entretanto, tendem a reforçar ainda mais esses estigmas, já que a sociedade em geral compartilha de toda essa visão negativa relativa ao campo e ao rural, o que acaba se refletindo no ambiente escolar convencional. Assim, quando um camponês ingressa em uma dessas unidades de ensino de caráter urbano, geralmente sente “na pele” as consequências de ser “da roça” (expressão muito utilizada para caracterizar negativamente os sujeitos do campo), por exemplo, sendo vítima de bullying. Nesse contexto, tendo em vista que a escola exerce grande influência no processo de disseminação das represnetações sociais, partimos do pressuposto de que as escolas do campo podem contribuir positivamente para a reprodução social do campesinato e para a incorporação de elementos referentes ao campo e ao rural em seus processos identitários, por possuir propostas pedagógicas diferenciadas que valorizam o

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8 modo de vida camponês, contribuindo assim para sua permanência1 no campo, diferentemente das “tradicionais”, que acabam por estimular o êxodo rural.

Porém, o número de escolas do campo é insuficiente para atender a demanda da zona rural e, ademais, muitas delas vêm sendo fechadas nos últimos anos, levando obrigatoriamente os alunos para a cidade, onde estão expostos com mais intensidade a desvalorização do campo e dos conteúdos rurais e, desta forma, à sua própria desvalorização. Assim, é comum nos depararmos nas escolas “tradicionais” com sujeitos buscando esconder suas origens camponesas por vergonha e medo da discriminação, buscando a construção de uma nova identidade que se desvincule do campo e do rural.

Considerando a discriminação materializada no bullying que acreditamos que os alunos que vêm de um local com conteúdo predominantemente rural sofrem ao serem inseridos em uma escola urbana, objetiva-se aqui demonstrar a importância de uma educação diferenciada para públicos-alvo diferentes investigando como os estigmas sobre o campo e o rural influenciam nas relações entre os educandos (, os da cidade e os provenientes do campo) e também nas relações entre eles e os educadores nesse ambiente escolar de caráter urbanocêntrico. Procura-se demonstrar ainda como o camponês é vítima desse processo que tende a levá-lo a se desvincular desses conteúdos, vistos quase sempre de maneira negativa, o que consequentemente o leva a tentar desvincular suas identidades de elementos relativos ao campo e ao rural.

Segundo Couzemenco (2019), na última década as comunidades rurais do Espírito Santo perderam mais de 500 unidades de ensino fundamental, entre estaduais e municipais. Esse dado alarmante vem acompanhado de diversas irregularidades no processo de fechamento das escolas do campo, que vêm sendo denunciada pelas comunidades atingidas e até mesmo pelo Ministério Público Estadual (MPES), já que normalmente o poder público desconsidera todos

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Como base nas pesquisa que guiaram a construção deste trabalho e também no trabalho de Fonseca (2018), que trata especificamente deste fenômeno, pode-se afirmar, sem receio de estarmos sendo levianos, que as escolas do campo podem oferecer escolhas reais, de modo que seus educandos optem por permanecer ou sair do campo, não sendo a permanência uma obrigação. A educação de caráter urbanocêntrico, pelo contrário, tende a coagir os sujeitos à deixar o campo, como se pode constatar no trabalho da referida autora.

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9 os impactos ocasionados pela extinção das mesmas. E isso tem ocorrido a despeito da Lei 12.960, de 27 de março de 2014, que buscou acabar com a arbitrariedade no fechamento de escolas do campo, estabelecendo que a comunidade escolar deverá ser ouvida, a Secretaria de Educação apresentar uma justificativa para o fechamento da unidade e ainda ocorrer a análise do diagnóstico de impacto da ação.

Quando ocorre o fechamento de uma escola do campo, geralmente os alunos, em sua grande maioria, são remanejados para unidades de ensino da cidade mais próxima, e dentre as principais queixas desse processo estão a precariedade do transporte escolar fornecido, bem como das estradas, e ainda a falta de estrutura física e pedagógica das unidades destino para receber esses alunos. Além disso, as escolas situadas nas cidades possuem um caráter urbano, e geralmente o poder público não considera os problemas acarretados por essa educação padronizada de viés urbanocêntrico oferecida aos sujeitos do campo nelas inseridos.

Tudo isso acaba sendo um sério problema para a reprodução social do campesinato, uma vez que o caráter hegemonicamente urbanocêntrico dessa educação padronizada reforça os estigmas sobre o campo e o rural. Assim, ao trazer um sujeito do campo para uma escola urbana ele irá se deparar com toda essa representação subalternizada do campesinato, o que tende a levá-lo a tentar construir uma identidade desvinculada desses elementos do campo e do rural, ou seja, a deixar de ser visto por outros como camponês.

Um agravante a esse problema da reprodução social do campesinato está ligado ao fato de que normalmente essas representações estigmatizadas sobre o campo e do rural estão associada ao bullying sofrido pelos sujeitos provenientes do campo, nos quais é nítido um “jeito de ser” permeado por conteúdos rurais, por parte daqueles que vivem na cidade, já que em geral a sociedade compartilha desses estigmas. Isso é pernicioso para o vínculo dele com esse espaço e seus conteúdos, pois o bullying reforça a negação desses elementos na construção da identidade do sujeito e a propensão dele a partir dessa relação opressora é querer se desligar (do ponto de vista identitário) ainda mais rápido desses conteúdos e

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10 espaços, já que sempre os associarão a esses estigmas, considerando a si mesmo como “atrasado”, “da roça”, “sem futuro”, ou seja, percebe sua própria identidade – na forma como é visto por outros (os urbanos) - como algo negativo.

Dessa forma, se faz necessário a existência no campo de uma educação que reconheça e valorize os camponeses, seus saberes, sua cultura, seu modo de vida e sua relação com a natureza, habitualmente desconsiderados na educação padrão urbanocêntrica que, ademais, tende a internalizar no camponês essa imagem negativa do campo, do rural e, consequentemente, de si mesmo. Assim, como constatado por Fonseca (2018) a educação do campo se mostra como uma importante ferramenta para a reprodução social dos camponeses, tendo em vista que quem passa por essa educação “diferenciada” tem uma maior tendência a se assumir camponês e valorizar e incorporar elementos relativos ao campo e ao rural em sua identidade.

Ao comprovar os prejuízos ocasionados pela não oferta ao campesinato de uma educação que valorize o campo e seus conteúdos, esse trabalho pode contribuir com a luta do movimento camponês contra a extinção das unidades de ensino do campo que se mostram tão importante aos camponeses, vítimas da toda estigmatização social sobre seu modo de vida. Além disso, considerando que normalmente as escolas presentes na zona rural oferecem apenas o ensino fundamental (e quase sempre apenas as séries iniciais), busca-se também ressaltar a importância da oferta da continuidade da escolarização própria e apropriada ao campesinato ao longo de toda a educação básica, ou seja, até a conclusão do ensino médio.

Nesse contexto, discutiremos as diferenças entre o campo e o rural e o urbano e a cidade, considerando que esses termos costumam ser confundidos; as especificidades do campesinato dentro da lógica capitalista e as suas transformações ao longo do desenvolvimento do capitalismo e ainda o motivo pelo qual ele ainda continua existindo dentro dessa lógica e verificar como as representações de campo e cidade influenciam nos processos identitários dos camponeses. Por fim, com foco no preconceito sofrido pelos sujeitos do campo quando inseridos em instituições urbanas tradicionais, analisaremos algumas

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11 evidências empíricas destes processos, as quais tendem a reforçar a importância de uma educação diferenciada para a reprodução social do campesinato.

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1 REFLEXÕES TEÓRICAS E CONCEITUAIS

Os termos cidade e urbano e campo e rural costumam ser confundidos, sendo, muitas vezes, tratados como sinônimos. Contudo cidade e campo se referem a uma dimensão concreta – a “forma” do lugar, seu espaço físico – enquanto urbano e rural fazem referência aos conteúdos sociais desse lugar.

Parte dessa “confusão” está atrelada ao fato de o rural normalmente se encontrar vinculado às atividades primárias, realizadas sem o uso de tecnologia, sendo essas atividades típicas do campo, enquanto o urbano se ligava às atividades secundárias e terciárias, características das cidades. Contudo, um conjunto de atividades diferentes das “tradicionais” passou a ser desenvolvido no campo:

[…] com o avanço do capitalismo, a propriedade da terra e a produção agrícola tornam-se negócios dos capitalistas urbanos, e passam a ser comandadas por estes. Perfila-se um modo de viver urbano, que penetra nos campos, comportando sistemas de objetos e sistemas de valores (ENDGLICH, 2013, p. 23).

Ou seja, com as mudanças que foram ocorrendo na sociedade, sobretudo a partir dos processos de industrialização e globalização, advindas do capitalismo, em que houve um grande avanço tecnológico e as distâncias entre os lugares diminuíram, o campo passou a ter acesso às tecnologias (maquinários, insumos agrícolas etc.), as incorporando, tornando as diferenças entre campo e cidade e a caracterização do rural e urbano algo cada vez mais complexo.

Nessa perspectiva, Garnier (1997, apud ENDLICH, 2013, p.19) sinaliza para

[…] a existência de uma civilização urbana, que se propaga a partir das cidades, mas não se delimita a ela, já que se refere a costumes e hábitos. [...] em concepções como essa, o urbano não se restringe a um território. Trata-se de um adjetivo de maior amplitude, que qualifica uma série de modificações atuais e que abrange a sociedade como um todo.

Endlich (2013) reconhece o urbano como modo de vida no qual o rural é uma condição de vida pretérita praticamente superada material e culturalmente. Nessa lógica, a autora parece acreditar na superação total do conteúdo rural, algo de que discordamos, visto que apesar de inegável a tendência à penetração cada vez maior do conteúdo urbano (que extrapola a cidade) sobre o campo, não consideramos esse último um conteúdo passível de ser superado integralmente.

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13 Considerando as comunidades rurais antes de suas transformações, Endlich (2013, p. 24) traz como exemplo alguns de seus valores/costumes, tais como:

Era uma sociedade extremamente autoritária e permeada por costumes e expressões de disciplina coletiva. O casamento era indispensável, arranjado e inclusive com uma faixa de idade mais ou menos estabelecida como normal. Os pais eram extremamente rígidos e intolerantes. Havia alta natalidade e mortalidade infantil. As relações de compadrio e parceria eram valorizadas, pois a sobrevivência do grupo passava pelo trabalho coletivo (...) a organização e a disciplina coletiva eram fundamentais ao funcionamento dessa sociedade.

Contudo a partir do momento em que começam a incorporar de forma cada vez mais intensa o modo de vida urbano, as comunidades camponesas vão sendo transformadas. Lefebvre (1975, apud ENDLICH, 2013) associa essas transformações ao progresso da agricultura, na qual as relações de trabalho são profundamente modificadas. Além disso, o avanço dos meios de transporte e comunicação faz com que as relações no campo percam parte de seu caráter de proximidade e permite a aproximação das pessoas por afinidade, algo que durante muito tempo foi restrito à cidade e ao modo de vida urbano. “Essa racionalidade baseada na ciência e na técnica, não fica limitada às atividades produtivas, manifestando-se numa nova organização territorial, em novos modelos de intercâmbio e em novas relações interpessoais” (SOBARZO, 2013, p.55).

Entretanto o grau de penetração dos valores urbanos não é uniforme, varia de região para região e até mesmo de família para família, ao considerarmos que quanto melhores forem os indicadores socioeconômicos, bem como a infraestrutura do local, por exemplo, maior é facilidade e propensão de inserção nessa lógica. Segundo Bernardelli (2013, 2013, p.48), a situação socioeconômica das famílias:

[...] tem profunda implicação no estabelecimento do “modo de vida”, na medida em que a renda familiar irá permitir acesso (ou não) a uma série de bens e tecnologia também constantemente transformados e incorporados ao “urbano”.

Na tentativa de discernir o caráter urbano ou rural de um espaço, Bernadelli (2013) aponta as atividades as quais se dedicam os habitantes de dada localidade e o tipo de consumo que se faz em determinado espaço como importantes fatores a serem considerados. Todavia, reforça que uma definição única para o rural é uma

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14 tarefa utópica, citando como exemplo a realidade brasileira, em que se tem uma larga diversidade regional, o que torna essa investida de extrema complexidade. Dessa forma, não entraremos no mérito de dimensionar o caráter urbano e rural de determinado local, pois o mesmo é muito variável.

Bernadelli (2013, p. 48) assim exemplifica alguns desses conteúdos rurais e urbanos:

A vida rural [está] associada, geralmente, com uma expressiva valorização da comunidade, valores de vida da família e também ao papel importante da religião. A vida urbana tem como característica agrupar mais as pessoas partir de sua profissão, muito mais do que somente a partir da família ou a orientação religiosa.

A religião é um forte indicador desse conteúdo rural. Nos espaços rurais, a igreja (sendo o catolicismo predominante no caso brasileiro) desempenha no campo uma função social de grande importância para a socialização (assim como o campo de futebol, a praça e os bares no entrono destes locais), servindo como local de encontro das famílias, Porém, quando o caráter urbano predomina, essa função social deixa de existir e diversas outras religiões ganham espaço.

É quase unânime, portanto, entre os autores que discutem essa temática que o rural e o urbano estão ligados aos conteúdos sociais, enquanto cidade e campo à forma física dos espaços nos quais conteúdos estão inseridos. Por esse ângulo, Lefebvre (1978, apud BERNADELLI, 2013, p. 50) reconhece que

[…] ao utilizar concepções de urbano e rural, devemos considerar que é conteúdo socioespacial que diferencia esses espaços, não bastando que a análise parta tão somente do ponto de vista funcional. Por tal enfoque, o funcionalismo pode mascarar outros elementos essenciais da vida urbana ou rural.

Ratificando esse ponto de vista, Carlos (2004, apud SOBARZO, 2013, p. 53) destaca que

[…] cidade e campo se diferenciam pelo conteúdo das relações sociais nelas contidas e estas, hoje, ganham conteúdo em sua articulação com a construção da sociedade urbana. Assim, o foco da discussão do que é urbano e rural desloca-se da forma para o conteúdo, já que “urbano” e “rural” longe de serem meras palavras são conceitos que reproduzem uma realidade social concreta.

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15 O urbano surge na cidade, mas a extrapola, conquistando vasta zona de influência e se disseminando sobre o campo. Porém, embora o campo esteja cada vez mais urbano, não podemos afirmar que há uma tendência à extinção do rural, pois os dois conteúdos coexistem e o predomínio de um não está condicionado ao desaparecimento completo do outro.

Lefebvre (1991, apud SOBARZO, 2013, p. 56) reitera o alastramento dos conteúdos urbanos e os materializam ao dizer que:

[...] A vida urbana penetra na vida camponesa despojando-a de elementos tradicionais: artesanato, pequenos centros que desaparecem em provimento dos centros urbanos (comerciais e industriais, redes de distribuição, centros de decisão et.). As aldeias se ruralizam perdendo a especificidade camponesa. Adaptam seu ritmo ao ritmo da cidade, mas resistindo o recuando às vezes ferozmente sobre si mesmas.

Na medida em que o campo incorpora os valores urbanos, as relações do campesinato vão se transformando. O pacote desses valores urbanos, entretanto, traz uma visão estigmatizada e negativa sobre o rural, num imaginário de hierarquização na qual o campo é visto como passado, como um espaço “atrasado” e, portanto, como algo já superado ou em vias de sê-lo, e isso passa a ser um problema a partir do momento que o próprio campesinato aceita e internaliza essas sobre o campo e o rural.

1.1 O CAMPESINATO E O MOVIMENTO CAMPONÊS

Segundo Shanin (1979, apud Marques, 2008) o campesinato é ao mesmo tempo uma classe e um modo de vida e está dualidade conduz a dificuldades conceituais históricas. Entre suas especificidades está esse modo de vida, ligado ao campo e ao rural, considerando que tanto a burguesia quanto o proletariado são classes essencialmente urbanas.

As relações camponesas são marcadas por certa autonomia e controle

do processo produtivo, diferentemente do que ocorre na produção em

escala do agronegócio, por exemplo. Embora subordinados, os camponeses não estão alienados como os operários assalariados no processo formal e real de subordinação. A alienação que atinge os trabalhadores expropriados não atinge o camponês da mesma forma, pois este é conhecedor do processo de produção (FABRINI, 2008, p. 260).

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16 Do ponto de vista econômico, um dos elementos que diferenciam o campesinato das demais classes sociais é a organização em torno de uma unidade de produção familiar:

A organização da unidade econômica camponesa, segundo Chayanov (1974), tem como objetivo a satisfação das necessidades da família e se dá de acordo com o balanço trabalho-consumo, ou seja, a relação entre a força de trabalho familiar disponível e o seu número total de dependentes (MARQUES, 2008, p. 51).

Se por um lado não se assemelha nem a burguesia e nem ao proletariado, por outro possui alguns elementos de ambos, sendo na maior parte das vezes dono do meio de produção mas não faz uso desse meio para extração de mais-valia – pelo contrário, mesmo sendo o detentor dos meios de produção, ele é explorado pelo pelos detentores do capital.

Dentre suas singularidades, Shanin (1979, apud Marques, 2008, p.51, grifo meu) aponta “o cultivo da terra; a unidade de produção familiar; a comunidade de aldeia como unidade básica de organização social e sua posição como classe mais baixa da sociedade”. Essa visão subalterna em relação aos camponeses é reflexo da estigmatização do campo e do rural no imaginário urbano, no qual predominam sua associação a ideia de atraso e de falta de tecnologia e conhecimento, e isso se agrava, portanto, com a expansão dos conteúdos urbanos. E, essa imagem subalternizada, acaba se manifestando na forma como a sociedade urbana vê o campesinato, reforçando e reproduzindo esses estigmas.

O local, na perspectiva do desenvolvimento, também favorece as intervenções do Estado na forma de políticas públicas para a modernização da base técnica e progresso econômico das famílias agricultoras, criando o bem estar geral da população. O desenvolvimento é visto como civilização, progresso e acesso à modernidade, tanto das tecnologias e instrumentos, como das ideias, para sair do atraso social (FABRINI, 2008, p. 257).

A expansão desses conteúdos urbanos no campo coloca o campesinato em constante transformação e como afirma Marques (2008, p.65), “o presente desafio é repensar o campesinato em face da aceleração dos processos de mudança e das inúmeras adaptações pelas quais ele tem passado e o que o tem tornado ainda mais difícil de ser compreendido”:

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Sua relação com o solo mudou. Múltiplas ocupações, mantendo ao mesmo tempo residência rural e urbana, transbordando mercados de trabalho, os camponeses tornam-se de problemática definição. Influências do Estado e do mercado têm permeado suas sociedades e a natureza da família camponesa e da comunidade local tem se modificado. Numa situação de mudanças constantes e rápidas, camponeses desaparecem e então reaparecem como se por um passe de mágica (BRYCESON, 2000, p.30 apud MARQUES, p.65).

É notório que as novas necessidades de consumo, características do processo de urbanização/globalização, têm chegado ao campo juntamente com esse conteúdo urbano que extrapola os limites das cidades. E isso significa que a intensificação da produção de valores de troca tem ocorrido de forma cada vez mais forte na medida em que ocorre a disseminação desse conteúdo urbano sobre o campo. Apesar das relações se modificarem, entretanto, elas não descaracterizaram o camponês em suas especificidades e essência. Como aponta Marques (2008, p. 69):

Ao analisar a realidade agraria sob o capitalismo, podemos afirmar que a sociedade urbana capitalista se converte no determinante principal da mudança social e econômica, ao passo que o campesinato se converte em um segmento de um mundo estruturado de modo muito diferente. Porém, a forma característica de organização camponesa se mantém, mesmo que modificada, devido à posição ambígua em que ele se encontra sob o capitalismo: integrado e marginal, complementar e contraditório, dentro e fora ao mesmo tempo.

Essa ambiguidade em relação ao capital se dá em virtude do fato de que ao mesmo tempo em que seu produto entra numa lógica de circulação capitalista, a maneira como é produzido não é capitalista, já que o trabalho é predominantemente familiar e segue outra lógica.

[...] A extração de excedente da produção camponesa e sua manutenção como unidade de produção mercantil simples implicam a redução de sua capacidade de investimento e mudança estrutural de sua base produtiva e têm tornado a unidade de produção doméstica dependente de recursos de origem externa, seja do Estado, seja via sistemas de crédito, para adequar-se a novos padrões de produção (MARQUES, 2008, p. 69).

No contexto dessas transformações do campo, no qual os conteúdos rurais vêm perdendo cada vez mais espaço para os urbanos, o agronegócio vem se sobrepondo sobre o modo de produção familiar, o que traz à tona a discussão acerca da importância da reforma agrária para a reprodução social camponesa.

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18 Mas, devemos ter cautela para não reduzir a luta dos camponeses a uma esfera apenas material (a da propriedade da terra).

Fabrini (2008) chama atenção ao fato de o movimento de resistência camponesa estar sempre vinculado, no imaginário da maior parte das pessoas, unicamente à reforma agrária, o restringindo à luta pelo acesso a terra. Entretanto, ele vai muito além disso, já que tudo que é associado ao camponês é visto como algo que deve ser extinto por ser considerado atrasado e ignorante. Sua luta, portanto, tem uma importante dimensão simbólica/cultural. O movimento de luta camponesa é, portanto, diferente de outros movimentos sociais, não podendo ser pensado, por exemplo, da mesma forma que um movimento de caráter operário, como erroneamente o fizeram alguns autores marxistas mais ortodoxos:

O paradigma ortodoxo dificultou a interpretação da realidade a partir de elementos de ordem cultural, por exemplo, que foi resgatado por historiadores marxistas tais como Thopsom, Hill dentre outros, trazendo as dimensões culturais e políticas para a interpretação das lutas sociais, desprezadas no paradigma ortodoxo do movimento operário (FABRINI, 2008, p. 241).

Assim, é imprescindível a valorização da dimensão cultural para o entendimento do movimento campesino, enxergando no campesinato outra lógica de organização social, diferente à dos trabalhadores urbanos.

A luta camponesa tem, portanto, ao mesmo tempo uma dimensão econômica, ligada à propriedade da terra, e uma dimensão cultural, estando ambas relacionadas à sua reprodução social e, consequentemente, sua permanência no campo. Sua luta, portanto, passa também pela valorização e defesa de seu estilo de vida, intrinsecamente relacionado ao campo e ao rural, no sentido de romper com os estigmas relacionados a este espaço e conteúdo, respectivamente. A existência do campesinato não depende, portanto, somente do acesso a terra, mas também de ele continuar se identificando com o campo e com o rural. Como bem colocado por Fabrini (2008, p. 243):

Os movimentos sociais não são puros (sejam eles culturalistas ou estruturalistas, conforme verificado anteriormente), pois aquelas reivindicações de natureza classista como a luta por emprego e salário, por exemplo, geralmente estão acompanhadas de aspectos étnicos, de gênero etc. A luta pela terra, por exemplo, implica num aprendizado que não está limitado à conquista econômica, pois se realiza nesse processo

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um conjunto de reflexões e ações variadas, passando pelo resgate de valores, cultura e costumes do campo, bem como ações ligadas à geração de rendas, pobreza, concentração fundiária, violência no campo.

Dessa forma, se torna claro que o movimento camponês não almeja apenas mudanças na estrutura econômica. Ele vai à defesa de seu estilo de vida, que é tão estigmatizado, o que o singulariza.

[...] existe uma prática de resistência entre os camponeses que extrapola os limites dos movimentos sociais, ou seja, uma resistência para além dos movimentos sociais, como se existisse um “movimento camponês” mais amplo do que os “movimentos sociais” (FABRINI, 2008, p. 246-247).

Assim, uma política educacional específica é tão importante para o campesinato quanto à reforma agrária, pois a identificação com o campo e os conteúdos rurais é tão essencial para a permanência e reprodução social camponesa quanto ao acesso a terra.

Nesse sentido:

[...] ocamponês, organizado nos movimentos sociais ou fora deles, numa prática de relações sociais “geografada” localmente, desenvolve um conjunto de manifestações que garante sua existência e, consequentemente, incomoda a parcela dominante da sociedade que não lhe reconhece como sujeito e classe social. Portanto, é possível concluir que a luta camponesa é mais ampla do que os movimentos sociais, ou seja, existe um “movimento camponês” que não se realiza exclusivamente nos movimentos sociais (FABRINI, 2008, p. 269).

Mas, para além do movimento de resistência camponesa, por que o campesinato ainda continua existindo dentro da lógica de mercado capitalista? Faz parte da essência do capitalismo manter relações constantes com outros modos de produção não necessariamente capitalistas. O capitalismo é contraditório, e a permanência e reprodução social dos camponeses do tem sido assegurada por essas contradições.

Para melhor compreender a questão agrária no contexto da lógica capitalista, é importante nos remetermos as principais abordagens teóricas da agricultura, sendo elas a ortodoxa e a heterodoxa.

Tendo como principais defensores Lenin e Kautsky, a corrente ortodoxa partia do pressuposto de que o campesinato desapareceria em algum momento do desenvolvimento do capitalismo sobre campo, dando lugar a latifúndios

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20 “modernos”. Essa visão evolucionista considerava o campesinato uma classe social pertencente a um modo de produção feudal que tenderia a desaparecer na medida em que o capitalismo se desenvolvesse e dessa forma os camponeses se transformariam em proletários e o capital passaria a controlar todas as terras agricultáveis.

De certo modo, para esses autores os interesses dos camponeses ricos (pequenos capitalistas) e dos latifundiários (grandes capitalistas) estariam unificados, homogeneizados, e os camponeses pobres seriam transformados em trabalhadores assalariados a serviço do capital (industrial ou agrário). Dessa maneira, o modo capitalista de produção implantar-se-ia de forma plena na agricultura, tal qual se implantou na indústria (OLIVEIRA, 2007, p. 9).

O viés heterodoxo representado por Chayanov, por sua vez, se pauta na permanência do campesinato ao considerá-lo como uma classe social autônoma. No início do século XX, no contexto da Revolução Russa, Chayanov vai à contramão de Lenin e Kautsky e identifica as contradições do capitalismo, se dedicando a mostrar que o campesinato é necessário à lógica do capital, no qual se formam arranjos em que eles permanecem como proprietários de terra e produtores de gêneros agrícolas. Assim, como traz Paulino (2012) o capitalismo se desenvolve no campo sem necessariamente expulsar os camponeses, dependendo da característica da atividade econômica.

A partir dessa dualidade, existem setores da produção agropecuária em que o capital se insere diretamente desterritorializando e proletarizando os camponeses e outros em que o capital “fica de fora” e os camponeses são os responsáveis pelo processo produtivo.

No primeiro mecanismo o capital se territorializa, tornando-se proprietário de terras e atuando diretamente na produção. O agronegócio se expande em detrimento das pequenas propriedades, configurando o que Oliveira (2008, p. 478) conceitua como territorialização do capital, processo no qual

[…] ele varre do campo os trabalhadores, concentrando-os nas cidades, quer para serem trabalhadores da indústria, comércio ou serviços, quer para serem trabalhadores assalariados no campo (“bóias-frias”). Neste caso, o processo especificamente capitalista se instala e a reprodução ampliada do capital desenvolve-se em sua plenitude.

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21 O segundo caso, por sua vez, caracteriza aquilo que Oliveira (2008) conceitua como monopolização do território, implicando em possibilidades para a permanência e reprodução social do campesinato. Como expõe Paulino (2012) normalmente essa monopolização ocorre em atividades que demandam de obra intensiva, como é o caso da cafeicultura, ou em casos em que a mão-de-obra não se adequa às normas trabalhistas (com jornada intermitente e com duração, em tempo corrido, superior ao limite diário nela estabelecido), a exemplo a criação do bicho-da-seda, e ainda quando o risco envolvido na produção é muito grande, como na avicultura. Portanto, em tais circunstâncias, o capital deixa o processo produtivo sob a responsabilidade dos camponeses e monopoliza a distribuição e o beneficiamento desses produtos, controlando toda a sua cadeia comercial. Assim, o capital utiliza a produção tipicamente camponesa, isto é, relações não capitalistas, para realizar sua reprodução.

[...] quando o capital monopoliza o território sem se territorializar, ele cria, recria e redefine relações de produção camponesa e familiar. Assim, ele abre espaço para que a produção camponesa se desenvolva e com ela o campesinato como classe social. O campo continua povoado, a população rural pode até crescer (OLIVEIRA, 2008, p.478).

Dessa forma, o campesinato não deixa de existir porque ele é necessário para o capitalismo e

[…] o que se pode concluir desse processo de desenvolvimento desigual e contraditório do capitalismo no campo é que se está diante da sujeição da renda da terra ao capital. O capital, portanto, não expande de forma absoluta o trabalho assalariado (sua relação de trabalho típica) por todo canto e lugar, destruindo de forma total e absoluta o trabalho familiar camponês. Ao contrário, ele cria e recria o trabalho familiar camponês para que a produção do capital seja possível e, com ela, a acumulação possa aumentar (OLIVEIRA, 2008, p. 480).

Sendo assim, o camponês é um sujeito social que está dentro desse sistema econômico e não fora dele, não obstante mantenha para com ele uma relação repleta de contradições.

1.2 AS REPRESENTAÇÕES DE CAMPO E CIDADE NO IMAGINÁRIO MODERNO E SUAS INFLUÊNCIAS SOBRE OS PROCESSOS IDENTITÁRIOS DOS CAMPONESES

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22 B. Santos (2002) considera que a nossa forma ocidental de ver o mundo é indolente, na qual enxergamos apenas uma pequena parte de toda a realidade social, e essa parcialidade invisibiliza toda outra grande parte composta por um vasto leque de sujeitos e fatos/fenômenos que não é abarcada por essa visão, que é assim seletiva e parcial.

Nesse sentido, o autor traz cinco conceitos que nos ajudam a refletir sobre essa visão fragmentada que leva a produção de ausências, que seriam os principais mecanismos que estão no cerne dessas “diferentes lógicas de produção de não-existência”, mas ressalta que são “todas elas manifestações da mesma monocultura racional”. (SANTOS, 2002, p. 247). São eles: a monocultura do saber e do rigor do saber, a lógica da escala dominante; a lógica do tempo linear; a lógica produtivista e a lógica da classificação social. Como veremos adiante, todas essas lógicas estão diretamente ligadas à subalternização e estigmatização do campo, do rural e de seus sujeitos - o campesinato.

Segundo B. Santos (2002), a monocultura do saber e do rigor do saber é o mais poderoso modo de produção da não-existência, pois ela estabelece critérios únicos para validar o conhecimento, reconhecendo apenas a ciência como saber válido. Assim, outros saberes, com viés não científico, como por exemplo, os saberes tradicionais, como o dos camponeses em sua relação com a natureza, são menosprezados, e seus detentores são tratados como ignorantes, quando, de fato, as comunidades tradicionais, como as campesinas, detém vasto conhecimento sobre as dinâmicas naturais e sociais do local em que estão inseridas.

Outro desses mecanismos de produção das ausências é a lógica da escala dominante. Como frisa B. Santos (2002, p. 248) “nos termos dessa lógica, a escala adotada como primordial determina a irrelevância de todas as outras possíveis escalas”. Dessa maneira, predomina a ideia de que a existência plena só é possível a partir da inserção no mundo globalizado e por isso os camponeses e as comunidades tradicionais, por estarem firmados em uma lógica local são tidos como sujeitos que vivem uma existência inferior, “atrasada” (como esse viés evolucionista costuma preferir dizer).

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23 Essa dificuldade em pensarmos em trajetórias individuais reconhecendo que comunidades diferentes possuem tempos diferentes, nos leva a pensarmos “todo mundo” a partir do tempo do capital e da globalização, constituindo o que ele denomina de monocultura do tempo linear. O sentimento ocidental de ser o suprassumo da humanidade, considerando que a existência humana possui uma única direção e sentido inevitáveis para a “evolução” traz uma série de consequências a partir do momento em que se começa a pensar todas as comunidades dentro dessa suposta escala evolutiva unilinear. “Essa lógica produz não-existência declarando atrasado tudo o que, segundo a norma temporal, é assimétrico em relação ao que é declarado avançado” (SANTOS, 2002, p. 247). A partir daí todos aqueles que não seguem essa trajetória são estigmatizados como “seres do passado” e “atrasados”. Os camponeses, o campo e o rural também são vitimados pelo processo de urbanização, já que essa linha única do imaginário evolucionista ocidental prevê que inevitavelmente o futuro é uma vida totalmente urbana e a permanência no rural é sinônimo de atraso, pois se o futuro é a cidade o campo/rural é passado.

Além disso, existe ainda a lógica produtivista que agrava a estigmatização do camponês e das comunidades tradicionais. “Nos termos dessa lógica, o crescimento econômico é um objetivo racional inquestionável e, como tal, é inquestionável o critério de produtividade que mais bem serve esse objetivo” (SANTOS, 2002, p. 248). Dessa maneira, o modo de produção desprovido de excedentes para o mercado, voltado para o consumo próprio, tal qual ocorre em certas parcelas do campesinato e nas comunidades tradicionais, é visto de maneira pejorativa, sendo esses sujeitos taxados de “preguiçosos” por não visarem produzir esse excedente.

Clastres (2017) critica esse pensamento que considera inferior àqueles que não se inserem na lógica da produção de excedentes para o mercado capitalista. Para ele “não podemos mais falar em inferioridade técnica das sociedades primitivas: elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial e técnica” (CLASTRES, 2017, p. 168). Considera ainda que não existe uma escala para medir a “intensidade”

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24 tecnológica de uma sociedade, pois cada uma tem o que considera necessário para si, assim não há como comparar uma comunidade a outra.

Todos esses conceitos nos ajudam a pensar a relação do sujeito urbano com o camponês, normalmente atrelada a uma grande exclusão social, como traz a lógica da classificação social. De acordo com B. Santos (2002, p. 248) nessa lógica “a não-existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural”.

Dessa forma,

São, assim, cinco as principais formas sociais de não-existência produzidas ou legitimadas pela razão metomínica: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. Trata-se de formas sociais de inexistência porque as realidades que elas conformam estão apenas presentes como obstáculos em relação às realidades que contam como importantes, sejam elas realidades científicas, avançadas, superiores, globais ou produtivas. São, pois, partes desqualificadas de totalidades homogêneas que, como tal, apenas confirmam o que existe e tal como existe. São o que existem sob formas irreversivelmente desqualificadas de existir (SANTOS, 2002, p. 248-249).

Enxergar o camponês a partir dos conceito/lógicas trazidos por B. Santos (2002) cria uma imagem negativa do campo e de seu conteúdo rural. E a academia, ao não romper com esses vícios do pensamento Moderno, tende a desprezar os saberes desses sujeitos, por não serem científicos, e a reforçar essa estigmatização ao associar o campo e o rural e seus respectivos sujeitos à carência e ausência de conhecimento “verdadeiro”, além de reforçar também, desta forma, sua imagem de “atrasados” e inferiores, já que sua existência seria reduzida a escala local na era de Globalização.

Desse modo, B. Santos (2002) defende a necessidade de construção de uma nova racionalidade, denominada de razão cosmopolita, que valorize todas as experiências e culturas ao invés de suprimi-las, como o faz a racionalidade hegemônica no mundo Moderno. Entretanto, o sistema educacional “convencional” tende a compartilhar todos esses vícios do pensamento ocidental de que fala B. Santos (2002), não se fundamentando, portanto, no que ele chama de razão cosmopolita e ecologia de saberes e assim propende a reforçar todos os estigmas sobre o campo, o rural e os camponeses.

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25 A nossa identidade é processual, considerando que todos nós estamos vinculados a algum espaço Bernardo Neto (2017) traz que a representação do espaço possui larga influência sobre as identidades. Dessa forma, ao estigmatizar o campo e o rural automaticamente se estigmatiza os sujeitos que possuem sua identidade vinculada a eles, neste caso os camponeses. Ou seja, existe sempre uma dimensão espacial dentro dos processos identitários e por isso a maneira como representamos os espaços inevitavelmente reflete sobre nossas identidades e uma representação estigmatizada do urbano e do rural, por exemplo, tende a trazer esse estigma também para os sujeitos que estão relacionados àquele espaço.

Logo, ao trazer o sujeito do campo para uma escola urbanocêntrica o mesmo se depara com toda essa representação preconceituosa acerca dos pares urbano/rural e campo/cidade, tendendo a aceitá-la, interiorizando a imagem de si próprio vinculada ao sofrimento, a carência e ao atraso e, a tendência é ele querer se desvincular de isso que está associado ao “ser da roça”.

B. Santos (2002) propõe que a educação não seja apenas um local de disseminação do conhecimento dito científico, já que os saberes são diferentes, mas um não é superior a outro. Neste caso que estamos a abordar, a educação do campo se mostra como um caminho para se atingir esse fim, já que uma educação que valorize os saberes dos camponeses é primordial para a reafirmação de sua identidade e para que eles não interiorizem essa visão preconceituosa de caráter evolucionista e se reconheçam como sujeitos contemporâneos e não do passado, como detentores de conhecimento e não desprovidos dele e que não se sinta menor por estar inserido dentro de uma comunidade não subordinada à lógica capitalista. Ou seja, uma educação própria e apropriada, integral e integradora para os sujeitos do campo.

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2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para compreendermos como a reprodução do campesinato é afetada ao não se oferecer aos camponeses uma educação que fuja do viés urbanocêntrico, analisaremos as decorrências das representações hegemônicas sobre campo e cidade, sobre os conteúdos rurais e urbanos, a partir das relações entre os educandos no contexto escolar, com foco na prática do bullying.

A partir das evidências teóricas expostas anteriormente e da vivência desta autora, partimos do pressuposto, portanto, de que os estudantes camponeses que frequentam escolas tradicionais sofrem bullying, umas das formas de materialização dessa estigmatização sobre o campo e o rural.

Nesse sentido, para verificarmos a hipótese de que as pessoas provenientes do campo, que carregam os conteúdos rurais em suas identidades e culturas, sofrem algum tipo de preconceito, como o bullying, no ambiente escolar urbano, a pesquisa foi dividida em dois momentos. No primeiro, entrevistamos individualmente doze pessoas de origem camponesa que estudaram em escolas tradicionais na cidade. No segundo momento, foram entrevistados coletivamente cinco professores da Escola Estadual de Ensino Médio “Dom Daniel Comboni”, que atende a ambos os públicos (rural e urbano), como se explicará mais detalhadamente adiante.

Assim, a pesquisa possui uma abordagem de caráter qualitativo de natureza básica. E, dentro da perspectiva da pesquisa qualitativa, a entrevista representa uns dos instrumentos básicos para a coleta de dados e possui a grande vantagem de permitir a captação imediata e corrente das informações almejadas (André; Ludke, 1986).

Dessa forma, optamos por desenvolver entrevistas semiestruturadas, já que durante as conversas espontaneamente poderiam surgir (como de fato surgiram) relatos mais profundos, deixando assim as pessoas mais livres para falar de suas experiências de vida. Especialmente nesse tipo de entrevista não há a imposição de uma ordem rígida de questões, o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informações que ele detém (André; Ludke, 1986).

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27 As entrevistas individuais ocorreram no período de 19 de setembro a 03 de outubro de 2019, e a coletiva com os educadores ocorreu no dia 05 de novembro de 2019. Com auxílio de um gravador, todas elas foram gravadas, para que obtivéssemos um registro completo das mesmas, e posteriormente foram transcritas integralmente para subsequente análise dos dados. Mediante autorização, foi permitido que a identidade dos entrevistados fosse revelada, exceto a dos educadores, que não foram identificados.

Toda essa parte empírica, entretanto, somente foi desenvolvida após uma fase bibliográfica, em que foi realizado o estudo de diversas obras que nos ajudassem a compreender o histórico da estigmatização do campo e dos conteúdos rurais, conforme consta nas reflexões teóricas e conceituais, como exposto no Capítulo 1.

2.1 SUJEITOS DA PESQUISA

Para realizar a parte empírica da pesquisa, buscamos pessoas com uma trajetória de vida ligada ao campo (ou seja, que fosse de origem rural, camponesa) e terem estudado parte ou toda a vida em escolas de caráter urbano. A partir dessa diretriz, selecionamos aleatoriamente pessoas do nosso convívio que possuíssem essas características para serem entrevistadas.

Todavia, não tardamos a perceber que quem ainda é muito jovem e está passando pelo processo de escolarização básica dificilmente consegue falar sobre o assunto, pois o peso desses estigmas e o desconforto por ele causado são tão grandes que se mostrou pouco provável que conseguissem expor o que sentem, uma vez que eles tendiam a buscar se desvincular do campo e do conteúdo rural até durante a entrevista, minimizando os efeitos dos mesmos sobre suas vidas. Em contrapartida, percebemos que os sujeitos que já passaram pela educação básica há algum tempo conseguem ter um olhar retrospectivo e dialogar mais abertamente sobre suas experiências naquele contexto de suas vidas. Diante disso, optamos metodologicamente por recorrer a essas pessoas que conseguem enxergar isso com maior distanciamento por ocorreram essas experiências.

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28 Além disso, realizamos uma conversa com alguns educadores da EEEM “Dom Daniel Comboni” a fim de explorar o foi que relatado em algumas falas dos entrevistados (grande parte dos quais passaram por esta escola), que nos reportavam notar que havia certa diferenciação, por parte dos educadores, entre o tratamento dados aos discentes do turno matutino - em que a maioria dos alunos é da sede do município de Nova Venécia – e aos do vespertino, no qual a maioria é composta por alunos da zona rural (considerando que o transporte escolar só é disponibilizado para os alunos do interior no turno da tarde).

Para isso, foi feito um contato individual com o diretor da escola, onde apresentei o desenvolvimento da pesquisa e o interesse em realizar parte dela na instituição. Após o retorno positivo, foi agendado um horário para que pudéssemos ter esse diálogo com os educadores, ao longo do qual buscamos identificar como é o trabalho realizado com um público tão heterogêneo em um mesmo ambiente e quais são as diferenças notadas por eles entre os alunos do campo e da cidade. No momento destinado a realização das entrevistas somente cinco professores estavam presentes, justificando esse número de entrevistados.

Essa escola foi escolhida por ser a maior escola de ensino médio do município e atender grande número de estudantes do interior e também da zona urbana e, ainda porque ela foi citada em diversas entrevistas. Dessa forma, se mostrou a mais adequada para a coleta de dados para a pesquisa.

2.2. CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA

A EEEM “Dom Daniel Comboni” está localizada no Bairro Municipal I do município de Nova Venécia – ES, criada em 1964, e atualmente oferta o ensino médio regular nos turnos matutino e vespertino e a modalidade Educação de Jovens e Adultos – EJA, semipresencial, no noturno. No período de 2004 a 2006 a escola contava com dois anexos para a oferta do Ensino Médio, sendo um na Escola Municipal de Ensino Fundamental “Francisco Secchin”, localizada no distrito de Cristalino e na Escola Estadual de Ensino Médio e Fundamental “José Zamprogno”, localizada na Vila Santo Antônio do XV.

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29 De acordo com a secretaria da escola, neste ano, 2019, o número total alunos matriculados no Ensino Médio regular é de 891 alunos e na EJA de 169. Grande parte dos 396 alunos do turno vespertino são oriundos do campo e se deslocam até a sede do município para estudar, já que são poucas as instituições que oferecem o ensino médio na zona rural. Porém, a escola não dispõe de um currículo diferenciado para esses alunos, trabalhando com uma perspectiva única, de caráter urbanocêntrico, com todo o público discente.

Foto 1 - Fachada da EEEM “Dom Daniel Comboni”

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3 A MANIFESTAÇÃO DOS ESTIGMAS SOBRE O CAMPO E DO RURAL NO AMBIENTE ESCOLAR

3.1 A MANIFESTAÇÃO DOS ESTIGMAS SOBRE O CAMPO E O RURAL POR MEIO DO BULLYING – AS RELAÇÕES INTRADISCENTES

Um ponto em comum observado em praticamente todos os entrevistados é que eles estudaram o Ensino Fundamental I (séries iniciais) em escolas no campo e quando chegaram ao Ensino Fundamental II (séries finais) ou no Ensino Médio tiveram que ir para escolas em áreas urbanas, já que esses não eram ofertados nas instituições de ensino próximas a localidade em que moravam.

Na educação básica isso é muito recorrente e os camponeses não tem outra opção a não ser se deslocarem até a sede de seu município ou distrito para estudar. O número de escolas do campo é insuficiente para atender a todos os alunos e estão restritas somente a algumas poucas localidades. Tal mudança é fruto, portanto, antes da falta de escolhas do que de uma escolha.

A exemplo disso, a entrevistada Andrevânia, moradora do Córrego Escadinha desde que nasceu, relata:

Os primeiros anos das séries iniciais, de primeira a quarta série, que na época se iniciava aos sete anos de idade, foram em uma escolinha rural que se chamava “Escola Municipal Escadinha”, no município de São Mateus. Quantas lembranças boas guardo deste tempo... Nossa professora se chamava dona Marlene, e era assim que a chamávamos. Era grande o nosso respeito por ela, que ainda até hoje na minha idade adulta tenho um carinho e uma gratidão imensa. Mas ao chegar a 4ª série precisei tomar novos rumos e encarar uma nova realidade: estudar na cidade. Agora já não era mais a escolinha rural cheia de amiguinhos das fazendas, mas uma grande escola com pessoas que a maioria eu não conhecia, com outros conceitos, outra paisagem e até outros valores. Ir estudar na zona urbana aos onze anos era como sair do útero da mãe e se dar conta de estar diante de uma nova jornada, sem ter a noção de como seria, mas enfim... Não havia outra escolha a não ser encarar essa nova experiência (ANDREVÂNIA).

Já outro entrevistado, Hugo, licenciando em Geografia no Instituto Federal do Espírito Santo – Campus Nova Venécia, estudou em sua comunidade, Luzilândia (Nova Venécia-ES) até a quarta série e logo após passou a frequentar o Centro Integrado de Educação Rural – CEIER, no interior do município de Vila Pavão

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31 (ES). Porém, devido às consequências de uma enchente, ele teve que se transferir para uma escola urbana, conforme relatado:

Quando foi final de 2003, deu uma enchente que levou a ponte da minha comunidade [Luzilândia], que ligava Nova Venécia a Vila Pavão, e não tinha como eu atravessar o rio para pegar o ônibus. Aí eu fui forçado a mudar de escola. Fui obrigado a ir pra Nova Venécia onde eu estudei do sexto ao oitavo ano. Quando eu cheguei lá [na escola situada na sede do munícipio de Nova Venécia] foi um choque de realidade, porque é uma escola convencional, com alunos que não tinha conhecimento com outra visão de mundo... Eu vim de uma perspectiva mais humanizada, de uma educação mais compartilhada, porque a gente trabalhava junto na roça e criava um laço de amizade e quando eu cheguei nessa escola não tinha essas questões.(HUGO)

Compartilhando de experiências parecidas, a entrevistada Marcela relata:

Eu saia de 5h10min da manhã, acordava quinze pras cinco e ia de carro até Vargem Alta. Lá eu pegava transporte - que o transporte só passava lá. Aí eu vinha de carona com meus primos até Vargem Alta e lá a gente pegava o ônibus que ia até Soturno. Em Soturno eu trocava o ônibus e ia pra vam, porque o IFES [campus Cachoeiro de Itapemirim] era meio afastado do centro. Então dividia os alunos e chegava umas 6h30min por aí. Aí pra vim embora a aula acabava 12h20min e eu tinha que pegar o ônibus. O ônibus passava lá 13h mais ou menos. Aí e eu chegava em casa umas 14h30min todo dia (MARCELA).

Notório em todos os depoimentos, portanto, que vir para cidade estudar geralmente não é uma escolha: o que geralmente leva os estudantes camponeses a se desvincularem das escolas do campo é a falta da oferta da continuidade da escolarização até a conclusão do ensino médio e/ou a precária situação das escolas ali existentes. A entrevistada Adrielly, moradora do Assentamento Zumbi dos Palmares (situado no município de São Mateus, porém em área limítrofe à Nova Venécia), que sempre estudou em escolas do campo e precisou se matricular em uma escola da zona urbana para concluir o ensino fundamental, conta um pouco como foi sua experiência:

Quando eu cheguei no Estadual eu senti uma diferença gigantesca. O impacto foi bem grande, até porque lá [na escola do campo] é uma outra forma que trabalha né.. Trabalha mais a área rural e é bem voltada para o nosso contexto de lá. Quando a gente chegou aqui, se trabalhava uma visão geral de tudo... Milhares de assuntos. Eu senti um impacto gigantesco. [...] Se tivesse uma escola de ensino médio lá com certeza preferiria ficar lá e não ter que vim para a cidade. Tem pessoas lá que ficam querendo que chega o ensino médio logo para poder vim para rua, querendo novidade, mas eles pensam que é uma coisa e quando chegam aqui é outra e acabam se frustrando (ADRIELLY).

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32 Em relação à sociabilidade no ambiente escolar urbano, percebe-se que esses alunos enfrentam enorme desafio, pois se deparam como uma realidade totalmente diferente daquela com a qual estavam habituados. Nesse sentido eles relatam uma grande dificuldade de adaptação ao se inserirem nessa esfera, já que eles, conforme relatam, não se sentem parte desse meio:

Quando frequentei o ensino médio na cidade depois de um longo período estudando em escolas do interior senti uma diferença enorme em relação a alguns pontos vivenciados na instituição. [...] Eu sempre me senti fora daquele meio, pois não tinha os mesmo costumes ou ideias em relação aos que já tinha frequentado (RODRIGO).

Na entrevista com licenciando em Geografia Higor, ele aborda como foi esse processo de transição e reafirma essa dificuldade de adaptação:

O CEIER era um colégio voltado à agricultura. Tinha recursos técnicos de agricultura, fruticultura, zootecnia, equilíbrio e economia doméstica... Então é um colégio que tinha muita coisa: tinha uma área de planta, tinha gado, tinha café, tinha ave, tinha peixe, teve uma época que tinha criação de abelha, tinha uma pocilga... Então aquele espaço era um espaço que realmente eu me sentia em casa, porque tinha tudo o que eu tinha na roça e aí eu aprendi muita coisa. Porém tive que sair desse colégio por causa de uma questão. Nessa escola [situada na sede do município de Nova Venécia] eu tive um choque de realidade muito difícil pra mim como pessoa do interior. Lá eu conheci um novo público. Um público que eu não estava acostumado. Lá eu conheci pessoas da cidade e foi muito bacana pra meu crescimento pessoal. Mas foi um desafio muito grande (HIGOR).

Esses depoimentos trazem à tona um pouco do que é a educação do campo2 em contraste com a “nova” realidade: uma educação que valoriza os saberes do aluno do campo e vai à contramão dos estigmas instituídos por uma sociedade urbanocêntrica. Em todos os relatos é perceptível o quanto os alunos camponeses se identificam e sentiram-se acolhidos nessas instituições, ao contrário do que percebemos sobre como se sentiram nas instituições situadas em áreas urbanas. Dessa forma, a partir da valorização dos conteúdos rurais, a educação do campo contribui de maneira substancial para a reprodução social do campesinato levando os alunos a se reconhecerem e possuírem orgulho de serem camponeses. Os

2

Atualmente existe uma série de políticas públicas voltadas à educação do campo, instituídas principalmente a partir dos anos 2000 tais como: Resolução CNE/CEB N° 1, de 03 de abril de 2002; Resolução CNE/CEB N° 2, de 28 de abril de 2008; Lei N° 11.947, de 16 de junho de 2009; Decreto N° 6.755, de 29 de janeiro de 2009; Decreto N° 7.353, de 04 de novembro de 2010 (PRONERA); Portaria N° 86, de 01 de fevereiro de 2013 (PRONACAMPO); Lei 12.960, de 27 de março de 2014 etc.

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33 irmãos Hugo e Higor, se recordam do período que frequentaram o CEIER do município de Vila Pavão (ES) com muita afeição e nostalgia, sobressaindo-se um sentimento de pertencimento, como podemos observar nos relatos.

Nessa escola [CEIER] a gente trabalhava pela manhã o ensino regular normal e pela tarde tinha zootecnia, agricultura l, agricultura ll, A gente aprendia a mexer com criação, a capinar, horta, mexer com plantas medicinais... A escola naquela época produzia seu próprio alimento, tudo o que era produzido era consumido nessa escola. Eu era apaixonado por essa escola. Lá tinha informática, tinha todo um tema de educação diferenciada. Cada final de semestre existia uma reunião que a gente reunia toda a escola pra discutir um tema gerador em que um mês era solo, um mês era água, um mês era planta...Os alunos eram muito envolvidos e tinha no meio de semana um dia para recreação. Então a tarde era de jogos na quadra, no campo de areia, no campo de futebol, outros tipos de brincadeira...Então eu me apaixonei por essa escola (HUGO).

A escola tinha essa perspectiva do tema gerador e isso me cativava muito, porque eu podia juntar o tema gerador com conteúdo. Isso é uma coisa pra mim fenomenal. Se o tema era água então eu podia, no português, escrever sobre a água, eu podia calcular alguma coisa com a água, usando ela como referência. Eu podia, em artes, desenhar alguma coisa relacionada com água... Sempre voltando pra questão crítica, porque que a escola sempre trazia essa perspectiva crítica e acho que dentro do CEIER potencializa-se isso que eu tenho hoje, que é esse olhar crítico e esse olhar construtivo. Então isso começa no CEIER. Lá tinha também uma alimentação muito gostosa. Sempre me lembro da comida do CEIER com muita doçura, porque era uma comida produzida pela gente. A gente colhia a alface, colhia a cebola, os alunos mais velhos fazia o abate dos animais na época... Então eu lembro disso como se fosse uma família, sabe? E o CEIER é uma família de fato, então todos trabalhavam pelo conjunto da obra e eu gostava muito dessa escola. O

CEIER foi uma escola que me marcou e marca até hoje. [...] Tenho um amor muito grande pela escola do campo. A escola passou a ser parte da minha família (HIGOR).

Os Centros Integrados de Educação Rural (CEIER´s), assim como as escolas que se pautam na Pedagogia da Alternância, adotam uma metodologia que integra o educando que vive no campo com a realidade vivenciada em seu cotidiano, permitindo uma rica troca de conhecimentos entre a escola e o ambiente onde vive no processo de ensino-aprendizagem. Assim, possibilita aos camponeses acesso à formação escolar sem que eles tenham que deixar o campo, onde vivem e realizam suas atividades produtivas (BEZERRA; SANTOS; BEZERRA NETO, 2016).

Referências

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