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CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

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CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES 1. Introdução

O Pe António Vieira é considerado o maior orador sacro português e domina todo o século XVII pela sua personalidade vigorosa que capta a atenção dos ouvintes.

Destaca-se, ainda, pela coragem evidenciada na luta, através das palavras, contra a exploração dos povos oprimidos e pelo patriotismo evidenciado na luta pela manutenção da independência nacional, numa época instável como foi a da Restauração.

É marcante, também, o seu anticonvencionalismo e ousadia ao combater a organização social e religiosa mais poderosa de Portugal – O Tribunal do Santo Ofício – cujas práticas anti-cristãs denuncia,

independentemente dos perigos a que se expôs e do sofrimento que tais atitudes lhe causaram. 2. Razão do título do sermão de Sto António aos Peixes:

O sermão inspira-se na lenda medieval segundo a qual Santo António, numa das pregações destinadas a emendar o comportamento dos homens, decide falar aos peixes ao constatar que os homens não lhe prestam atenção. Compreensivos e atentos, os peixes levantam as cabeças à superfície das águas, comprovando a força da palavra do santo.

António Vieira imitá-lo-á visto que também não é ouvido pelos colonos do Maranhão que exploram os ameríndios e os escravos negros; à semelhança do santo que tanto venera, falará aos “peixes” – alegoria dos colonos. Deste modo pode criticá-los sem temer represálias.

3. Contexto em que foi pregado este sermão e objectivo do mesmo:

Foi pregado na cidade brasileira de São Luís do Maranhão, em 13 de Junho de 1654, «três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos Índios (…) E nele tocou todos os pontos de doutrina (posto que perseguida) que mais necessários eram ao bem espiritual e temporal daquela terra, como facilmente se pode entender das mesmas alegorias.»

3.1 Funções do sermão:

O sermão tem uma missão social (salvar os ameríndios da cobiça e exploração, isto é, salvá-los da antropofagia que era a prática comum entre os homens na sociedade), e é também um instrumento de intervenção na vida política do país;

tem também uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de santos como exemplos de condutas a imitar.

4. Intencionalidade comunicativa do pregador: O sermão é um texto que pretende:

a) ensinar através do recurso a citações bíblicas, dados da História natural, exemplos da sabedoria popular. Tem, portanto, uma função informativa (informa sobre diversos saberes)

b) agradar aos ouvintes através do recurso a frases exclamativas, interrogações retóricas, gradações, apóstrofes, alegorias. Tem uma função emotiva (desperta emoções nos ouvintes)

c) Persuadir os ouvintes através da argumentação por meio do confronto com a Bíblia, emprego do modo imperativo, do vocativo e interrogações retóricas. Tem uma função apelativa(interpela os ouvintes, obrigando-os a reflectir no que é dito)

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d) intervir na sociedade portuguesa da sua época.

5. A estrutura do sermão (a organização temática e discursiva do texto) 1ª parte do sermão:

5.1 O conceito predicável como ponto de partida:

o sermão parte de uma afirmação retirada da Bíblia à qual se dá o nome de conceito predicável. O conceito predicável que inicia este sermão é «Vós sois o sal da terra», afirmação retirada por Vieira do Evangelho de São Mateus.

Que pretende dizer o pregador aos seus ouvintes do Maranhão? O sal preserva os alimentos impedindo-os de se estragarem (era assim que antigamente a carne e o peixe eram conservados); ora, tal como o sal preserva os alimentos da corrupção, o mesmo faz a palavra de Cristo a quem a ouve, visto que a palavra divina transmitida pelos pregadores (eles são o sal) impede que os colonos (a terra) se afastem do caminho do bem. O conceito predicável é uma verdade intemporal que tem raízes bíblicas e que, por esse facto, dá credibilidade à pregação já que ninguém se atreve a contestar a palavra de Cristo.

5.2 O Exórdio ou Introdução:

É uma parte importante porque é através dela que o pregador capta a atenção dos ouvintes, logo, tem que prender e agradar.

O conceito predicável está inserido na 1ª parte do sermão – o Exórdio. Neste, o pregadorapresenta o tema do sermão: a necessidade dos colonos do Maranhão alterarem a sua conduta desumana.

Resumidamente: no exórdio Vieira diz que se as palavras do pregador (o sal) não cumprem a sua função de impedir a corrupção entre os homens, duas questões devem ser analisadas:

será que o defeito está nos pregadores cujas palavras não convencem porque dizem uma coisa e fazem o contrário do que pregam? A solução para este caso consiste em deitar fora o sal porque não presta: «é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» (cap.I)

Mas também pode acontecer que o pregador ou sal seja bom e a terra ou colonos o desprezem: «E à terra que não se deixa salgar, que se lhe há-de fazer?» (cap.I)

«Este ponto não resolveu Cristo Nosso Senhor no Evangelho; mas temos a sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António.»

Assim sendo, Vieira opta por imitar Sto António que deixou os homens e se virou para melhores ouvintes: os peixes.

O Exórdio termina com uma invocação à Virgem Maria ou Domina Maris (Senhora do mar) para obter a inspiração necessária à pregação convincente que deseja.

Fim do cap.I do sermão.

No que respeita à organização do discurso e linguagem figurada, notar alguns exemplos de: - encadeamento lógico das ideias;

- paralelismo sintáctico ou estrutural: «ou é porque (…) ou é porque (…) ou é porque (…)»; - interrogações retóricas que confrontam directamente os ouvintes: «Não é tudo isto verdade?»

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- vocativo: «Vós, diz Cristo, (…)»

- repetição da conjunção coordenativa disjuntiva “ou” que inicia várias frases com estrutura idêntica. - linguagem metafórica: «sal», «salgar», «e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar», «começam a ferver as ondas (…)»…

- exclamações retóricas: «Ó maravilhas do Altíssimo!»

- enumeração e gradação crescente: «sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira» - trocadilhos: «é melhor pregar como eles que pregar deles»

- ironia: «o mar está tão perto que bem me ouvirão»

São ainda de notar as inúmeras afirmações, interrogações e citações bíblicas em latim: mostrar erudição e dar validade ao discurso.

2ª parte do sermão

5.3 Os capítulos II – V correspondem à 2ª parte do sermão (o desenvolvimento) e neles o orador desenvolve, através de um discurso fortemente argumentativo, a tese exposta no cap. I: é necessário reformar os costumes dos colonos do Maranhão.

Assim, se existe o Bem e o Mal, o sermão, a partir do cap.I, será dividido em 2 partes, a saber: - louvor das virtudes dos peixes, em geral – cap. II

- louvores aos peixes em particular, no cap. III: serão louvados o Santo Peixe de Tobias, a Rémora, o Torpedo e o peixe Quatro-Olhos.

- repreensão aos peixes em geral: cap. IV

- repreensão aos peixes em particular – cap. V: são repreendidos os peixes Roncadores, Pegadores, Voadores e o Polvo.

Para defender as suas ideias, Vieira recorre a uma argumentação cerrada, a uma linguagem alegórica* de modo a tornar claras e facilmente compreensíveis determinadas realidades abstractas (os vícios e as virtudes humanas) e a citações bíblicas e ou de padres famosos/ santos para melhor convencer acerca da pertinência das suas ideias.

* a alegoria é uma figura de estilo através da qual se refere ideias abstractas recorrendo a exemplos comuns do mundo material; os vários peixes elogiados e repreendidos são alegorias da maldade e bondade

humanas.

5.4 Capítulo II (1ª parte do desenvolvimento) – síntese das ideias:

As 2 qualidades dos peixes mencionadas no início deste capítulo estabelecem um contraste com 2 defeitos humanos:

- «os peixes ouvem e não falam», donde se depreende que os homens falam demais e não ouvem os bons conselhos do pregador;

- seguidamente, Vieira informa que quer pregar com a mesma imparcialidade que Santo António usou nas suas pregações porque essa é a atitude que deve manifestar qualquer pregador digno desse nome: «Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal

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para preservar dele.», isto é, o louvor das virtudes (humanas) influencia a continuidade das mesmas e a crítica aos vícios (humanos) leva a que quem os pratica se consciencialize dessa prática errada.

- Vieira justifica, com novos argumentos, o elogio das virtudes em geral dos peixes:

foram os primeiros animais criados por Deus, são os animais mais numerosos e com maiores dimensões, são ordeiros, tranquilos e ouviram com atenção e devoção a mensagem de Santo António, contrariamente aos homens que a desprezaram «tão furiosos e obstinados».

Jonas, personagem do Antigo Testamento a quem Deus encarregou de cumprir uma missão, foi deitado ao mar pelos homens e salvo por uma baleia.

os peixes vivem retirados do convívio com os humanos, facto que revela a sua sensatez pois são independentes e livres:

«Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!»

Na conclusão do cap II, Vieira interpela directamente os peixes e diz-lhes:

«Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.» Como eles procedeu Santo António, cuja biografia é sumariamente narrada na antítese que termina este capítulo: «e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.»

5.5 Capítulo III – síntese das ideias

Neste capítulo, o pregador passa à enumeração dos peixes que serão elogiados e das razões que levam a esses elogios. Cada peixe representa, alegoricamente, virtudes humanas.

1º peixe elogiado: o peixe de Tobias, personagem do Antigo Testamento que, no momento em que ia lavar os pés ao rio, é surpreendido por «um grande peixe com a boca aberta em acção de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado (…)»

Acontece que este peixe assustador ia, afinal, salvar Tobias com as suas entranhas: «o fel era bom para salvar da cegueira e o coração para lançar fora os demónios.»

2º peixe elogiado: a rémora «peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder»; a rémora é alegoria da energia e força de vontade que devem ser o “leme”/ a orientação das acções humanas. A rémora representa todos os que são imunes, como Santo António, à «fúria das paixões», guiando-se na vida pela racionalidade.

À alegoria da rémora seguem-se outras alegorias: as “naus” soberba, vingança, cobiça e

sensualidade. Estes são vícios humanos decorrentes da falta de racionalidade que arrastam o homem para comportamentos indevidos.

3º peixe elogiado: «aquele outro peixezinho, a que os latinos chamam torpedo»; este peixe produz uma descarga eléctrica que passa para a mão do pescador, fazendo-lhe tremer o braço. Isto quer dizer que a virtude deste peixe contagia o ser humano, sendo essa virtude a energia para lutar contra a atracção pelo mal. Com esta nova alegoria Vieira critica os padres pregadores que se interessam apenas por falar sem atender à qualidade das suas mensagens evidenciando ausência de espírito crítico e descuido relativamente aos fiéis que “pescam” com os respectivos discursos. Isto nunca acontecia com os sermões de Santo António visto que aqueles que os ouviam “tremiam” de tanta emoção que, «tremendo, confessaram seus furtos; (…) todos enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram.»

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4º peixe elogiado: o quatro-olhos -«Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos!»

Tantos olhos num único peixe (2 virados para o céu e 2 virados para baixo) devem-se ao facto de serem muito perseguidos no mar e no ar, pelas aves marítimas. Deste facto o pregador conclui que este peixe ensina os homens a olharem para o céu para praticarem a virtude e a não esquecerem o inferno sempre que olham para a terra.

O capítulo III termina com um elogio a todos os peixes que alimentam os pobres (as solhas); já os salmões alimentam os ricos. Devido a esta boa acção dos peixes, o pregador deseja que se reproduzam em

abundância: «Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua benção.»

5.6 capítulo IV – síntese das ideias

Neste capítulo, Vieira repreende os peixes em geral porque os peixes grandes comem os pequenos

(alegoricamente é referida a antropofagia social, isto é, os homens poderosos aniquilam os mais frágeis, os marginalizados da sociedade: os ameríndios e negros do Brasil). Assim sendo, a terra parece «um

açougue» ou matadouro, já que os marginalizados vão morrendo de cansaço, fome e doença, diante da indiferença dos colonos. Mas os homens também se comem uns aos outros mesmo dentro da mesma classe social, porque cobiçam os bens uns dos outros, são interesseiros:

«Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e a comê-lo. Comem-nos os herdeiros, comem-no (…) ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.»

Os homens deviam preocupar-se em lutar pela independência da sua terra atacada pelos piratas ingleses e holandeses em vez de se perderem em lutas por bens menores sem objectivo que as justifique.

Os peixes comem-se uns aos outros no mar por razões de sobrevivência, mas os seres humanos aniquilam-se e desprezam-aniquilam-se por amor excessivo ao dinheiro. Esta constatação leva a uma 2ª repreensão geral aos peixes alegoria dos homens: estes dão a vida por insignificâncias, «um retalho de pano», mas os bens terrenos são ilusórios e fonte de discórdias; o costume de se aproveitarem dos bens dos naufragados é condenável: «Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta?» Deviam seguir o exemplo de Santo António que, tendo nascido rico, abandonou tudo para imitar Jesus Cristo.

Capítulo V – síntese das ideias

Neste capítulo, Vieira repreende alguns peixes em particular:

«Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós» Os peixes criticados são alegorias dos piores vícios humanos, ainda que haja uma gradação nesta enumeração porque o polvo será o “peixe” mais criticado.

1º peixe repreendido:

o roncador – é a alegoria dos homens arrogantes e vaidosos que prometem e não cumprem porque «o muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela»; «Assim que, amigos roncadores, o

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verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder.»

2º peixe repreendido:

o peixe pegador – é a alegoria da adulação e do parasitismo, vícios da alta nobreza e classe política, gostam de receber favores e da adulação daqueles que deles dependem. Estes peixes nadam presos a um «tubarão», membro mais importante na escala social que eles vão explorando como podem: «porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que lá |em Portugal continental| não tinham remédio.»

3º peixe repreendido:

o peixe voador – é a alegoria dos sempre insatisfeitos com a vida e ambiciosos porque não se contentando em nadar no mar, querem voar como os pássaros: «Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? (…) Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. (…) À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.»

4º peixe repreendido:

o polvo, alegoria da hipocrisia e da traição, os vícios piores entre todos. Contra o polvo ergueram-se as vozes de dois santos importantes: S. Basílio e Santo Ambrósio porque o polvo aparenta ser aquilo que não é:

«com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão.»

Percebemos o alcance da crítica ao polvo: como ele, também os monges enganam os fiéis, passando por homens piedosos quando não passam de homens imorais e interesseiros que utilizam a palavra de Deus para melhor conseguirem os seus verdadeiros intentos.

Através de anáforas, frases paralelísticas e comparações, Vieira descreve a aparência enganadora o polvo que, devido ao mimetismo, se disfarça para melhor enganar os inocentes e que é pior traidor do que foi Judas, o traidor de Cristo.

«Se está nos limos faz-se verde, se está na areia, faz-se branco, se está no lodo, faz-se pardo (…) E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando

desacautelado (…) Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende.»

Para além das razões já invocadas contra o polvo, Vieira refere o contraste entre a “sujidade” moral do polvo e a transparência do elemento natural em que habita – o mar:

«Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu!» Vieira intui os argumentos que os peixes/ homens empregariam, se pudessem falar, para rebater as acusações contra o polvo:

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«Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. (…) Mas ponde os olhos António, vosso pregador, e vereis nele o mais ouro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano.»

Isto é, é verdade que a terra está infestada de traidores e não apenas o mar onde vivem os peixes acusados, sobretudo o polvo, pior entre os piores. Mas também é verdade que há habitantes da terra que se destacam pela pureza de coração e amor à verdade, como é o caso de Santo António a quem Vieira imita e cita frequentemente no seu sermão. Que se há-de então fazer, já que Santo António é inimitável? Para Vieira, basta que os portugueses do seu tempo se mantenham fiéis aos valores morais e éticos que outrora existiam em Portugal e que agora parecem estar arredados das intenções dos colonos do Maranhão: «E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo.»

O capítulo V termina com uma censura àqueles que roubam os bens dos náufragos que dão à costa e avisa: «Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta.»

A Peroração ou Conclusão do sermão – cap. VI

No último capítulo, Vieira quer “consolar” os peixes, eles que para além de terem sido alvo de duras críticas, também foram excluídos do terceiro livro da Bíblia – O Levítico. Esta desconsideração feita aos animais marinhos num livro sagrado deve-se a esta razão:

«(…) foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício |entenda-se que se tratava de uma oferenda a Deus que passava por sacrificar animais, tal como era habitual nas práticas religiosas ancestrais| e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares.»

Ora, tal como os peixes que morrem antes de chegar a Deus, também «quantas almas chegam àquele altar mortas (…) estando em pecado mortal!»

No entanto, os peixes estão em vantagem relativamente aos humanos já que nem chegam a aproximar-se de Deus, não o podendo ofender; opostamente, os homens chegam a Deus cheios de pecados, facto que leva o pregador a exclamar:

«Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto.»

Mas as vantagens dos peixes não se resumem apenas ao que foi referido antes: o pregador também é humano e dotado de razão, contrariamente aos peixes que agem segundo as leis da natureza. Assim sendo, o pregador inveja «a bruteza» dos peixes porque estes não ofendem a Deus já que nem pensam nem têm vontade própria.

Vieira termina reconhecendo, numa atitude humilde, as fraquezas inerentes aos seres humanos que falham perante Deus porque a inteligência destrói a inocência e pureza que os peixes, seres irracionais, conservam e o livre-arbítrio que falta aos peixes nem sempre o conduz à prática mais cristã :

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«Vós fostes criados por Deus para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou.» Acrescenta a esta confissão da sua indignidade face a Deus, o pedido aos peixes para que louvem a Deus, criador da vida e a quem tudo se deve.

Introdução

O Pe António Vieira escrevia e pregava o que escrevia em público, nas igrejas, a partir do púlpito ou lugar destinado na igreja aos pregadores. Para que a sua pregação produzisse o efeito pretendido pelo orador, tornava-se necessário agradar aos ouvintes e conseguir prender a atenção destes durante o tempo da pregação. Assim, nenhuma parte dos longos discursos era deixada ao acaso mas, pelo contrário, minuciosamente trabalhada previamente.

Vieira conseguia seduzir os ouvintes à custa dos seus dons oratórios ou capacidade para se expressar oralmente com convicção, através do recurso a figuras de estilo ou de retórica, do encadeamento lógico dos raciocínios, das imagens sugeridas através das associações de vocábulos seleccionados para esse efeito, do recurso a argumentos difíceis de contestar pelos ouvintes.

Para ter sucesso na pregação e convencer os ouvintes a alterar a mentalidade e modos de agir, Vieira serve-se de variados recursos; para além da argumentação (consulta a página serve-seguinte sobre este assunto), emprega largamente citações bíblicas, normalmente em latim, faz referências à vida de Santos e Doutores da Igreja (Santo António, São Basílio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Mateus), refere passagens conhecidas do Antigo Testamento (o episódio de Jonas, no cap.I;o episódio do Dilúvio e a arca de Noé, no cap. I; o episódio de Tobias a quem apareceu o Arcanjo Rafael, no cap. II; passagens da vida do rei David, cap. II, o episódio vivido por Jesus Cristo no Horto, cap.V; a fuga de Jesus para o Egipto, cap. V;…); referências a filósofos e pensadores (Aristóteles, p.ex.); referências à mitologia greco-latina; referências à variedade da fauna marítima e terrestre, a zonas geográficas, à sabedoria popular, …

O recurso a abundantes referências bíblicas confere seriedade e credibilidade à pregação já que não há argumentos de peso que se oponham às narrações bíblicas. Como foram escritos para serem ouvidos, os sermões têm um ritmo facilmente captável pela audição. Para além disto, os conceitos mais importantes são acentuados através da repetição e as palavras são escolhidas criteriosamente porque deviam ser, segundo o pregador, “distintas e claras como estrelas”.

II – Principais recursos estilísticos presentes no Sermão de Santo António aos Peixes:

1. Alegoria: todo o sermão é alegórico ou uma extensa alegoria, a partir do cap. II (os peixes são alegorias dos homens e das virtudes e vícios destes).

2. Anáfora e Paralelismo sintáctico ou estrutural

Ex. «Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas» – cap. II

Ex2. «Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas, vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego?» – cap. IV (nota os verbos antitéticos aqui presentes)

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Ex3. «Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo» – cap. V

3. Apóstrofes

Ex. «Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes (…)» – cap.I

Ex2. «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens» – cap.I Ex.3 «Ah moradores do Maranhão, quanto (…)» – cap.II

Ex.4 «Parece-vos isto bem, peixes?» (interrogação retórica + apóstrofe) – cap.IV 4. Antíteses

Ex. «Uma é louvar o bem, outra é repreender o mal» (paral. sintáctico + antítese) Ex2 «tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens» – cap. II Ex3 «tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder»

Ex4 «traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras» – cap. V Ex5 «de manhã e de tarde, de dia e de noite» – cap I

Ex6 «e visse na terra os homens tão furiosos e tão obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos» – cap. II

Ex7 «não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro» . cap. II Ex8 « ou desta hipocrisia tão santa» – cap. V

5. Anadiplose (repetição de uma palavra nos segmentos de uma enumeração para sugerir uma reacção em cadeia)

Ex. «De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador.» – cap. III

Ex2 «E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, (…)» – cap V 5. Enumerações

Ex. «Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e dos defuntos e ausentes; come-o o médico (…), come-o o sangrador, (…)» – cap. IV

Ex.2 «(…) que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições» – cap. V

Ex 3 «primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal» (enumeração + gradação) – cap. II Ex4 «mudou o nome, mudou o hábito e até a si mesmo se mudou» – cap. II

6. Gradações

Ex. «sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira» – cap.I

Ex2. «Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças fora de água» (enumeração + gradação) – cap.I

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Ex3 «Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza (…)» – cap. II Ex4 «o mar é muito largo, muito fértil, muito abundante» – cap. IV

Ex5 «de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água» – cap.V 7. Comparações

Ex. «Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos» – cap. V

Ex2 «O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos parece uma estrela (…)» – cap. V

8. Metáforas

Ex. «e esse fel que tanto vos amarga (…) uma é alumiar e curar as vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demónios fora de casa» – cap. III

Ex2 «Quem dera aos pescadores do nosso elemento (…) Tanto pescar e tão pouco tremer!» – cap. III Ex3 «onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes» – cap. III Ex4 «porque a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos» – cap. IV Ex5 «Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos» – cap IV

Ex6 «porque ambas incham: o saber e o poder» – cap. V 9. Quiasmo

Ex. «mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso e os peixes o uso sem a razão» – cap. II 10. Interrogações e exclamações retóricas

«Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo?» – cap. I «Oh grande louvor para os peixes e grande afronta e confusão para os homens!» – cap. II

«Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demónios perseguis vós?» – cap. III «Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos!» – cap. III

«Parece-vos bem isto, peixes?» – cap. IV 11. Repetições

Ex. «Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar» – cap. IV

12. Trocadilhos

Ex. «Dizei-me: o espadarte porque não ronca? (…) Contudo que lhe sucedeu naquela noite? Tinha roncado e barbateado Pedro (…) O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela.» – cap. V

13. Adjectivação dupla

«Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes.» – cap. V

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«Vê peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade» – cap. V «Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno (…)» – cap. V 14. Forte apelo ao sentido da visão

O sentido da visão é, de todos os sentidos, aquele que está mais em evidência: Ex. «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.» – cap. II Ex2 «para a cidade é que haveis de olhar» – cap. IV

Ex3 «Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar (…) Morreu algum deles e vereislogo tantos sobre o miserável» – cap. IV

Ex4 « Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos (…) e olhai quantos o estão comendo. (…) E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos (…)» – cap. IV

Ex5 «Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o mundo» – cap. IV Ex6 «Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo.» – cap. V

Ex7 «Mas ponde os olhos em António, vosso pregador (…)» – cap. V 15. Verbos no modo imperativo

Ex. «Crescei, peixes, crescei e multiplicai (…)» – cap. III Ex2 «Vede um homem desses (…) e olhai (…)» – cap. IV 16. Deícticos espaciais

«Porque cá, no Maranhão, ainda que se derrame muito sangue (…)» – cap. IV «E começando aqui, pela nossa costa» – cap V

17. Aforismos

«Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem» – cap. V 18. Ironia

«o mar está tão perto que bem me ouvirão» – cap. I

«Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente.» – cap II 6. Exemplos de argumentação no Sermão de Santo António

6.1 capítulo II

O pregador vai dirigir o seu discurso aos peixes: porquê? Argumentos a favor da escolha do auditório (peixes): ouvem e não falam;

O pregador decide elogiar e repreender os peixes. Porquê?

Argumentos a favor desta pregação bipartida (elogia e repreende): Santo António assim procedeu; o grande doutor da Igreja, S. Basílio, está de acordo; no Evangelho, os apóstolos de Cristo (pescadores) recolheram os peixes bons e devolveram ao mar os que não prestavam; assim sendo, «há que louvar e que repreender».

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Argumentos a favor dos louvores aos peixes em geral:

Argumento 1: foram os primeiros animais a ser criados;

Arg. 2: os peixes existem em maior número e têm maiores dimensões que os restantes animais.

Arg.3: Moisés, “cronista da criação”, distinguiu-os exclamando: «Peixes graúdos e tudo o que se move nas águas bem dizei ao Senhor»

Arg.4: os peixes são obedientes, ordeiros, sossegados e atentos à palavra de Deus difundida nos sermões de Sto António.

Arg.5: os peixes parecem ter inteligência, ao contrário dos homens que sendo racionais não o querem mostrar.

Arg.6 Uma baleia salvou Jonas da maldade dos homens que o atiraram ao mar.

Arg.7 O filósofo Aristóteles disse que entre todos os animais eles são os mais independentes (não se domam nem domesticam)

Arg.8 Os peixes não se deixam inflenciar porque vivem isolados dos outros animais. Arg.9 Quando se deu o Dilúvio, os peixes salvaram-se todos; Santo Ambrósio disse que esta salvação se ficou a dever ao facto de habitarem longe dos homens.

Arg.10 Deus decidiu castigar os animais que viviam perto dos homens e poupar os que viviam longe deles.

Arg.11 Santo António também procedeu como os peixes, afastando-se da família e indo viver num deserto.

Referências

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