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O OLHAR E O OUTRO: UM DIÁLOGO ENTRE O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO E A FILOSOFIA SARTREANA

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O OLHAR E O OUTRO: UM DIÁLOGO ENTRE O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO E A FILOSOFIA SARTREANA

d.o.i. 10.13115/2236-1499.2015v1n14p329

Marcos Alfonso Spiess1 Universidade Federal do Paraná – UFPR

Marcos Vinícius da Costa Meireles2 Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF RESUMO: Este trabalho tem por objetivo ser um diálogo entre a filosofia e a antropologia. Partindo da possibilidade da existência de diferentes metafísicas, busca-se um diálogo frutífero entre a concepção de mundo indígena e a filosofia ocidental. Em um primeiro momento, busca-se apresentar o perspectivismo ameríndio como possibilidade teórica de compreensão de cosmologias indígenas, onde a relação de predação (ver e ser visto) é fundamental para definir quem é sujeito da perspectiva e a partir de quem o mundo se configura. Em um segundo momento, ressalta-se alguns elementos centrais da filosofia de Jean-Paul Sartre, em especial o lugar e a importância do olhar como constitutivo das relações e do mundo. Tomando a centralidade que o olhar ganha em ambas as teorias, torna-se possível pensar nas relações e nas aproximações lógicas entre perspectivismo ameríndio e a ontologia fenomenológica de Sartre. Por outro lado, ao final, demonstra-se como que esse mesmo olhar que possibilita a configuração de diferentes mundos também impõe questões éticas e políticas.

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Graduado em Filosofia pela Faculdade São Luiz (Brusque, SC), mestre e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná – PPGA/UFPR. Bolsista CAPES. 

2

Graduado em Filosofia pela Faculdade São Luiz (Brusque, SC), mestre e doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR/UFJF. Bolsista CAPES. 

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330 Palavras-chave: Perspectivismo ameríndio; Ontologias; Olhar; Jean-Paul Sartre.

THE LOOK AND THE OTHER: A DIALOGUE BETWEEN THE AMERINDIAN PERSPECTIVISM AND SARTREAN

PHILOSOPHY

ABSTRACT: This paper aims to be a dialogue between philosophy and anthropology. Starting from the possibility that there are different ontologies, we seek a fruitful dialogue between the conception of the indigenous world and Western philosophy. At first, we seek to present the Amerindian perspectivism as a theoretical possibility of understanding of indigenous cosmologies where predation (see and be seen) is essential to define who is the subject of perspective and from whom the world takes shape. In a second moment, we emphasize some key elements of the philosophy of Jean-Paul Sartre, in particular the place and the importance of looking like constitutive relations and the world. Taking the centrality that look gets in both theories, it becomes possible to think of the relations and logical approaches between Amerindian perspectivism and the phenomenological ontology of Sartre. On the other hand, in the end, it is shown how that same look that makes it possible the configuration of different worlds also imposes ethical and political issues.

Keywords: Amerindian perspectivism; Ontologies; To look; Jean-Paul Sartre.

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        1. Introdução

As discussões aqui desenvolvidas pretendem ser uma experiência de diálogo entre a filosofia e a antropologia. Mais que chegar a conclusões herméticas, a proposta é exercitar um diálogo entre ontologias ameríndias, aqui interpretadas sob a rubrica do perspectivismo ameríndio, e a ontologia fenomenológica esboçada por Jean-Paul Sartre em sua obra O ser

e o nada. Para tanto, busca-se salientar algumas aproximações

das concepções de relação entre o eu (ou o sujeito da perspectiva) e o outro (presa, predador), ressaltando a centralidade que o olhar possui nessas respectivas metafísicas.3

Se os distanciamentos criados entre as tradições antropológica e filosófica, principalmente no campo acadêmico, foram imprescindíveis para marcar as diferenças e os campos de atuação de cada área de conhecimento; atualmente, torna-se necessário reaproximar essas tradições de pensamento para um diálogo frutífero. Esta necessidade, mais que epistemológica, se faz pertinente a partir das reivindicações (éticas, políticas, cosmológicas etc.) que os povos não ocidentais passaram a protagonizar nos últimos anos.

Tais reivindicações, por sua vez, trazem à tona as limitações teóricas e metodológicas que perpassam as investigações sobre esses povos. Limitações que são, na sua maioria, originadas pela imposição de uma concepção de mundo especificamente desenvolvida em uma filosofia ocidental, mas

  3

Este trabalho se desenvolveu a partir das reflexões produzidas nos Seminários Alianças monstruosas: diálogos contemporâneos entre antropologia e filosofia, que ocorreram no segundo semestre de 2014, sob

orientação dos professores Dr. Miguel Carid Naveira (Departamento de Antropologia) e Dr. Marco Antonio Valentim (Departamento de Filosofia), ambos da Universidade Federal do Paraná (UFPR, Curitiba). 

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332 que pretende dar conta da compreensão do outro e de seu mundo, seja ele quem for e esteja onde estiver. Considerando a possibilidade da existência de múltiplas cosmologias, torna-se possível estabelecer um diálogo, não hierarquizado, entre grupos indígenas nativos e colonizadores e colonizados ocidentais.

Dessa forma, com o objetivo de exercitar um diálogo entre diferentes metafísicas, busca-se neste trabalho pôr em relação o pensamento ameríndio com o pensamento filosófico ocidental. Para tanto, toma-se como ponto de inflexão teórica a importância que o olhar possui nessas diferentes concepções cosmológicas. O olhar que é interpretado tanto pelo perspectivismo ameríndio quanto pela ontologia fenomenológica de Sartre. Ao final, será possível perceber que ver e ser visto são experiências fundamentais para organização do mundo e para a experiência da existência, seja a do eu ou a do outro.

2. O Ver E O Ser Visto No Mundo Índígena: Tornando-Se Sujeito Da Perspectiva

A capacidade de ocupar um ponto e de vista é uma questão de grau e de situação, mais que uma propriedade diacrítica fixa desta ou daquela espécie. (VIVEIROS DE

CASTRO, 2002, p. 353)

Aquele que se debruça a compreensão das cosmologias ameríndias perceberá facilmente que o “ver” (ou o “olhar”) possui um espaço sui generis na constituição e organização do mundo. Não é o sentir, o ouvir, o cheirar e nem mesmo a linguagem os responsáveis primordiais pela constituição do mundo. Mas sim, é a experiência do ver (a si mesmo e ver o outro) a ação fundamental para organização dos mundos. Para utilizar a expressão do antropólogo Oscar Cavalia Sáez (2012, p.

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15): “cada ponto de vista define um mundo diferente [que] se traduz na experiência singela de que cada sujeito age em função do que vê, e com isso realiza o que vê”.

De acordo com antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1996, p. 116), o perspectivismo, enquanto possibilidade de assumir o ponto de vista, refere-se à “teoria indígena segundo a qual o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo [...] é profundamente diferente do modo como esses seres os vêem e se vêem”. Em uma síntese do que seriam esses pontos de vistas, esboça o antropólogo:

Tipicamente, os humanos, em condições normais,

vêem os humanos como humanos, os animais

como animais e os espíritos (se os vêem) como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos

vêem os humanos como animais (de presa), ao

passo que os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predadores). Em troca, os animais e espíritos se vêem como humanos: apreendem-se como (ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da cultura — vêem seu alimento como alimento humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos

vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os

vermes da carne podre como peixe assado etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as instituições humanas (com chefes, xamãs, festas, ritos etc.) (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 17, grifamos).

Necessário frisar que, de acordo com o antropólogo, “Esse "ver como" se refere literalmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase

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334 seja mais no aspecto categorial que sensorial do fenômeno” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 17). Noutros termos, não se trata aqui de uma figura de linguagem, mas da própria possibilidade real e concreta de ver ou ser visto pelo outro, de capturar ou ser capturado pelo olhar do outro.

Esta concepção indígena possibilita a compreensão de um universo povoado por diferentes tipos de agentes subjetivos, sejam eles humanos ou não. Para a cosmologia indígena, assim como os humanos, os não-humanos também são dotados de alma, o que lhes possibilita “se verem como pessoas”. Contudo, o fato desses seres não-humanos se verem como pessoas não implica que eles sejam vistos pelos outros enquanto tais, como se existisse uma face visível e outra invisível, em relação a si e aos outros. De acordo com Viveiros de Castro, “O que essas pessoas

vêem – e, portanto, o que são enquanto pessoas – constitui

precisamente o problema filosófico formulado por e para o pensamento indígena” (2010, p. 35, grifamos).

Observa-se, aqui, que há uma relação muito estreita entre a ação de “ver”, da observação, e a condição de “ser”, da ontologia daquele que vê. Dependendo de quem vê, dependendo do ponto de vista, a natureza do mundo pode ser outra. Esta possibilidade de variação do mundo pode ser melhor compreendida através do seguinte esboço metafísico:

[Para o povo Juruna] Os porcos vivem em comunidades divididas em famílias e organizadas em torno de um chefe dotado de poder xamânico. Habitam aldeias subterrâneas e são produtores de cauim, o qual, na perspectiva humana, nada mais

é que uma argila finíssima, conforme me contou

uma mulher que sonhou com uma aldeia de porcos em cujo porto ela e eu tomávamos banho, até que

descobrimos que estávamos atoladas em uma lama da qual os porcos diziam ser, justamente, sua mandioca puba (LIMA, 1996, p. 22,

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A partir deste relato de campo da antropóloga Tânia Lima, percebe-se que a mesma situação pode ter diferentes pontos de vista, dependendo de quem assume a posição de sujeito que observa. Tem-se que é no contato com o outro, mediado pelo olhar, que se coloca em questão a constituição do mundo, de ser apenas uma argila finíssima ou de se tratar de mandioca puba. Traduzindo essa experiência em uma expressão de Sartre, pode-se afirmar que “O olhar do outro me atinge através do mundo e não é somente transformação de mim mesmo, mas metamorfose total do mundo” (2007, p. 347).

Além da transformação do mundo, ser visto pelo outro pode ser algo perigoso, uma vez que nunca se sabe previamente o desfecho das relações estabelecidas pelo olhar. Deixar que o outro assuma a perspectiva, é entrar no mundo do outro, motivo pelo qual esta captura afeta quem é visto. Um exemplo das implicações causadas ao ser visto pelo outro, é descrito por Tânia Lima (2006, p. 4), nos seguintes termos:

Em uma tarde de agosto de 1989, uma olhada-de-onça implicou para um homem Yudjá um longo período de sofrimentos e suspeitas de que havia chegado a sua hora de morrer. Uma onça aparecera na aldeia durante o dia, e Mareaji, retornando de uma caçada coletiva, foi com os seus companheiros procurá-la. Em um caminho de roça estava ela, sossegada, fitando Mareaji com a espingarda em punho, contra ela dirigida. Matá-la pra quê, se não se mostrava agressiva? Mareaji desistiu de atirar.

Conforme descreve Lima, após ser fitado pela onça, Mareaji passou a vomitar sangue na noite seguinte em que foi visto pela onça. Tal fato o fez acreditar que a onça havia passado sua doença a ele. Algum tempo depois, quando uma médica lhe disse que ele estava com muito sangue (no sentido de não estar anêmico), Mareaji suspeitou que o excesso de sangue fosse

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336 decorrente de seu encontro com a onça. Por esse motivo, Mareaji passou a fazer pequenos cortes em seu corpo com o objetivo de derramar o sangue excedente para fora.

Neste contexto, percebe-se que o fato de ter sido visto pela onça, trouxe implicações reais à Mareaji, implicações estas que colocavam sua própria vida em risco, uma vez que a posição que havia se configurado entre Mareaji e a onça, ele estava na posição de presa perante um predador. Na configuração relacional entre predador -> olhar -> presa, a onça havia assumido a posição de sujeito da perspectiva, motivo pelo qual colocava em perigo a posição situacional de Mareaji.

Se considerarmos que “a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 355), e que neste contexto a onça, ao assumir a posição de predador que fita o homem, é ela que passa a evidenciar sua humanidade, e com isso, passa a ter controle do mundo enquanto sujeito da perspectiva. De outro lado, a humanidade de Mareaji passa a ser inviabilizada pela visualização da humanidade da onça. Em última instância, nessa disputa de olhares é a própria humanidade que é disputada entre os seres em relação.

Diante disso, pode-se perceber que ver, enquanto qualidade daquele que assume o ponto de vista, se tornando sujeito da perspectiva e revelando a sua humanidade, traz implicações reais à humanidade do outro que pode ser capturado pelo mundo constituído a partir do olhar daquele que vê. Contudo, esta relação entre quem vê e quem é visto não está dada previamente ao contato entre seres que pertencem a coletivos diferentes. E sobre a relação de predação estabelecida entre os Juruna e os porcos do mato:

Essa caça é tida como uma empresa muito perigosa; os porcos são muito violentos e ousam afrontar o caçador, que só consegue escapar-lhes subindo em uma árvore, como aconteceu no

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passado recente com um finado. [...] Se o caçador emite um grito, sua alma pode ir viver com os porcos. O mesmo destino pode ter aquele que se atemorizar diante dos porcos medonhos: assustada, sua alma foge e é capturada pelos porcos (LIMA, 1996, p. 22).

Tanto na relação com os porcos quanto com a onça, percebe-se a possibilidade de inversão na posição de quem ocupa o ponto de vista. A possibilidade de um ou outro ser o sujeito da perspectiva é sempre presente, e por isso todo cuidado é sempre necessário. Pois, deixar que o outro seja sujeito da perspectiva é conferir a ele o controle da situação e da constituição do mundo nessa ontologia da predação.

Percebe-se, além disso, que o sujeito da perspectiva também não está previamente dado, mas é um lugar disputado na relação entre humanos, animais, espíritos e coisas. Dependendo do ponto de vista, é a própria constituição do mundo que se altera. Não apenas o sujeito se transforma, mas é mundo que vai que com ele. Ou melhor, enquanto que as possibilidades de relação mantém-se as mesmas (presa versus predador) a percepção do mundo dependerá da interação dada pelo olhar e de quem assume a posição de sujeito da perspectiva. A possibilidade de disputa se torna possível uma vez que há compartilhamento da humanidade, de uma mesma cultura (de predação), sendo que quem se revela como sujeito da perspectiva, se revela como humano, variando com isso a natureza das coisas.

2.3. O Olhar E O Ser Visto No Mundo Não Indígena

No tópico anterior buscamos demonstrar a importância do olhar (ver e ser visto) para as cosmologias indígenas, isto através das formulações teóricas do perspectivismo ameríndio. Antes de adentrar ao diálogo com

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338 Sartre, passemos a uma reflexão da utilização do perspectivismo ameríndio em outro contexto que não o indígena. Com isso, além compreender a lógica da ontologia ameríndia em um contexto mais próximo, será possível perceber que o diálogo metafísico entre mundos diferentes se concretiza antes mesmo que o diálogo teórico.

Aplicando o perspectivismo para compressão de técnicas de produção de pessoa no estuário do Amazonas, em sua tese intitulada O arpão e o anzol, o antropólogo Carlos E. Sautchuk lança mão das relações de predação para compreender as relações sociais daqueles que vivem nos lagos da Vila Sucuriju, no estado do Amapá. De acordo com o pesquisador, a relação entre o pescador e o peixe pirarucu, deve ser compreendida numa leitura situacional de predação, onde deslocamento, percepção e ataque estão em jogo.

Sautchuk afirma que “O comportamento e as propriedades dos seres que vivem nos lagos evocam relação de captura, não consistindo exagero dizer que os laguistas povoam um mundo organizado em torno dos aspectos da predação” (2007, p. 85). Nas relações estabelecidas pela prática da pesca através do arpão, “Pirarucu ou laguista buscam sempre levar um ao outro para locais que favoreçam relativamente suas próprias ações” (SAUTCHUK, 2007, p. 88). Por isso, a capacidade de olhar o outro antes que este perceba a possibilidade de ser capturado é fundamental para dominar a situação e capturar o pirarucu.

Em que pese à importância dos outros sentidos, novamente aqui a visão se torna imprescindível na medida em que torna possível discernir a presença do outro se aproximando, e mais do que isso, ela torna possível se perceber a si mesmo dentro ou fora do raio de contato com o outro, perceber-se passível ou não de captura. A própria expressão mundiar, utilizada pelos laguistas, pretende traduzir “o poder da própria visão para tornar outro ser dócil a seu acercamento ou mesmo para fazê-lo vir até si, englobando-o em seu espaço de captura

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propriamente dito” (SAUTCHUK, 2007, p. 91). Esse jogo das relações de captura entre laguistas e pirarucus é assim descrito:

A alternativa do laguista para evitar ser mundiado por outro ser é enxergar primeiro: ao perceber

antes, ele controla a situação, dissipando os

poderes paralisantes da visão alheia. Daí que a preocupação constante dos laguistas é manter uma disposição da visão que não se limite apenas a olhar, ou seja, voltar a vista para uma direção. É necessário reparar, que significa perscrutar o ambiente com intenção, com propósito, para que lhe seja possível enxergar, o que, num terceiro nível das interações visuais, designa o ato de contatar visualmente outro ser. Da mesma forma, os animais por vezes olham, mas não enxergam o laguista, e nessa economia das nuances visuais é

que se desenrola a atividade de predação

(SAUTCHUK, 2007, p. 91, grifamos).

O trabalho antropológico de Sautchuk possibilita perceber como que o perspectivismo extrapola as fronteiras das aldeias, e mantém sua potencia teórica e metodológica de modo a auxiliar em pesquisas para além dos grupos indígenas. Além disso, é interessante ressaltar a diferenciação que aqui se entre a ação de olhar e a ação de enxergar/reparar. Conforme resta demonstrado, não basta olhar despropositadamente para o outro, é preciso intencionalidade, é preciso estar à frente para ocupar a posição de predador e evitar ser capturado pelo outro. Novamente aqui as posições nunca estão dadas, mas sempre dependem das relações que um ser estabelece com o outro, tornando a relação sempre situacional.

A partir dos três relatos etnográficos expostos nessa primeira parte da reflexão – da olhada da onça sobre Mareaji, da relação entre os Juruna e os porcos, e da relação entre laguistas e pirarucus – surgem duas questões que buscaremos abordar conjuntamente com a leitura de Sartre, quais sejam: 1) o olhar

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340 como condição para assumir a posição de sujeito da perspectiva; e, 2) o caráter relacional e situacional das relações de predação, tornando sempre possível a inversão das posições na relação predador/presa.

3. O Olhar, O Outro E O Mundo: Excurso Acerca Da Ontologia Fenomenológica De Sartre

Com o olhar do outro, a “situação” me escapa, ou, para usar de expressão banal, mas que traduz bem nosso pensamento: já

não sou dono da situação. (SARTRE, 2007, p. 341)

Na terceira parte da obra O Ser e o nada, Sartre dedica sua reflexão ao problema da existência do outro enquanto possibilidade para a existência do eu (ego), reservando nesta discussão um capítulo inteiro à reflexão sobre o olhar. Segundo o filósofo, a existência do eu depende também da existência do Outro e da percepção que este Outro faz sobre mim, pois o “conhecimento de si” se dá em uma tensão de ordem individual e coletiva. A vergonha, conforme descrito pelo filósofo, somente pode ser experiência diante da existência do outro que me percebe e de um eu que reconhece que sou conforme o outro que me vê. O outro não apenas revela o que sou, mas me constitui em novo tipo de ser que deve sustentar qualificações novas a partir do olhar que ele lança sobre mim.

Na filosofia sartreana, é necessário considerar que a existência do Outro, assim como a do eu, só é possível a partir da interação. No olhar (ser-em-par-com-outro), o outro é objeto real e fundamenta o ser-outro daquele que olha. Neste sentido, a experiência do olhar não é uma fusão de consciências, mas o tornar-se o outro daquele eu. Pois o “Ego não está nem

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formalmente, nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo, como o Ego do Outro” (SARTRE, 2003, p.13).

O mundo ocupa papel singular nesta perspectiva, pois a possibilidade de existência de alguém, e a própria ipseidade depende de um mundo. Por isso, o desejo de totalidade é desejo de mundo, sendo pela falta que o ser se lança em direção a aquilo que lhe falta, em direção ao mundo e aos outros, sendo este sua possibilidade e seu futuro.

O ser humano é compreendido por Sartre como projeto de si, que na dialética de desejo e falta de plenitude encontrará no mundo, este aqui compreendido como mundo dos objetos, da matéria, do conhecimento, dos conceitos, das verdades, dos valores e das normas, a possibilidade de realização de seu projeto de fundamento de si. É na consciência que se dá a interação consigo, com o mundo e com o Outro. O encontro e o reconhecimento do outro não se dá no nível abstrato. Ao contrário, “o outro não é somente aquele que vejo, mas aquele que me vê” (SARTRE, 2007, p. 297), e neste duplo movimento de ver e ser visto é que se torna possível a constituição do eu, do outro e do mundo.

Ressalta-se que este duplo movimento não se dá no nível da reciprocidade, mas sim, em uma relação hierarquizada. De acordo com o filósofo, é necessário distinguir entre a percepção objetiva e a percepção da “presença de pessoa”. Assim, quando o outro me vê, o faz de forma objetiva (para ele sou outro-objeto), pois também para mim “uma das modalidades da presença do outro a mim é a objetividade” (SARTRE, 2007, p. 326).

Mas a percepção do outro não é meramente conjectura e probabilidade. Esta presença do outro remete a possibilidade de capturá-lo não só como objeto, mas sim como “presença em pessoa”. Por sua vez, esta “presença em pessoa” do outro só é possível ser captada quando vejo que o outro me olha. É quando estou sendo visto pelo outro é que transpasso da

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342 objetividade que tenho do outro e confiro-lhe a dimensão de “presença em pessoa”.

Ao fazer isso, por consequência, eu me torno objeto no mundo para o outro. Já não sou sujeito, mas objeto dele no seu mundo. Assim como eu percebo o mundo, este outro também o percebe. Eu percebo ele percebendo, mas não percebo sua percepção. E quando percebo que sou percebido por ele, que sou visto, o mundo me escapa. E assim, “de súbito, apareceu um objeto que me roubou o mundo [...]. A aparição do outro no mundo corresponde, portanto, a um deslizamento fixo de todo o universo, a uma descentralização do mundo que solapa por baixo a centralização que simultaneamente efetuo” (SARTRE, 2007, p. 330).

É, pois, a possibilidade de desintegrar o mundo que caracteriza o outro como uma pessoa humana, mas que antes era apenas um humano objeto. Ou seja, este mesmo outro que num primeiro momento foi visto por mim como objeto, torna-se agora sujeito da situação. Por isso, “a aparição, entre os objetos de meu universo, de um elemento de desintegração deste universo, é o que denomino a aparição de um homem no meu universo” (SARTRE, 2007, p. 329).

Noutros termos, é o olhar do outro que me constitui como coisa, que desagrega meu universo e reagrupa todas as coisas, inclusive a mim, em torno dele. Tem-se que é a possibilidade de perceber “ser-visto-por” que confere ao outro a sua humanidade. A objetividade vista por mim, se torna “presença em pessoa” quando percebo que sou visto por ele. Nesta visão é que se alteram (ou, mesmo, se alternam) os mundos, o do eu e o do outro.

A partir dessa relevância do olhar na relação estabelecida entre os termos, Sartre busca distinguir o olho (enquanto dimensão objetiva) do olhar (enquanto constituição do sujeito) nos seguintes termos:

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longe de perceber o olhar nos objetos que o manifestam, minha apreensão de um olhar endereçado a mim aparece sobre um fundo de destruição dos olhos que "me olham": se apreendo o olhar, deixo de perceber os olhos; estes estão aí, permanecem no campo de minha percepção, como puras apresentações, mas não faço uso deles; estão neutralizados, excluídos, não são objeto de uma tese, mantêm-se no estado de "fora de circuito" em que se acha o mundo para uma consciência que efetua a redução fenomenológica prescrita por Husserl. [...] O olhar do outro disfarça seus olhos, parece adiantar-se a eles. (SARTRE, 2007, p. 333)

Se percebo o olho, o faço tão somente enquanto objetividade, mas se percebo o olhar, percebo que estou sendo visto, então um sujeito se revela a mim, e ressalta a minha objetividade no mundo que ele percebe. Dessa forma, se “não podemos perceber o mundo e captar ao mesmo tempo um olhar lançado sobre nós” (SARTRE, 2007, p. 333), o que implica ser visto pelo outro?

Para buscar responder a esta questão, passemos agora a última parte da nossa reflexão buscando desenvolver as implicações que o olhar do outro promove naquele que é visto, e na constituição do mundo. Para tanto, buscaremos relacionar as implicações reais trazidas pelas etnografias ameríndias referentes à relação de “se ver” e “ser visto” com as concepções filosóficas de Sartre quanto ao poder ontológico do olhar.

4. Um Ponto De Vista Em Duas Teorias: Entre Sartre E O Perspectivismo

A partir do quanto foi exposto, o objetivo desta segunda parte do trabalho é criar um diálogo entre a filosofia sartreana e o perspectivismo. Certamente são muitas as diferenças

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344 entre a ontologia fenomenológica desenvolvida pelo filósofo Jean-Paul Sartre n’O ser e o nada e o perspectivismo ameríndio desenvolvido, principalmente, pelos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima.

Essas diferenças poderiam compor uma lista prolongada de oposições, tais como: pensamento ocidental europeu versus nativo; cultura versus natureza; humanos versus não-humanos, ênfase na humanidade versus ênfase na animalidade, e tantas outras dicotomias que nosso pensamento ocidental está acostumado a repetir. Contudo, ao invés de acentuar as oposições criadas pelo contexto em que se desenvolveram (e se desenvolvem) cada reflexão e pelo lapso temporal que marca uma proposta e outra, torna-se mais interessante para o diálogo aqui proposto ressaltar alguns pontos de inflexão entre ambas as teorias.

Conforme já fundamentado, o primeiro ponto de encontro entre a teoria do perspectivismo ameríndio e a filosofia sartreana está no olhar. Para resgatar as passagens etnográficas acima transcritas, é no olhar (na olhada-de-onça, no olhar o pirarucu, no olhar dos porcos) que se define a posição do sujeito da perspectiva e, consequentemente, a constituição do mundo de acordo com a perspectiva daquele que olha. Nesta interação entre ver e ser visto, desenvolve-se uma dinâmica da predação em que capturar o outro é fundamental para se tornar o sujeito da perspectiva.

De modo semelhante, Sartre concebe que é através do olhar que alguém consegue se tornar sujeito da situação diante de um outro. É, pois, a condição de ser visto olhando que torna aquilo que antes era objeto em um sujeito no mundo, mundo este configurado a partir da perspectiva de quem olha. Ao ser visto pelo outro,

tenho consciência de mim escapando-me de mim mesmo, não enquanto sendo o fundamento de meu próprio nada, mas enquanto tendo meu

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fundamento fora de mim. [...] E esse eu que sou, eu o sou em um mundo que o outro me alienou, porque o olhar do outro abraça meu ser e, correlativamente, as paredes, a porta, a fechadura; todas essas coisas-utensílios, no meio das quais estou, viram para o outro uma face que me escapa por princípio (SARTRE, 2007, p. 336).

A percepção do outro enquanto sujeito está justamente neste momento de captura que o outro faz de mim no mundo, e na própria transformação do mundo de acordo com seu olhar. É nesse sentido que “podemos considerar-nos escravos na medida que aparecemos ao outro” (SARTRE, 2007, p. 344), pois a visão que o outro desenvolve sobre mim difere da minha visão sobre meu próprio eu. Enquanto eu me vejo sujeito e o considero objeto no mundo, ao ser visto por ele, me torno objeto no mundo em que ele percebe e ele se torna sujeito para mim.

Para o perspectivismo, esta dupla relação desenvolvida pelo olhar pode ser condensada nos seguintes termos:

Um ser aparece para si mesmo de modo distinto do que ele aparece para outrem. Isto é, a relação consigo difere da relação com outrem. Há um vínculo necessário (no sentido forte do termo) entre essas duas perspectivas: elas constituem um par. E há mais. Pois, a um ser que aparece para um outro ser de um modo distinto do que aparece para si mesmo, outros seres aparecerão distintamente para um e outro — tendo esses terceiros, em muitos casos, a sua própria perspectiva. Quer dizer, o conceito indígena trata a vida enquanto realidade sensível como uma especificidade de cada vivente. Os viventes arrastam consigo a sua própria realidade sensível, segundo a sua espécie, melhor dizendo, a sua posição. (LIMA, 2006, p. 6)

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346 Assim, se deixar ser visto pelo outro é deixar que o outro seja dono da perspectiva, é torna-se objeto da captura de outrem. E frisa-se, não é apenas o sujeito que se altera frente ao outro, mas é o próprio mundo que ganha novos contextos. É a “minha situação no mundo e a situação dele, ou seja, os complexos-utensílios que cada um de nós organizou e os diferentes istos que aparecem a um e a outro sobre fundo de mundo” (SARTRE, 2007, p. 377) que se alteram com a perspectiva.

Por isso, se o modo que os Juruna veem a argila fininha no rio difere do modo como os porcos a veem, enquanto cauim, é essa diferença que possibilita modificar as situações e as posições dos termos num mesmo contexto. Contexto este que passa a ser visto por perspectivas diferentes. Não há como coabitar duas perspectivas ao mesmo tempo, o conflito é inerente à própria relação e constituição dos mundos aqui em jogo. Ou se vê cauim ou se vê argila, ou se é predador ou se é presa. Por isso, o contato com o outro é sempre perigoso, pois altera a própria ontologia daquele que deixa ser visto, uma vez que seu mundo escoa junto com o olhar do outro.

Este perigo de ser visto pelo outro é traduzido por Sartre na seguinte passagem:

O outro-objeto é um instrumento explosivo que manejo com cuidado, porque antevejo em torno dele a possibilidade permanente de que se o façam explodir e, com esta explosão, eu venha a experimentar de súbito a fuga do mundo para fora de mim e a alienação de meu ser. Meu cuidado constante é, portanto, conter o outro em sua objetividade, e minhas relações com o outro-objeto são feitas essencialmente de ardis destinados a fazê-lo permanecer como objeto (SARTRE, 2007, p. 377).

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Observa-se que tanto o perspectivismo quanto a filosofia sartreana ressaltam uma relação de predação, de captura que se dá pelo olhar. E é pelo olhar daquele que ocupa a perspectiva que o mundo se configura. Não somente quem é visto se transforma, mas o próprio mundo no qual se é visto ganha nova perspectiva. São as coisas, as situações e as relações que se reconfiguram a partir da perspectiva daquele que olha, levando consigo o mundo e os outros que são vistos.

Por sua vez, olhar não é apenas pôr o olho, mas é ver, é enxergar - conforme expôs Carlos Sautchuk acerca da relação do laguistas com o pirarucu. É preciso olhar antes para estar adiante em relação ao outro, não se pode correr o risco de ver sem enxergar, sem perscrutar o ambiente e dominar o outro conforme o mundo que se passa a configurar a partir do sujeito da perspectiva.

Sartre (2007, p. 346), numa perspectiva filosófica quanto a impossibilidade de estar no mesmo mundo daquele que vê, afirma que

O outro é o ser ao qual não volto minha atenção. É aquele que me vê e que ainda não vejo; [..] aquele que me está presente enquanto me visa e não enquanto é visado; é o polo concreto e fora de alcance de minha fuga, da alienação de meus possíveis e do fluir do mundo rumo a um outro mundo, mundo este que é o mesmo e, contudo, incomunicável com aquele.

Estar atento a aproximação do outro e ao seu olhar é fundamental para se garantir enquanto sujeito da perspectiva. Frisa-se que Sartre destaca a impossibilidade do eu ser “sujeito em pessoa” e, concomitantemente, ser objetividade ao outro. Noutros termos, ou se é visto ou se é quem vê. De forma semelhante, no perspectivismo, esta condição está dada no sentido de que ou se é sujeito da perspectiva (predador) ou então se é visto pelo outro (presa). Ou se vê cauim ou se vê argila, e

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348 nunca as duas coisas ao mesmo tempo. Tentar ser sujeito da perspectiva e ao mesmo tempo reconhecer no outro a mesma condição é correr o risco de se passar de um mundo para o outro.

Este perigo de se ver como humano e reconhecer no outro a humanidade é ratificada no perspectivismo ameríndio pelas exceções xamânicas. Os xamãs são os únicos que possuem a habilidade de cruzar fronteiras corporais e estabelecer um diálogo com perspectivas de outras coletividades. “Vendo os seres não-humanos como estes se vêem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 358), papel este que dificilmente poderia ser assumido por um leigo em condições normais.

Além de ser condição para se tornar sujeito da perspectiva, o olhar também mantém a possibilidade de inversão das relações entre presa e predador. Embora as posições estejam dadas, nas relações baseadas na predação os sujeitos podem ocupar perspectivas diferentes. Esta variação decorre do fato de que, para o perspectivismo, a condição comum a todos os seres é a humanidade compartilhada, enquanto que a diferença se dá pela natureza. É por isso que, potencialmente, seres de diferentes espécies podem ocupar a posição de sujeito.

O que definirá justamente quem se torna o sujeito do olhar é a própria relação situacional dada na interação dos seres envolvidos. Carlos Sautchuk relata essa indefinição da posição do sujeito numa relação hipotética entre a onça e a cobra grande. Ao questionar seus interlocutores sobre quem seria a presa e quem seria o predador no caso de uma onça se encontrar com uma cobra grande, os nativos explicaram que a relação dependeria da situação.

Para os pescadores da Vila Sucuriju, tanto a onça quanto a cobra grande são seres respeitados. Contudo, caso a interação ocorresse na ilha, a onça teria mais chances de ser a predadora, uma vez que a cobra grande possui suas habilidades na água e não no seco. Em contrapartida, caso o encontro se

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realizasse na água, então sim a cobra grande teria mais habilidade de capturar a onça, pois esta é mais lenta e limitada para fazer seus movimentos agressivos no ambiente aquático.

Diante disso, sobre a relação a onça e a cobra grande, tem-se que ambos são

dois seres que ocupam o topo da cadeia alimentar, mas cujos potenciais ofensivos e defensivos apenas se concretizam nas situações reais de interação e a depender das qualidades e ações do adversário. [...] O exemplo limítrofe do encontro entre a cobra grande e a onça nos mostra que, no que concerna as relações entre os seres, o que é preeminente não é a padronização das trocas energéticas pelos grupos de animais classificados segundo seus traços anatômicos, mas o modo como estes traços se articulam nas interações de predação e fuga entre indivíduos em situações concretas (SAUTCHUK, 2007, p. 87).

O exemplo hipotético aqui descrito demonstra etnograficamente o caráter situacional das relações. Considerando que a possibilidade de inversão está sempre presente, deve-se sempre ter a devida atenção quando se estabelece as relações com seres pertencentes a outros coletivos não-humanos. Olhar antes e perscrutar com atenção o ambiente se torna essencial para não se deixar ser tomado pelo olhar alheio e nem se tornar presa de um mundo perspectivamente diferente daquele a qual se pertence.

Além disso, o exemplo do encontra entre estes dois predadores reitera a premissa filosófica dada por Sartre quando a impossibilidade de se criar um conceito transcendental de humano. O humano não pode ser um conceito ou uma personificação abstrata e sem relação com a realidade. Ao contrário, é na relação, na interação entre os seres que o humano se define e se transforma constantemente.

É, pois, a interação que possibilita a variação do humano e o que se torna essencial no perspectivismo não é tanto

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350 o desígnio de províncias ontológicas, mas os contextos relacionais, os pontos de vistas originados a partir dessas relações. Dessa forma, a humanidade se torna “o modo reflexivo do coletivo, e como tal é derivado em relação com as posições primárias de predador ou presa, que necessariamente se relacionam com outros coletivos, outras multiplicidades de pessoas em situação de alteridade perspectiva” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 38).

5. Diferentes Conhecimentos, Diferentes Mundos

O antropólogo Oscar Cavalia Saéz (2012, p. 15), afirma que o perspectivismo é, de certa maneira, “uma epistemologia cum ontologia”, uma vez que postula que “a realidade está feita de sujeitos, de atores ou, ainda mais claro, de autores com seus mundos”. Em última instância, ao mesmo tempo em que surgem sujeitos que conhecem, estes possibilitam a existência do mundo que vão sendo conhecidos.

A diferença entre as formas e possibilidades de conhecimento entre o perspectivismo e o pensamento ocidental impedem a redução de uma proposta à outra, em que pese suas aproximações conforme acima declinadas. Conforme podemos observar nas premissas sartreanas, o outro me conhece de forma como objeto pelo olhar e ao me ver, dentro de um mundo, o faz a partir da objetividade com que me apresento a ele. A subjetividade, a personificação, o “ser em pessoa” só é possível a partir do reconhecimento de um olhar, da consciência de estar sendo visto pelo outro. E, ao perceber que estou sendo visto, o meu mundo e meu próprio ser passa ao plano da objetividade para o outro.

No sistema esboçado por Sartre é a objetividade que domina as possibilidades do conhecimento. Conhecer é transpor tudo e todos ao plano da objetivação, é dissecar os corpos e se

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tornar sujeito de um mundo objetivado. Sobre este processo de objetivação ao qual nós estamos acostumados e do qual Sartre faz uso para sua ontologia fenomenológica, Viveiros de Castro afirma:

Conhecer, assim, é dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal. Os sujeitos, tanto quanto os objetos, são vistos como resultantes de processos de objetivação: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e se conhece objetivamente quando consegue se ver ‘de fora’, como um ‘isso’ (2002, p. 358).

Partindo do mesmo pressuposto, de que ver e ser visto fundam a base do conhecer e ser conhecido (assim como funda o ser), o perspectivismo apresenta uma proposta que vai em direção oposta à ontologia sartreana. Ao invés de objetivar o mundo pelo olhar, para o perspectivismo “Conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido — daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa” (loc. cit.).

Observa-se aqui um contrataste abissal entre uma proposta epistemológica e outra. Contraste este que se traduz em concepções de mundos diferentes, e em relações diferentes que cada um constrói com os diferentes mundos que são construídos. Na cosmologia ameríndia, a distribuição da humanidade para seres não-humanos, e, por conseguinte a atribuição de “cultura” a esses seres, possibilita a existência de mundos diferentes daqueles que nós, ocidentais, estamos acostumados a enxergar. Não apenas o outro se transforma em sujeito, mas outros mundos se tornam possíveis a partir desses sujeitos não-humanos com humanidade.

E assim, nas relações entre presa e predador, onde a humanidade está em constante disputa, o que significa ser humano se torna outra coisa. No mundo indígena, a oposição entre humanos e animais resta eclipsada pelas relações

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352 estabelecidas pelos diversos olhares que se entrecruzam e pelos quais os mundos vão se (re)definindo e se transformando numa constante metamorfose, não mais da cultura que já se encontra distribuída, mas da própria natureza.

6. Considerações Finais

Buscamos no percurso deste trabalho apresentar um diálogo possível entre o perspectivismo ameríndio e a ontologia fenomenológica de Sartre. O ponto de encontro para um diálogo entre as duas teorias foi o olhar e a importância que este possui tanto na concepção filosófica sartreana quando no perspectivismo ameríndio. Em ambas as teorias, é o olhar que possibilita apreender o mundo e os seres que nele existem. É pela consciência de ser visto que ocorre a existência de outros sujeitos, e, é pelo olhar que desenvolve as relações de predação, de captura do outro e do mundo que o acompanha.

A partir do olhar, buscou-se demonstrar que as posições de presa e predador, de observado e observador, nunca estão dadas a priori, mas sempre são objeto de disputa e de interação entre os potenciais sujeitos da perspectiva. Ademais, não é a constituição ontológica (especificamente corporal) desses sujeitos que definem a posição, mas é o próprio contexto situacional da relação que cria as possibilidades de interação, conforme demonstrado pelo caso hipotético da onça e da cobra grande, ou mesmo pelo caso da argila fininha que virou cauim na perspectiva dos porcos.

Por fim, em que pese a proximidade lógica das teorias acima expostas, conclui-se que há uma diferença marcada entre Sartre, para o qual o conhecimento produz um mundo objetivado, e o perspectivismo, onde o pressuposto do conhecimento é a personificação dos seres e a subjetivação das relações. Este pressuposto do conhecimento subjetivado somente é possível a

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partir da premissa na qual é a humanidade que está distribuída entre os seres, e não a animalidade como condição.

Por isso, em que pese as proximidades lógicas dessas teorias, proximidades estas que possibilitaram um diálogo, é preciso reconhecer que aderir ao pensamento ameríndio ou ao ocidental faz toda a diferença ao se relacionar com o mundo. E como visto, essas diferenças no relacionamento com o mundo não dizem respeito apenas ao plano teórico, epistemológico ou ainda acadêmico, mas são concepções que dizem respeito ao posicionamento ético e político no modo como nos relacionamos. 7. Referências Bibliográficas

CALAVIA SÁEZ, Oscar. 2012. “Do perspectivismo ao índio real”. Campos, 13(2): 7-23.

LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana, 2(2): 27-47.

______. 2006. Olhada-de-onça. Texto inédito da conferência apresentada na ANPOCS, MR02: Diferenças, Diferonças: regimes contemporâneos da natureza.

SARTRE, Jean-Paul. 2007. O ser e o nada: ensaio de ontologia

fenomenológica. 15ª ed. Tradução e notas de Paulo Perdigão.

Petrópolis (RJ): Vozes.

______. 2003. La transcendance de L'Ego: Esquisse d'une description phénoménologique. Paris: VRIN.

SAUTCHUK, Carlos Emanuel. 2007. O arpão e o anzol: técnica

e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá). Tese

(Doutorado em Antropologia). Universidade de Brasília.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, 2(2): 115-144.

______. 2002. “Perspectivismo e Multinaturalismo na América indígena” em A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios

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354 ______. 2010. Metafísicas caníbales: líneas de antropologia

postestructural. Traducido por Stella Mastrangelo. Madrid: Katz

Referências

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