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Arte e escola : um encontro com o outro da poesia

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Academic year: 2021

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RESUMO

Esta pesquisa consiste em analisar experiências no ensino de arte para crianças, de 05 a 12 anos, realizadas em escolas da Rede Estadual de Ensino – Diretoria de Ensino Campinas Oeste, no município de Campinas, de 2010 a 2014.

Ao relatar um conjunto de aulas, selecionadas dentro do contexto de minhas experiências, procuro estabelecer uma união da prática e da teoria através da criação, propondo, desta maneira, um encontro entre o professor de arte e o artista. Relacionando os relatos das aulas em interlocuções com obras de artistas e com diferentes autores, situados principalmente no campo de conhecimentos da Psicologia Junguiana, desenvolvo temas como a autobiografia e a memória presentes na construção de propostas de ensino da arte, a origem e os caminhos possíveis de interpretação das imagens criadas dentro e fora de sala de aula, as contribuições viabilizadas por histórias e personagens em propostas que abordam a imaginação das crianças, bem como os embates e os confrontos entre ser professor e ser artista na escola.

A partir destes diferentes temas, procuro refletir e discutir também alguns sentidos para a docência e para a ação artística, expondo os encontros do professor e do artista em um caminho marcado pelo autoconhecimento.

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ABSTRACT

This research consists of an analysis of experiences in art teaching for children between 05 and 12 years old. It was conducted in public schools of the state education network (RedeEstadual de Ensino) – regional section of West Campinas, in the city of Campinas, from 2010 to 2014.

Reporting a set of classes, selected from the context of my experiences, I seek to establish a link between theory and practice through creation, therefore proposing, a meeting between the art teacher and the artist. Connecting the reports from the classes with interlocution with artists works and different authors, mainly situated in the field of the Jungian Psychology, I develop themes such as autobiography and the memory present at the construction of art teaching proposals; the origin and the possible ways for interpretation of the images created inside and outside the classroom; the contribution provided by stories and characters in proposals that use children's imagination; as well as clashes and confrontation of being both a teacher and an artist at school.

Based on these different themes I also pursue reflection and discussions about the meaning of teaching and artistic action, exposing the encounters and places visited by the teacher and the artist on a pathway marked by self-knowledge in search for another expressive being.

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SUMÁRIO

O HOMEM DO CHAPÉU 21

Tecituras do Chapéu 23

O Homem do Chapéu 25

ESCRITOS DO HOMEM DO CHAPÉU 65

O que sou chamado a dizer a vocês? 69

Memórias de um artista tornando-se de artes professor 75

ENCONTROS COM A ARTE E COM A DOCÊNCIA 83

Outros da Escola. Outros da Arte. 85

Encontro com a docência 93

Encontro com a criação: o autobiográfico como tema 95

Confluência de caminhos 104

DEFINIÇÕES E INTERPRETAÇÕES 111

Gigante com Flores 113

O Penélope 131

Mar do Japão 139

BIBLIOGRAFIA 157

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Às crianças, que transformaram a minha vida, antes mesmo de existir a escola.

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AGRADECIMENTO

À minha família, pai e mãe, especialmente minha vó, que foram essenciais para o meu bem-estar durante todos esses anos de estudo. Meu muito obrigado!

Ao meu irmão, Paulo, que me fez enxergar a emoção em uma origem.

À minha orientadora, profa. Dra. Ana Angélica Albano, a Nana, que aceitou o desafio desta pesquisa, pelo acolhimento e pela paciência. Por ter acreditado em mim, permitindo-me procurar, entre a vigília e o sonho, por uma expressão e por minha própria voz neste trabalho. Pelos silêncios de nossos encontros e pelas tempestades no confronto de nossos sonhos. Nós sabemos o que fizemos!

À Dra. Salete Biagioni, minha terapeuta, que fortaleceu o caminho e a espera de minha busca. Sem nossas sessões, esta pesquisa não teria sido possível.

Aos professores Dra. Rosvita Bernardes Kolb e Dr. Guilherme Val Toledo, pelo olhar generoso e pelas contribuições de suas leituras para o meu texto de qualificação.

À Kathlyn Bernadete Bittencourt e à professora Dra. Simone Cintra, pelas leituras, ideias e sugestões para o meu texto.

Ao Dr. Roberto Gambini, por ter me acolhido em seu consultório e ter me orientado com a “documentação secreta do Vaticano”.

Às doutoras Ana Cláudia Cerávolo de Oliveira e Amélia Herig.

Às escolas, aos meus alunos e às professoras. Especialmente à professora Juliana Gomes Santos.

À Faculdade de Educação e ao grupo Laborarte.

A todos aqueles que me acolheram em suas casas ou que delas me expulsaram. Ao desconhecido.

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Se há veneno para tudo, há antídoto para cada veneno. Se a tua casa pegar fogo – salve o fogo!

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TECITURAS DO CHAPÉU

Alguns nomearam de estúdio do “Diabo do teatro de sombras” e de “Fabriqueta de perfis” ou ainda, como prefere um amigo filósofo, “Gabinete da Alegoria Platônica”. Eu prefiro ateliê. Bem apropriadamente: ateliê de um jardim secreto de sujeitos e de personagens. Lugar este onde escolhi para criar – com o coração de um cosmólogo apaixonado e com as mãos do marceneiro mais antigo da cidade.

Neste meu reino, eu não sou Gepetto, mas estou muito próximo de um. Porém, o que gosto mesmo é de inventar histórias. Não que eu seja um bom narrador. O bom contador de histórias sabe qual é a história certa, para as pessoas certas, para os momentos certos. Não tenho tal habilidade. Sei, no entanto, lançar flechas, para, em seguida, pintar os círculos de muitos alvos. Para os passantes, dou a impressão de ter acertado o centro de todos eles, o que me torna um bom arqueiro, quase sempre orgulhoso e esperto. Mas não. Trabalho entre a ficção e o real, simplesmente porque gosto de criar para escutar a dúvida:

Este mundo existe ou é invenção?

Para mim, o mundo está muito próximo do mundo dos sonhos. Anoto todos, com cuidado, em um caderno e, mais tarde, transformo-os em coisas mais ou menos reais. Nós precisamos ter muito cuidado com os nossos sonhos, porque eles podem se tornar realidade! Acho melhor então que eles sejam reais na arte. Dia desses, sonhei com um homem – um Velho Sábio, um Zé Pilintra, um Bossa Nova, um Preto Velho, um Gorro Freudiano, um Bonitão de Cinema, um Beuysiano, um Dom Juan... – que veio trazer, aqui no ateliê, a encomenda de uma escultura de seu próprio chapéu. Resolvi fazer dele uma aquarela. E desta aquarela, resolvi criar uma história, que apresentarei, para os senhores, nas páginas seguintes.

Nas tecituras1 deste chapéu de feltro, encontrei um professor de arte, lançado na

realidade mais dura de uma escola em um lugar não muito bom. Como não estou convencido de quem é quem nesta história, porque às vezes penso que sou eu mesmo me projetando, espero que os senhores entrem em meu mundo. Ou no mundo do Homem do Chapéu e desta escola.

Espero ainda que a minha história possa tocar em cheio o coração dos senhores, como estou convencido de que ela vem me tocando.

1 Tecitura se refere ao conjunto dos fios que se cruzam com a urdidura. Comprimento do tear e por entre os

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EXPERIÊNCIA ESCOLAR IV

(DIÁLOGO PSICOTEOLÓGICO – CONTINUAÇÃO) Professor: Você precisa cair nalgum enredo e ser capaz da medida humana.

Menino: Está bem! Mas eu quis contar e não soube. Não pude contar. Se eu conto algo estarei contido pelo que conto. História quer dizer claustrofobia.

Professor: Ah, menino! O teu alvo é deixar de ser insano. A história é o único abrigo humano.

Menino: E se houver um espaço mais livre para onde eu possa fugir? E se o desamparo for um abrigo melhor? E se ele for a medida real?

Professor: Ah! Você está querendo me dizer (novamente) que é deus e que pretende escapar da prisão do mundo?

Menino: Não. Eu estou querendo te dizer que eu sou ninguém e que, talvez, o ninguém seja o homem.

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O QUE SOU CHAMADO A DIZER A VOCÊS?

Se imaginarmos que cada sujeito vem a este mundo trazendo uma mensagem, tão individual quanto universal, e que cada de um de nós representa um lugar do mundo interior – ainda à espera e desconhecido no outro –, então seremos obrigados a questionar:

Quem ou o quê quer se pronunciar?

Eu quero encontrar um lugar para falar diretamente a vocês. Sendo assim, eu não seria honesto caso falasse somente de minhas aulas nas escolas públicas, expondo os problemas e as condições precárias que combinam muito bem com estas escolas. Não é isto o que me mobiliza a estar aqui. Penso que devo dizer sobre como eu, um artista que abriu as portas de um quarto escuro, consegui falar com as crianças. Assim como eu descobri coisas fazendo arte, eu também descobri, dando aulas, lugarzinhos secretos do mundo interior. É do sagrado da imaginação que quero falar aqui. E para falar deste lugar, nós precisamos ir até lá. E o meu convite e o meu chamado é que vocês caminhem hoje em outra via...

Portanto, fiquei me lembrando de um lugarzinho real, que possa aproximá-los do que estou tentando travar em minha própria vida, seja diante de meu caderno de desenhos seja dando aulas. Hoje vocês irão me acompanhar até o meu jardim secreto, que fica em meu sítio, lá em Ituverava, cidade onde nasci. Sempre quando estou lá, eu costumo sair da casa da sede do sítio, atravesso a cerca e vou até as terras do fundo. Sento-me ao lado de um “corguinho”, para falar sozinho. Ninguém sabe disto. Creio que vocês serão os primeiros. Quero então me pronunciar a partir desta origem, que não é nem mineira nem paulista, mas que marcou como fogo o timbre de minha voz... que é falar pouco querendo dizer muito. Quero estar com vocês no mesmo estado em que me encontro quando estou lá...

É por lá onde as coisas acontecem... Todas as vezes que estou em meu jardim secreto, eu travo uma briga voraz com deus, com o sagrado, com o mistério, com o desconhecido, com a fé, com a vida e com a condição humana. Eu visito a morte, lembrando-me das gerações mais próximas de minha família e fico curioso imaginando rostos de pessoas pulverizadas no tempo. Eu piso na terra (literalmente) dos meus ancestrais, dos meus mortos. No lugar onde eles moraram. Eu converso diretamente com deus, ao lado deles... E todas as coisas do mundo se findam e ganham o seu devido lugar. E todas as coisas são diferentes neste lugar: o sol parece brilhar mais intenso na grama e nas árvores, e o céu parece mais azul... E esta não é uma sensação intelectualizada. A mim,

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basta saber que estou inteiramente dentro de minhas questões, que são por sua vez profundamente pequenas e grandes, ao mesmo tempo.

Os meus ancestrais me dão suporte, eles não estão mais nas minhas costas, mas o passado vem aqui pra frente e converso com o ar junto com eles, acuado em que me encontro na hipótese de um futuro e no mais ameaçador que o mesmo possa vir a representar para o destino de cada ser humano. É deste outro lugar que quero falar, insisto. Então, uma das minhas dúvidas apresentadas ao deus desconhecido é: Como ele se apresenta a nós, como ele se mostra e se revela nas tramas das coisas, do dia-dia, e como foi possível tantas gerações passarem e não temos certezas ainda de nada? A voz do mundo me diz que devo permanecer pouco tempo neste lugar. Ele é tão perigoso, tão sem razão e tão incerto... Mas não há escolhas: ou nós vamos até lá ou seremos estancados pelo medo!

Para falar deste lugarzinho secreto, quero também ir trazendo as imagens das minhas aulas, das certezas e inseguranças, das brigas e do brilho dos olhos comovidos que brotou em mim. Não há rigidez neste lugar, não há instituição. Vou tentar não atrapalhar tudo e acabar com tudo, raciocinando sobre o que é certo e o que é errado, sobre o mais bonito e o mais feio de ser falado. Gosto de fazer perguntas, mesmo que elas desapareçam no ar, assim como um sentimento e uma emoção. Para mim, foi uma emoção muito grande quando eu descobri as crianças...

E a primeira questão foi: Como falar com elas? Eu estava com um problemão: Como vou falar com estas crianças, meu deus? Você me colocou no meio desta história, o que eu vou fazer?

Na última vez em que estive em meu sítio, atravessei a cerca. Desta vez, não fui sozinho, mas com o outro de mim, que apareceu sem ser chamado. Ele veio, enlaçou os meus ombros, dizendo: “Você não está sozinho. Estarei junto com você nesta caminhada. Nós vamos até lá, porque é preciso fazer alguma coisa.” Chorei muito. E nós entramos juntos... Brigando em alta voz com os ancestrais, perguntando o que cada um deles havia feito dentro da casa. Percebi que seria preciso inventar gigantes, amigos invisíveis e a fantasia dos contos de fadas. Foi o que aconteceu quando fui dar a minha primeira aula para as crianças. Diante daquela tarefa nova, sem também ser requisitado, veio-me um gigante. O “Seu Gigante” me telefonou na primeira aula, conversou comigo, dando-me orientações de como fazer e começar tudo, como dar aulas de arte... Seria através da imaginação que eu falaria com as crianças. E durante as aulas, assim como eu discuto com o deus no meu sítio, o Gigante foi dando notícias, enviando cartas para os alunos, dizendo sobre sua existência, sobre o lugar onde morava... E o sorriso das crianças foi sendo uma resposta de vida para mim.

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Diferente do deus mudo do meu jardim secreto, transmutado para as coisas da natureza, as crianças falavam comigo. E queriam saber mais, brincar... Lembrei-me das vezes em que fui até o jardim secreto na minha infância. As coisas deviam ter mais ou menos o mesmo peso e suavidade, mas faltaram as palavras do adulto para o reconhecimento do terreno. A criança não fala como o adulto, não pensa como o adulto, mas há as sementes do que virá a ser no futuro, de como será mais tarde. Volto a pensar – lá no meu jardim:

Onde deixei a minha criança? O que fizeram da minha criança?

As crianças me ajudam a entender este processo todo com a infância, com a vida que vive encerrada dentro de nós mesmos. Quando me questionei como elas funcionam, precisei religar as coisas da brincadeira. Como é brincar? Estar com as crianças foi como retomar este lugarzinho secreto – seja da brincadeira, do diálogo com deus, com a memória, com a fantasia, com o mundo interior, com a vida e morte, seja com a poesia... A poesia nos leva para os lugares onde tudo começou.

Por exemplo, fiquei pensando no esconderijo de infância do psicólogo suíço Carl G. Jung, que era o sótão da casa de seus pais. Ele ia até lá, conversava com um boneco de madeira feito por ele, inventando os seus mais profundos segredos... Tudo era muito precioso. E o próprio Jung falou mais deste mesmo lugar quando já era um dissidente das ideias de Freud. Ele trouxe o Filemón como um pai espiritual. Pensando em outro exemplo, que tanto me identifico em minhas raízes mineiras, nós temos o Chico Xavier. Ou o Chico inventava o Emmanuel, ou ele continuaria indo no padre e tudo não passaria de coisa do demônio. De certo modo, o drama bíblico do homem confabulou o mesmo: ou ele inventava Jesus Cristo ou ele continuaria indo no Deus maldoso de Jó.

Certamente, estas são questões religiosas, embora eu não seja um religioso. Eu estou interessado em mais perguntas:

Como permanecer dentro de minhas ideias e potências? Como conseguir inscrever este lugar poético no mesmo grau de profundidade em que ele me toca? Quando se vive uma experiência do sagrado, o chamado interior exige uma entrega à vida, excluindo o que não faz sentido. Sendo assim, como permanecer ainda no mundo? É no tudo e com todos em que as coisas acontecem. A relação com os outros é o canal de ouro...

Como permanecer tão fechado para a vida se não sabemos o que tem dentro dela? Creio que a tarefa do professor seja transformar rotas, fazer com que cada aluno encontre o seu lugarzinho próprio, o seu lugar sagrado, a sua pedra de diálogo interior... coisas estas que o nosso mundo perdeu tanto. Uma vez negligenciadas, é difícil retomar.

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Life isn’t something you can give an answer to today. You should enjoy the process of waiting, the process of becoming what you are. There is nothing more delightful than planting flower seeds and not knowing what kind of flowers are going to come up.

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MEMÓRIAS DE UM ARTISTA TORNANDO-SE DE ARTES PROFESSOR

Uma vida é um tanto de confusão e um tanto de esclarecimentos. Como a de tantos outros, a minha vida é o resultado de recortes e retalhos, que provocaram mudanças em meus caminhos e em minhas visões de mundo. Como eu não tenho oitenta anos, não tenho uma vida toda para contar. Mesmo assim, narrarei um pouco minha jornada, tentando esclarecer mais e atrapalhar menos, para, desta maneira, desfiar o que faz do artista um professor e tecer o que faz do professor um artista.

Marcado pela voz do interior, é ela quem me acompanha no mundo das memórias. E esta voz, na timidez que lhe é própria, vai se transformando na voz de meus pais, na voz de meu irmão, na voz de meus professores em sala de aula, na voz de meus colegas de turma, até se transformar na voz da chuva e do vento...

Quem me acompanha, neste lugar, tem muitos nomes e muitos rostos.

Começo minhas memórias pela primeira casa onde morei. Ela ficava na Rua Constância Jesus Galize, em Ituverava. Era uma casinha popular, portanto muito pequena, mas com um jardim e um quintal enormes.

No quintal, o meu pai cultivava uma horta e criava galinhas em uma caixa feita de gambiarras. Era o seu lugar predileto em nossa casa, quando não estava trabalhando ou viajando. Já o meu lugar era o jardim, onde eu brincava com os caramujos, enquanto minha mãe, que era professora, fazia as “coisas da escola”, e o meu irmão brincava na rua com os nossos vizinhos.

A minha infância foi solitária...

Inventando o mundo, eu desenhava linhas entrecortadas e chamava aquelas formas de mapas. Ao criar territórios inexistentes, eu desejava que os meus desenhos fossem iguais aos de meus Atlas. Provavelmente, estes desenhos foram os meus primeiros projetos de arte. Além deles, eu costumava construir tocas, com tijolos e pisos abandonados, para onde levaria os porquinhos-da-índia, que eu mesmo roubaria de minha vizinha. Eles se pareciam com coelhos, mas não eram coelhos.

Em 1988, comecei a estudar na EMEI João Antonio Macedo, mesma escola onde minha mãe e minha tia lecionavam. Comparando com os colegas de turma, isto me dava algum tipo de privilégio. Eu conhecia uma escola muito diferente daquela que eles imaginavam. Naquele tempo, nós passávamos os finais de tarde na casa de vó Alzira, quando as irmãs se encontravam entusiasmadas! E assim eu tinha acesso ao panorama atualizado de tudo o que estava acontecendo na coxia da escola, das funcionárias à diretora.

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Concordava com a minha avó, quando ela dizia: “Professora é um bicho muito fofoqueiro e maria-vai-com-as outras”. Tudo o que eu sempre soube de escola, de ser professor, de ser aluno, nasceu destas primeiras observações. Lembrando-me daqueles dias, não consigo hoje separar a escola da presença de minha mãe.

De certa maneira, o trabalho dela acabou se transformando em um modelo para mim. Ao terminar o Ensino Médio, eu não sabia qual profissão seguir. Foi assim que surgiram os cadernos de desenhos feitos por minha mãe em sua juventude, provavelmente feitos na escola. Eles foram meus companheiros durante anos. Encapados com papel xadrez e desbotado, os cadernos eram formados por imagens diferentes daquelas que chegavam através da televisão, das ilustrações de livros ou das histórias em quadrinhos. Imagens que eram principalmente representações de mulheres nuas e paisagens. Eu imitava os desenhos antigos dela. Debruçado sobre eles, eu então me perguntava sobre as aulas de arte que ela havia tido, nas quais a professora exigia que fizessem margens. Como a professora de minha mãe também foi minha professora nos anos iniciais do Ensino Fundamental, estar com aqueles cadernos era revisitar aquelas aulas de que eu mais gostava na escola. Além disto, eu chegava a me questionar, um tanto inquieto, os motivos que levaram minha mãe a abandonar os desenhos, uma vez que eu os achava muito bonitos.

A única resposta, a que mais me incomodava, era supor que ela havia deixado de seguir os seus próprios sonhos depois de ter se tornado professora. Acredito que o meu interesse por arte surgiu mais ou menos aí nesse período, entre 9 a 13 anos.

Às vezes, não são os livros ou as escolas que fazem o caminho de uma pessoa. Em meu caso, foi esta revelação diante dos cadernos antigos de minha mãe. Pensava: “Deve valer a pena desenhar os próprios sonhos!” Mais tarde, ao contar esta história dos cadernos para um amigo, ele veio a confirmar o que eu já sabia: “Se há uma vontade, há um caminho”.

A partir destas percepções, decidi procurar um dos poucos artistas plásticos de Ituverava. Este foi um movimento inimaginável e transgressor para o adolescente tímido que eu era. O Marozo foi o meu primeiro professor de pintura. Era um negro alto e forte. Suas mãos eram simples e generosas, mas cheias de um gesto pronto, que ele dizia ser resquício de um acidente de carro. Foi o primeiro professor a ensinar a lidar com os materiais, mostrando como eu devia apontar um lápis 6B e como utilizar a tinta à óleo, depois de criar um esboço na tela. Passávamos a tarde juntos, um do lado do outro, analisando as tonalidades das árvores atrás do muro do ateliê. No entanto, o nosso diálogo se fazia na pintura. O mais curioso é pensar que o Marozo me dava total liberdade, mas não pontuava a necessidade de criar algo próprio. Eu fazia muitas cópias, principalmente de pinturas de revistas de artesanato, compradas em bancas de jornal. Eram sim cópias de “pinturas de artesanato”, mas eram verdadeiras e compreensíveis dentro dos limites de

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minhas referências. Hoje sei que a existência de um Marozo em uma cidade do interior como Ituverava é um milagre! Foram estas pinturas, realizadas nos fundos de uma papelaria, que me iniciaram no universo da arte.

Lembro-me de buscar livros de arte na Biblioteca Municipal de Ituverava. Nela, encontrei apenas dez livros catalogados em uma estante perdida entre muitas de literatura. Dez livros que me diziam alguma coisa desconhecida. Espécie de presságio do que estaria por vir? A capa de um livro me chamou então atenção: “Quem é esta figura debruçada sobre si mesma?” Tratava-se de Narciso, uma pintura de Caravaggio.

Além dos poucos livros da Biblioteca, vim a ler três biografias, que foram marcantes para aquilo que eu estava querendo fazer de minha vida – seguir além das fronteiras de uma cidade do interior. Sem o saber, estava construindo perspectivas e criando a minha própria mitologia. Olga, Cazuza e Chatô me deram algumas indicações... apontando mundos desconhecidos e comportamentos diferentes daqueles conhecidos por mim.

Em 2002, resolvi me dedicar para o vestibular. Entre muitas dificuldades pessoais e restrições na formação – de um ensino fundamental todo feito em escolas públicas –, fui aprovado no curso de Educação Artística no Instituto de Artes na Universidade Estadual de Campinas.

A minha vinda para Campinas significou tudo. O universo se abriu para mim. Talvez eu tivesse me permitido menos se continuasse em Ituverava. Sinto a alegria da conquista de um lugar na universidade, mas principalmente a alegria por ter saído de casa – assim como a jornada das personagens das minhas leituras e das biografias de todos aqueles que eu passaria a conhecer. Não sei dizer tudo o que vivi em minha mudança para a cidade grande. Precisaria passar outra vez por estes lugares, reconhecendo a marca e as lembranças. Penso que a mudança é um lastro, nunca é esquecida. Conhecer o MASP, pela primeira vez, foi uma emoção. Se abrir para o mundo é uma emoção. Para um garoto vindo do interior, ser retirando no vazio do desconhecido, é abraçar todas as possibilidades de si

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mesmo e do outro. Tal qual o jovem do lado enamorado por sua imagem, na pintura de Caravaggio, eu estava tateando um outro... querendo saber qual era a dele.

Depois do Marozo, os professores na faculdade foram os meus “pais artísticos”. Eles entendiam o caminho e tinham a paciência da espera. Alguns deles me marcaram profundamente, como por exemplo o Tuneu, nosso professor de pintura. Em nossas aulas, ele me provocava com diversos questionamentos. Não orientava gostos, nem mesmo demonstrava a melhor forma de se fazer arte. Entre outras coisas, sensações e pensamentos, ele nos dizia da importância de termos um trabalho autoral.

No primeiro semestre de aula, encontrei, por acaso, um livro muito especial, “Tarsila, Tuneu e outros mestres”. Sabia que sua autora se tratava de uma professora da licenciatura da Faculdade de Educação. Eu queria, através deste livro, entender as provocações feitas pelo Tuneu durante as nossas aulas. Eu queria também conhecer como havia sido a sua relação com a Tarsila. “Alguma coisa ali seria parecida com minha relação com o Marozo ou mesmo com os professores da UNICAMP?”, perguntava-me. Por alguma razão, o Tuneu nada dizia da Tarsila. Era um mistério ele ter sido pupilo de uma das maiores artistas do Brasil e nada falar sobre o assunto. Suponho que ele nunca tenha tirado proveito de quem participou de sua formação, o que poderia se confundir com estar “em cima do muro”. Sua ética e sua postura, entretanto, podiam ser sentidas. De fato, ele era o Tuneu e não a Tarsila! “Era isto o que ele tentava me dizer?”

Tínhamos um arsenal de referências em nossas mãos, mas era preciso construir um trabalho pessoal. Apesar disto, muitos artistas ocupavam a minha imaginação. Eu mantinha diálogos frequentes com as obras de van Gogh, Leonilson, Francis Bacon e Iberê Camargo. Naquela época, o caos do ateliê do artista Francis Bacon, assim como a sua obra, havia me impressionado muito. Certamente, para criar, eu imaginava que era preciso estar envolvido por aquele mesmo tipo de caos. Entre algumas fotografias de meus guardados, revi imagens de um dos meus quartos. Tive a sensação da atmosfera desestabilizadora em que vivia. Em meio à terebentina e ao querosene, as paredes eram sujas de tintas e carvão. Não existia cama – assim havia mais espaço para a produção... Esta era a forma “assustadora” com que eu me aproximava dos artistas, achando estar no centro do processo de criação, tal como o artista Francis Bacon fazia. Eu acreditava verdadeiramente na desordem, achando ser ela o princípio da criação. Em um segundo olhar, no entanto, este quarto me pareceu muito estético e nada natural. Uma desordem, para ser real, precisa acontecer normalmente. “Será que estaria tudo em ordem?”

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Ateliê do artista Francis Bacon e o meu próprio quarto-ateliê, quando ainda estudante de artes plásticas na Unicamp, em 2007.

Em outra foto, deparo-me com um retrato de Carlos Drummond de Andrade e com a colcha de retalhos feita por minha bisavó – a vó Tieta. Apesar de serem elementos diferentes em um espaço tão confuso, gosto de imaginar que eu estava sendo protegido pelo olhar tranquilo do poeta e pela lembrança dos meus antepassados mais próximos.

Tenho a impressão de que a Arte me ajudou a ser alguém no mundo. Eu não estava construindo – ou desconstruindo? – um trabalho de arte, tampouco uma profissão, mas o próprio João. O período da Graduação foi também o período da descoberta do sexo, do namoro, das amizades, das sessões de análise... Tudo ao mesmo tempo... Esta foi a minha entrada no mundo.

No último ano de Graduação, em 2007, as mudanças pareciam ter se assentado, quando outro momento perturbador e de grande explosão interna aconteceu. Foi quando a escola, os alunos, a minha formação, voltaram a compor os meus questionamentos. Eu havia me esquecido de que a escola era a extensão de minha casa... Enquanto no Instituto de Artes, nós direcionávamos nossa atenção para a produção artística, o propósito das aulas de licenciatura na Faculdade de Educação revirava nossas expectativas. Eu não

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queria ser professor. No entanto, nas aulas de estágio supervisionado da professora Ana Angélica Albano – a autora do livro que eu havia lido sobre o Tuneu! –, sentia que era possível fazer um encontro entre o artista e o educador. Não sei dizer exatamente o quê acontecia em nossas aulas. A Nana abriu muitos caminhos para mim, primeiro como leitor de seu livro e depois como aluno. Suas provocações me fizeram e me fazem pensar no quão difícil é reconstituir um período recente. Ela foi a sereia sedutora na beira da praia, apontando o fundo do mar... Nós podíamos ir até lá e fazer a ponte... Estávamos autorizados.

Em 2008, fui para São Paulo. Coloquei-me à disposição de outro lugar desestabilizador. O lugar do risco. Fui trabalhar em um ateliê no centro da cidade, ao lado do Edifício Copan e do antigo Hotel Hilton. Era uma região deteriorada, onde moravam travestis e traficantes. Junto dos gritos nas ruas, das buzinas, dos tiros, eu escutava Nina Simone, Tom Waits e Carla Bruni. Eu era chamado de “alemãozinho” pelas travestis, talvez porque eu fosse a flor azul entre as britadeiras... Mesmo tendo conhecido Campinas, nada sabia do mundo. Naquele lugar, a hipocrisia não entrava e a ingenuidade sim... Vi muitos pais de família, de várias classes sociais, indo ali satisfazer as suas fantasias. Em nosso ateliê, uma das travestis, a Valéria, posou em uma sessão de nu para nossos desenhos. Para surpresa de todos, ela tentava esconder seu órgão genital. Senti que havia uma pessoa atrás daquela fantasia. Uma violência, que deixou ela passar, talvez porque se sabia que a pessoa nasceria no dia dela, tentando encontrar um lugar de dignidade, assim como todas as pessoas que habitavam aquele submundo. As pessoas, o mundo interior, passaram assim a ter outro sentido. Era algo visceral e diferente de tudo o que eu havia vivido até então. Acredito que esta experiência foi um dos presentes mais estranhos e impossíveis de serem transcritos agora com todos os detalhes. Antes do ateliê, costumo dizer que eu desenhava sempre o mesmo desenho, pois este era o ponto em comum com a linguagem do mundo que inventei ao ir para Campinas. São Paulo devolveu minha identidade. E pude descobrir vários lugares adormecidos em mim.

A Nana esteve presente neste processo. Morando em São Paulo, muitas vezes eu a visitei em sua casa. E nossa relação cresceu a partir daí. Em outro lugar, bem distante da universidade. Eu levava muitas dúvidas e questões para ela. Tudo o que vivia em São Paulo, no ateliê ou com o Rubens – meu professor artista do ateliê – eram discutidos com ela. Recordo-me de como nossa conversa se dava. Falávamos, principalmente, sobre a relação mestre-discípulo e de suas projeções. Ela me apresentava sua casa e ia contando histórias, fazendo observações, pautadas na aula, na docência, no tempo e nas pausas. Naqueles dias, o silêncio trazia mais dúvidas e exigências. Responsabilidades. Nossas pausas tinham o tempo do reconhecimento da dor. Todos os gestos e as palavras tinham um peso diferente.

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Mesmo tendo ganho um prêmio em um Salão de Arte Contemporânea, tendo participado de exposições importantes, tendo reencontrado a minha identidade, resolvi abandonar o ateliê. Era impossível me manter naquele lugar de risco. Eu precisava fazer o retorno. “Estaria abandonando o ateliê, a arte, em nome do quê? De uma vida sem tensão e sem questionamentos? Estaria eu repetindo uma história?”

Eu não queria, e não podia, ser professor, mas eu sabia que teria de ser professor. Eu tinha muito medo do que poderia acontecer. “Estaria eu indo ao encontro do que verdadeiramente sou?” Tudo o que havia construído para mim se desfez. “Estou fazendo a coisa certa? Estou sendo verdadeiro comigo mesmo?”

Se a escola é a extensão de nossa casa, decidi voltar para Campinas. E comecei a trabalhar em escolas estaduais, na periferia da cidade.

Passei pelo processo de atribuição de aulas. Ao chegar à escola, fui atendido então por um senhor pequenininho, que me abriu o portão. Na secretaria, enquanto aguardava a diretora na antessala, escutei a conversa entre ela e a secretária: “– Tem um moço aí, ele pegou as aulas de Artes.” A diretora disse: “– Por que mandaram ele para cá?” A secretária deve ter feito algum sinal, mostrando que eu estava ali próximo. Muito sem graça, ela veio e me apresentou a escola. Em seguida, outra vez, caminhando com a secretária, ela me diz: “– Professor, fique à vontade!”

Até aquele dia, eu havia sido chamado de artista, de estudante, de “alemãozinho”, mas nada disto construiu tanto sentido quanto a palavra “professor”. Imediatamente, esta denominação me deu um lugar.

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85 OUTROS DA ARTE. OUTROS DA ESCOLA.

Antes de apresentar minhas experiências no ensino de arte para crianças, de 5 a 12 anos, em escolas estaduais de Ensino Fundamental2, localizadas na cidade de Campinas, proponho-me a descrever estas mesmas escolas, nas quais lecionei e venho ainda lecionando, com o objetivo de abordar, e assim introduzir, as reflexões e as interpretações, que serão desenvolvidas, por sua vez, mais a frente.

Nestes quatro anos, como professor de arte, acabei me tornando mais uma testemunha da realidade das escolas estaduais do que um propagador de transformações de todas as suas realidades. Apesar de não me desfazer do “sentimento social” que, de uma forma ou de outra, as escolas públicas nos impõem, o lugar que elegi para estar, nesta pesquisa e na prática docente, encontra os caminhos da arte, uma vez que estou interessado na criação e no autoconhecimento que acredito ser possível através da arte.

O sentimento social é mais um dentre os sentimentos, da indignação à inquietação, que me preocupam e me ocupam. Compreendo a hipótese de que o social responda boa parte das perguntas que venhamos a fazer sobre os motivos que levam a escola pública a não ser uma escola ideal. Entretanto, a meu ver, esta escola ideal não existe além dos livros e das teorias.

Existem, contudo, experiências isoladas, que deram certo e que foram de fato transformadoras. São estas mesmas experiências que ainda nos fazem crer na educação como um campo de possibilidades. Com certezas fugazes, no argumento social, há sempre mais especulações e debates do que um verdadeiro enfrentamento de problemas. É preciso admitir que as crenças da Educação não foram suficientes para tudo o que ela mesma prometeu cumprir. Caso assim admitisse, a responsabilidade poderia, então, retornar ao educador, dando a ele o espaço transformador que lhe pertence em sala de aula, sem redimi-lo ou transferir a culpa para outros, quase sempre invisíveis e desconhecidos. Acredito que não há a amplitude externa e coletiva do social, quando o sujeito-professor – ou o ser humano – não dá conta das questões mais essenciais de sua própria existência e de seu mundo interior. E este não é um posicionamento avesso às condições delimitadas pela miséria, tão presente em nosso país. Este é, porém, um apontamento que considero necessário, antes de apresentar os meus questionamentos.

2 Assim como não cito nomes de pessoas, decidi por não incluir nomes de instituições, pois as

experiências narradas ocorreram em mais de cinco escolas diferentes, pertencentes à Rede Estadual de Ensino de Campinas, Diretoria de Ensino Campinas Oeste.

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Estando as minhas referências localizadas na Arte, não é o repertório da história da Educação, com todos os seus educadores e teóricos, que vem ao meu encontro. Mas sim o repertório amplo de imagens, obras e criações – das artes plásticas à literatura. Paralelo a tudo, também encontro as minhas reflexões em meu processo individual de criação, com pinturas e desenhos. Em constante interlocução com o mundo interior do artista, a arte tem dimensionado o mundo interior do professor, que vai ganhando formas e um repertório próprios.

Para dar início às descrições das escolas, escolho a imagem do mar, por ser um dos símbolos que mais apareceram em meu processo criativo nestes últimos anos. Além desta imagem, escolho também a embarcação, uma vez que o navio, o barco, a balsa, e a jangada, levam-me a refletir sobre as minhas incertezas como educador e no aprendiz que ainda sou. Aprendiz que me torno no ato mesmo de interpretar e de avaliar a minha própria prática docente e artística. Eu estou aprendendo a navegar na arte, nas aulas e na escola, assim como tenho aprendido a navegar no mundo interno e no mundo externo – da superfície ao possível lugar mais profundo.

Imaginando os diferentes lugares em que me autorizei a criar e a ocupar nesta minha viagem, no mundo interno e no mundo externo: muitas vezes, eu estive na proa da embarcação, como um observador privilegiado da rota, e também nos conveses ou deques, navegando junto dos capitães, ora cumprindo ordens ora propondo mudanças pertinentes à viagem. Fui desde capitão a tripulante mais cobiçado e, quase sempre, o mais indesejado. Fui operador de máquinas, como também aquele que lançou a âncora quando não havia nada a ser feito. Combati dragões, tubarões, raias e seres desconhecidos, tornando-me até mesmo um salva-vidas. Também fui parar nos porões, onde ali me enclausuraram devido às rebeldias de meu espírito aventureiro de artista, então confundido com a alma de um pirata. Na popa da embarcação, das vezes em lá estive, perguntei-me:

Qual o verdadeiro sentido de estar na escola e não em outro lugar?

Como um colonizador, encontrei o destino desta viagem. Não com o ranço do navegante que anota os dados de sua “pesquisa de campo” ou do capitão que traz da universidade e do mundo as respostas prontas para todas as perguntas. Reconheci, e ainda reconheço, o cenário desta minha narrativa, com todos os seus autores e com todos os seu lugares, com as referências do artista. Não posso definir onde o artista começa ou onde o professor termina, embora em meu processo exista um diálogo que está mais em busca de uma negociação do que propriamente por uma definição baseada em exclusões. É o artista que se coloca, primeiramente como narrador, e é ele quem descreve, com certo despojamento, os espaços e as visões de mundo com os quais o professor se deparou. Em seguida, é o professor que busca soluções para o artista, procurando um lugar para ser e

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para agir na arte, possivelmente com uma reflexão teórica criativa e, ao mesmo tempo, sensibilizada pelas imagens criadas por seus alunos.

Observando a comunidade, tive a impressão de estar dentro das pinturas de Pieter Bruegel, o Velho, ao me lembrar das cenas de seus trabalhadores. Diferentemente dos personagens das aldeias de Bruegel, a população ao redor das escolas se compõe, em sua maioria, de trabalhadores que abandonam o lugar onde moram em busca de sobrevivência no centro da cidade e nos bairros mais ricos de Campinas. Neles não encontro, entretanto, a placidez dos retratados de Bruegel, nem mesmo algo parecido com as representações humanas da tradição europeia, que surgiram na arte depois do Renascimento. Pensando em uma possível aproximação com a arte e os rostos da população – rostos marcados por expressões de cansaço, esperança, inocência, simplicidade, restrições e por toda a sorte de mazelas que conhecemos –, encontro as pinturas de Diego Velázquez e de Caravaggio ou mesmo as gravuras expressionistas de Kathe Kollwitz. Porém, os retratos feitos por estes artistas não dizem tudo diante do que sou provocado a considerar na essência deste meu encontro.

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Continuo assim a esboçar um retrato da população, tal qual os retratos do povo brasileiro feitos por Lasar Segall, artista que se naturalizou no país. Atrás de seu cavalete, que demarca a distância de uma origem também estética, Lasar pintou muitos retratos – talvez abrindo o coração e os sentidos no confronto direto entre culturas diferentes. Confronto este que as pinturas de Almeida Júnior não compartilham, ainda que a formação do artista tenha sido predominantemente europeia. Almeida Júnior retrata, por sua vez, o brasileiro do interior, o famoso “caipira”, ainda presente na periferia de Campinas e em várias regiões do país. Caipira que convive ao lado das transgressões, visíveis nas pichações e nos “carros de som”, com suas músicas influenciadas pelos subúrbios cariocas e americanos. Este mesmo homem das pinturas de Almeida Júnior ainda se reúne nas calçadas, nos bares, mantém suas fofocas e intrigas em dia, ajuda o vizinho naquilo que for preciso, conta causos e fala sobre a vida...

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Comparando – ou estetizando? – vou criando desenhos dos lugares, dos rostos, com o objetivo, talvez, de não perder o artista e, desta maneira, provocar o professor a pensar sempre através da arte e da poesia. Com a arte aprendo a ver melhor, questionando o que sinto e o que presencio.

Como fui aluno de escolas estaduais, este retorno levou-me a reencontrar um passado e a revisitar uma “família inteira”, no sentido mesmo de uma expiação, caracterizada pelo pressentimento do risco de um esfacelamento, como se eu portasse um “segredo” descoberto longe das sombras e das ilusões projetadas nas lousas de uma educação tradicional. Fui encarado com estranheza e desconfiança, não sem razão, embora a estranheza fosse da mesma curiosidade provocada pelo desconhecido. Desconhecido que, acima de tudo, constrói perguntas: “Quem é este outro que está aqui? O que ele quer? Por que mandaram ele pra cá?” Frente a estas dúvidas, elaboro uma pergunta:

O que seria a arte senão um encontro com um outro desconhecido?

Como um estranho ou como um pirata saído dos porões, fui assim ensinando – pretensamente? – o princípio da arte. Ou me tornando um espelho propício ao autoconhecimento e acontecimento do outro?

No conjunto de expiações e de imagens, entre memórias, lembranças e embates com minha própria origem, com os seus fantasmas, sombras e personagens, muitas vezes reais e fictícios, compreendi que qualquer erro significaria a morte e a aniquilação completa de algo ainda em construção: Uma ideia sobre mim mesmo? Uma intelectualidade forjada em um país em que não se pode ler, não se pode fazer arte, não se pode ter cultura, em que não se pode conhecer além do conhecido e dos territórios padronizados de reconhecimento do outro?

De onde viria autorização para tanto, senão dentro da própria escola?

Neste cenário, as velhas pedagogas voltaram a reinar e a rondar. Não somente uma, mas várias, no mesmo espaço de tempo e no mesmo cenário de confabulações e de fantasias...

Sinto que devo fazer um relato do outro, em vez de descrever os espaços, a estrutura e a organização das escolas, contando destes outros imaginários. Outros que definem uma origem e um presente atual. Relato em que a origem e o presente não estancam a busca, nem mesmo retomam exatamente o passado.

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Lucian Freud

Reflexão (Autorretrato) Óleo sobre tela, 56,2x 51,2 cm, 1985

Caberia aqui um retrato com a mesma paixão das pinturas de Lucian Freud ou com a mesma visão ingênua das pinturas de Henri Rousseau? Andando com estes pares da Arte, penso em uma fala3 do também pintor Francis Bacon, que trago aqui de memória: “É mais fácil falar da pessoa do que falar da obra. A pessoa é o que é, mas pode mudar, enquanto a obra nunca vai mudar.” Discordo do artista, uma vez que a obra de uma pessoa caminha junto do que ela é. Inocência é acharmos que o sujeito que faz a obra será diferente dela. Pra pior ou pra melhor. Nós somos o que fazemos de nossas vidas, como somos aquilo que o trabalho nos representa.

Refletindo sobre a união da teoria com a prática, em que a criação surge como fundamento de fazeres distintos, vou ao encontro das pessoas da escola, com a esperança de que o trabalho – a prática, a teoria, a criação – encontre um foco no mundo interior. Desejo este que se estende a mim, pois no despojamento que significou esta minha viagem às escolas estaduais, não passei incólume a estas equações dos relacionamentos com o outro.

Neste meu retrato, portanto, é impossível precisar uma característica, geral e única, ainda que eu analise todos os sujeitos, compondo um empasto de vernizes em diferentes camadas. Há mais coisas que nos atravessam. Uma vez que estamos sintonizados com o mundo interior, sabemos que há uma distância daquilo que somos e

3 Refiro-me a um trecho do livro Entrevistas com Francis Bacon, publicado pela primeira vez em 1975, que

conta com nove entrevistas cedidas ao crítico de arte David Sylvester, entre 1962 e 1986, em que há um relato praticamente completo do processo de criação de Francis Bacon. As entrevistas abrangem dados biográficos do artista, além de serem testemunhos das transformações que ocorreram na arte no século XX.

Henri Rousseau

Eu mesmo, retrato, paisagem Óleo sobre tela,

143x110 cm, 1890

Henri Rousseau

Eu mesmo, retrato, paisagem Óleo sobre tela,

143x110 cm, 1890 Henri Rousseau

Eu mesmo, retrato, paisagem Óleo sobre tela, 143x110 cm, 1890

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daquilo que o outro é. Nas miragens, nas ficções, nos horizontes nublados, vislumbro contornos... rarefeitos e desfeitos... traçados e negligenciados...

Em “Psicologia e Alquimia”, Carl G. Jung afirma:

“O trabalho analítico conduzirá mais cedo ou mais tarde ao confronto inevitável entre o eu e o tu, e o tu e o eu, muito além de qualquer pretexto humano; assim pois é provável e mesmo necessário que tanto o paciente quanto o médico sintam o problema na própria pele. Ninguém mexe com fogo ou veneno sem ser atingido em algum ponto vulnerável; assim, o verdadeiro médico não é aquele fica ao lado, mas sim dentro do processo.”4

Entre o veneno, o fogo, o lodo e os lastros de uma origem – no diálogo em que me situo nesta afirmação de Jung –, deixo-me ser tocado pela jovem professora, ainda com cheiro de alho nas mãos, pela professora de sotaque politizado das ciências sociais, pela professora em estado de meditação profunda, pela professora religiosa, que guarda um fervor aceso atrás de seus óculos de menina séria, pela montanha-mulher histérica, pela professora que revela com suas piadas uma dor dilacerada, pela professora mãe-dedicada, pela professora bem-vindo-ao-jardim-de-infância, pela professora de voz doce terminantemente azeda, pela psicopedagoga repetindo as palavras dos livros e dos teóricos...

No canto da sala, bom-moço e bonzinho, um flamingo alemão, paralisado e silenciado... É o professor de arte, que começa a criar:

O que ela pensa? O que ela sente? O que ela vive?

4 JUNG, Carl G. Jung. Psicologia e Alquimia. Traduzido por Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro:

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93 ENCONTRO COM A DOCÊNCIA

Destes encontros na escola e na arte, estabeleço reflexões através de alguns relatos de aulas, selecionadas como importantes no contexto de meu ensino de arte e de minhas experiências em escolas da Rede Estadual de Ensino de Campinas, nas quais tenho lecionado desde 2010, para alunos de 5 a 12 anos, em turmas de 1º a 5º anos do Ensino Fundamental.

Buscando as primeiras ideias que encenaram o meu universo de preocupações na docência, revisito, entretanto, os meus primeiros dias na escola, por acreditar que a origem de um trabalho apresenta as intenções suficientes para até mesmo defini-lo em seus desenvolvimentos.

Por não saber como seriam as crianças, de que forma elas reagiriam ou se elas de fato me acolheriam como professor, ou ainda como aconteceriam as nossas aulas, julgo que o início da docência foi um momento primário. Havia mais perguntas do que roteiros traçados. Um “teatro” sem os diálogos decorados, com nenhum texto pronto das personagens, menos ainda passos demarcados no “palco” da sala de aula. Apesar das incertezas, comuns a qualquer iniciante, alguns esboços de minha futura prática docente puderam se formar, e se encontrar, com as aulas de licenciatura, que ocorreram em 2007, na Faculdade de Educação, na UNICAMP, então ministradas pelas professoras Dra. Ana Angélica Albano e Dra. Simone Cristiane Silveira Cintra5.

Em artigo relacionado, especificamente a estas aulas, as autoras afirmam:

“Alunos que se preparam para suas primeiras experiências docentes encontram-se, também, às voltas com os conhecimentos que foram e estão sendo apreendidos em diálogo, e em conflito, com a ação educativa a ser construída e colocada em prática. Encontram-se, portanto, na eminência de se tornarem professores e ávidos por subsídios que os auxiliem na conquista dessa tarefa.”6

5 As aulas de estágio estavam sob a supervisão da professora Dra Ana Angélica Albano, com

acompanhamento da professora PED Dra Simone Cristiane Silveira. Além das aulas de licenciatura, também desenvolvemos com a Dra Simone Cintra vivências em teatro, tendo sido este construído a partir de nossas narrativas e memórias pessoais.

6 CINTRA, Simone C. S.; ALBANO, Ana Angélica. Memórias de Artistas e de Futuros Professores de

Arte: Um diálogo pertinente?. In: Congresso Ibero Americano de Educação Artística: Sentidos Transibéricos, 2008, Beja. Actas do Congresso Ibero Americano de Educação Artística: Sentidos Transibéricos. Porto: Associação Professores Expressão e Comunicação Visual., 2008. v. 1. p. 1-11.

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Diferentemente da maturidade de um professor experiente, eu criaria algo sem um conhecimento estabelecido na prática. Em situações como estas, o professor é guiado por suas vivências anteriores, por suas ideias do que possa vir a ser uma aula de arte e, principalmente, do que seja uma criança. Em meu caso, não havia experiências em sala de aula com crianças, que pudessem proporcionar um caminho, uma vez que eu nem mesmo conhecia o trabalho de outro professor em sala de aula. Havia, porém, a minha própria infância e as minhas memórias da escola, que eram o único referencial a indicar um possível fazer docente, , juntamente com os aprendizados de minha formação, vivenciados no curso de artes plásticas no Instituto de Artes e nas aulas de licenciatura, com os estágios de observação e de supervisão.

Orientados pela professora Dra. Ana Angélica Albano, os estágios de licenciatura pontuavam, por sua vez, a importância de não reproduzirmos as práticas vividas enquanto estudantes, passando a questioná-las em busca de um fundamento. Fundamento este que, em nossas aulas, propunha uma futura ação docente subsidiada, especialmente, por nosso próprio processo de criação em arte e por nossas memórias:

“(...) o trabalho com a memória, mais especificamente, a rememoração de experiências vividas como estudantes em diferentes níveis de escolarização, aparece como uma forma de subsidiar uma prática reflexiva e pessoal, pautada em experiências reais – individuais ou coletivas. Experiências, talvez, esquecidas em meio a tantas outras, mas que retornam com força impulsionadas pelo ato de rememorar em consonância com a necessidade de construir algo novo e importante, algo de muita responsabilidade, que amedronta ao mesmo tempo em que os coloca em movimento, os faz refletir, fazer escolhas, reafirmar convicções e procurar maneiras de dar forma a elas.”7

No processo de rememoração presente nas aulas, explicitado acima pelas autoras, cada aluno era chamado a falar das memórias de sua vida escolar, ao mesmo tempo em que eram trazidas dúvidas, questionamentos e relatos de seus próprios estágios8. Uma vez que o meu processo de criação estava focado na construção de um trabalho autobiográfico, a rememoração presente nas aulas veio ao encontro de meus esforços em unir as minhas histórias e minhas lembranças em meus desenhos. Portanto, ao iniciar a docência, estes aprendizados foram reestabelecidos e entretecidos pelo sentido também autobiográfico de meu processo de criação.

7 Idem.

8 Os meus estágios foram realizados no Museu de Arte de São Paulo – MASP e em oficina de ateliê criada

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Em seguida, desenvolvo algumas ideias gerais sobre o tema da autobiografia presente nas obras dos artistas, mostrando como os seus trabalhos me influenciaram e como se originou o meu processo de criação, que pôde então fundamentar e subsidiar o meu caminho docente.

ENCONTRO COM A CRIAÇÃO: O AUTOBIOGRÁFICO COMO TEMA

Apenas podemos falar daquilo que vivemos. Estou pensando na união de uma ação com uma teoria. Quando a teoria não corresponde à prática ou quando a prática não corresponde à teoria, creio que não há uma totalidade das intenções. Desta maneira, ao retomar o meu processo na arte, faço-me perguntas: Como falar de um processo de criação quando este mesmo processo encontra-se disperso em vários desenhos e pinturas, espalhados, por sua vez, em diferentes cadernos, pastas de arquivo e caixas? Como encontrar algo, entre trabalhos reunidos e perdidos, que possa me caracterizar como artista? Como o meu processo de criação não foi feito de caminhos lineares, mas sim de caminhos serpenteados e curvos, tentar definir a minha ação na arte não deixa de ser uma avaliação de meu próprio percurso, tirando-o assim do lugar da teoria.

Durante o curso de artes plásticas no Instituto de Artes da UNICAMP, ao mesmo tempo em que estávamos preocupados em criar um trabalho pessoal, havia também uma preocupação com a aquisição do próprio repertório de conhecimentos da Arte. O início de meu processo criativo foi então marcado por encontros com muitos artistas, conceitos, teorias, ideias e preceitos artísticos, assim como por encontros com diferentes linguagens, procedimentos e suportes. Acredito, no entanto, que a lembrança mais forte de meu processo de criação foi a busca por um tema e por um gesto pessoal.

Se pensarmos que o tema da obra de um artista é o sentido de sua própria existência, eu iniciei no curso de artes plásticas uma busca por um sentido de vida. Sentido este que dialogava com o sentido encontrado pelos artistas em suas obras. Quando me interrogava, fazendo perguntas do tipo: “Sobre o que vou falar? Qual a mensagem de meus desenhos e de minhas pinturas? Sobre o que estou tratando?”, consequentemente eu me questionava: “Qual é o meu gesto? Qual é a minha voz? Qual é o meu tema? Quem sou eu?”

Desta maneira, o curso de arte me permitiu abrir as portas de uma jornada individual de autoconhecimento. Ao rever os meus cadernos, mais de setenta em minha estante, percebo a entrega pessoal que significou estar na Universidade e o significado de

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minha procura por uma intenção na arte. Eu escrevia e desenhava obsessivamente, tentando me compreender e compreender os outros, para, desta forma, compreender o mundo. A melhor imagem que representa este período de busca e que mostra, por sua vez, o meu modo de fazer e criar é o processo de criação de Alberto Giacometti e Iberê Camargo, artistas que, também obsessivos, pintavam e apagavam, reparavam, reconstruíam e pintavam outra vez... É como se, ao ver as suas pinturas, lembrando-me deste passado e me localizando no presente, uma voz distante me dissesse: “Não sei ao certo qual é a imagem que tenho buscado, mas sinto que ela está lá, em algum lugar... à espera.”

Em minha primeira aula de pintura com o professor Tuneu, ele disse: “Comece pelo início!” Comecei então desenhando tudo e qualquer coisa que encontrava pelo caminho, desde objetos, paisagens a retratos de colegas de turma. Entre nós estudantes, como a grande maioria não conhece arte quando ingressa na universidade, o espanto geral com as linguagens “diferentes” nos levava a comparar a arte acadêmica com “tudo” o que veio depois dela. Eram poucos alunos, entretanto, que conseguiam atravessar a ideia da representação para de fato passarem a questionar a natureza de um desenho e de uma pintura, acima dos ideais criados pelo Renascimento. Nunca me senti exatamente confortável nesta posição, que definia as obras de um jeito muito técnico, ora como bonitas ora como feias. Eu queria entender os porquês que situavam as obras modernas e contemporâneas como arte, ainda que a representação de imagens fosse para mim uma exigência importante para a construção de um desenho.

Os artistas Alberto Giacometti e Iberê Camargo pintando no ateliê. A criação das pinturas exigia o apagamento das imagens e uma posterior reconstrução. Processo lento e demorado, feito de muitas camadas.

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Através de biografias e de entrevistas, o próprio testemunho dos artistas foi me ensinando arte. A minha relação com eles era estreita e imediata. Da mesma maneira como lia tudo sobre Van Gogh, eu lia também tudo sobre Francis Bacon. Eu pressentia algo muito poderoso, muito potente, que dava contornos às pinturas. Olhando os seus trabalhos, eu ia percorrendo a tela, até me dar conta de que toda aquela coisa era uma organização tão emocional quanto racional. Discussão esta que comecei a travar em meus trabalhos. Ao desenhar ou pintar, eu sentia que algo escapava de meu controle e acabava caindo no apagamento total da imagem9.

9 Estas imagens de meu processo pessoal não existem mais. Algumas se perderam com o passar dos anos,

outras foram destruídas no processo mesmo de criação.

Durante aula de pintura, no ateliê dos alunos de artes visuais.

Instituto de Artes, UNICAMP, 2004

Vincent Van Gogh Pintor na estrada para Tarascon, 1888 Óleo sobre tela, 48 x 44 cm

Francis Bacon

Estudo para retrato de Van Gogh, 1957 Óleo s/tela.

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Entretanto, fui compreender uma qualidade gestual diante da pintura quando estive em uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, em 2003. Eu conheci alguns trabalhos representativos da obra de José Leonilson. Assim como as pinturas de Leda Catunda, Ciro Cozzolino e Sérgio Romagnolo, importantes artistas da chamada Geração 80, as pinturas de Leonilson, expostas na ocasião da mostra, apresentavam o mesmo colorido, a mesma alegria e o retorno ao figurativo, características pelas quais o grupo de jovens artistas acabou ficando conhecido. Associados pela mídia aos ideais do movimento da Transvanguarda Italiana, teorizada pelo crítico Achille Bonito Oliva, e incentivados pelo crítico brasileiro Fernando Moraes, as obras destes artistas se contrapunham e dialogavam com a arte conceitual existente no país desde o neoconcretismo. No entanto, o que distinguiu Leonilson de outros de seu grupo não foi tanto a pintura mas as obras criadas nos últimos anos de sua vida, que demarcavam, por sua vez, uma visível divisão no conjunto de suas obras na exposição do MAM.

Realizadas sobre grandes lonas sem chassis e isentas de quaisquer cuidados com a forma e com o suporte, as pinturas coloridas se diferenciavam dos bordados e dos desenhos, que passaram a explorar o vazio da composição, tornando os trabalhos menos gratuitos e mais introspectivos. O mesmo vazio, por sua vez, sugeria a lembrança das imagens e o silêncio causado pela falta delas. Combinando o espaço vazio com a escrita, Leonilson dava às palavras uma sonoridade gráfica. Recurso que já aparecia nas pinturas, não com a mesma potência presente nos bordados, que abriram uma fissura dentro de sua obra. Ao conhecer estes trabalhos do artista, as figuras e as representações estavam começando a desaparecer de meus desenhos. De uma forma muito intuitiva, a escrita de

Pintura de Leonilson Rios de palavras, 1987 Acrílica s/ lona 196 x 103 cm

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Leonilson me permitiu encará-la como uma possibilidade narrativa ou mesmo como um elemento organizador.

Mais tarde, reencontrei-me com Leonilson em “São tantas as verdades”, livro com ensaios sobre sua produção plástica e com entrevistas realizadas um pouco antes de sua morte, em 1993. Desta vez, chamou-me atenção o testemunho do artista, que contextualizava o processo de criação de cada obra com acontecimentos de sua vida pessoal. Acometido pela Aids, Leonilson explicava a mudança de suportes, das lonas aos tecidos, e a mudança de atitudes frente às criações, devido, principalmente, à debilidade causada pela doença10. A partir desta interpretação, constatei o sentido de uma intenção poética enraizada na vida de um artista, em que as soluções plásticas e os materiais da obra, além do tema, eram definidos por sua biografia. Compreendi que a resposta que eu vinha procurando em meus desenhos tratava-se desta mesma união da vida com a arte, por meio da qual eu poderia contar as minhas próprias histórias. Histórias que as memórias seriam capazes de abranger, fazendo dos desenhos uma crônica ou mesmo um diário íntimo.

10 Conceito elaborado e compartilhado pela crítica de arte Lisette Lagnado, que fez as entrevistas com o

artista e escreveu a maioria dos ensaios de “São tantas as verdades”. Leonilson

Para quem comprou a verdade, 1991. Bordado s/ voile 39 x 35 cm Leonilson El Puerto, 1992. Bordado s/ tecido s/ espelho 28 x 18 cm

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Ao considerar a escrita e a narrativa autobiográfica como lugares de intenção em meu processo de criação, comecei a procurar artistas que faziam semelhante união entre vida e arte, identificando neles, primeiramente, a presença da escrita. Embora a escrita não tenha sido um elemento expressivo de igual importância no contexto das questões debatidas pela arte, encontrei artistas tão pontuais e poéticos quanto Leonilson. Descobri possíveis interlocuções nas frases inscritas nas pinturas de Frida Kahlo, na cosmologia dos bordados de Arthur Bispo do Rosário, bem como nas gestualidades de Cy Twombly e Basquiat, e, muito tempo depois, nas fotografias de Duane Michals. Todos eles artistas que usaram a escrita, compondo uma relação com as imagens, como se fosse um fluxo de consciência de um diálogo interior.

Página de diário e caderno de desenho pessoal. O Vulcão Acorda, guache s/papel, 2003. Momento em que a escrita começou a surgir em meus desenhos.

Diário de Louise Bourgeois. Sem título e sem data.

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