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O bilinguismo e a problemática da diglossia no processo de letramento: o caso de Cabo Verde e suas diásporas

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Academic year: 2021

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O BILINGUISMO E A PROBLEMÁTICA DA

DIGLOSSIA NO PROCESSO DE LETRAMENTO: O

CASO DE CABO VERDE E SUAS DIÁSPORAS

Francisco João Lopes Universidade de São Paulo

lopesf77@yahoo.com

Abstract: Immediately after World War II, international organizations were created to deal with international problems. At its inception, UNESCO was confronted with the astonishing reality that more than half of the world’s population was illiterate. Campaigns were established worldwide to fight against this issue of social inequality. At first, most attention was given to equipping people with the capacity to read and write, but later on, it was noticed that this alone could not enable people to become socially integrated. Therefore, a new concept of literacy was established and new programs outlined. In the case of the Cape Verde Islands, the problem of illiteracy was resolved only recently, with relevant campaigns launched only after the country’s independence in 1975. Having solved the problem of illiteracy in the sense of enabling people to read and write, now Cape Verde has a new challenge posed by the urgent need to make its population literate in the sense of the actual concept of literacy, or even biliteracy. Cape Verde has the potential to be a bilingual country, but its sociolinguistic condition of diglossia is an obstacle that needs to be transposed before it can achieve the desirable and recommended state of biliteracy. In its aim to achieve this, Cape Verde is making use of the experience and support of Portugal and the United States of America, where programs to teach Cape Verdean language already exist within the formal education systems of those countries, as part of a bilingual program. Keywords: literacy, biliteracy, diglossia.

Introdução

O Século XXI trouxe muitas promessas e expectativas para um mundo globalizado ou em vias de globalização. No limiar deste Século (Setembro de

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2000), a Organização das Nações Unidas numa reunião com os 191 líderes dos Estados-Membros delineou metas do milênio a serem alcançadas no ano 2015. Uma das metas visa à educação básica de qualidade para todos até o ano 2015, isto é, lutar contra a problemática do analfabetismo. Cabo Verde aceitou este desafio e no relatório da ODM (ONU Cabo Verde) de 2008 foi anunciado que Cabo Verde já atingiu as metas do milênio no que tange a educação. Só que tem sido observado que a alfabetização por si só, isto é, a mera capacidade de ler e escrever, não tem sido produtiva em termos de capacitar cidadãos para uma integração social eficiente. Em face de tal situa-ção, foi cunhado o conceito de letramento e novos programas e metas foram estabelecidas.

Tendo combatido a problemática da alfabetização, pelo que indicam os relatórios, Cabo Verde agora tem um novo desafio que é comum dos países de desenvolvimento médio – Cabo Verde obteve este estatuto junto da ONU em 2007 (Africanidade, 2008). Este novo desafio consiste em buscar atingir o letramento de seus cidadãos de forma individual, objetivando um letramento coletivo. Devido à conjuntura sociolinguística de Cabo Verde, é impossível abordar a questão de letramento, sem considerá-lo no seu sentido duplo ou pluralístico. Cabo Verde tem grandes potencialidades para ser um país bilíngue no sentido funcional e na modalidade socialmente prestigiosa de bilinguismo. Mas o que se constata é um bilinguismo disfuncional, denominado de diglossia e que se coloca como um grande obstáculo à aquisição do letramento segun-do os moldes recomendasegun-dos pela UNESCO. Para resolver este impasse rumo ao letramento, é necessário a introdução da língua caboverdiana no ensino formal. Para isso, Cabo Verde pode e deve buscar parcerias com os EUA e Portugal que já dispõem do ensino formal da língua caboverdiana nas escolas como promoção de um bilinguismo funcional e socialmente integrante junto das comunidades caboverdianas radicada no seio das comunidades destes dois países.

Letramento

O conceito de letramento adotado neste artigo é aquele que o concebe como um processo que vai além do processo da mera alfabetização, isto é, a mera capacidade de ler e escrever. As bases para a conceituação do termo letramento, tal como adotado neste artigo, foram lançadas no período logo após a segunda guerra mundial. Os governos estavam tão ocupados com outras questões, que o conceito de letramento estava bem longe de ser uma das suas preocupações imediatas nem a da maioria dos educadores (UNESCO, 2003). Em 1948, escrevia o Vice Diretor Geral para a Edu-cação da UNESCO, C.E Beeby: Não me lembro de ter feito, antes de 1945, uma única referência ao fato de que metade do mundo era analfabeta.

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Duvido mesmo que o sabia.1 (UNESCO, 2003). Assim coube à

recém-cria-da organização, UNESCO, o pioneirismo no domínio recém-cria-da promoção de letramento a nível mundial. Só que nessa fase inicial:

[...] letramento era visto predominantemente como as habilida-des de leitura, escrita e aritmética [...] fomentar o letramento era uma questão de capacitar os indivíduos a adquirir as habili-dades de codificação e decodificação de linguagem na forma escrita. 2 (UNESCO, 2003: 8-9).

Na década de 1970, sob a influência dos trabalhos e ideias propagadas pelo pedagogo Brasileiro, Paulo Freire, nasceria um novo conceito de letramento, e que seria adotado pela UNESCO. Assim letramento passaria a ser ver visto como um processo educacional capaz de ensinar as pessoas a perguntar por que as coisas são como são e a serem capazes de mudá-las de forma autônoma (UNESCO, 2003: 9). Já na década de 1960 tinha sido in-troduzidos os conceitos de ‘functional literacy’ e ‘functional illiteracy’ 3 que

se tornariam mundialmente reconhecidos graças às recomendações da UNESCO (UNESCO, 1997: 122). É esperado de um alfabetizado funcional o ser capaz de se envolver em todas as atividades em que o letramento é exigido. Pelo que o termo letramento recebe novos conceitos:

Letramento é muito mais do que ler e escrever - é sobre como nós nos comunicamos na sociedade. É sobre as práticas e rela-ções sociais, sobre o conhecimento, a linguagem e a cultura.4

(Palavras do Prefácio pelo Diretor Geral da UNESCO -UNESCO, 2003).

Letramento não implica apenas a capacidade de lembrar frases, palavras e sílabas, fora de contexto, as coisas mortas ou meio mortas, mas sim ter atitudes criativas e recriadoras. Ele implica a autoaprendizagem que possa levar o indivíduo a intervir em seu próprio ambiente. 5 (Freire, Paulo apud UNESCO, 1997:

121).

1 Tradução minha.

2 Tradução minha.

3 O que pode ser denominado de ‘analfabeto funcional’ na língua portuguesa.

4 Tradução minha.

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Letramento é a capacidade de ler e escrever, com compreensão, uma declaração simples relacionada à vida diária de quem a lê. Trata-se de um continuum de leitura e escrita, e muitas vezes inclui também as habilidades básicas de aritmética (matemáti-ca).6 (UNESCO, 2004: 12-13)

Foi necessário este novo foco para a questão de letramento porque foi constado que nos países do primeiro mundo, [...] a população, embora alfa-betizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que envolvem a língua escrita. (Soares, 2004: 2).

Assim nasce na França o conceito de illettrisme (Lahire, 1999) e literacy/ illiteracy (Kirsch & Jungeblut, 1986) nos Estados Unidos da América para descrever fenômenos idênticos: pessoas alfabetizadas, isto é capazes de ler e escrever, mas não tendo o domínio da escrita e leitura necessário para práti-cas sociais ou profissionais que as requerem. Já no Brasil, segundo Magda Soares, reina uma confusão entre alfabetização e letramento. Os dois se mes-clam levando á prevalência do conceito de letramento e muitas vezes até pre-judicando o processo de alfabetização a ponto de dizer que acontece a “desinvenção da alfabetização” (Soares, 2004: 4).

Retomando o conceito emergente de illettrisme, este foi cunhado para categorizar um grupo especial denominado de Quarto Mundo.

A expressão Quarto Mundo designa a parte da população, nos países do Primeiro Mundo, mais desfavorecida. A expressão é usada também para nomear os países menos avançados, entre os países em desenvolvimento. (Soares, 2004: 6).

Nesta ótica, Cabo Verde, objeto do nosso estudo, se enquadra perfei-tamente no chamado quarto mundo. Em Dezembro de 2007, 32 anos após sua independência, e após três anos de teste através da resolução da Assembleia Geral da ONU 59/209, Cabo Verde passou a fazer parte dos países de desen-volvimento médio (Africanidade, 02- de Janeiro de 2008). Outra conquista: Segundo o Relatório ODM (ONU Cabo Verde, 2009), Cabo Verde já atingiu a meta do milênio no que diz respeito á educação – a taxa líquida média de escolarização se encontra em torno de 91,7%. Mas vale a pena realçar que a meta alcançada diz respeito à Proporção de crianças em idade escolar come-çando o primeiro ano de estudo no ensino primário e terminando o sexto e Taxa de alfabetização dos 15 a 24 anos (op. cit.: 17). Tal como já foi elucidado neste artigo, letramento vai além da mera alfabetização. Pelo que a atual

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juntura de Cabo Verde é propícia para abordar a questão do letramento no contexto de quarto mundo e considerando sua situação sociolinguística – potencialmente um país bilíngue.

Um foco crescente sobre as práticas de letramento, sobre os usos do letramento e os contextos da sua aquisição levou ao reconhe-cimento de que o letramento serve a propósitos múltiplos e é ad-quirido de várias maneiras. Assim, o letramento passou a ser visto não como um conceito único, mas como letramentos no plural: nas práticas de letramento individual e da comunidade, o letramento faz uso da sua natureza pluralística: burocrática, reli-giosa, pessoal, cultural, na língua materna ou língua oficial ad-quirida na escola ou fora da escola. 7 (UNESCO, 2003: 12).

Foi neste contexto que a ONU lançou a década do letramento (2003-2012) e em que emergiram os termos biliteracy (Hornberger, (ed) 2003) e Plurality of Literacy (UNESCO, 2004)8. Segundo UNESCO (2003: 12) o

termo biliteracy foi moldado a partir do conceito de bilinguismo, que implica o use de diferentes línguas na comunicação escrita tal como são usadas na oralidade. Tudo isso aponta mais uma vez para o momento propício para abordar a questão de letramento no contexto caboverdiano; como uma co-munidade supostamente bilíngue ou com grandes potencialidades para ser uma comunidade funcionalmente bilíngue. Pelo que isso nos remete à análise do conceito de bilinguismo e como este se insere num contexto sociolinguístico como o de Cabo Verde.

Bilinguismo

Segundo Romaine (1995: 11), o espectro das definições de bilinguis-mo chega a dois extrebilinguis-mos: a de Bloomfield (1933: 56 apud Romaine, 1995: 11) que define o bilinguismo como a fluência, que um indivíduo possui em duas línguas, igual à de um falante nativo, isto é, o bilíngue deve dominar duas línguas como se ambas fossem sua língua materna; já Haugen (1953: 7 apud Romaine, 1995: 11) aponta para o outro extremo - bilinguismo começa quando o falante é capaz de produzir enunciados inteligíveis numa outra

lín-7 Tradução minha (grifos acrescentados).

8 Foram usados os termos Biliteracy e Plurality of Literacy sem tradução devido à dificuldade em traduzir os mesmo para a língua portuguesa mantendo o sentido original. Biliteracy implica o letramento em duas línguas e Plurality of Literacy pode ser literalmente traduzido como pluralismo de letramento.

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gua. Uma pessoa pode não ter o controle produtivo numa língua, mas mesmo assim ser capaz de entender os enunciados produzidos nela. Pelo que os linguistas usam termos como bilinguismo passivo ou receptivo ou ainda semibilinguismo para descrever situações como estas (Romaine, 1995: 11). Mackeu (1967: 555 apud Romaine, 1995:12) sugere que para abordar a questão do bilinguis-mo é necessário considerar quatro questões fundamentais: grau – o que tem a ver com a proficiência linguística que o falante tem de cada uma das línguas; função – diz respeito ao uso que o falante faz de cada uma das línguas e os papeis que estas desempenham no seu repertório geral; alternância – se refere à frequência com que um falante alterna de uma língua para outra; interferên-cia – referente à capacidade de um falante em manter as duas línguas separa-das uma da outra ou na forma como estas se amalgamam.

Por muito tempo prevaleceu a ideia errônea de que o bilinguismo seria um fenômeno prejudicial tanto a nível psicológico bem como a nível social. Mas fatos atuais apontam para o contrário:

Países como o Luxemburgo, Noruega, Suíça, Bélgica, Canadá e Cingapura estão como lembretes convincentes de que as socie-dades bilíngues não precisam ser mais instáveis ou desfavorecidas do que os monolíngues. Pelo contrário, o número de bilíngues e poliglotas que um país produz, pode ser visto como um indica-dor de seu nível educacional, competitividade econômica e da vibração cultural. Claramente, o bilinguismo pode ser uma con-dição a ser aspirada e acarinhada, ao invés de ser evitada ou remediada.9 (Dewaele, Housen & Wei, 2003: 2).

Ao aplicar os conceitos de bilinguismo, acima descritos, à realidade caboverdiana, é possível a constatação de todos os casos de bilinguismo elucidados. Mas isto só pode ser verdade, quando a questão em pauta é aque-la denominada de bilinguismo individual. Mas ao considerar o que é denomi-nado de bilinguismo social ou coletivo, a situação sociolinguística de Cabo Verde se enquadra perfeitamente naquilo que é denominado de diglossia.

Diglossia

O termo diglossia tal como o conhecemos hoje, teve sua origem em Francês; o termo “diglossie” é uma transliteração do termo Grego diglwssi/a (diglôssia), que significa “bilinguismo”. Para os fins pretendidos por este artigo, adotamos a definição clássica de diglossia - a de Ferguson:

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Diglossia é uma situação relativamente estável da língua, em que, além dos dialetos primários da língua (que podem incluir um pa-drão ou padrões regionais), há um muito divergente, altamente codificada (frequentemente gramaticalmente mais complexa) va-riedade superposta, o veículo de um grande e respeitado corpo de literatura escrita, quer de um período anterior ou em outra co-munidade de fala, o que é aprendido em grande parte pela edu-cação formal e é usado para a maior parte dos fins escritos, formais e falado, mas não é usado por nenhum segmento da comunidade para uma conversa normal” (Ferguson, 1959: 435).10

Partindo dos estudos clássicos de Ferguson (1959) sobre a diglossia, Schiffman (1997), escreve sobre as variáveis e questões importantes da diglossia: No que diz respeito à função, a diglossia se diferencie do bilinguismo - no caso de diglossia, as duas línguas são usadas em situações e contextos diferentes; os nativos de uma comunidade onde se registra uma situação de diglossia achariam impróprio, ou até mesmo grotesco e escandaloso, o uso de uma das línguas num domínio em que se espera o uso da outra; em termos de prestígio, a língua L (“Low” em Inglês indicando baixo prestígio social) é considerada corrupta, vulgar, indigna e sem gramática; no que diz respeito ao uso literário, a literatura é produzida na sua totalidade na língua H (High em Inglês indicando alto prestígio social). Quanto à aquisição, a língua L é normalmente a língua materna, é a língua do dia-a-dia. Já a língua H é zadquirida 11 por intermédio do sistema educacional. Quanto á padronização,

normalmente a língua H é altamente padronizada; possui gramáticas, dicionários e textos canônicos. Já a língua L é estudada na maioria das vezes por pessoas de fora (estrangeiros), e recursos normativos são escassos ou mesmo inexistentes. Cabe ainda realçar que a situação de diglossia é diferente da situação vivenciada entre os dialetos de uma mesma língua. No caso de diglossia a língua materna é sempre a língua L, enquanto que em situações de diferença dialetal de uma mesma língua, existem alguns que têm a variante padrão como língua materna (Schiffman, 1997).

10 Tradução minha. Ferguson usou o termo dialeto, mas no caso de Cabo Verde, não se trata de dois dialetos, mas sim, de duas línguas diferentes uma da outra. 11 Schffiman (1997) usa o termo inglês “zacquired” neste artigo traduzido como

“zadquirida” para demonstrar o processo irregular de aquisição da língua H. Esta não é a língua materna dos nativos e é adquirida através de um processo que o autor entende como sendo em forma de “zic- zac”, isto é, não é natural nem li-near como a aquisição da língua L – língua materna.

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A Realidade Sociolinguística Caboverdiana

Cabo Verde tem grandes potencialidades para ser um país bilíngue nos moldes desejados e a ponto de encarar o bilinguismo como uma condição a ser aspirada e acarinhada, ao invés de ser evitada ou remediada. Mas a situa-ção sociolinguística caboverdiana, mesmo após 35 anos da sua independên-cia continua sendo a de pura diglossia. As descrições de diglossia de Ferguson e Schiffman se aplicam na integra à situação sociolinguística caboverdiana. Como já foi mencionado, Cabo Verde recebeu recentemente o estatuto de país em vias de desenvolvimento e já alcançou as metas do milênio quanto à educação. Mas sendo diglossia a situação sociolinguística prevalecente, esta se coloca como um grande obstáculo a ser combatido a fim de alcançar o tão almejado e recomendável nível de letramento coletivo e individual. Na reali-dade já existe o bilinguismo, mas não da forma mais apropriada ou social-mente prestigiosa. O linguista caboverdiano, Manuel Veiga, um dos grandes promotores da oficialização da língua caboverdiana, indica o caminho ideal neste caso:

O combate linguístico deve ser contra a diglossia [...] restituir a dignidade e prestígio ao CCV, através da escrita, do ensino, do uso em situações formais e informais de comunicação, numa palavra, através de sua oficialização (Veiga, 2004: 38).12

A diglossia precisa ser combatida e a língua caboverdiana precisa en-trar para o ensino formal em Cabo Verde, pois, só assim pode-se afirmar que Cabo Verde está caminhando rumo ao letramento. Sem isso, o conceito de letramento, tal como adotado neste artigo, fica comprometido, pois,

[...] cada palavra, cada construção sintática, cada ritmo tem uma função específica que a tradução numa outra língua não era capaz de significar. [...] o crioulo é a nossa mundivisão, grande parte daquilo que somos e pensamos. Com efeito, [...] é através dela que melhor nos entendemos, que melhor pensamos, so-nhamos, nos divertimos, sofremos, trabalhamos, criamos, en-fim, vivemos (Veiga, 2001: 7).

Cardoso (2005) em sua dissertação de Mestrado, As interferências linguísticas do caboverdiano no processo de aprendizagem do português, descreve a situação clássica de diglossia de Cabo Verde. A pesquisadora rela-ta: A alfabetização nestas circunstâncias é dolorosa e penosa para a criança

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que aprende a ler e as escrever numa língua que para ela (pelo menos inicial-mente) não tem qualquer significado (Cardoso, 2005: 60). As interferências da língua caboverdiana sobre a língua portuguesa se dão a todos os níveis gramaticais: lexical, sintática, morfológica e semântica. Como a situação é de diglossia, a inevitável interferência, resultante da cerca de cinco séculos de convivência destas duas línguas, não é bem aceita e acaba afetando o proces-so de letramento. Para alcançar o nível de letramento promovido pela UNESCO é imprescindível ultrapassar a atual situação de diglossia em Cabo Verde e promover o verdadeiro bilinguismo.

Mesmo tendo alcançado oficialmente as metas do milênio no que tan-ge à educação, na prática, a realidade é outra, e o quadro precisa mudar-se ainda no âmbito dos direitos humanos universais. Segundo Cardoso (2005), a avaliação das crianças caboverdianas inseridas neste contexto de alfabetiza-ção, que é de diglossia, é injusta e penalizante uma vez que é feita usando os mesmos critérios e instrumentos usados para os alunos que nunca falaram outra língua que não fosse a portuguesa. Isto causa um sofrimento linguístico nas crianças e que é estendida aos professores que também se mostram inca-pazes de encontrar soluções para estes problemas.

Esta triste e lamentável situação mostra que a alfabetização em Cabo Verde se dá por meios pedagógicos impróprios o que põe em cheque a questão de letramento. Letramento não significa ser meramente alfabetizado, mas não é possível atingir o letramento sem uma alfabetização eficaz. Com a ex-clusão da língua materna do ambiente escolar e das instancias oficiais, e da língua portuguesa do cotidiano do caboverdiano, torna-se difícil falar de letramento no seu sentido pleno e muito menos em biliteracy como deveria ser o caso de Cabo Verde. A maioria da população caboverdiana pode se dizer alfabetizada, mas não se pode afirmar que a grande maioria atingiu o grau de letramento. A Alfabetização por si só não tem se mostrado produtiva. Foi necessário criar novas abordagens sob o conceito de letramento para lidar como os problemas que outrora se pensavam resolver apenas com a alfabe-tização, como já elucidado neste artigo.

Possíveis Parceiros de Cabo Verde na Busca pelo Letramento

Perante tal conjuntura, Cabo Verde tem um grande desafio pela frente, especialmente ao considerar que, apesar dos consideráveis progressos alcan-çados nos 35 anos de independência, a sua vulnerabilidade econômica per-manece, e esta é uma das ameaças constantes com que vai ter de conviver por tempo indeterminado. As conquistas e progressos alcançados por Cabo Ver-de estão diretamente relacionados à colaboração dos seus parceiros interna-cionais. Este vai ter que contar mais uma vez com o apoio dos seus colaboradores internacionais para enfrentar os desafios inerentes ao

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proces-so de letramento na sua conjuntura atual e agravados pela situação de diglossia. Para começar, Cabo Verde pode contar de antemão com a experiência e apoio de dois dos seus principais parceiros que também acolhem duas das maiores comunidades caboverdianas na diáspora – Portugal e Estados Unidos da América.

Em países como Portugal e Estados Unidos da América, há uma preo-cupação para com os alunos que têm língua materna diferente da língua ma-joritária e oficial destes países. Os alunos caboverdianos em Portugal e nos EUA recebem a merecida atenção que os que vivem e estudam em Cabo Ver-de nunca receberam no que tange o ensino formal Ver-de sua língua materna. O Ministério de Educação de Portugal criou um projeto sobre a diversidade linguística nas escolas portuguesas, e o crioulo de Cabo Verde recebeu uma atenção especial. As estatísticas colocam a língua caboverdiana como a se-gunda língua mais falada em Portugal. Na parte do projeto que fala sobre o Crioulo de Cabo Verde encontra-se uma postura que deveria ser assimilada por Cabo Verde, pois nela vemos claramente os conceitos de letramento (no seu sentido duplo – biliteracy) acima elucidados sendo postos em prática:

A melhor forma de ‘defender’ uma língua é promover e defender as línguas que com ela convivem. O primeiro passo para desen-volver, nos alunos de origem caboverdiana, o seu conhecimento da língua portuguesa é levá-los a tomar consciência de que falam duas línguas bem diferenciadas, ambas legítimas e de igual valor, e que a sua língua crioula não só não deve ser escondida, como deve também ser desenvolvida. Aos educadores cabe argumentar em favor do bilinguismo, quer junto dos alunos, quer junto da comunidade escolar e das famílias (Portugal: 8).

De igual modo Barbosa (2005) nos informe que nos EUA o ensino bilíngue em crioulo (língua caboverdiana) e inglês já conta com 35 anos de existência, isto é, os anos da independência de Cabo Verde. Através da Lei Orgânica (1971), o crioulo de Cabo Verde foi reconhecido pelo Transitional Bilingual Education Act como uma língua viva. Este reconhecimento faz com que qualquer distrito, com 20 ou mais crianças tendo a língua caboverdiana como língua materna, seja obrigado a proporcionar condições para que estas crianças começam seu estudo usando a sua língua materna e aprendendo o Inglês, como segunda língua (L2), até atingirem o domínio de Inglês para seguir a educação comum.

Pelo que se percebe, há uma grande vontade política e dispositivos legais nestes dois países para promover o bilinguismo. Cabo Verde tem muito a aprender com tais procedimentos e deveria tornar-se o principal promotor desse interesse comum. Não nos foi possível ter acesso a, nem informações

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precisas sobre o material didático e pedagógico utilizado, nem nos EUA nem em Portugal, para o ensino da língua caboverdiana nas escolas. Através de um contato via email (27 de Maio de 2010) com Viriato de Barros 13,

inqui-rimos sobre a existência de manuais pedagógicos e didáticos para o ensino do caboverdiano nos EUA. Barros, como um dos ex-professores da língua caboverdiana nos EUA, nos informou que os manuais usados foram elabora-dos pelos próprios professores. Palavras de Viriato de Barros:

[...] quando comecei como o meu curso de crioulo (inicialmen-te na Mabooki), não encontrei nada no gênero de manual ou material didático para utilizar. Por isso tive que criar o meu pró-prio curso baseando-me na minha formação em Didática de línguas estrangeiras [...] Mais tarde, tomei conhecimento atra-vés de Inês Brito de um método semelhante criado e adotado por um grupo de professores linguistas caboverdianos radicados nos Estados Unidos. Há outros trabalhos interessantes da auto-ria de Manuel Veiga, Danny Spínola e Tomé Varela Silva. Mas como manual prático de ensino não conheço mais.14

Supõe-se que o ensino da língua caboverdiana em Portugal segue-se os mesmos moldes que nos EUA. Há vontade política e provimento legal para o ensino da língua caboverdiana tanto nos EUA como em Portugal, mas pare-ce que não há manuais nem materiais didáticos e pedagógicos próprios para esse fim. A nosso ver, cabe a Cabo Verde liderar e promover a criação de manuais didáticos e pedagógicos, pois o ensino neste caso é o da língua caboverdiana. Um dos impasses para a criação desses manuais é alegação de que Cabo Verde não dispõe de meios financeiros para tal. Mas o que pode-mos constatar, é que o que está em jogo aqui, não é uma questão financeira, mas sim, uma questão de prioridades. Cabo Verde tem contado com o apoio dos seus parceiros internacionais para aquilo que tem sido considerado como prioridades para o desenvolvimento integral de Cabo Verde. No dia em que a questão de letramento tornar-se uma questão prioritária no programa de de-senvolvimento integral de Cabo Verde, o que ele já deveria ser a algum

tem-13 Viriato de Barros dispõe de um blog onde aborda a questão do ensino do caboverdiano nas escolas no EUA, onde ele lecionou como professor da língua caboverdiana. Pelo que Viriato de Barros é conhecedor da realidade do ensino da língua caboverdiana tanto em Portugal como nos EUA. O Blog de Viriato de Barros pode ser acessado através de: http://www.viriatobarros.blogspot.com/.

14 Estas são palavras de Viriato de Barros através de um contato via email de 27 de Maio de 2010. Foram implementadas pequenas alterações na grafia das palavras para manter o padrão adotado de acordo com o novo Acordo Ortográfico.

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po, há grandes possibilidades de haver apoio dos principais parceiros de Cabo Verde – Portugal e EUA – estes têm interesse político no ensino da língua caboverdiana. Sendo que há grandes comunidades caboverdianas integradas nestes dois países e o caboverdiano é indissociável da língua caboverdiana, eles têm interesse no ensino formal da língua caboverdiana como parte das estraté-gias de desenvolvimento integral e equitativo de suas comunidades.

Se Cabo Verde, hoje, declara ter alcançado as metas do milênio no que tange à educação, isto se deve graças em grande parte ao apoio financeiro de seus parceiros internacionais 15. Em 2004, Cabo Verde se tornaria o primeiro

país a nível mundial a beneficiar do fundo internacional norte-americano Millennium Challenge Accountt (MCA). O Programa aprovado ascende a 117,8 milhões de dólares americanos, dos quais 110,1 milhões de dólares financiados pelo MCC e 7,7 milhões pelo Governo de Cabo Verde. Grande parte desse fundo foi usada para a melhoria de educação em Cabo Verde (MCA, 2007). Outro marco importante - em 2007, Cabo Verde ganhou estatuto especial jun-to da Comunidade Econômica Europeia por meio da parceria estratégica com Portugal – esta conquista foi comunicada por José Sócrates, Primeiro Ministro de Portugal e presidente em exercício da EU. Mediante este novo estatuto junto da EU, Cabo Verde pretende beneficiar de fundos destinados, por exemplo, às regiões ultra-periféricas da UE, como são os Açores, Madeira e Canárias (Agên-cia Lusa, 2007).

Estes dois exemplos de parceria são mais que suficiente para provar que tomando como prioridade o almejo de alcançar o letramento, no seu sentido amplo que deve incluir o ensino formal do caboverdiano nas escolas tanto em Cabo Verde bem como na diáspora, Cabo Verde poderá contar como sempre com o apoio dos seus principais parceiros internacionais – Portugal e EUA -estes têm interesse no ensino do caboverdiano nas suas escolas como promo-ção de um bilinguismo saudável, produtivo e socialmente integrante, e certa-mente aceitariam uma parceria e até liderança de Cabo Verde neste aspecto.

Considerações finais

Considerando os escassos recursos econômicos e naturais de Cabo Verde e a situação precária em que se encontrava por altura da sua indepen-dência, é notório que muito se fez nestes 35 anos de indepenindepen-dência, sobretu-do no campo da saúde e da educação. O analfabetismo está praticamente

15 Cabo Verde tem muitos parceiros internacionais, e estes também podem perfeita-mente apoiar caso Cabo Verde intentar para o alcance de letramento. Optamos por EUA e Portugal porque para além de serem parceiros de Cabo Verde, adota-ram o ensino da língua caboverdiana nas escolas mesmo antes de Cabo Verde.

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erradicado em apenas três décadas de campanhas agressivas e bom aprovei-tamento de recursos internacionais disponibilizados para esses fins. Mas os mesmos organismos internacionais que patrocinaram e promoveram as cam-panhas contra o analfabetismo chegaram à conclusão que a mera capacidade de ler e escrever não se tem mostrado produtivo em produzir cidadãos social-mente integráveis. Isto requer mais que alfabetização; é necessário atingir um grau mais além – um novo conceito – letramento. Este implica capacitar as pessoas a desempenharem eficientemente qualquer função social ou pro-fissional que requer as práticas de escrita e da leitura.

O maior obstáculo que Cabo Verde pode encontrar na busca pelo letramento se encontra na situação de diglossia radicada no país e que preci-sa ser combatida e eliminada com a introdução do ensino da língua materna caboverdiana na educação formal. Isto implica um bilinguismo funcional e socialmente prestigioso. Cabo Verde tem grandes potencialidades para ser um país bilíngue e com isso só tem a ganhar. Pode haver a alegação de que Cabo Verde não dispõe de meios financeiros para produzir manuais pedagó-gicos e didáticos para o ensino oficial da língua materna caboverdiana. Mas dois dos principais parceiros financeiros de Cabo Verde, Portugal e EUA, têm interesse no ensino da língua caboverdiana na educação formal, aliás, estes dois países já dispõe do ensino da língua caboverdiana num sistema bilíngue junto das comunidades caboverdianas radicada nestes países. Cabo Verde pode partir desse interesse comum com estes dois parceiros internacionais que acolhem duas de suas maiores comunidades na diáspora para conseguir fundos e orientação para elaboração de materiais pedagógicos e didáticos para o ensino da língua caboverdiana. Fazendo isto, estará combatendo o problema de diglossia e dando mais um passo rumo ao letramento, e este no seu sentido duplo – biliteracy.

Referências

Barbosa, Fernando. Língua, Discurso e Identidade no Cabo Verde Pós-Colonial. International Conference on Capverdean Migration and Diaspora. Centro de Estu-dos de Antropologia Social, Lisboa, 6-8 Abril 2005.

Barros, Viriato de. 2009. Educaçâo bilingue: a experiência caboverdiana nos EUA. Disponível em http://www.multiculturas.com/textos/VB-educacao_bilingue.pdf, aces-so em 15 de Outubro de 2009.

Cardoso, Ana Josefa Gomes. 2005. As interferências linguísticas do caboverdiano no processo de aprendizagem do português. Tese (Mestrado) Universidade Aberta, Lisboa. Cardoso, Pedro. 1933. Folclore Caboverdeano. Porto: Edições Maranus.

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Recebido em: 08/06/2010 Aceito em: 16/08/2010

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