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OS DOCUMENTOS QUE MÁRIO DE ANDRADE NÃO VIU

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OS DOCUMENTOS QUE MÁRIO DE ANDRADE NÃO VIU

Carlos Gutierrez Cerqueira

Se hoje, passados mais de 70 anos da publicação PADRE JESUÍNO DO MONTE

CARMELO1 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e graças às ações de

restauração iniciadas a partir de 2007 podemos apresentar e comentar as pinturas de Jesuíno

que Mário de Andrade não viu, também passados tantos anos podemos apresentar e

comentar os documentos que Mário de Andrade não viu, ou que não teve acesso à época em que desenvolvia o estudo.

É o que nos propomos a fazer nas linhas que seguem, considerando, todavia, as dificuldades por ele enfrentadas e a maneira como resolveu superá-las2.

Num certo momento, quando analisava o painel do forro da Carmo de Itu, Mário de Andrade desabafou: “os documentos não me ajudam.”3 A literatura histórica sobre o pintor se

lhe apresentava igualmente problemática; os Autores se referenciando mutuamente, quando não se contraditando, sem, todavia, apresentarem as fontes das divergências. Desse modo, o material era, em princípio, insatisfatório para o que se propôs realizar4.

1 Eduardo Jardim informa, na biografia de Mário de Andrade, que, neste estudo sobre Jesuíno, foi a segunda vez que “se ocupava da arte do período colonial. A primeira tinha sido em 1928, com o estudo sobre o Aleijadinho”. Chama a atenção para a origem e formação desses artistas: “Ambos eram mulatos, marginalizados na sociedade colonial, com um contato muito precário com a cultura erudita.” Afirma ainda que a admiração de Mário era “muito maior pelo Aleijadinho do que pelo paulista. Para o escritor, apenas o Aleijadinho teria alcançado uma verdadeira síntese, enquanto Jesuíno foi um conjunto ‘desesperado de espécies contraditórias’.” (JARDIM, Eduardo - EU SOU

TREZENTOS MÁRIO DE ANDRADE VIDA E OBRA. Rio de Janeiro. Edições de Janeiro. 2015, p. 188)

2 Não temos evidentemente pretensão de esgotar o assunto; apenas identificar, a partir dos documentos novos descobertos, as questões que permitem certa abordagem crítica e reflexão sobre algumas interpretações de Mário de Andrade sobre a vida e a obra pictórica de Jesuíno.

3 ANDRADE, Mário de – PADRE JESUÍNO DO MONTE CARMELO. SPHAN. PUBLICAÇÃO N. 14. Min. da Educação e Saúde. 1945. Rio de Janeiro. p. 82.

4 Mário de Andrade, em princípio, atendia ao pedido do Diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Doutor Rodrigo Mello Franco de Andrade, que sabia do interesse que o mulato Jesuíno havia despertado no amigo paulista desde os primeiros relatos sobre os monumentos suscetíveis de tombamento em Itu, em 1937, quando tomou contato pela primeira vez com as pinturas das igrejas Matriz e de Nossa Senhora do Carmo.

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2 Valeu-se então de sua sensibilidade de Crítico de Arte, e se pôs a inquirir diretamente as pinturas de Jesuíno muito embora consciente de que muitas delas padeciam intervenções restaurativas que alteraram suas feições originais5. Mas, na ausência de documentos que as

referenciassem, o caminho mais seguro era interpretá-las a partir delas mesmas6.

As análises, contudo, pareciam-lhe sugerir ordem diferente da estabelecida pela historiografia, e constatava: “as datas novas que apresento estão duras de ajustar com os Autores.”7

Mas Mário de Andrade dá um passo adiante. Do sentimento e do prazer estético provocado pela obra-de-arte – as pinturas de Jesuíno – quer, através dessa mesma fruição, conhecer o seu criador, penetrar nos sentimentos do artista, perceber suas motivações criativas.

As pinturas, por refletirem o estado de espírito do artista no momento da criação, fornecem ao analista dados que lhe permitem captar aspectos subjetivos de seu criador, de sua personalidade, de sua individualidade artística, bem como traz elementos que, situados no contexto histórico a que pertencem, possibilitam reconstituir sua visão de mundo e, a partir dela Mário de Andrade, confiante em seu discernimento e em sua sensibilidade estética, analisa pinturas de século e meio atrás. E não se contenta apenas com o sentimento e o prazer estético provocado pela beleza e por características singulares que observa nas pinturas de Jesuíno; quer entender esse artista que passou a admirar e sobre o qual pesquisa e busca

5 Essa fórmula de investigação, de analisar diretamente a obra de arte, não deve ser tomada como algo diferente ou novidade de Mário de Andrade diante da problemática que enfrentava no contexto dos estudos sobre Jesuíno. Em texto de 1924, escrito para uma conferência sobre Música, Mário já explicitava a maneira como nos posicionarmos para compreender a obra-de-arte: valendo-nos de nossa capacidade de projetar a personalidade do artista naquilo que produz. Dizia também que a Arte é “manifestação permanente de amor. [...] Do amor que a arte nasce. O erro de Freud, descobrindo aquela tão bonita verdade da arte como sublimação de gestos reprimidos de amor, foi compreender essa sublimação sob o ponto-de-vista sexual. Os ingleses com a empatia deles, descobrindo no sentimento do prazer estético a identificação imediata entre observador e obra-de-arte, se alargaram bem mais. [...] Essa identificação imediata entre observador e obra-de-arte provoca a identificação mediata entre observador e artista, que também é fundamental finalidade da arte. Identificação ou repulsa, pouca importa. O que importa é verificar que a qualidade estética da arte não depende só do artista, depende do espectador.” (MORAES, Marcos Antonio de (org., intr.., notas). Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo. EDUSP. 2001. Anexo VII, p 695.) No caso das pinturas de Jesuíno, portanto, tomamos Mário de Andrade como nosso espectador, ou seja, aquele que as analisa e nos conduz à sua apreciação estética e nos oferece um juízo sobre o artista.

6 Assim, quanto ao método utilizado por Mário de Andrade nas pesquisas sobre Jesuíno e de suas pinturas, podemos dizer que o instrumento principal de investigação veio a ser o sentimento ou a percepção estética da obra-de-arte na qual o componente psicológico é preponderante na apreciação da relação artista/obra-de-arte. Primordialmente seria este o método de análise, complementado com estudos de fundo sociológico e histórico, este último circunscrito praticamente ao material coligido entre os autores que escreveram sobre o pintor e uns poucos documentos que Mário de Andrade conseguiu localizar.

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3 informações no intuito de conhecê-lo melhor, perceber suas motivações criativas para com ele se identificar. “Essa identificação imediata entre observador e obra-de-arte provoca a identificação mediata entre observador e artista”, já dissera em texto que preparou para uma conferência em 19248. Desse modo almeja algo mais do que apreender e fruir a beleza das

pinturas de Jesuíno (ato de apreciação estética9); ele se identifica com Jesuíno e ao com se

identificar busca apreendê-lo em sua inteira significação, individual, artística, social e histórica, e formar juízo sobre os produtos de sua atividade artística (ato cognitivo, mas pleno de emoção10).

Mas quem lê os capítulos sobre a Obra de Jesuíno, observa que apesar de postular o sentimento estético como maneira de “sentir” e de compreender a pintura de Jesuíno, se dá conta também do meticuloso estudo que realiza, examinando em pormenor pintura por pintura, desenhando algumas para melhor analisa-las, esmiuçando detalhes, procedimento que lhe permite identificar traços que seriam característicos ou próprios de sua técnica compositiva, ou seja, Mário de Andrade também procede à maneira, digamos, “tradicional” de analisar a obra-de-arte, buscando perceber, senão regras, certas constâncias de concepção e de composição que lhe possibilitarão reconhece-lo dentro do quadro geral da pintura da época – o que, por sua vez, lhe permite conceber o papel social que terá desempenhado, ou em suas palavras, a “função do artista” perante o seu público, frente aos devotos, à comunidade dos Carmelitas a quem serviu desde Santos até Itu, incluindo a Capital11.

8 Veja Nota 5.

9 Também o escritor e filósofo Umberto Eco em História da Beleza, citando o filósofo iluminista David Hume, explica o nascimento de uma nova concepção do Belo no século XVIII que “nada tem a ver com as características do objeto, mas sim com as qualidades, as capacidades ou as disposições do sujeito (seja aquele que produz, seja aquele que julga o objeto)” e, desse modo, “Aquilo que é belo é definido pelo modo como nós o apreendemos, analisando a consciência daquele que pronuncia um juízo de gosto.” Dessa maneira “A discussão sobre o Belo desloca-se da pesquisa das regras para produzi-lo ou reconhece-lo à consideração dos efeitos que produz”. ECO, Umberto –

HISTÓRIA DA BELEZA, 4ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2014. Capítulo XI. Pág. 275.

10 Em 1942, Mário antes de ir ao Rio proferir a famosa conferência “O Movimento Modernista”, envia carta ao amigo Rodrigo dizendo que só aceitou o convite porque poderia passar “a semana aí lendo e consultando ... toda a documentação do SPHAN a respeito de pintura religiosa, sobretudo tetos de igrejas. De todo o Brasil.” E declara: “Você compreende: de tanto estudar e ver Jesuíno, acabei amando Jesuíno e desconfio que estrou treslendo um bocado. As coisas dele me arrebatam e preciso adquirir mais equilíbrio. Além do valor crítico comparativo que poderei tirar desses estudos.” MÁRIO DE ANDRADE: CARTAS DE TRABALHO. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945). MEC.SPHAN Fundação próMemória. Brasília. 1981. Carta de 17-III-42. p. 153. 11 Era de certo diminuto esse público, tanto em Itu como na Capital da Província, tendo em vista o número de moradores à época, ao contrário das cidades mineiras que concentraram rapidamente grande população. Além disso, a divisão entre livres e cativos, ricos e pobres e a barreira da cor da pele e, ademais, a organização desses segmentos em corporações religiosas distintas, sugerem que o acesso à Arte das igrejas e capelas de cada qual seria restrito a seus membros – o que impedia a fruição socialmente ampla pela impossibilidade de acesso aos não membros. Diz, por exemplo, Luís Jardim a respeito das igrejas mineiras que em Diamantina/MG a divisão social e a discriminação consequente da escravidão chegou ao ponto de “chamar-lhes ‘igreja branca’ e igreja preta’. E as

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4 Enfim, mediante a análise de seu desempenho artístico na sociedade colonial-escravista em que vivia – base estrutural que toma como elemento fundante de mediação das pinturas de Jesuíno –, Mário de Andrade também identifica nas pinturas aspectos que denunciavam revolta às adversidades que sofria decorrentes da cor de sua pele e da condição diferenciada que o artista mulato ocupava na estratificação sócio cultural, a despeito de granjear em vida reconhecimento e valorização por suas aptidões artísticas e intelectuais.

Mário se arrisca a apontar os elementos picturais que as denunciariam, os “africanismos” 12 que, ademais, vinham ao encontro do ideário modernista13 que, por sua vez,

postulava respeito ao patrimônio cultural herdado do passado, compreendendo os produtos do engenho humano numa acepção muito generosa, aliás já expressa na palavra “Artístico” sugerida para criação de um “Serviço do Patrimônio Artístico Nacional” – SPAN – concebido por Mário de Andrade14 e mantido no Decreto-lei nº 25 de 31 de novembro de 1937 –

irmandades, independentes como organizações civis, não só lutavam entre si – a branca, contra as de cor, estabelecendo ‘termos’ que interditavam o ingresso de pretos, de mulatos e de brancos casados com gente preta ou parda; a preta, contra a dos mulatos (Rosário e Mercês, rivais, em Diamantina) [...]” (JARDIM, Luís – A Pintura Decorativa em Algumas Igrejas Antigas. Pintura e Escultura I. Textos Escolhidos da Revista do IPHAN. MEC/IPHAN/USP/FAU. 1978. Ilus., p. 191). As exceções seriam as igrejas Matrizes, cujo ingresso era facultado a todos e, portanto, a Arte do desfrute comum, bem como, num certo grau, as igrejas conventuais, por acolherem irmandades menores, inclusive de comunidades de negros e pardos, como a irmandade da Boa Morte de Itu (à qual Jesuíno pertencia e onde foi Juiz de Festas), acolhida pelos frades carmelitas.

Hoje, porém, quando falamos em “público” sabemos tratar-se não mais unicamente dos católicos que continuam a venerar cenas bíblicas e imagens sagradas nas igrejas, mas também de pessoas sem credo ou de outras crenças que, todavia, adentram as antigas igrejas católicas e se aprazem diante de uma pintura ou de um retábulo setecentista, apreciando-os como obras-de-arte independentemente do caráter religioso e das finalidades que aludem ou a que aludiam originalmente. Decorre daí que a preservação da Arte Católica do nosso passado colonial ganha valor e dimensão que vão além do caráter simbólico ou sagrado de que se reveste para a Igreja Católica – aumentando a sua importância cultural.

12 “Além desse mulato velho santificado pelo artista”, diz Mário de Andrade, “são frequentes os ‘africanismos’ escapados a ele, no traçar as suas fisionomias masculinas ou os anjinhos de corpo inteiro.” E acrescenta observação que sugere uma nova questão: “Caso curioso: nas santas não”. (ANDRADE. 1981 op cit. Carta de 02.II.1943)

13 Na interpretação de Walter Lowande, o ideário modernista corresponderia a “Descobrir a Cultura e Civilizar a Nação”: iniciado pelo próprio Mário de Andrade a partir de 1919, através das viagens de reconhecimento do Brasil (compreendendo a Amazônia, o Nordeste e culminando nas cidades históricas mineiras), e no momento em que o movimento toma maior dimensão com a adesão de intelectuais e artistas de vários pontos do país, vindo a conferir uma conformação mais ampla, identificada pela busca de uma nova estética “capaz de liberar um novo futuro por meio do material do passado”, o Patrimônio Artístico brasileiro passa a constituir matéria de estudo e investigação na medida em que fornecia ao Modernismo o objeto a ser identificado e resgatado, e a razão e o propósito para projetar uma nova civilização, tornando-se desse modo, na feliz expressão do Autor, “O irmão gêmeo desse modernismo”, sendo, pois, necessário “proteger tudo o que servisse de matéria-prima para a modernidade estética nacional” (LOWANDE, Walter Francisco Figueiredo. Uma história transnacional da modernidade: Produção de sujeitos e objetos da modernidade por meio dos conceitos de civilização e cultura e do patrimônio etnográfico e artístico. Doutorado. Campinas: UNICAMP. 2017 p. 435).

14 Explica Mário de Andrade no Anteprojeto de Criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional que “Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos.” Lélia Frota, por sua vez, em texto que precede as CARTAS DE TRABALHO, refere-se à conferência O Movimento Modernista, proferida no Rio de Janeiro em 1942, na qual Mário de Andrade afirma que a apreciação da Arte “lida com formas, com a técnica e as representações da beleza” e que, naquele momento era necessário mais do que apenas a fruição estética, “’pois a arte é muito mais larga e complexa’, ‘tem uma

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5 concernente às Artes em geral, sem primar por qualquer uma delas, inversamente à postura arrogante e esnobe que pretende subordinar à Arquitetura as demais Artes presentes nos monumentos, às quais poderíamos incluir a Música religiosa se se tratar de igreja, e com a qual formavam e em algumas ainda formam um só e virtuoso conjunto artístico; enfim, uma totalidade de bens e manifestações artísticas repleta de simbolismo, necessariamente inseparáveis do lugar que lhes é próprio existir e onde são representadas, isto é, na igreja, obra de Arquitetura Religiosa, à qual compete acolher e dispor os produtos das Artes que concorrem para os realização dos atos religiosos de conformidade com o programa e as funções que desempenham; ou dito de outra forma: o conjunto desses elementos artísticos necessários à realização do culto e demais ofícios religiosos, prescritos na liturgia católica, é o que “condiciona” a Arquitetura a definir os espaços que nela lhes cabe ocupar, e não o contrário. Diríamos então que o que se observa numa igreja, tanto do ponto de vista estético como funcional, especialmente nas mais antigas entre nós, é o diálogo entre as Artes, todas, e não uma hierarquia. Portanto, não se deveria falar em dominância ou subordinação, e sim em interação artística15.

funcionalidade imediata social’, ‘é uma profissão e uma força interessada da vida’.” (FROTA, Lélia Coelho – Mário de Andrade: Uma Vocação de Escritor Público in MÁRIO DE ANDRADE: cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945). MEC.SPHAN próMemória. Rio de Janeiro. 1981. p. 23).

15 É o que, de certa forma, verificamos nesse estudo sobre Jesuíno, embora suas pinturas constituam o objeto da análise por excelência. Nele Mário de Andrade nitidamente retorna ao ideário Modernista, como propugnado a partir de 1924, bem como segue a orientação que propôs no anteprojeto do SPAN.

As pinturas de Jesuíno, antes de serem analisadas, são precedidas por um retrospecto da construção dos templos que as acolheram, para em seguida abordar o projeto decorativo interior, talhas, imaginária e por fim as pinturas. Essa tentativa de reconstituição histórica está contemplada em cada uma das igrejas onde estão presentes as pinturas de Jesuíno. Suspeitamos que, com isso, pretendeu deixar indicada uma proposta que lhe fora solicitada anos antes para instruir os processos de tombamento do que hoje chamamos de “bens móveis”, o que, aliás, permitiria a elaboração de material bem mais rico do que o colocado em prática pelo órgão federal de preservação a partir de novembro de 1937, o qual, na maioria das vezes, atinha-se a uma documentação sumária dos monumentos, geralmente circunscrita à sua importância arquitetônica somente, relegando a um segundo plano os demais bens artísticos que mal chegavam a figurar nos processos de tombamento, e vistos como mero “recheio artístico” daqueles; muito embora tenham merecido respeito e atenção no plano do conhecimento (vide os estudos da Revista e Publicações do Serviço do PHAN).

A prática institucional revela que pinturas, entalhes e imaginária, por vezes formando uma unidade artística riquíssima e completa, como se vê em Itu na Matriz, fossem tomados como simples “extensão” do bem arquitetônico (que, a despeito de seu frontispício, extemporâneo, foi tombado), tornando assim precária a sua proteção por falta de normas que permitisse toma-los como objetos de valoração própria, portanto suscetíveis de proteção legal, muito embora associada ao bem arquitetônico desde que fossem devidamente identificadas e descritas no tombamento. Desse modo, o que, originalmente, constituía um complexo artístico, resultante da agregação das Artes e Ofícios, perdia assim a sua completa significação pelo viés distintivo atribuído a Arquitetura do monumento, mesmo adulterada. Isso sem falar na não responsabilização dos proprietários pela zeladoria ou mau uso desses bens artísticos, que inibiria o seu descarte e mesmo a alienação, facilitados pela falta de instrumentos de controle.

As pinturas de Jesuíno, ao menos, foram devidamente identificadas e analisadas por Mário de Andrade, obtendo o respeito dos colegas e dos estudiosos, e desse modo foram reconhecidas e valoradas, e, por conseguinte, preservadas somente pelo manto protetor de seu estudo, a Publicação N. 14 do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, durante os anos que permaneceram à espera do beneplácito do Decreto-lei nº 25/1937.

Aliás, em carta a Mário de Andrade, de 15 de abril de 1937, meses antes da criação do órgão federal de preservação, Rodrigo Mello Franco de Andrade esclarece que “as condições em que deverão ser formuladas as

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6 É assim que, pensamos nós, deva ser entendido o sentido da palavra Artístico proposto no anteprojeto de Mário de Andrade, como uma totalidade, a reunião integrada de todas as Artes que constituem o objeto artístico, o monumento completo.16

De outra forma, quem lê o capítulo III da Publicação PADRE JESUÍNO DO MONTE CARMELO, onde analisa o painel do teto da capela mor da Carmo de Itu, vê, entre outras coisas, a importância que Mário de Andrade atribui às manifestações de cunho e gosto “popular”, enaltecidas nessa pintura de Jesuíno, considerando-as próprias de sua personalidade, de gente oriunda do povo, a expressar “um ‘brasileirismo’ de decoração”. Entre essas manifestações interessou-se também pela “mestiçagem”. Não somente a mestiçagem biológica, formada pela miscigenação dos povos partícipes do processo colonizador, como especialmente a cultural que mescla o que atualmente denominamos “saberes e fazeres” que, ao se transformar, inova e cria formas novas de expressão artística que estariam na origem da nacionalidade brasileira. Mário de Andrade se empenhou por encontra-las nas pinturas de Jesuíno, reconhecendo-as também na profusão de flores e de anjos, nas cores, na concepção e na intensa luminosidade da cena representada, e em outros aspectos que lhe possibilitaram tecer a bela interpretação de um painel de fins do século XVIII, enaltecendo a originalidade de sua composição em oposição aos padrões da “decoração europeia”. Pois, irritara-se com a depreciação feita por Saint-Hilaire, porquanto propunha entendimento diverso ao do ilustre viajante francês:

“... não seria mais lógico olhar uma obra assim por olhos que não estejam facetados à europeia? ... Por que antes de salientar deficiência, não salientaríamos a originalidade?” 17

Todos esses aspectos estão contemplados em exames minuciosos, adentrando inclusive o campo da Psicologia em busca do universo mental do artista, com quem Mário de

propostas para o tombamento de obras de pintura, escultura e gravura” ainda não haviam sido formuladas, e aproveita para consulta-lo: “A esse respeito, porém, Você mesmo é que poderia dar o modelo das propostas, com todos os requisitos que lhe parecerem necessários”. (RODRIGO E O SPHAN Coletânea de textos sobre patrimônio cultural. MinC/Secretaria do PHAN- Fundação pró-Memória RJ 1987. Cartas a Mário de Andrade. p. 145). Era então Mário de Andrade Diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, com afazeres que o ocupavam demasiado, administrando cinco Divisões que exigiam dele atenção permanente, razão por certo de não ter atendido a solicitação do amigo; ademais outros intelectuais e artistas do grupo modernista, afora o próprio Rodrigo, poderiam contribuir nesse sentido, independentemente de sua orientação.

16 E quando não houver mais essa totalidade? Tomba-se o que dela restou de mais significativo, não importando qual delas permaneceu e conservou o seu valor. Se não se faz objeção a monumento que não mais apresenta bens artísticos que constituíam a sua totalidade, os denominados bens integrados e móveis, e tomba-se mesmo assim, baseado apenas no bem arquitetônico que restou do conjunto artístico original, por que não aceitar o inverso dessa situação também?

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7 Andrade possuía a mesma raiz identitária. Todavia, Jesuíno lhe pareceu um homem controverso, pois, embora tenha sido um mestiço que “se revolta contra as condições sociais” e delas se vinga fazendo “jurisprudência contra as leis da sociedade em que vive”, criando “na sua pintura, para os mulatos e negros, um lugar de igualdade – seria de igualdade? ... – no reino dos céus”, Mário de Andrade entretanto se convenceu que Jesuíno “foi um indivíduo perseguido conscientemente pela sua condição de mulato e filho espúrio [e] Isso lhe determinou parte da vida e da obra.” Embora mestiço, não o reconheceu como lídimo representante da “mestiçagem brasileira” 18 capaz de afrontar e subverter o status quo; “antes

é um protótipo do grupo abatido que se revolta” ou um “deslocado”19 numa terra de brancos

entre negros e mulatos escravos, e cativo da moral religiosa dominante à qual, entre santos e santas, apenas e timidamente imiscui na cena celestial um bispo com feições negras e um anjo de cabelos pixaim, contrapondo-se dessa forma “à moral das ordens religiosas impostas pelo colonizador ditatorial.”20

18 Mário de Andrade definira “mestiçagem” e sua importância para a vida artística brasileira no artigo sobre “Aleijadinho”, de 1928, identificando-a ao artista mulato e à alteração que realizam nos padrões europeus de representação das artes plásticas: “... a prova mais importante que havia um surto coletivo de racionalidade brasileira, está na imposição do mulato. [...] principiam nascendo na Colônia, artistas novos que deformam sem sistematização possível a lição ultramarina. E entre esses mulatos brilha o mulato muito” “[...] Que os mulatos eram façanhudos não tem dúvida que sim. Mas eram porém pelo simples fato de formarem a classe servil numerosa, mas livre. [...] Os mulatos não eram nem milhores nem piores que brancos portugueses ou negros africanos. O que eles estavam era numa situação particular, desclassificados por não terem raça mais. [...] Livres, dotados duma liberdade muito vazia, que não tinha nenhuma espécie de educação, nem meios para se ocupar permanentemente”. “Já naquele tempo os mulatos, antes de se dispersarem como apenas um dos elementos da raça brasileira, apareciam [...] como mestiçagem: muito irregulares no físico e na psicologia. Cada mulato era um ser sozinho, não tinha referência étnica com o resto da mulataria.” Aleijadinho in Aspectos das Artes no Brasil. Livr. Martins Ed., São Paulo. 1965. pp. 17, 19 e 20.

19 Eduardo Jardim entende que “A mulataria, como gosta de chamar Mário de Andrade, não tem nada a ver com qualquer raça no sentido biológico e racista. Tanto o período barroco quanto o contemporâneo abrigariam estes grupos ainda deslocados e até ‘desrraçados’ compostos por indivíduos de qualquer cor.” (JARDIM, 2015. p. 188-9). Outro amigo de Mário de Andrade, o Professor Lourival Gomes Machado, em artigo escrito dez anos após a sua morte, confere maior largueza ao significado do termo: “Mário de Andrade se serve da palavra ‘mulato’ para exprimir muito menos um tipo de cruzamento, ou mesmo uma cor, do que para definir uma posição social especial. De fato, se a expansão cultural da Colônia, no cerne, tendia a obedecer aos padrões artísticos portugueses, logo essa fidelidade se encontra profundamente afetada pela ação de ‘artistas novos que deformam sem sistematização possível a lição ultramarina’. E, como entre esses inovadores sinceros, ‘brilha o mulato muito’, Mário de Andrade tomará o mulato como tipo característico, fato humano genérico que, in concreto, poderá muito bem incarnar-se em outra tez. Falando dos músicos, artistas e literatos que então começam a traduzir algo de novo na criação colonial, logo afirma: ‘seria difícil decidir quem que tem alma de mulato entre esses portugas e brasilianos sem firmeza nenhuma de caráter. Mulatos, muito mais mulatos que os desgraçados mulatos da maior mulataria’.” Lourival continua mais adiante explicando o valor desse "mulato artista”: "Ao mulato, em particular ao artista mulato, fosse branco da terra ou português ou verdadeiro mestiço, cabe traduzir essa carga emocional, para deixar expandir-se o que Mário de Andrade diz ser ‘uma alma com pouca prática de vida, cheia de arroubos assustados, se esquecendo de si mesma nas névoas da religiosidade supersticiosa, cujo realismo quando aparecia, aparecia exacerbada pela comoção, longe do natural, dramático, expressionista, mais deformador que os próprios símbolos. E de fato não passou disso a Inconfidência. E foi isso quase que a obra toda de escultor do Aleijadinho’.” (MACHADO, Lourival Gomes - Mario de Andrade, crítico de arte in HABITAT Revista de arquitetura e arte no Brasil. n. 21. Março abril de 1955).

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8 Valeria ainda observar o “misticismo de Jesuíno”, também assim captado, aspecto relevante para a compreensão do artista21; aspecto que, a nosso ver, continua presente e

acentua-se nas pinturas restauradas.

O intento foi esse, reconstruir a Vida de Jesuíno por meio de sua Obra, e vice-versa; caminho para ele, Mário de Andrade, mais fácil e fértil, mas ao mesmo tempo arriscado, tanto pela condição em que se encontravam as pinturas, acumulando muitas intervenções “restaurativas”, como pela dificuldade que os historiadores sempre enfrentam e que no caso de Jesuíno era ainda maior: a falta de documentos que permitam a reconstituição objetiva do personagem estudado e de suas obras no contexto histórico a que pertenciam22.

Varias questões decorriam dessa dificuldade.

No início de 1941, Mário via-se diante de um problema para cuja solução ainda não encontrara resposta e resolve recorrer ao amigo Rodrigo Mello Franco de Andrade no intuito de obter a colaboração do Serviço do PHAN. Solicita então dados históricos sobre o tempo que uma igreja no período colonial, depois de concluída sua construção, levava normalmente para dar início à sua decoração interna, interessando-se mais especificamente sobre as pinturas decorativas dos forros23. Era importante a resposta a essa questão, pois o auxiliaria a decidir

sobre o momento em que José Patrício da Silva Manso estaria em Itu executando a pintura do teto da capela mor da Matriz, tendo em vista que a tradição indica 1780 como data de inauguração da igreja. E o que era para Mário ainda mais importante, crucial mesmo para o

21 RICCI, Magda – ASSOMBRAÇÕES DE UM PADRE REGENTE. Ed. UNICAMP, Campinas. 2001. O misticismo de Jesuíno foi objeto de atenção da historiadora em sua robusta tese de doutoramento.

22 Mas vale observar, a favor de Mário de Andrade, o que escreveu o historiador francês Lucien Febvre sobre alternativas para a elaboração da história: “A história fez-se, sem dúvida, com documentos escritos. Quando há. Mas pode e deve fazer-se sem documentos escritos, se não existirem”. De que maneira? Fazendo uso, o historiador, de tudo quanto o homem se vale para viver: “Em suma, com tudo o que, sendo próprio do homem, dele depende, lhe serve, o exprime, torna significante a sua presença, atividade, gostos e maneiras de ser”. (FEBVRE, Lucien - “Vers une autre histoire”, Revue de Métaphysiques et de Morale, LVI-II, 1949 – citado por LE GOFF, Jacques. História e

Memória. 7ª ed. Revista – Campinas. SP. UNICAMP, 2013, p. 105). Ora, à falta de documentos, de que se valeu

Mário de Andrade para interpretar a vida e a obra de Jesuíno? De tudo quanto pôde lançar mão, especialmente de sua sensibilidade estética e incomparável linguagem literária que a todos encanta e seduz.

23 “[...] quero lhe pedir um favor. Desejava mostrar objetivamente com nomes, dados e datas, que era costume também no Brasil inaugurar as igrejas antes destas estarem acabadas na sua decoração interna. Principalmente o que eu quero é isto: documentação dizendo: A igreja tal de São João del-Rei foi inaugurada em 1764, o seu teto foi pintado em 1766. Isto é o que me interessa enormemente: provar que umas oito ou dez igrejas foram inauguradas e só depois da inauguração os seus tetos foram pintados. Se não for muito difícil você me fornecer isso seria admirável. [...] Faça alguém aí dizer se é possível o Serviço me fornecer esta documentação pedida”. E conclui a carta, queixoso: “e no resto, não se esqueça de me mandar suas lembranças nos telefonemas com o Saia. Preciso delas pra uso interno deste inferno. Com o abraço do Mário.” (ANDRADE. 1981 op. cit. Carta de 03.XII.41. p. 145)

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9 desenvolvimento de suas análises: decidir com que idade Jesuíno teria pintado as telas da Matriz de Itu sob a orientação de José Patrício. Por isso recorria ao amigo Rodrigo24.

A questão, porém, era muito específica. Numa rápida olhada pelos artigos publicados pelo SPHAN até aquela data (1941), observamos que, no geral, os autores tratavam de analisar as pinturas de acordo com os parâmetros gerais da época, havendo menção somente aos períodos (séculos XVII, XVIII, XIX, ou 1ª ou 2ª metades desse ou daquele século) sem, contudo, precisar datas. E quanto as igrejas coloniais o Serviço já havia publicado vários artigos, dos quais queremos destacar o do escritor e poeta modernista Manuel Bandeira, o GUIA DE OURO PRETO, onde o “milhor amigo”25 de Mário contava coisas interessantíssimas daquela bela

cidade mineira26; todavia não abordava a questão da pintura interna das igrejas que tanto

interessava a Mário de Andrade naquele momento.

Mesmo em meio a esse emaranhado de questões podemos perceber a linha mestra da metodologia de Mário de Andrade, como na carta escrita em março de 1943 ao Diretor do

24 Localizamos, na correspondência de Rodrigo de 16 de janeiro de 1942, a resposta que, porém, atendia só parcialmente o favor pedido: “Com o objetivo de atender à vossa solicitação anterior, aproveito a oportunidade para remeter-vos inclusa uma reprodução fotográfica da pintura do teto da igreja do Carmo, de Mariana.”

RODRIGO E O SPHAN Coletânea de textos sobre patrimônio cultural. MinC/Secretaria do PHAN- Fund. próMemória

Rio de Janeiro. 1987 p. 145.

25 Sobre a amizade entre ambos destaco duas cartas de Mário a Manuel Bandeira. A de 5.I.1931: ”Você se lembra que lendo aquele meu ‘Ponteando sobre o amigo bom’, você respondeu que eu não podia considerar você meu amigo na acepção tão elevada em que eu botava a palavra. Não me amolei com as sutilezas da sua consciência e o fato é que você tem sido mais verdadeiro dos amigos para mim. E eu pra você, ...” A segunda (2.V.1931): ”Parece mesmo que eu escolho os seres e os fenômenos pra me fazer incompatível com o completamento de mim. Os meus amigos vivem sempre longe. O primeiro verdadeiro que tive e inda conservo e vem de antes dos tempos de literatice, vive em Santos, raro vem a São Paulo, nos estimamos sempre porém vivemos de almas afastadíssimas, cada um com suas preocupações. O segundo fui escolher você que apesar de me retrucar com as suas naturais asperezas que não podia, não sabia ser amigo como eu imaginava amigos, que era um caçoísta de marca maior, não sei se se redime do que você imagina sua malvadeza nativa, o certo é que tem sido o mais verdadeiro dos meus descansos e apoios.” (MORAES, Marcos Antonio de (org.) - Correspondência Mário de Andrade & Manuel

Bandeira. EDUSP/IEB/USP. São Paulo. 2001. pp. 479 e 506)

26 Escreveu o autor do poema Vou-me Embora pra Pasárgada a respeito de Ouro Preto de meados do século XVIII: “... o quadro era outro e bem pobre. A taipa e o pau a pique ainda não haviam cedido lugar ao belo quartzito do Itacolomi [...] Só na segunda metade do século XVIII é que Vila Rica principiou a tomar o aspecto atual. A construção do Palácio novo marca o início da boa arquitetura de pedra argamassada. As pontes [de 1744, 1753, 1755]. O chafariz do largo dos Contos [1760] A igreja do Carmo foi levantada de 1766 a 1772. S. Francisco de Assis em 1772 tinha prontas as paredes e o arco da capela-mor, e só em 1794 se lavrou termo de entrega das obras [...] Como se vê, a cidade cujo ar de prestigiosa velhice tanto nos enternece, pode-se dizer que é de ontem.” E acrescenta um comentário deveras interessante: “O que lhe deu aquela feição de tão nobre antiguidade foi a decadência rápida e súbita da nossa arquitetura tradicional por todo o Brasil.” (BANDEIRA, Manuel - GUIA DE OURO PRETO: Publicações SPHAN. N. 2 – 1938. pp.24-25.)

Essas citações interessam porque cabem perfeitamente às cidades paulistas do mesmo período, especialmente S. Paulo, Santos e Itu. É o mesmo fenômeno que levou à “renovação estilística” de suas principais edificações urbanas, e de modo especial das maiores e melhores igrejas. Essas, como as mineiras, passaram a utilizar a pedra de cantaria, restrita porém ao aformoseamento do frontispício, o que fez consagrar o mulato Tebas Mestre Canteiro em S. Paulo, abandonando a simplicidade da tradicional fachada de taipa de pilão a partir de então, e estendendo a cantaria à arquitetura oficial, embora continuasse associada ainda a taipa de pilão até meados do século XIX.

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10 SPHAN na qual é possível observar a primazia que conferia à análise da obra-de-arte (no caso, as pinturas de Jesuíno), secundada pela leitura crítica das publicações (em revistas, livros, etc.), completada pela busca de novos dados (documentos) que preenchessem as lacunas da interpretação27.

E, para a construção de uma narrativa que contemplasse todos esses aspectos, Mário de Andrade literatizou o artista mulato28.

As datas, porém, o traíram, como logo teremos oportunidade de demonstrar; todavia, mitigadas pela “linguagem” muito sua e que o fez distinguir-se entre todos os escritores brasileiros, possibilitando-lhe criar uma das mais saborosas e instigantes narrativas sobre um artista colonial, consagrando-o nacionalmente29.

Já na Introdução Mário explica ao leitor a “feição literária” do estudo advertindo: “Mas não inventei dados. A minha “literatura”, no caso, além da redação, consistiu em organizar, dar uma cronologia aos sucessos dessa Vida extraordinária. E tudo justifiquei nas Notas.”

E como a adivinhar que no futuro o problema viesse a ser superado, antecipa-se, condescendente:

“É bem possível que algum dia novas pesquisas, novos documentos descobertos, venham consertar algumas ou todas as minhas interpretações.”

Devemos inicialmente ver os dados que reuniu e dispôs numa ordem coerente com suas análises com as quais desenvolveu a sua narrativa “literária” e, por meio dela, interpretou as pinturas de Jesuíno. Interessamo-nos sobre tudo pelas primeiras que realizou em Itu, na igreja Matriz e na igreja do Carmo, antes de vir a S. Paulo, período que Mário teve maiores dificuldades para situar o artista em relação ao tempo em que executou as pinturas.

27 “Conforme vos disse no meu relatório anterior, tendo terminado, com os elementos que possuía, as anotações de ordem crítica relativas à obra pictórica do P. Jesuíno do Monte Carmelo, ao invés de pôr tudo isso em redação definitiva, me dedico atualmente a ‘catar’ documentos e elementos que enriqueçam o trabalho e em principal lhe preencham as lacunas. [...] embora arquivos e museus paulistas sejam de um pobreza de documentação artística que não raro atinge a penúria”. (ANDRADE. 1981. Carta de 12.03.1943. p. 172)

28 Em carta a Rodrigo Mello F. de Andrade, de 20-XII-44, três meses antes de seu falecimento, Mário diz a esse respeito: “Há o caso da linguagem. Francamente não estou disposto a abrir mão da minha linguagem, embora a tenha feito a mais discreta que pude ... sentir.” (Ibid. p 185)

29 Comenta o historiador Walter Lowande acerca do poder de sedução da escrita de Mário de Andrade: “A todas e a todos a linguagem Andradina captura por um tom de proximidade, de camaradagem, de conforto e calor humano, que poucos – talvez ninguém – conseguiram igualar, a tal ponto que em muitas narrativas ele é simplesmente o Mário, quase um velho amigo.” (LOWANDE. op cit. 2017. p. 433).

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11 Assim atribuiu as datas abaixo aos acontecimentos que lhe pareciam melhor se “ajustar”:

- 1780 se inaugurava a Matriz de Itu;

- 1781 Jesuíno chega a Itu, aos 17 anos, em companhia dos frades carmelitas;

- em 1781 supõe que José Patrício da Silva Manso estaria em Itu pintando a capela-mor da Matriz, momento em que experimenta ou ensina Jesuíno nas pinturas das telas sobre a Vida de Maria e de Jesus30;

- em 1784 José Patrício já teria retornado a S. Paulo e pinta a tela para o forro da sacristia dos Terceiros do Carmo;

- em 1784 Jesuíno, com 23 anos de idade, casa-se;

- em 1785 tem seu primeiro filho e inicia as pinturas da Carmo de Itu;

- nos anos de 1787, 1789, 1790 e 1793 Jesuíno tem outros quatro filhos, ocorrendo a morte de sua mulher após o nascimento do último31.

Dessa maneira dispostas, as telas da Matriz teriam sido executadas entre os anos de 1781 e 1783, e a partir de 1784 as pinturas da Carmo que coincidiriam com o seu casamento e nascimento do primeiro filho. Foi essa a cronologia que Mário de Andrade estabeleceu a partir da análise das próprias obras e dos dados colhidos na literatura histórica compulsada, acatando alguns autores e criticando e descartando outros32.

30 Escreve Mário de Andrade mais adiante: “A data é mais que simpática e confidencial para principiar as pinturas da sua capela-mor, pelo também santista José Patrício da Silva Manso, e iniciação de Jesuíno em seu verdadeiro aprendizado de pintor.” (ANDRADE. 1945. Nota 9, p. 161)

31 ANDRADE. 1945 (Dados extraídos da Nota 9 da Publicação PADRE JESUÍNO DO MONTE CARMELO. N. 14 SPHAN, p. 160).

32 Não consideraremos daqui em diante obras posteriores a esse período, quais sejam as pinturas que realizou em S. Paulo para a comunidade carmelitana, que incluem os quadros da Vida de Santa Teresa que começam a ser restaurados, nem as telas da igreja do Patrocínio de Itu, por não haver novidades no que tange a documentos novos descobertos. Mas, do ponto de vista artístico, queremos lembrar que Mário de Andrade destacou três telas da igreja de Na. Sra. do Patrocínio (São Simão Stock, Santo Anido e São João da Cruz), qualificando-as entre as melhores pinturas de Jesuíno; que se distinguiriam das demais por revelar “um barroquismo inesperado no estilo do artista!”, exibindo uma “flexibilidade” inusual na sua pintura, e por apresentarem as feições “mais dramáticas, as únicas figuras realmente dramáticas e sofredoras que Jesuíno criou em toda a sua vida. Belos, admiráveis rostos que o sofrimento marca, e que mesmo em seus êxtases não revelam sequer uma parcela mais daquela felicidade interior que Jesuíno Francisco alcançara nos tetos da Carmo ituana, ou da calma, da serenidade possante do coro de São Paulo.” (ANDRADE. 1945. Capítulo V – N. S. DO PATROCÍNIO. p.123).

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12 O historiador de Arte Erns Gombrich, em texto intitulado “O passado cambiante”, referindo-se às importantes descobertas arqueológicas que renovaram o estudo da Arte pré-histórica, Antiga e Medieval, escreveu que o “conhecimento de história jamais é composto”, elaborado por completo, em definitivo, imutável. E complementa: “Há sempre novos fatos a serem descobertos que podem alterar nossa imagem do passado”33, sendo pois necessário

sempre retornar ao estudo do passado, revisando-o à luz das descobertas, formando uma nova composição que, por sua vez, pode resultar em novas interpretações.

Com o intuito de colaborar nesse sentido, vamos primeiramente ao que mais se ressentiu Mário de Andrade para estabelecer uma cronologia que melhor o satisfizesse para analisar a trajetória de Jesuíno e a evolução de suas obras, ou seja, os “novos dados” colhidos de “novas pesquisas” que alimentam “novas interpretações” que agora se tornam possíveis muitos anos depois de sua morte.

Ao falar de interpretações, importa desde já mencionarmos a do Professor Doutor Régis Duprat, realizada em 1984 e que, a nosso ver, constituiu uma primeira e importante contribuição para se repensar interpretação feita por Mário de Andrade de que Jesuíno chegara a Itu com pouca experiência em Pintura, baseada apenas nas instruções que recebera de um frei carmelita em Santos na sua mocidade tendo se especializado posteriormente com o Mestre Pintor José Patrício da Silva Manso mediante sua orientação quando da pintura das telas que ornam as paredes laterais da capela mor da Matriz.

Em artigo intitulado “Itu: aspectos novos de sua tradição musical”34 Duprat reavalia

dados já conhecidos à luz de novas pesquisas e aventa hipótese bastante interessante: chama a atenção para uma informação que teria passado desapercebida a Mário na documentação de “habilitação” de Jesuíno para a função eclesiástica. Refere-se à pessoa que se prestou a testemunhar em seu favor: André de Moura. Diz o emérito professor:

“Esse músico e pintor, ... nasceu em Santos por volta de 1725, ... Foi, durante muito tempo, o principal músico da vila de Santos, como mestre de banda e mestre-de-capela da matriz. ... Além de seus próprios filhos, que ensinou e tornou músicos profissionais,... é indicado [nos maços de população] como oficial de pintor (1765) e vivendo, além de mestre-de-capela, de sua pintura (1776). Nesta última data Jesuíno

33 GOMBRICH, E. H. – A HISTÓRIA DA ARTE; trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2012. Capítulo 28 UMA HISTÓRIA SEM FIM. p. 626.

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13 tem doze anos de idade e ainda permanece em Santos até 1781. Se não estudou, pelo menos conheceu o trabalho de música e pintura de André de Moura. O próprio Mário, citando o processo de habilitação de Jesuíno, refere-se ao testemunho do mesmo que alega conhecer Jesuíno e seus antecedentes familiares. Não se dá conta, contudo, de tratar-se de um músico e pintor.”

[Daí induzir que] “O desempenho de grupo desenvolvido por Jesuíno com seus filhos, irmãos e demais discípulos é como que a projeção do que já constatara com André de Moura, em Santos.”35 (grifo nosso)

Por outro lado, os trabalhos de restauração das músicas que Duprat atribui a Jesuíno o enriqueceram muito36, demonstrando não apenas que possuía grande qualidade como

compositor de música sacra como evidenciam (e isso é o que Duprat procura chamar a atenção) que Jesuíno formou um grupo de cantores e instrumentistas para apresentação nas igrejas ituanas37.

Essa interpretação nos autoriza também a inferir sobre a provável influência de André de Moura sobre Jesuíno relativamente a outra Arte, a Pintura; ou mesmo, ousando um pouco mais, supormos o aprendizado de Jesuíno em ambas sob a mesma tutela. Por consequência, teríamos como perspectiva um Jesuíno com reais possibilidades de atuar duplamente, tanto como Oficial de Pintor como de Música, atividades, aliás, com as quais ganharia projeção em Itu, angariando recursos que lhe permitiriam inclusive casar e constituir família somente quatro anos após sua chegada à Vila de Itu (1784).

35 Ibid. p. 63. As investigações apresentadas pelo Prof. Dr. Régis Duprat nos artigos do Garimpo Musical são de grande importância; desvendaram um panorama musical de São Paulo de uma vitalidade antes desconhecida acerca de diversas regiões paulistas nos períodos Colonial e Monárquico. Mestres-de-Capela, até a última quadra do século XVIII, detinham o monopólio da música nas igrejas matrizes, o que lhes garantia recursos permanentes para se dedicarem à composição de músicas sacras bem como para organizar corais e grupos instrumentais a partir da contratação de profissionais e, o que é mais significativo, através da formação de novos profissionais – que pode ter sido o caso de Jesuíno com André de Moura em Santos. A documentação recolhida por Duprat desvelou a existência de vários músicos assim formados e que constituíam depois, com o tempo, novos grupos de profissionais, da mesma forma como Jesuíno em Itu, com seus filhos, sobrinhos e com meninos e moços que eram atraídos por ele com esse propósito.

36 Pesquisas como a do Prof. Dr. Régis Duprat bem como a da Dra. Lenita Waldige Mendes Nogueira (Coordenadora do Museu Carlos Gomes-UNICAMP) revelaram um Jesuíno Músico e Compositor de excelente qualidade, ignorado na época de Mário de Andrade que conheceu apenas uma peça musical de sua autoria – Cântico da Verônica – à qual não reconheceu valor. “Errou”, digamos, por desconhecimento das demais. Sabia, todavia, de sua intensa atividade musical em Itu (como cita, à pag. 48 do estudo).

37 DUPRAT. op. cit. Ver também FRANCISCO, Maestro Luís Roberto de – A OBRA MUSICAL DO PADRE JESUÍNO DO

MONTE CARMELO in CADERNOS DO PATRIMÔNIO DE ITU. Pref. da Estância Turística de Itu. Cultura. Ano 1. Nº 1.

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14 Além disso, se hoje sabemos que Jesuíno constituiu em Itu um grupo vocal e instrumental para a execução de suas músicas, dentre as quais algumas incluíam verdadeiro acompanhamento orquestral38, como as "Matinas do Menino Deus”39, isso não só valida e

fortalece a hipótese de Duprat como vem ao encontro de outra suposição, feita pelo autor deste texto, de que Jesuíno terá igualmente reunido profissionais da representação pictórica, formando uma equipe que cuidaria desde a preparação do material (tintas, pranchas, telas, etc.) até a confecção de elementos de mais fácil execução40.

Tal suposição retiraria um pouco da importância que Mário de Andrade atribuiu ao Pintor José Patrício da Silva Manso, ao concebê-lo como verdadeiro “Mestre“ de Jesuíno na Arte da Pintura, e torna Jesuíno um artífice já formado quando chega a Itu para o exercício regular da profissão; passível, portanto, de ser como tal, e não como um simples “aprendiz”, contratado pelo renomado Pintor sabarense41.

Mas quem teria custeado esse aprendizado em Santos? A nosso ver o próprio Mário de Andrade esteve perto de descobrir quem teria patrocinado Jesuíno, pois em carta a Rodrigo Mello Franco de Andrade, diz “a se acreditar nas informações bibliográficas, o Padre Jesuíno viria a ser sobrinho-bisneto dos Gusmão santistas” [Bartholomeu e Alexandre], de quem “descenderia pela parte de mãe, a parda Domingas Inácia”42. Por que duvidar da possibilidade

38 Informou-me o Maestro Luís Roberto de Francisco que a restauração de boa parte das músicas de Padre Jesuíno do Monte Carmelo que o Coral Vozes de Itu apresenta é devida a Profa. Dra. Lenita Waldige Mendes Nogueira. 39 Apresentação de novembro de 2009, na Igreja de N. Sra. do Patrocínio/Itu, sob a direção do Maestro Luís Roberto de Francisco; música restaurada pelo Profa. Dra. Lenita Waldige, Depto. de Música da UNICAMP.

40 Sondamos já esta hipótese em artigo sobre o entalhador Bartholomeu Teixeira Guimarães: “O restaurador Julio Moraes, diante das enormes tarefas a que se propôs realizar na igreja de Na. Sra. da Candelária, firmou opinião de que a dimensão dos trabalhos artísticos feitos na última quadra do século XVIII na Matriz foi de tal vulto que os principais artífices então contratados pelo Padre João Leite (Bartholomeu Teixeira e José Patrício da Silva Manso) se viram obrigados a valerem-se de auxiliares – oficiais e aprendizes – para execução não somente de serviços preliminares [...] como ainda do delineamento dos elementos envoltórios, cênicos ou ornamentais de mais fácil execução, mas sob suas estritas orientações, reservando para si o seu acabamento final, afora a execução dos elementos centrais, em cujas faturas os mestres entalhador e pintor conferiam às obras, de acordo com os cânones vigentes e segundo os seus estilos próprios, a qualidade artística almejada. Essa organização e divisão de tarefas eram comuns na Europa entre os artífices e seus auxiliares desde o Renascimento – prática que naturalmente se estendeu às áreas coloniais, adaptando-se porém às contingências da estrutura social escravista, de onde provinha quase toda a força de trabalho, e de onde também emergiram, vez por outra, algumas excepcionalidades artísticas, especialmente entre os mulatos – como era o caso do próprio Jesuíno ali presente e que Mário de Andrade o vê como aprendiz ainda do mestre José Patrício, embora desconfiemos que trazia desde Santos aprendizado em Pintura, e também em Música, como supôs Régis Duprat.” (CERQUEIRA, Carlos Gutierrez - ENTALHADOR DO

RETÁBULO DA MATRIZ REVELA-SE EM INVENTÁRIO DO MECENAS DA ITU COLONIAL in CADERNOS DO

PATRIMÔNIO DE ITU. ANO 1 – Nº 1 – 2015. Pág. 19)

41 CERQUEIRA, Carlos Gutierrez – JOSÉ PATRÍCIO DA SILVA MANSO in José Patrício da Silva Manso (1740-1801) UM

PINTOR COLONIAL PAULISTA RESTAURADO. IPHAN 9ª SR – SP 2007. pp. 23-24.

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15 de Jesuíno ter sido beneficiado pela mesma família Gusmão, patrocinando durante sua infância e juventude em Santos seus estudos de Música e de Pintura em Santos com o Mestre André de Moura, afora o apoio recebido de um frade do convento carmelita santista como descobriu Mário na carta que Jesuíno escreveu em junho de 1815 ao Mestre Prior frei Antonio Ignacio do Coração de Jesus?

Vamos agora aos mais recentes documentos descobertos. Não são muitos, mas esclarecerem aspectos que permaneciam nebulosos na biografia de Jesuíno e, de modo especial, o período de suas obras iniciais em Itu.

Comecemos pelo mais importante deles, descoberto em 2004, pelo historiador ituano José Roberto de Francisco, (transcorridos, notem, quase sessenta anos da Publicação), e que forneceu os primeiros dados com os quais é possível superar a maior dificuldade de Mário de Andrade: relacionar os fatos às datas43.

Trata-se nada mais nada menos que a “Escritura de ajuste que faz d. Maria Francisca Vieira com Joze Patrício da Silva Manço para o douramento e pintura da Matriz desta Villa”, localizado num antigo Livro de Notas da Vila de Itu, datado de 28 de Novembro de 1.78644.

Embora indique registro de um contrato, este documento deveu sua lavratura em Cartório em razão de uma querela surgida após a doação de Seis Mil Cruzados pela citada Senhora, fruto de uma “promessa” a Nossa Senhora da Candelária, porém condicionando sua utilização à contratação de um parente seu, o pintor Joze Duarte do Rego, para que executasse a pintura do forro da capela mor para a qual destinara a doação.

Examinando os termos da escritura, vê-se que o ajuste com o pintor Joze Duarte foi porém desfeito por interferência direta do “Excellentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo Diocezano” – Dom Manuel da Ressurreição – por entender que a pintura era “obra da Igreja” e somente a ela pertencia, assim como a “eleição do artífice”. Cabia a Dona Maria Francisca

43 FRANCISCO, Luís Roberto de – Igreja Matriz de Itu: novos aspectos históricos. Revista da Academia Ituana de Letras, v. VI. 2004. O documento foi também publicado por Manoel Valente Barbas – A Igreja de N. Sra. da

Candelária de Itu. A Pintura e Douração Internas Originais e a Reforma Descaracterizadora de sua Fachada.

Revista ASBRAP N. 11. 2005.

44 Esclareceu-me na ocasião o historiador Luís Roberto de Francisco que este Livro de Notas s/ nº (1784-1788) do antigo Cartório de Itu havia se extraviado, e no tempo em que ocupou a Direção do Arquivo Histórico da cidade este lhe foi encaminhado e foi reincorporado ao acervo, o que tornou possível a sua consulta e a consequente descoberta do documento e sua publicação. Aliás, penso que este livro possa ter sido “retirado” à época em que Mário de Andrade pesquisava os documentos de Itu; desconfiança que deixou registrada em carta de 05.VI.1942 a Rodrigo Mello F. de Andrade: “De outras pesquisas em documentos antigos do mesmo Cartório obtive vários esclarecimentos, localização de terras, nomes de priores, etc. Mas me parece já agora incontestável que pesquisadores desonestos passaram por Itu destruindo documentos, ou guardando-os para seu uso pessoal. Documentos que me seriam de grande importância.” (ANDRADE. 1981. pp. 156-7)

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16 Vyeira apenas fazer a “doação da esmola a Nossa Senhora Candellaria”, devendo acatar a sua decisão, e dar o “Sim à eleição do artífice a ele Excellentíssimo Prelado por ser vontade sua”. A escolha, explicara em Carta ao Padre Manoel da Costa Aranha, irmão do Padre João Leite de Almeida Ferraz que dirigia as obras da Matriz: “se não satisfazia ele com a obra de Joze Duarte pella inspiração e falta de conhecimento da arte”, daí interpor sua autoridade em favor de José Patrício da Silva Manso, por ser “melhor artífice na verdade e por todos havido, e reputado por tal”.

A tradição atribuía somente o painel do forro da capela mor a José Patrício da Silva Manso; porém a surpresa que o contrato descoberto trouxe é que se tratava também da execução dos douramentos e pinturas em todas as obras de entalhe da capela mor, compreendendo ainda elementos dispostos no corpo da igreja. Vamos a eles, conforme descritos:

“... retábulo do altar mor, com sua tribuna, camarim desta e banqueta, com todo o oiro preciso nas talhas e morduras e nas partes onde não levasse ouro com tintas finas, a pedras fingidas o mais perfeito que puder fazer ... assim mais a semalha tal e seis tribunas da dita capela mor com frisos e molduras e talhas douradas, assim mais o arco da dita capella mor e com todas as molduras douradas e pedras fingidas, os dous púlpitos da dita igreja com toda talha dourada e pedras fingidas como também o Presbitério tingido de pedras.”

E sobre a pintura do forro devia José Patrício executá-la “a ólio e com suas melhores pinturas e no meio um painel do Mistério da Purificação”.45

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17 Pelos serviços previstos em novembro de 1786, pode-se concluir que os altares colaterais ao arco cruzeiro ainda não haviam sido fabricados. Quando terão sido feitos?

Mas tomávamos conhecimento, pela primeira vez, da extensão dos trabalhos que José Patrício da Silva Manso realizaria a partir daquele ano. Praticamente todos os elementos já prontificados pelas mãos dos entalhadores eram lhe atribuídos para pintar e dourar, além da pintura do teto da capela mor como descrita no contrato.

Até aproximadamente 2014, embora já iniciados os trabalhos de restauro, longe estávamos de imaginar a Matriz com a configuração que José Patrício dera a todos esses elementos compreendidos no contrato - retábulo mor, camarinha, tribunas, ... – visto que haviam sido recobertos por materiais espúrios que os descaracterizaram por longo tempo e escondiam a sua feição verdadeira46. Mesmo assim, o retábulo mor impunha-se pela pujança

de suas formas, sem o brilho e beleza que se revelariam somente em 2016.

Mas o que importa desde logo é chamar a atenção para a data do contrato firmado por José Patrício da Silva Manso, 28 de Novembro de 1.786, bem como ao período que permaneceu em Itu, por cerca de cinco anos, até 179147.

Pois, como vimos, pensou Mário de Andrade, para a Matriz (o que recusaria para a igreja do Carmo), que a capela mor já estivesse pronta para receber a decoração artística um ou dois anos depois de concluída a sua construção (1780), quando ao que parece nem mesmo o seu forro havia sido prontificado em 178248. Como tinha informação (documental49) de que

José Patrício se encontrava em S. Paulo quatro anos depois (1784), pintando a tela para o forro da sacristia da Terceira do Carmo, Mário julgou que já houvesse pintado o painel do forro da capela mor da Matriz de Itu. Supôs também que, por aquela ocasião (entre 1781 e 1783), José

46 Na verdade também não tínhamos, em 2005, a menor ideia de vir a conhecê-la em sua integridade original. Somente a pintura do forro da capela-mor sofreria intervenção pouco depois, porém seu estado de conservação era muito bom. Já os serviços de restauro principiados a partir do segundo semestre de 2014 – retábulo do altar mor e demais elementos da capela mor – esses sim é que acabariam por revelar, na sua totalidade, os trabalhos de pintura e douração de José Patrício, que lhe tomaram cerca de cinco anos, pois permaneceu em Itu até o ano de 1791.

47 Morando na Rua de Santa Rita fogo 48 com a esposa Dona Ângela Maria, onde vieram a ter os filhos Joze, Anna e Antonio. (CERQUEIRA. 2007. op. cit. p 30 Nota 15)

48 Quando do falecimento da Senhora Gertrudes Joana Pedroza Franca em 1782, lançou o inventariante Ignacio Ferraz Leyte Penteado a quantia de Quatro Mil Réis que a defunta estava devendo de “Promesa para o forro da igreja Matriz”. (Arquivo do Museu Republicano de Itu da Univ. de São Paulo. Inventário de Gertrudes Joana Pedroza Franca. Ano: 1782)

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18 Patrício teria encontrado Jesuíno, conhecido suas aptidões artísticas, dele se afeiçoado e o acolhido para participar dos trabalhos de decoração da Matriz, para os quais lhe confiaria, sob sua estrita orientação, a feitura dos quadros da Vida de Jesus.

O tempo de fatura dos objetos artísticos, porém, era ainda prescrito pelas exigências de qualidade ditadas pelo trabalho artesanal. E não se tratava de pintar apenas o forro da capela mor, mas praticamente todos os elementos ornamentais dela.

Deve-se todavia observar que o contrato não faz menção alguma às telas das Vidas de Jesus e de Maria, muito menos às cenas do Antigo Testamento imitando azulejaria, que agora vemos restauradas nas paredes laterais da capela mor.

Esses elementos terão sido incorporados depois aos trabalhos? Tudo indica que sim. As telas tradicionalmente sempre foram atribuídas a Jesuíno. A interpretação de Mário de Andrade alterou a tradição: Jesuíno teria apenas pintado as telas da Vida de Jesus. As de Maria seriam do próprio José Patrício. E as cenas do Velho Testamento desveladas agora no restauro? Sobre essas nem a tradição tinha guardado notícia.

Obras do tempo do Padre João Leite que para realiza-las foi preciso tempo e muito esforço, promover campanhas para arrecadação de fundos, pedir doações aos membros da elite ituana (enricada com a lavoura açucareira), solicitar contribuições de autoridades e esmolas da população, dos fiéis anônimos, e que, juntas, somaram vultosas quantias, tudo aplicado na contratação dos melhores artífices para a ornamentação da Matriz.

Não teria sido registrado por ele quando da contratação e pagamento dos artífices envolvidos nos trabalhos de tão boa qualidade? De certo que sim, embora suspeitamos de que boa parte dos serviços eram apenas “apalavrados” e pagos sem uso de papel algum. Mas, as obras realizadas envolviam grandes quantias, e mereceriam registro, ao menos as mais importantes. O que terá acontecido a essa documentação tão preciosa e imprescindível para que pudéssemos conhecer em maior detalhe tão belo projeto de decoração litúrgica?50

50 O mesmo podemos dizer a respeito da documentação da igreja de N. Sra. do Carmo de Itu, contemporânea à Matriz: ou desapareceu ou não é disponibilizada à consulta pública – problema aliás que já existia à época de Mário de Andrade como se lê no relatório que enviou em 7 de julho de 1942: “Como já comuniquei a V. Sª é voz geral e tradição sabida que grande parte dos arquivos dos conventos paulistas, tudo o que existia pelo menos, foi uma vez enviado para a sede da Província.” [Informou-lhe frei Maurício Lans] “quando da sua chegada da Holanda, encontrou servindo de base para os sacos de batatas do convento, uma papelada [...] [que] verificou serem todos documentos da Ordem Carmelitana de Santos. [...] Quanto porém aos arquivos provinciais aí do Rio, nada me soube dizer frei Maurício Lans. Nem me permitiu, aliás, examiná-los. Com a maior gentileza e graciosa elegância, na verdade o que recebi foi um “não” redondo – tendo aliás o ilustre frade, entre cigarros oferecidos e demonstrações de interesse pelo Serviço, garantido não poder se decidir nunca a publicar a documentação carmelitana do Brasil que conhece, por estar cheia de brigas e ser um exemplário da fragilidade humana. Da “fragilidade humana” sou eu

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19 A poeira do tempo a tudo ocultou, não restando notícia alguma nem sobre a existência desses documentos nem também sobre quem, em que tempo e por quais motivos resolveu um dia recobrir tão preciosos objetos artísticos com simples tinta de parede e fazê-los perder sua feição e beleza originais.

E Mário de Andrade não podia imaginar a grandiosidade e especialmente o lustro que a pintura e douração que José Patrício da Silva Manso imprimiu a esses elementos. Quem poderia?51 Muito menos havia em seu tempo no Brasil profissional que pudesse investigar

objetos artísticos, talhas, imagens, como hoje se procede, prospectando forros, paredes e chãos, deparando com vestígios que conduzem lenta e criteriosamente a descobertas admiráveis como as pinturas azulejadas da capela mor.

Passado mais de duzentos anos, coube à Restauração realizar um trabalho semelhante ao da Arqueologia Histórica, desvelando a Arte assim vilipendiada, relegada ao esquecimento, porém restabelecendo-a próxima ao seu estado original.

Mas quem teria executado todas essas obras? O pintor descartado por D. Manuel da Ressurreição? Padre João Leite teria, depois, lhe destinado essa obra para satisfazer, em parte, a vontade e interesse da ilustre Sra. Maria Francisca Vieira?

Evidências dessas cenas tinham sido descobertas poucos anos antes dos trabalhos de restauração iniciar. E, uma vez iniciados, logo topariam com outro registro de valor documental igualmente importante. Este não segue o formato tradicional de documento (escrito sobre papel); são desenhos, ou melhor, seria dizer esboços feitos a pincel com tinta branca sobre o tabuado que recobre as paredes laterais da capela mor, delineando com leves movimentos cenas bucólicas que todavia apresentam algo inusitado para a época: o autor assinou seu nome – Mathias Teixeira da Silva – e a data em que fez os desenhos: 178852. O

fato do nome e da data constarem ao lado das cenas do Velho Testamento logo sugeriu

que digo – da fragilidade carmelitana e desprestígio da Ordem e da Religião deve pensar o ilustre frade, como toda pessoa por demais comprometida com seu próprio estado. Enfim consentiu em chamar o arquivista do convento, o qual afirmou não existir dos arquivos daí, documento algum relativo às casas paulistas. Provavelmente foram-se com as batatas.” (ANDRADE. 1981. pp. 158-9)

51 Muito embora acerca da igreja do Carmo de Itu Mário de Andrade tenha obtido notícias entre os Autores, nos escritos de Francisco Nardy Filho especialmente, de que Jesuíno terá pintado, além do forro, também as paredes da capela mor, que eram igualmente recobertas por tabuado à semelhança do que agora vemos agora na Matriz, ignorando, porém, quais as cenas que lá representou.

52 MORAES, Julio – O RESTAURO – ALGUMAS PERGUNTAS E RESPOSTAS in Cadernos do Patrimônio de Itu. Pref. de Itu – Secr. de Cultura Ano 1 – Nº 1 – 2015.

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20 autoria das mesmas. Mathias Teixeira da Silva tornou-se assim o mais novo Pintor colonial paulista53. Apesar do forte indício, a nosso ver, é algo que ainda requer confirmação 54.

Desenhos executados por Mathias Teixeira da Silva em 1788, localizados no tabuado da parede lateral da capela-mor da Matriz de Itu, descobertos pela Julio Moraes Restauro e Conservação. (Fotos: Carlos Gutierrez Cerqueira)

E o que de mais importante há nesses registros gráficos, afora a questão da autoria das pinturas azulejadas ainda discutível? Sua importância para nós está no fato desses desenhos, nome e data terem sido feitos precisamente nos espaços que seriam, depois, ocupados pelas telas das Vidas de Jesus e de Maria – representações que Mário de Andrade atribui a José Patrício e a Jesuíno – e, no entorno delas, as pinturas azuladas com cenas do Velho Testamento.

Desse modo somos propensos a concluir que no ano de 1788 as telas estavam previstas (e talvez já em confecção) e os espaços para a sua colocação devidamente definidos, assim também o das pinturas azulejadas do Velho Testamento; o que indica respeito a um projeto litúrgico minucioso e bem elaborado – talvez o mais rico já traçado em São Paulo à época – balizado ainda nos cânones da reforma tridentina, com profusão de elementos solenes e, ademais, coerentes com a evolução estilística da época.

De maneira que naquele ano de 1788 (pouco mais de um ano da chegada de José Patrício a Itu) o projeto ornamental da capela mor, elaborado anos antes, estava em pleno curso, executados os conjuntos de elementos que o compunha e a posição que cada qual iria ocupar. O retábulo mor – componente principal desse cenário artístico – e os demais elementos de talha que decoram a capela mor, uma vez prontificados, deram início às tratativas para contratação do artífice que iria se encarregar do seu douramento e das pinturas como descritas no contrato de José Patrício da Silva Manso.

53 TIRAPELI, Prof. Dr. Percival - Iconografia na Matriz da Candelária, em Itu: um estudo das pinturas da capela-mor (https://www.uneser.com.br/nossos-poetas-e-escritores/percival-tirapeli/)

54 Em nossa opinião há dois aspirantes a pleitear sua feitura: Mathias Teixeira da Silva, autor inconteste desses registros gráficos, e o pintor Joze Duarte do Rego, que fora dois anos antes indicado para pintar o grande painel do forro pela Senhora Maria Francisca Vieira, doadora de vultosas quantias para a ornamentação da Matriz, e que, embora reprovado pelo Bispo, devia estar presente e contava com o apoio de sua ilustre sogra.

(21)

21 Assim, com base nesses dados novos, somos também propensos, a acreditar que a execução de todas essas pinturas e dourações esteve sob o comando do Mestre José Patrício da Silva Manso, figurando Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, talvez Joze Duarte do Rego, quiçá também Mathias Teixeira da Silva, bem como outros artífices inominados como coadjutores, efetuando tarefas, umas de maior elaboração outras menos, que resultaram na grandiosa e belíssima decoração da capela mor da Matriz da então Vila de Nossa Senhora da Candelária de Itu.

Documento extraído do inventário de Dona Maria Francisca Vieyra – Terça

É oportuno acrescentar mais um documento, este referente à peça de maior valor artístico desse cenário litúrgico: o retábulo mor. Embora não permita datação precisa, tem importância por desvendar o seu verdadeiro autor, antes atribuído ao lendário Guilherme55: o

Entalhador português Bartholomeu Teixeira Guimarães – fruto aliás de outra doação da Senhora Maria Francisca Vieyra56. O documento – Terça – é peça de valor testamental por

55 CERQUEIRA, Carlos Gutierrez – GUILHERME in https://sites.google.com/site/resgatehistoriaearte/.

56 Idem – Entalhador do retábulo mor da Matriz revela-se em inventário da mecenas da Itu Colonial in RESGATE

História e Arte. Edição do Autor. Prol Gráfica. 2016, pp. 141-157. Também em

https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDo2YzVlNTEwYmMyYjA4YTY0

Referências

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