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7. A aldeia ausente: índios, caboclos, cativos, moradores e imigrantes na formação da classe camponesa brasileira - A formação do campesinato no Brasil Mário Maestri 2004

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7. A aldeia ausente: índios, caboclos, cativos, moradores e imigrantes na formação da classe camponesa brasileira1

Mário Maestri

A formação do campesinatono Brasil

Em meados do século 20, orientados por necessidades políticas e apoiados nas teses aprovadas, em 1928, pelo VI Congresso da Internacional Comunista sobre os “países coloniais”, que defendiam a aliança dos trabalhadores “à burguesia nacional”,2 cientistas sociais brasileiros deduziram literalmente a gênese do campesinato brasileiro do desenvolvimento daquela categoria social na Europa.

Essa leitura mecanicista e ideológica do passado contribuiu para bloquear o estudo das profundas especificidades do desenvolvimento da formação social brasileira. Enquadrando a realidade nacional a categorias e situações européias, essas visões primaram por desconhecer as importantes vias singulares da formação da classe camponesa no Brasil, que foi vista como categoria constitutiva essencial desde os primeiros momentos da colonização lusitana da América.

Ainda em 1963, o intelectual comunista Alberto Passos Guimarães propunha: “Jamais, ao longo de toda a história da sociedade brasileira, esteve ausente, por um instante sequer, o inconciliável antagonismo entre a classe dos latifundiários e a classe camponesa, tal como igualmente sucedeu em qualquer tempo e em qualquer parte do mundo.”3 O Brasil era continuação sem rupturas da realidade européia e mundial. Esses analistas despreocuparam-se até mesmo com definição da categoria “camponês” que permitisse o acompanhamento efetivo da sua formação no Brasil.

1 Uma versão desse artigo foi publicada em: Marxismo e ciências humanas. São Paulo:

CEMARX/Xamã, 2003, pp. 130-158 e CENTRO DE ESTUDOS MARXISTAS. As

portas de Tebas: ensaios de interpretação marxista. Passo Fundo: UPF Editora, 2002, pp. 149-176. Agradecemos a leituras e comentários do engenheiro-agrônomo Humberto Sorio Júnior, da UPF e do historiador Marco Villa, da UFSC.

2 Cf. FRANK, Pierre. Histoire de l´Internationale Comuniste. Montreuil: La Brèche, 1979, pp. 603-607. 3 Cf. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, sd.,

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Acreditamos que tenham sido sobretudo cinco as principais vias que levaram à formação do campesinato brasileiro propriamente dito, categoria que se encontra em acelerado processo de superação, devido a sua crescente submissão à produção e ao mercado capitalistas. Ou sejam: as vias nativa, cabocla, escravista, quilombola e colonial. O desconhecimento do caráter tardio e da fragilidade da formação da classe camponesa no Brasil tem dificultado a compreensão de aspectos determinantes da história nacional.

A categoria camponês

Compreendemos como unidade produtiva camponesa o núcleo dedicado a uma produção agrícola e artesanal autônoma que, apoiado essencialmente na força e na divisão familiar do trabalho, orienta sua produção, por um lado, à satisfação das necessidades familiares de subsistência e, por outro, mercantiliza parte da produção a fim de obter recursos monetários necessários à compra de produtos e serviços que não produz; ao pagamento de impostos, etc. Nas comunidades camponesas, as práticas agrícolas ultrapassam claramente o nível horticultor, já que a subsistência da comunidade familiar depende em forma essencial da produção agrícola. Nesse contexto, o artesanato, a pesca, a coleta, etc. desempenham papéis mais ou menos importantes, mas sempre secundários, no seio da produção familiar. A unidade produtiva camponesa articula-se com a divisão social geral do trabalho sobretudo através de sua esfera mercantil.

O núcleo familiar camponês mantém uma posse relativamente estável sobre a terra – meio de trabalho –, mesmo quando não possui sua propriedade. O que lhe permite investir trabalho na potenciação da rentabilidade da terra e de sua exploração – drenagem, irrigação, desempedramento, cultivos perenes etc. A potenciação da fertilidade dos terrenos pelo trabalho pretérito foi sempre elemento fundamental na fixação do camponês à terra.

Tal fenômeno se explicita plenamente quando do fim da servidão da gleba, ou seja, da adscrição forçada do servo ao terreno senhorial. “A ‘liberdade’ de abandonar a gleba ficou sendo, em muitos casos, apenas formal. O senhor deixou, é certo, de poder obrigar o camponês fugitivo a voltar à gleba. Mas como, abandonando a gleba, o camponês perdia além de tudo quanto possuía todas as benfeitorias que, pelo seu trabalho e dos seus antepassados, a terra tivesse recebido, a coação material adquire novo aspecto [...].”4

4 Cf. CUNHAL, Álvaro. As lutas de classe em Portugal nos fins da Idade Média. 2 ed. rev. e aum. Lisboa:

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Mesmo ali onde apenas parte dos núcleos familiares reside na aldeia, a comunidade camponesa apresenta-se em geral como comunidade aldeã tendencialmente autônoma, devido à necessidade de defesa e de domínio do território e das reservas alimentícias; de trocas matrimoniais e econômicas; de acesso a ofícios e serviços especializados etc.

A clara dominância das práticas agrícolas na unidade camponesa nasce de desenvolvimento mínimo dos instrumentos e das técnicas produtivas. A produção agrícola camponesa surge da superação qualitativa da produção horticultora doméstica, que se apóia em técnicas extensivas, em ferramentas simples e possui o fogo e a força humana como únicas formas de energia. A partir de certo grau, o desenvolvimento dessa forma de produção permite agricultura semi-intensiva ou semi-intensiva apoiada no uso de ferramentas de ferro; de técnicas de irrigação, de adubação, de rotação de vegetais; da tração animal; de arados mais ou menos complexos etc. A unidade entre a produção horticultora doméstica e a agrícola camponesa, no processo do nascimento da segunda no seio da primeira, tende a confundir os níveis mais elevados da produção horticultora doméstica com os menos desenvolvidos da produção agrícola camponesa.

Classe em si, classe para si

A propriedade capitalista privada dos meios de produção é vista naturalmente pelo trabalhador como condição necessária para a expropriação de sua força de trabalho e dos bens que produz. Para o camponês, “em sua relação com o capital, a propriedade privada”, ao contrário, “aparece como garantia de sua sobrevivência e de sua família”. É considerado, portanto, como fator de progresso e não de regresso.5

Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ao analisar o comportamento do campesinato francês, Karl Marx deduziu tendencialmente a consciência e a organização dos camponeses de seu modo de produção material, em geral realizado em grupos familiares isolados nas diversas parcelas agrícolas, dedicados a práticas simétricas e independentes.

“Os camponeses detentores de parcelas constituem uma massa imensa, cujos membros vivem em situações idênticas, mas sem que entre eles existam múltiplas relações. O seu modo de produção isola-os uns dos outros, em vez de os levar a um intercâmbio mútuo. [...]. Na medida em que subsiste entre os camponeses detentores de parcelas uma conexão apenas local, a

5 BONAMIGO, Carlos Antônio. Pra mim foi uma escola ... O princípio educativo do trabalho cooperativo.

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identidade dos seus interesses não gera entre eles nenhuma comunidade, nenhuma união nacional e nenhuma organização política, não formam uma classe. São portanto, incapazes de fazer valer o seu interesse de classe em seu próprio nome.”6

Ressalte-se que Marx referia-se a comunidades de camponeses organizados em unidades familiares economicamente independentes, espalhadas no território, do ponto de vista produtivo e habitacional. Em Miséria da filosofia, ele aprofundou sua definição sobre classe, ao desdobrá-la em “classe em si” e “classe para si”. “As condições econômicas transformaram, primeiro, a massa da população do país em proletários. O domínio do capital criou, para essa massa, uma situação comum e interesses comuns. Assim, essa massa já é uma classe para o capital, mas ainda não é uma classe para si mesma. Na luta [...], essa massa se une, constituindo-se numa classe para si. Os interesses que defende convertem-se em interesses de classe.”7

A inserção de uma comunidade de produtores em um mesmo processo produtivo determina, de per si, sua conformação como “classe em si”, determinando-lhe, tendencialmente, as mesmas visões de mundo, os mesmo interesses etc., ainda que esse segmento social possua uma consciência muito parcial dessa identidade comum. Objetivamente em si, uma classe eleva-se subjetivamente a classe para si quando assume a consciência de seus interesses, em forma mais ou menos plena. Quando toma tendencialmente consciência de sua existência como grupo social singular, com interesses, objetivos, projetos etc. comuns.

Esse maior enriquecimento da definição das determinações essenciais da categoria “classe” colocava em questão sobretudo as dificuldades objetivas e subjetivas da classe camponesa, conformada objetivamente pela sua igual inserção no processo produtivo e na divisão social do trabalho, em assumir a consciência de suas necessidades, transitando de classe em si para classe para si.

A comunidade aldeã camponesa desempenhou sempre um papel essencial na superação tendencial do isolamento das unidades produtivas. Ali onde essa tradição foi e é mais forte, mais poderosamente os produtores rurais resistiram e resistem às classes exploradoras. No século 13, em Portugal, a forte oposição entre os senhores e os pequenos arrendatários rurais ensejou a redação dos forais que “estabeleciam a relações entre o senhor da terra e o coletivo dos seus habitantes. Os direitos e deveres aí fixados eram mais ou menos complexos segundo a

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importância do núcleo populacional, que ia desde grandes cidades a casais [aldeias] isolados de camponeses.”8

Comunidades aldeães

Antes da chamada “descoberta” do Brasil, em 1500, a ocupação territorial do Brasil processava-se em ritmo desigual, sobretudo em relação a importantes regiões da América. O que ajuda a compreender a profunda diversidade entre as atuais formações sociais do Brasil e da Mesoamérica e dos Andes Centrais, por exemplo.

Em regiões dos atuais territórios da Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala, México, Peru etc., desenvolveram-se sólidas comunidades aldeãs agrícolas que praticavam uma produção agrícola intensiva baseada sobretudo no milho e na batata. Essa tradição agrícola desconheceu o arado, a tração animal e a associação gado-agricultura.

Apoiada na enxada e no bastão de plantar [simples e desenvolvido] e, eventualmente, na irrigação, adubação e silagem, apesar de envolver apenas cinco por cento dos territórios do continente americano, essas civilizações agrícolas sustentaram noventa por cento da população americana, com densidades demográficas de até 35-40 habitantes por km2. Essas práticas agrícolas apoiavam-se no esforço produtivo masculino e feminino.

As sociedades agrícolas americanas avançadas estruturavam-se a partir da família nuclear e da comunidade aldeã, fortemente cimentadas pelos laços que mantinham com terrenos agrícolas potenciados pelo trabalho. Nessas comunidades, eram muito fortes os vínculos parentais e vicinais consolidados pelo domínio comunitário da terra.9

Os atuais territórios do Brasil jamais conhecerem comunidades americanas que dominassem iguais formas de produção agrícola avançada. Originárias da Amazônia Central, as comunidades de cultura tupi-guarani constituíram o complexo civilizacional horticultor mais desenvolvido estabelecido nessas regiões, antes da colonização lusitana.

Acredita-se que as demais comunidades nativas americanas que ocuparam regiões dos atuais territórios brasileiros apoiassem originalmente sua subsistência na caça, na pesca e na coleta. Em contato com comunidades tupis-guaranis, teriam incorporado e adaptado, em forma imperfeita, as práticas horticultoras daquelas comunidades às suas necessidades.

8 Cf. CUNHAL, Álvaro. As lutas de classe [...]. Op. cit., p. 17.

9 Cf. CARDOSO, C.F.C & BRIGNOLI, Héctor Pérez. História economica de América Latina. I. 4ª ed.

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Esse processo de difusão e socialização de técnicas e práticas produtivas teria se processado sobretudo através da captura e incorporação de mulheres tupi-guaranis às demais comunidades, já que as práticas horticultoras eram atividades essencialmente femininas, no contexto da divisão sexual do trabalho daqueles grupos humanos. Efetivamente, acredita-se que, através da vegeocultura, a horticultura tenha sido uma invenção feminina, apropriada pelo homem quando assumiu caráter central como prática produtiva.

Horticultura brasílica

Em 1500, nas terras do litoral brasílico, relativamente mais férteis do que as do interior, vivia população estimada em um milhão de americanos. Nessa época, as matas que cobriam a longa faixa litorânea que se estendia do cabo de São Roque, no atual Rio Grande do Norte, ao Rio Grande do Sul, eram habitadas por aproximadamente seiscentos mil nativos de língua tupi-guarani – tupinambás, sobretudo, e tupi-guaranis, em menor número.10

De 150 a 250 tupis-guaranis viviam em aldeias independentes, estabelecidas em territórios de domínio comunitário, dedicados à caça, à pesca, à coleta e à horticultura. Em média, para sustentar sua subsistência, uma aldeia tupi-guarani necessitava de uns 45 km ² de território. Devido ao escasso desenvolvimento de suas forças produtivas materiais, essas comunidades conheciam ocupação demográfica de densidade baixa, sobretudo em relação aos níveis alcançados nas regiões assinaladas da América Central e Andina.11

Os tupis-guaranis praticavam horticultura parcelar, familiar e extensiva de subsistência, em área florestal tropical e subtropical. Essa produção apoiava-se nos diversos tipos de milho (Zea mays), de feijão (Phaseolus e Canavalia), de batata-doce (Ipomoea batatas) e, sobretudo, de mandioca (Manihot esculenta) – raiz provavelmente originária do litoral tropical brasílico, rica em amido, excelente fonte de energia, base alimentar quase perfeita quando ingerida associada a alimentos ricos em proteína, como a carne.

10 Cf. MAESTRI, Mário.

Os senhores do litoral: conquista portuguesa e genocídio

tupinambá no litoral brasileiro. [século XVI]. 2a ed. Porto Alegre: EdiUFRGS, 1995;

FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura tupinambá. CUNHA, M. C. da [Org.]

História dos índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília: CNPq, 1992, p. 383.

11 Cf. FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá. 2a ed.

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Além de outros gêneros, essas comunidades exploraram o cará (Dioscoréa sp), o amendoim (Arachis hypogaea), a abóbora (Cucurbita), a banana, o abacaxi, o tabaco, o algodão e as pimentas. Fatores geoecológicos e sobretudo o nível de desenvolvimento civilizacional determinavam que a prática horticultora tupi-guarani assumisse caráter itinerante. Quando a coleta e a caça escasseavam e as condições higiênicas das residências e acampamentos degradavam-se, as aldeias eram transferidas para alguns quilômetros de distância.12

A técnica de base dessas práticas horticultoras – coivara – nascia da abundância e da qualidade das terras; da ausência de ferramentas desenvolvidas; do desconhecimento da fertilização das terras e da escassez relativa de braços. A horticultura tupi-guarani assentava-se no uso da energia humana e do fogo, desconhecendo o arado, a tração animal, a irrigação e a adubação, a não ser em forma embrionária.

Cultura de plantação

Os tupis-guaranis praticavam horticultura de plantação apoiada sobretudo no cultivo das mandiocas. Realizada através da replantação de fração do caule ou do rebento, esse tipo de cultura não exige sementes e possui rendimento relativamente elevado. Em geral, nessa forma de cultura, os produtos são conservados nas plantações até o momento do consumo, pois degradam-se com facilidade.13

As operações horticultoras tupis-guaranis eram simples. Antes das chuvas, abria-se clareira na mata virgem com machados de pedra polida, abatendo-se apenas as árvores pequenas e médias. Com uns quinhentos gramas de peso, o machado de pedra polida permitia derrubar, em quatro horas, uma árvore de madeira resistente, de uns trinta centímetros de diâmetro, na altura do corte. A derrubada das matas e a limpeza dos terrenos eram tarefas desenvolvidas em forma associada pelos homens de uma residência coletiva – maloca – ou da aldeia – taba.14 A maloca e a taba eram instâncias sociais necessárias à realização das práticas horticultoras tupis-guaranis.

12 Cf. GALVÃO, Eduardo. Elementos básicos da horticultura de subsistência indígena.

REVISTA DO MUSEU PAULISTA. Nova Série, XIV. São Paulo, 1963, pp. 120-44; RIBEIRO, Darcy [Ed.]. Suma etnológica brasileira. 2a ed. 1. Etnobiologia. Petrópolis: Vozes\FINEP, 1987, p. 69.

13 Cf. MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, celeiros & capitais. Porto: Afrontamento,

1977, pp. 51-71.

14 Cf. HERING, Hermann von. Os machados de pedra dos índios do Brasil e o seu

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Aberta a clareira, deixava-se tudo secar, de duas semanas a dois meses. A seguir, lançava-se fogo. A queima dos troncos e dos ramos limpava os campos e libertava nutrientes minerais que aumentavam a fertilidade dos terrenos. Esse método de limpeza causava importantes danos ao ecossistema, sobretudo quando o fogo escapava ao controle humano.15

As mulheres ocupavam-se dos trabalhos agrícolas restantes, já que as tarefas horticultoras propriamente ditas eram monopólio feminino. Após preparo superficial dos terrenos, plantavam-se hortas familiares heterogêneas de meio hectare, em média.16 Os pedaços de mandioca eram enterrados na terra. Os grãos de milho, plantados com a ajuda de um simples bastão pontudo de madeira, ferramenta feminina por excelência.17

Ao contrário da agricultura cerealífera, esse tipo de horticultura, essencialmente familiar, dispensa o uso de equipes de trabalhadores para a realização de obras coletivas, como a adubação, a irrigação, a terraplanagem etc., que incorporam o trabalho pretérito à terra, aumentando sua produtividade futura.

Essa horticultura de plantação também dispensa pesadas tarefas cíclicas – colheitas, transporte, beneficiamento, guarda etc. – que tornem os alimentos parcialmente produtos do trabalho comunitário. Mesmo envolvendo um trabalho comumente diário de combate a pragas, extirpação de ervas competidoras etc., realizados em geral em forma associada, suas tarefas podem ser realizadas por um produtor isolado.

Frágeis grupos aldeões

A horticultura tupi-guarani de plantação não enseja a formação de grandes estoques de alimentos e sementes, conservados e protegidos em celeiros. Essas comunidades colhiam os produtos diretamente das hortas, para serem consumidos imediatamente, já que apenas as diversas variedades de mandioca permitem conservação mais longa. Após crescimento de seis meses, a mandioca resiste, madura, sob a terra, por pouco mais de um ano. Para ser consumida, a

15 Cf. STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo:

EdiUSP, 1974, p. 162; ABBEVILLE, Claude d'. História da missão dos padres capuchinhos na ilha de Maranhão. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo: EdiUSP, 1975, p. 226; RIBEIRO, Darcy [Ed.]. Suma etnológica brasileira. 2a ed. 3 vol. Op. cit., p. 47.

16 Cf. GALVÃO, Eduardo. “Elementos básicos da horticultura de subsistência indígena”. Ob. cit., p. 126. 17 Cf. ABBEVILLE. História da missão dos padres capuchinhos na ilha de Maranhão. Op. cit., p. 242;

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mandioca necessitava complexas manipulações, realizadas pelas mulheres. Entre elas se encontra a extração do venenoso ácido cianídrico (HCN).18

As determinações gerais dessa produção horticultura ensejavam frágil coesão dos grupos sociais aldeões.19 Os membros de uma taba tupi-guarani lutavam coesos pelo controle dos territórios comunitários, exigidos por seu modo de produção. Porém, como vimos, a cada três a cinco anos, transferiam a aldeia para alguns quilômetros de distância, sobretudo devido à degeneração das condições higiênico-ambientais e ao esgotamento dos recursos fornecidos pela caça e coleta.

O deslocamento das plantações, permitido pela abundância da terra, mantinha eficientemente o estado sanitário das culturas, através da quebra do ciclo dos agentes causadores das enfermidades nos vegetais, hoje em dia obtido precariamente e com altos investimentos através do uso intensivo de produtos agro-químicos industriais.

Os aldeões tupis mudavam o local das aldeias, portando apenas armas, instrumentos familiares, as armações das moradias. Esse modo de produção determinava o caráter sumário das residências. Era comum que as aldeias fracionassem-se durante a transferência, quando ultrapassavam o tamanho ideal determinado pelo modo de produção em vigor. A ruptura não ensejava grandes tensões, já que não havia alimentos e sementes nos celeiros para dividir; desconheciam-se culturas de ciclo longo e não se incorporara trabalho pretérito à terra, aumentando sua produtividade.20

O modo de produção horticultor tupi-guarani diferenciava-se do das comunidades camponesas européias – alemãs, italianas, polonesas etc. –, assentadas na agricultura cerealífera; em gêneros vegetais de ciclo longo; no arado; na tração animal; na adubação; na irrigação; na rotação de vegetais etc. Esse último modo de produção ensejava comunidades aldeãs coeridas pela posse do celeiro e pelo domínio de uma terra produtivamente potenciada pelo trabalho passado.

18 Cf. MAESTRI, Mário. A agricultura africana nos séculos XVI e XVII no litoral angolano. Porto Alegre:

EdiUFRGS, 1978, p. 87.

19 Cf. CHILDE, V. Gordon. La naissance de la civilization. Paris: Médiations, 1964, p. 66. 20 Cf. METRAUX, Alfred. La civilization matérialle des tribus Tupi-Guarani. Paris: Paul

Geuthner, 1928, p. 4; EVREUX, Ivo d'. Viagem ao norte do Brasil. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1929, p. 72; RIBEIRO, Darcy [Ed.]. Suma etnológica brasileira. 2a ed. 2.

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Como vimos, eram também importantes as diferenças das práticas tupis-guaranis em relação às das comunidades andinas e mesoamericanas.21

Autoridade limitada

Na sociedade tupi-guarani, o excedente da produção familiar autônoma era muito escasso e irregular. As unidades familiares conheciam uma semi-autonomia produtiva. A comunidade estabelecia vínculos frágeis com uma terra escassamente potenciada, no relativo a sua produtividade. O modo de produção tupi-guarani ensejava sociedade assentada na nucleação livre, em aldeias fragilmente coeridas, de produtores familiares independentes. Não havia base material capaz de sustentar sólidas confederações interaldeãs e, muito menos, organizações estatais tributárias, ao igual do ocorrido na Mesoamérica e nas regiões andinas.22

Era muito limitada a autoridade do chefe – principal – sobre os membros de uma residência coletiva – maloca. O chefe – morubixaba – da aldeia – taba – comandava discricionariamente os aldeões apenas na guerra. Não havia centralização interaldeã permanente. A autonomia das aldeias e os escassos vínculos com a terra facilitaram a conquista-extermínio-absorção dessas comunidades pelo mundo colonial-escravista português.23

A sociedade aldeão horticultura tupi-guarani foi a mais elevada e maciça experiência protocamponesa americana praticada nos atuais territórios do Brasil. Ela foi destruída pela escravização e absorção dos produtores nativos, quando da expansão da fronteira agrícola colonial, processo impulsionado pelo avanço do latifúndio agrícola e pastoril colonial escravista.24

Devido a isso, ao contrário do ocorrido nas regiões americanas referidas, foi desprezível a contribuição da via indígena à formação da comunidade camponesa nacional. Em verdade, ela

21 Cf. MENDRAS, Henri. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978; KAUTSKY, Karl. La

cuestión agraria. México: Cultura Popular, 1978.

22 Cf. MURRA, John. “En torno a la estructura política de los inka.” SORIANO, Waltdemar E. [Org.] Los

modos de producción en el Imperio de los Incas. Lima: Amaru, 1981, pp. 213-231; GODELIER, Maurice. “Modo de producción asiático y los esquemas marxistas de evolucioón de las sociedades”. GODELIER & MARX & ENGELS. Sobre el modo de producción asiático. Barcelona: Martinez Roca, 1977, pp. 13-67.

23 Cf. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7a ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São

Paulo: EDUSP, 1982. p. 78; STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Op.cit., p. 164.

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restringiu-se às raras comunidades nativas independentes ou vivendo em reservas, praticamente sem expressão econômica e social na formação social brasileira.

No nível das representações ideológicas, a forma de produção tupi-guarani ensejou interpretações racistas e justificativas como a de Gilberto Freyre, em Casa-Grande &Senzala, que propuseram ser o nativo americano incapaz de se adaptar ao trabalho produtivo sistemático e à modernidade ocidental. “Às exigências do novo regime de trabalho, o agrário, o índio não correspondeu, envolvendo-se em uma tristeza de introvertido. Foi preciso substituí-lo pela energia moça, tesa, vigorosa do negro [...].”25

A escassa contribuição da via indígena na formação da classe camponesa brasileira expressa-se também no desaparecimento do tupi-guarani como língua coloquial do Brasil, apesar de ter constituído o grande meio de comunicação do litoral, nos séculos 16, 17, 18 e parte do 19. No Brasil não há, como em importantes regiões americanas, línguas camponesas em contraposição à língua das classes proprietárias.26

Civilização cabocla

Foram numerosos os nativos americanos que se adaptaram à sociedade latifundiário-exportadora através de processo de superação-degeneração das tradições aldeãs nativas. Grande parte dessa população dedicou-se a uma economia familiar não aldeã de subsistência, apoiada na caça, na pesca, na coleta e na horticultura itinerante, em região florestal, na periferia da sociedade oficial.

A manutenção de determinações de base da horticultura nativa – produção familiar; coivara; produção de subsistência; plantas de ciclo curto; instrumentos rústicos etc. – manteve e aprofundou a fragilidade dos laços interfamiliares e dos vínculos permanentes com a terra dessas comunidades.

O nativo semi-aculturado foi denominado de caboclo, termo derivado do vocábulo tupi-guarani kari’uoka. Com o passar dos anos, o termo caboclo passou a designar todo e qualquer indivíduo nacional dedicado à economia agrícola de subsistência. Portanto, de denominação étnico-produtiva, a designação passou a descrever essencialmente realidade socioprodutiva,

25 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sobre [sic] o regime da

economia patriarcal. 47a edição revista. São Paulo: Global, 2003, pp. 229 e 163.

26 Cf. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada. São Paulo:

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mesmo se mantendo subjacente ao termo a compreensão de que se trate de cidadão de origem criolla. Mesmo quando o caboclo descende de um imigrante europeu.

O caboclo mantinha relação de posse precária com a terra que, associada a sua destribalização, ensejou o fim do domínio e do controle comunal milenar, mesmo não permanente, de um amplo território, praticado sobretudo pelas comunidades tupis-guaranis na faixa litorânea e em outras regiões do atual território brasileiro.

O mundo nas costas

O caráter temporário da ocupação da terra pelo caboclo expressa-se na ausência de lavouras perenes e no caráter sumário de sua moradia e benfeitorias, que podiam ser “reconstituídas em questão de dias”, e de seus equipamentos, capazes de serem carregados nas costas de um homem. Realidade que se apoiava em tradições e práticas das comunidades americanas nativas, como assinalado.

A simplicidade, precariedade e autonomia da moradia do caboclo registram-se no fato de que, comumente, ele não necessita “de um único prego, dobradiça, ou qualquer material a ser comprado” na construção de sua moradia.27 Nesse tipo de construção, eram e são usados apenas recursos naturais disponíveis nas proximidades do local onde a moradia é levantada – esteios de madeira, folhas de palmeira para a cobertura dos ranchos etc.

Em geral, à medida que avançou a fronteira da agricultura mercantil, as comunidades caboclas abandonaram as terras que detinham, sob a forma de posse, por novas terras, enquanto existiram. As comunidades caboclas foram expulsas pelo latifúndio e pela expansão da fronteira agrícola camponesa colonial.

Ao analisar o vale do Itajaí, em Santa Catarina, a historiadora Marilda da Silva lembra: “O crescimento da colônia fez os colonos cobiçarem as terras dos sertanejos ou ‘posseiros’, como eles mesmos se denominavam. Estes, recebendo pequena indenização pela morada e ‘benfeitorias’ [...], mudavam-se para uns quilômetros acima.”28

Um colono descreve e justifica a expulsão, em Chapecó, Santa Catarina, do posseiro-caboclo das terras vendidas pela Colonizadora Bertaso, nas primeiras décadas do século passado. “Daí o italiano comunicava que a terra era dele. [...] e eles acabavam saindo de cima da terra. Ia para

27 DIAS, Gentil Martins. Depois do latifúndio: continuidade e mudança na sociedade rural nordestina. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: EdiUNB, 1978, p. 66.

28 SILVA, Marilda R.G. Ch. Gonçalves da. Imigração italiana e vocações religiosas no Vale do Itajaí.

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outras terras. Porque moravam em cima da terra que não era deles. Eram dos italianos que tinham comprado essas terras.”29

Pobreza relativa

A terra abandonada não possuía plantações perenes e quantidade significativa de trabalho pretérito coagulado a ser defendido pelo caboclo. A inexistência da aldeia sedentária, como locus de formação de sólidos laços familiares e societários, determinada pelo modo de produção praticado pelas comunidades caboclas, dificultou a resistência à expansão dos latifúndios e das comunidades coloniais-camponesas. Ainda mais que essa expansão era apoiada pelo Estado. A pobreza material objetiva da sociedade cabocla e a fragilidade de seus laços aldeões ensejaram também produção cultural-ideológica muito pobre, que contribuiu igualmente para sua debilidade social, diante da maior consistência cultural-ideológica da produção latifundiária e colonial-camponesa. Foi igualmente frágil a oposição das comunidades caboclas à expansão do latifúndio, mesmo quando escasseou a terra.

Em casos extraordinários, fenômenos ideológicos de cunho religioso e mágico funcionaram como vetores aglutinadores da resistência cabocla diante da ameaça da perda das terras que controlavam – Canudos, Contestado, Monges de Pinheirinho etc.30 A forma mística, mágica e religiosa que assumia a consciência dessas comunidades caboclas nascia do caráter rústico e limitado de sua cultura material, ensejando forma incompleta da transição de classe em si em classe para si.

A expressão místico-mágica-religiosa assumida por esses movimentos não deve jamais velar suas raízes socioeconômicas profundas. Ao analisar a revolução burguesa na Inglaterra, em 1640, comumente apresentada por cientistas sociais como luta religiosa, o historiador marxista Christopher Hil lembrou que o fato dos protagonistas de então terem falado e escrito em

29 Cf. Arquivo Ceom. Entrevistas: pasta 06, n. 04. Apud VICENZE, Renilda. Terra nova, vida nova: a

colonizadora Bertaso e a ocupação colonial do oeste catarinense. 1920-1950. Passo Fundo: UPF, 2003. [Dissertação de mestrado]

30 Cf. FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gêneses e lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972;

QUEIROZ, Maria Isaura. O messianismo no Brasil e no Novo Mundo. São Paulo: Dominus/EdiUSP, 1965; VILLA, Marco Antônio. Canudos: o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995; MACEDO, José R. & MAESTRI, Mário. Belo Monte: uma história da guerra de Canudos. São Paulo: Expressão Popular, 3a

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“linguagem religiosa” não deve nos impedir de ver o “conteúdo social por detrás do que, aparentemente, são idéias puramente teológicas”.31

Há igualmente uma forte tendência da historiografia burguesa de superestimar o caráter religioso e messiânico dos movimentos caboclos brasileiros, desconhecendo suas raízes e expressões ideológicas socioeconômicas. Quando da Guerra do Contestado, caboclos que atacaram o depósito da Brazil Lumber Company escreveram, a lápis, sobre a porta de um armazém: “O governo da República prende [retira] aos filhos brasileiros as terras que pertencem à nação e as vendem aos estrangeiros, agora nós estamos prontos a fazer valer nossos direitos”. No bolso de um outro caboclo morto durante os combates, encontrou-se bilhete onde se lia: “Nós não temos direito à terra, tudo é para aqueles que vem da Europa”.32 No passado, as comunidades caboclas conheceram importância econômica e social diferenciada nas diversas regiões do Brasil. Atualmente, elas se mantêm em forma declinante na periferia e nos interstícios da fronteira agrícola mercantil. Ao contrário das comunidades nativas tupis-guaranis, o caboclo desempenhou papel essencial na formação da classe camponesa nacional.

Escravismo: o camponês ausente

Em 1532, superados o domínio e o exclusivismo das trocas desiguais, realizadas na faixa litorânea, de mercadorias européias por gêneros americanos – escambo –, o Estado colonial português iniciou a ocupação territorial do litoral através da organização de grandes plantações escravistas sobretudo de cana-de-açúcar. A tradição da produção escravista daquele gênero agrícola fora desenvolvida nos séculos anteriores na bacia do Mediterrâneo e, a seguir, nas ilhas atlânticas – Madeira e São Tomé, sobretudo.33

As costas do Nordeste do Brasil, próximas dos mercados consumidores europeus, ocupadas em grande parte por comunidades tupinambás, adaptavam-se grandemente à plantação da cana-de-açúcar. A expansão da produção escravista açucareira superou as práticas

31 Cf. HILL, Christopher. A revolução inglesa de 1640. Portugal: Presença; Martins Fontes: Brasil, 1977, p.

22; ver, também: AMADO, Janaína. A revolta dos mucker. 2° ed. São Leopoldo: Unisinos, 2002.

32 “Il governo della Repubblica prende ai Figli Brasiliani le terre che appartengono alla nazione e lê vende allo

stranieiro, noi adesso siamo pronti a far valere i nostri diritti.” “Noi non abbiamo diritto alla terra, tutto è per quelli che vengono dall’Europa.” BRUNELLO, Piero. Pionieri: gli italini in Basile e il mito della frontiera. Roma: Donzelli, 1994, pp. 28, 29.

33 Cf. MARCHANT, Alexander. Do escambo à escravidão: As relações de portugueses e

índios na colonização do Brasil. 1500-1580. São Paulo: CEN; Brasília: IEL, 1980;

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mediterrânicas e atlânticas, apoiadas em pequenos engenhos movidos pela força humana ou animal. A ocupação colonial de grandes extensões da América pelas nações e classes dominantes européias colocou a questão da forma de exploração da força de trabalho, necessária à valorização mercantil desses imensos territórios.34

Nas Américas, ali onde eram rarefeitas e foram exterminadas as comunidades nativas, a exploração colonial, a partir de modo de produção-apropriação apoiado no trabalho livre, impedia a expropriação significativa do sobretrabalho do produtor direto.35 A abundância de terra e os instrumentos de trabalho simples determinavam que o camponês livre e sua família centrassem o trabalho na produção de meios de subsistência. Assim sendo, em contexto em que a abundância relativa da terra impedia a coerção econômica do produtor direto, impôs-se a sua coerção física, através do trabalho forçado – a escravidão.36

Comumente, os ideólogos das classes proprietárias justificaram a introdução do trabalhador negro-africano escravizado nas Américas a partir das pretensas dificuldades ou impossibilidades do europeu e do índio de se submeterem ao trabalho físico sistemático sob o clima tropical, o primeiro por questões biológicas, o segundo por questões culturais. O negro-africano, ao contrário, seria produtor naturalmente predisposto ao trabalho duro sob tais condições.37

De 1530 a 1888, a antiga formação social brasileira foi dominada pelo modo de produção escravista colonial38, apoiado na exploração da mão-de-obra escravizada inicialmente americana, a seguir africana e afro-descendente. Durante esse longo período, a produção escravista subordinou, econômica, social e demograficamente, os diversos modos e as formas de produção com os quais conviveu.39

34 Cf. AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico: Esboços de história. 4a ed.

Lisboa: Clássica, 1978; CANABRAVA, A.p. O açúcar nas Antilhas. (1697-1755).

Paulo: IPE/USP, 1981; SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil.

(1500-1820). 7a ed. São Paulo: CEN; Brasília: INL, 1977.

35 Cf. MAESTRI, Mário. Uma história do Brasil: A Colônia: Da descoberta à crise colonial. 2a ed. São Paulo: Contexto, 1996.

36 Cf. MARX, Karl. Il capitale: critica dell´economia politica. Roma: Riuniti, 1994. "La teoria moderna della

colonizzazzione".

37 Cf. MAESTRI, Mário. “Gilberto Freyre: da Casa grande ao Sobrado: gênese e dissolução do patriarcalismo

escravista no Brasil”. CADERNOS IHU, ano 2, no 6, 2004, Unisinos, São Leopoldo, 31 pp.

38 Cf. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4 ed. ver. e ampl. São Paulo: Ática, 1988; CARDOSO, C.

F. C. “El modo de producción esclavista colonial em América”. ASSADORIAN, C. S.. Modos de producción em América Latina. Córdoba: Pasado y Presente, 1973.

39 Cf. MONTEIRO, John Manuel. Negro da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São

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A necessidade da organização da plantação escravista mercantil ensejou a apropriação latifundiária das terras das colônias luso-americanas através da lei portuguesa das sesmarias que entregava, sem qualquer, ônus, aos apadrinhados da administração colonial – sesmeiros – propriedades de “três léguas em quadro”, uns 13 mil hectares. As sesmarias deviam ser ocupadas e exploradas, efetivamente, pelos seus proprietários, o que comumente não ocorria. A sesmaria era antiga tradição feudal lusitana. Em Portugal, desde o século 11, o crescimento demográfico e o povoamento das terras conquistadas aos mouros impulsionaram a colonização de territórios incultos ou recém-conquistados. Para evitar abusos, seis magistrados municipais distribuíam as propriedades, sob a condição que fossem exploradas por aqueles que as recebiam.

Terra para os senhores

Em meados do século 14, Portugal conheceu importante crise, agravada pela peste negra que, chegada do Extremo Oriente, golpeou toda a Europa. Em Portugal, desde fins de 1348, a peste dizimou sobretudo as populações das cidades e dos mosteiros, ceifando boa parte do milhão de portugueses da época. A falta de trabalhadores nos campos elevou os miseráveis salários rurais e diminuiu os altos foros dos arrendamentos da terra.

O despovoamento do país mergulhou a agricultura feudal na crise. Ditada por dom Fernando, a Lei das Sesmarias [1375] procurava distribuir as terras incultas; garantir a produção agrícola; fixar os jornaleiros rurais à terra; impedir a alta de seus salários. O regulamento tentava impulsionar a agricultura e proteger os proprietários de terras.40 A lei manteve a obrigatoriedade, sob pena de expropriação, da exploração das sesmarias.

O sesmeiro era obrigado a pagar as rendas feudais que gravam a terra, não sendo, porém, desde as Ordenações Manuelinas (1521-1603), possível acrescer novos encargos à mesma.41 Na América lusitana, a posse sesmeira da terra garantiu o domínio latifundiário da propriedade, base material para a exploração do produtor direto escravizado. Já que não possuía encargos, a terra era concedida sem qualquer ônus, à exceção do dízimo de Cristo, podendo ser vendida, arrendada, hipotecada etc.

40 DIAS, Carlos Malheiro. [Org].

História da colonização portuguesa no Brasil. Edição monumental comemorativa do I Centenário da Independência do Brasil. [HCPB]. Porto: Litografia Nacional, MCMXI. [3 v.]; AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico : Esboços de História. 4a ed. Lisboa: Clássica, 1978.

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Na América, o Brasil foi a nação americana que importou o maior número de trabalhadores escravizados: dos nove a quinze milhões de africanos chegados com vida ao Novo Mundo, três a cinco desembarcaram no litoral brasileiro.42 Os africanos escravizados eram mais comumente camponeses aldeões que perdiam a liberdade devido à violência pura ou a motivos políticos e econômicos. Em geral, as mulheres eram retidas como esposas na África e os homens, vendidos nos entrepostos europeus da costa. Na África banto, grande celeiro de cativos americanos, o trabalho agrícola era tarefa feminina, como nas sociedades tupis-guaranis.43

Como fora comum na Grécia e em Roma escravistas,44 apenas nas cidades os trabalhadores escravizados produziram em forma semi-autônoma. Em meio rural, eles tinham seus atos produtivos e não produtivos estritamente dirigidos e controlados, contando com uma autonomia individual e produtiva muito limitada. “A mão-de-obra [...] mais ou menos numerosa, executa as tarefas principais organizadas em equipes [...], que obedecem ao comando único do planador ou do seu feitor-mor. À exceção dos minúsculos cultivos dos próprios escravos, quando permitidos, não há atividades autônomas, todas obedecem à direção integrada no tempo e no espaço, desde a preparação do terreno ao escoamento final do produto para a venda.”45

Trabalho servil

As práticas agrícolas escravistas assentaram-se na grande lavoura de exportação. Os trabalhos agrícolas eram realizados por grupos de trabalhadores feitorizados – eitos ou equipes. As

42 Cf. FREITAS, Décio. O escravismo brasileiro. Porto Alegre: EST: Vozes, 1980. pp. 10-2; GORENDER,

Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. pp.120, 138-138-40; MAESTRI, Mário. Servidão negra: trabalho e resistência no Brasil escravista Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, pp. 33-34.

43 Cf. MAESTRI, Mário. Servidão negra. Op.cit.; CAPELA, José. Escravatura: a empresa

de saque. O abolicionismo. (1810-1875). Porto: Afrontamento, 1974; DAVIDSON,

Basil. Mãe negra. Lisboa: Sá da Costa, 1978; MEILLASSOUX, Claude. Antropologia

da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1995; SILVA,

Alberto da Costa. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, 2002.

44 Cf. GARLAN, Yvon. Les escalves en Grèce Ancienne. France, Maspero, 1982;

GIARDINA, A. & SCHIAVONE, E. (Org.) Società romana e produzione schiavistica. I. L'Italia: insediamenti e forme economiche. Roma-Bari, Laterza, 1981; STAERMAN, E.M. & TOFIMOVA, M.L. La schiavitù nell'Italia Imperiale. Roma, Riuniti, 1975; MAESTRI, Mário. O escravismo antigo. 17a ed. São Paulo: Atual, 1999.

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produções escravistas clássica e americana deprimiam tendencialmente o desenvolvimento dos instrumentos de trabalho, que foram sempre essencialmente rústicos.46 A escravidão brasileira praticamente desconheceu o arado. Seu principal instrumento foi o enxadão pesado e resistente. Nas plantagens, a policultura era prática marginal, limitada à roça de subsistência. Apesar dos esforços empreendidos por importantes segmentos historiográficos, a vasta documentação conhecida comprova que, no contexto da produção escravista mercantil do Brasil, os produtores diretos escravizados não estabeleceram vínculos significativos de posse efetiva com a terra trabalhada. A produção autônoma de meios de subsistência, pelos próprios trabalhadores escravizados, nos domingos, em nesgas de terras, foi fenômeno extraordinário e assistemático no escravismo brasileiro.

Mais ainda, essa prática tendia a dissolver-se quando a produção escravista acelerava, impulsionada pela expansão do mercado e dos preços dos gêneros que produzia. Tal fato e a subordinação, no interior das unidades produtivas, dessas práticas extraordinárias, às exigências da produção mercantil, determinaram a inexistência do protocampesinato negro proposto pelos defensores da brecha camponesa.47

Em 1996, o historiador baiano João José Reis lembraria que, “no Brasil, o sistema [brasileiro] aparentemente não foi assim tão difundido [...]”. Nos engenhos açucareiros, após o grande boom do açúcar, os escravistas teriam passado a alimentar os trabalhadores. Reis lembra: “Um estudo recente de B. Barickman conclui que, entre 1780 e 1860, nos engenhos a alimentação escrava ficava principalmente por conta do senhor.”48

No mesmo sentido, fora casos extraordinários, a reprodução da população escravizada assentou-se essencialmente no tráfico, primeiro transatlântico, a seguir interprovincial.49 Nos

46 Cf. MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior: trabalho e resistência escrava no Rio Grande do

Sul. Passo Fundo: UPF, 2002, pp. 13-30; GORENDER. O escravismo colonial. Ob.cit., pp. 95-98.

47 Cf. CARDOSO, Ciro F. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas

Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987; Cf. GORENDER, Jacob. A escravidão

reabilitada. São Paulo: Ática, 1990, pp. 70-86; MAESTRI, Mário. “O escravismo

colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender”. Revista Espaço Acadêmico, Primeira Parte, nº 35, abril de 2004,; Segunda Parte, nº 36, maio de 2004, ISSN 15196186. www.espaçoacademico.com.br;

48 Cf. REIS, João José. Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro: Bahia, 1806. In REIS & GOMES.

[Org.]. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 336.

49 Cf. CONRAD, Robert. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. Op. cit.;

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fatos, o escravismo colonial ensejou formas singulares e bastardas de vínculos familiares entre a população escravizada. Mais do que falar de família escrava, temos que falar dos tipos singulares de famílias de trabalhadores escravizados.50

Em 1888, a abolição da escravidão, única revolução social vitoriosa no Brasil, deu-se no contexto da importância decrescente da classe dos trabalhadores escravizados concentrada nas grandes fazendas cafeicultoras, devido ao forte movimento de venda dos cativos das cidades e dos campos das demais regiões do Brasil para as fazendas cafeicultoras do Centro-Sul, determinado pela elevação do preço pago pelo produtor pelos cafeicultores.51

Sobretudo no Centro-Sul, os trabalhadores escravizados mobilizaram-se por sua liberdade civil básica, ignorando tendencialmente a luta por uma terra com a qual praticamente não mantinham vínculos positivos. No Brasil, ainda que importantes setores do movimento abolicionista propusessem a distribuição de terras entre os trabalhadores escravizados emancipados, quando da Abolição, os cativos rurais partiram para as cidades ou alugaram seus braços nas fazendas, sem se mobilizarem maciçamente pela posse da terra. Como veremos, muitos ex-cativos foram incorporados pela civilização cabocla.

Fragilidade do camponês negro

O caráter feitorizado e socializado da exploração da terra nos latifúndios; a debilidade e singularidade da família dos trabalhadores escravizados; o caráter excepcional e limitado das hortas servis; a coesão da apropriação latifundiária foram alguns fatores que contribuíram para a inexistência no Brasil de campesinato negro substancial, antes, quando e após a Abolição. Esses fatores contribuíram também à fragilidade da cultura de raízes africana e afro-descendente nos campos, fenômeno que se expressou no desaparecimento de línguas, koinés e falares crioulos de origens africanas, amplamente utilizados no Brasil, sobretudo nos séculos 17, 18 e 19.52

A ação política das classes dominantes luso-brasileiras e brasileiras dificultou o desenvolvimento e a consolidação significativos de uma classe camponesa de origem nacional.

50 Cf SLANES, Robert W. Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa

comunidade escrava (Campinas, século XIX). ESTUDOS ECONÔMICOS, São Paulo, IPE-USP, 17 (2), 1987; MAESTRI, Mário. Resenha de: FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 - c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. PRAXIS, Minas Gerais, ano V, nº 11, pp. 155-157.

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Nesse sentido, em 1889, a República constituiu também uma resposta dos grandes proprietários de terra ao movimento abolicionista nacional-reformista que defendia a formação de classe de pequenos proprietários através de distribuição de terra às classes livres pobres – caboclos, ex-cativos etc. –, como se fazia, desde o início do século 19, com camponeses europeus.

Nos últimos anos do cativeiro, expressando importantes correntes do movimento abolicionista, André Rebouças propunha ser “a abolição do latifúndio complemento inseparável da abolição do escravo” [sic], e defendia que a “elevação do negro pela propriedade territorial” seria o “único meio de impedir a sua re-escravização”.53 Proposta que a história comprovou em forma irretorquível.

Na defesa do Terceiro Reinado, Pedro II e Isabel aproximaram-se das comunidades negras libertas. Na sua última “Fala do Trono”, propôs a aprovação de lei que regulamentasse a “propriedade territorial” e facilitasse “a aquisição e cultura das terras devolutas”, concedendo ao governo “o direito de expropriar, no interesse público, as terras que confinam com as ferrovias, desde que não sejam cultivadas pelos donos”.54 Ou seja, verbalizava projeto de reforma agrária através da desapropriação, com indenização, dos latifúndios improdutivos. Em verdade, era já uma tradição que os trabalhadores das ferrovias fizessem seus cultivos de sobrevivência ao longo das faixas de domínio legal das ferrovias, ou seja, vinte metros para cada lado do eixo central, surgindo daí a expressão “comprida que nem lavoura de tuco”. Tuco é o homem que trabalha na conservação do leito das ferrovias.55

Vimos que o historiador Robert Conrad definiu a República como verdadeira “contra-revolução” política, impulsionada em grande parte pelos conservadores e cafeicultores convertidos ao republicanismo, contra a vitória do Partido Liberal que, entregando o poder às oligarquias agrárias regionais, barrou a proposta de reforma da ordem fundiária, consolidando o federalismo oligárquico em todo o Brasil.56

De certa forma, apenas o Rio Grande do Sul escapou dessa metamorfose conservadora do Estado monárquico centralizador em Estado republicano oligárquico federalista, devido ao alijamento dos liberais e dos conservadores do poder regional, pelos republicanos do PRR, que

53 FACÓ, Rui. Notas sobre o problema agrário. MARIGHELLA, Carlos et alii. A questão agrária no Brasil.

2a ed. São Paulo: Debates, 1980, p. 52.

54 VILLA, Marco Antônio. Canudos: o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995, pp. 97-99. 55 Depoimento do engenheiro-agrônomo Humberto Sório Júnior.

56 Cf. CONRAD, Robert E. A pós-abolição: a reação dos fazendeiros e a queda do Império.

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expressavam, ao contrário do resto do país, um novo bloco social pró-capitalista do qual participaria com destaque a agricultura, o comércio, o artesanato e a manufatura da região de colonização colonial-camponesa européia.57

Fragilidade da via quilombola

Durante a escravidão colonial, cativos fugiam para os sertões onde formaram pequenas, médias e grandes comunidades agrícolas clandestinas – quilombos, mocambos, palmares etc. Na maioria das vezes, essas comunidades possuíam dezenas de habitantes. Alguns delas congregaram centenas e, excepcionalmente, superavam um milhar de membros.

Havia quilombos na periferia das cidades ou próximos às estradas e caminhos, dedicados à apropriação violenta de bens. Nas florestas, exploravam o extrativismo vegetal e, nas regiões mineiras, a mineração do ouro e de diamantes. Porém, os quilombos dedicados à agricultura de subsistência foram certamente os mais comuns, os mais longevos e os mais populosos.

Nos mocambos agrícolas, os quilombolas plantavam roçados de abóboras, amendoim, ananases, batata-doce, feijão, mandioca, melancia, milho, cana-de-açúcar etc. Praticavam a pesca, a caça, a coleta. Criavam galinhas, porcos, cabras e outros pequenos animais. Viviam em cabanas individuais ou coletivas e negociavam comumente suas produções excedentes com mascates, com regatões e nas vilas e fazendas mais próximas.58

A existência das comunidades quilombolas foi sempre precária. Em verdade, fora casos excepcionais, como a confederação dos quilombos dos Palmares,59 os quilombos reproduziram-se demograficamente com dificuldade ou não alcançaram a fazê-lo. Um pouco

57 Cf. MAESTRI, Mário. “O sentido da República Castilhista e da Revolução de 1893”.

Centro de Estudos Marxistas. Os trabalhos e os dias. Passo Fundo: EdiUPF, 2000. pp. 179-218.

58 Cf. REIS, J.J. & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São

Paulo: Companhia das Letras, 1996; MOURA, Clóvis. Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió: EdiUFAL, 2001.

59 ALVES FILHO, Ivan Alves. Memorial dos Palmares. Rio de Janeiro: Xenon, 1988;

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como a sociedade escravista, a ampliação das comunidades quilombolas dava-se por agregação sobretudo voluntária de membros provenientes do seu exterior – cativos fugidos, nativos, homens livres pobres etc.60

As razões da dificuldade dos quilombos de reproduzirem-se eram endógenas e exógenas. Em torno de dois terços dos africanos desembarcados no Brasil eram homens. As cativas escapavam significativamente menos que os homens. Era elevada a taxa de masculinidade dos quilombos, escasseando mulheres em idade núbil. Os mocambeiros procuravam suprir a carência de mulheres com o seqüestro de cativas, libertas e livres.61

Terras quilombolas

O caráter clandestino e disperso da comunidade quilombola determinava que mantivesse com dificuldade relações com comunidades congêneres, o que dificultava eventual equalização sexual e etária por trocas de seus membros. Essas determinações dificultavam a expansão vegetativa dessas comunidades, já que é o número de mulheres em idade fértil – e não de homens – que determina o crescimento populacional. Seriam raros os laços familiares sólidos no seio das comunidades quilombolas.

A existência de uma comunidade quilombola era sempre eventual refúgio, sobretudo para os cativos da região em que o quilombo se encontrava. A captura dos fujões era um ótimo negócio para os homens livres. Durante a escravidão, expedições enviadas pelos senhores e pelo Estado perseguiram, atacaram e destruíram as comunidades rurais de trabalhadores escravizados escapados, igualmente sempre questionada pela expansão da fronteira agrícola mercantil.

A economia quilombola assemelhava-se essencialmente à produção cabocla – coivara; rusticidade das ferramentas; inexistência da tração animal; domínio da produção de

60 Cf. GUIMARÃES, Carlos Magno. Uma negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no

século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988; MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. Quilombos, insurreições e guerrilhas. 3ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981; MOURA, Clóvis. Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Op.cit.

61 Cf. MAESTRI, Mário. Em torno ao quilombo. HISTÓRIA EM CADERNOS. Revista do

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subsistência; plantas de ciclo rápido; deslocamento das aldeias etc. Também ela não construía laços profundos e essenciais com a terra ocupada, que podia ser abandonada, sem maiores traumas, por uma outra região.

Em verdade, os quilombolas protegiam, não a terra que exploravam, mas suas liberdades – ou seja, a autonomia da força de trabalho. Era hábito difundido entre os mocambeiros abandonar as aldeias e plantações e se embrenharem nas florestas, quando assaltados. Salvos das tropas reescravizadoras, fundavam-se um outro povoado, geralmente em locais e territórios desconhecidos pelos agressores.

A estrutura produtiva; as dificuldades de expansão demográfica; o caráter clandestino; a repressão policial; a expansão da fronteira agrícola etc. debilitavam estruturalmente a reprodução das comunidades quilombolas, já pouco numerosas na época da abolição, sobretudo nas regiões de grande concentração de trabalhadores escravizados – Centro Sul.

Terras negras

Já antes da abolição, alguns senhores entregaram, em vida ou por testamento, nesgas de terras, comumente distantes e pouco férteis, em geral para cativos domésticos. Sobretudo após a abolição, essas terras de negros transformaram-se em pontos de atração para outros afro-descendentes, conformando rincões de negros comuns em todo o Brasil.

Antes da abolição, cativos fugidos, libertos, negros livres subsistiram como caboclos nos interstícios das áreas de produção agrícola mercantil e nas bordas das fronteiras agrícolas em expansão. Engrossadas após a Abolição, essas comunidades deram origem a um campesinato negro que, não raro, tendeu a isolar-se, como já o haviam feito os caboclos descendentes de nativos.

O distanciamento das roças das vilas defendia os caboclos negros das investidas dos grandes proprietários e aumentava a dificuldade da mercantilização da produção. Estudando o município de Valença, Bahia, a partir dos anos 1940, Martins Dias refere-se a esse fenômeno: “[...] a população roceira, formada por descendentes de escravos e de índios, aparentemente se contentava com atividades menos promissoras e se estabelecia em áreas menos disputadas e mais afastadas dos centros urbanos”.

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com as elites urbanas. [...] a possibilidade de isolamento da roça prometia àqueles grupos um retorno à liberdade há muito perdida”.62

Terra e Constituição

A Constituição de 1988, no seu artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, reconheceu o direito de propriedade às terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

Cem anos antes desse ato, em maio de 1888, com o fim do escravismo, o quilombo dissolveu-se como fenômeno objetivo. Sua função como espaço de autonomia da força de trabalho perdeu sentido com a conquista das liberdades civis mínimas pelos trabalhadores escravizados. Em 1888, a revolução abolicionista determinara superação social qualitativa, soldando a fratura no mundo do trabalho entre trabalhadores livres e escravizados, existente desde 1530. Desde então, o esforço do ex-quilombola deslocou-se da defesa prioritária da liberdade, para a defesa da terra, novo locus da autonomia do produtor rural livre.

Assim sendo, o ex-quilombola associou-se e diluiu-se na luta da população cabocla, em geral, e da população afro-descendente, de diversas origens, em especial, pela defesa da terra de que detinha e pela conquista da terra que necessitava. As determinações comuns a essas comunidades, isto é, a luta contra o poder republicano e latifundiário, contribuiu para sua homogeneização tendencial.

Nesse processo, com o passar dos anos, a própria memória da gênese quilombola de uma comunidade rural tendeu a perder-se, confundindo-se com a memória histórica igualmente frágil de comunidades de camponeses – negros livres e libertos – que adquiriram terras através de herança, doação, concessão, compra, ocupação etc.

Camponeses pobres

Sobretudo, como assinalado, as comunidades negras nascidas da ordem escravistas tenderam a confundir-se no mais vasto universo das comunidades rurais em luta pela defesa e conquista da terra, monopolizada pelo latifúndio. Ex-quilombolas, Treze de Maio, libertos, ex-cativos, etc. combateram, em forma individual ou associada, em Belo Monte, na Contestado etc. Hoje,

62 DIAS, Gentil Martins. Depois do latifúndio: continuidade e mudança na sociedade rural nordestina. Rio de

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através do Brasil, camponeses negros integram crescentemente as fileiras do MST e de outros movimentos de luta pela terra.

Impõe-se às ciências sociais esforço científico permanente pela recuperação da trajetória singular das comunidades negras rurais. Esse processo contribuirá para a necessária reconstrução do passado das classes trabalhadoras, em geral, e para a tomada de consciência de suas raízes históricas pelas comunidades protagonistas dos fatos, em especial.

Esse processo tem que constituir restauração científica dos fatos e de seus sentidos, apoiada no levantamento e análise dos fenômenos objetivos e subjetivos realmente ocorridos, apoiada por historiadores, arqueólogos, lingüistas, sociólogos, antropólogos etc. Nesse sentido, deve realizar definição e conceituação rigorosa dos fenômenos históricos objetivos.

Há bem mais de dois mil anos, Aristóteles lembrava, em A política: “Todas as cousas se definem pelas suas funções; e desde o momento em que elas percam os seus característicos, já não se poderá dizer que sejam as mesmas [...]”.63 A perquirição do passado deve constituir desvelamento objetivo da história e não invenção subjetiva de tradição.64

Constitui círculo vicioso definir as origens das comunidades a partir do que elas pensam, ou, ainda pior, do que elas são levadas a pensar, sobre seu passado. O estudo das comunidades rurais negras deve apontar para a superação do mito, e não para sua extrapolação. O passado deve ser revelado e jamais criado, ainda mais, a partir da decisão de segmentos profissionais que se autodefinam com capacidade para tal.

História e mito

Nos últimos anos, tem-se efetuado um amplo mapeamento das ocorrências de terras de negros e das comunidades remanescentes de quilombos no território nacional, ainda significativas em regiões como o Pará e Maranhão. É social e politicamente correta a extensão da acepção de terra quilombola às terras de negros surgidas de doações e apropriações não quilombolas, para facilitar a legalização da propriedade de terras de comunidades camponesas negras nascidas antes ou após a abolição.

Porém, esse processo deve-se se dar no contexto da correta definição da época e da origem dessas comunidades, a fim de se manter a integridade das suas histórias. Processo que

63 ARISTÓTELES, Política. São Paulo: Atenas, 1957, I, 11.

64 Cf. HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz

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enriquecerá, igualmente, o conhecimento da contribuição da via quilombola e da via escravista à formação do campesinato brasileiro. Constitui uma agressão à memória e à história das classes trabalhadoras a denominação geral sumária como comunidade quilombola de toda e qualquer comunidade negra rural, independente de sua origem objetiva, fenômeno em forte desenvolvimento nos últimos anos.65

Portanto, trata-se de proposta conceitual aceitável a definição das comunidades rurais negras contemporâneas de múltiplas origens como novos quilombos. Desde que não se dilua arbitraria e autoritariamente a especificidade do fenômeno assinalado na pré-abolição como quilombo, no contexto dos fenômenos múltiplos e diversos ensejados pelo escravismo, direta ou indiretamente, antes e após 1888 – terra de preto, rincão dos negros etc.

Diluir, confundir, homogeneizar etc. o rico passado rural escravista, e suas decorrências após 1888, constitui desrespeito flagrante aos protagonistas sociais do passado e do presente, diretos ou indiretos, daqueles acontecimentos. Constitui verdadeiro genocídio da memória, mesmo que apoiado em ciência ingênua e em intenções piedosas.66

Produtores dependentes

Através do Brasil, no interior das fazendas mercantis agrícolas e pastoris, desenvolveu-se comumente pequena produção de subsistência praticada por homens livres, geralmente sob licença verbal dos proprietários – moradores, agregados, posteiros, rendeiros etc.67 Esses produtores contribuíam comumente com a força de trabalho no momento de pique da produção mercantil; vigiavam os limites dos campos; funcionavam como guardas e capangas dos fazendeiros etc.

Parte dessa produção, essencialmente voltada à subsistência – feijão, mandioca, milho, melão, melancia etc. –, era entregue aos proprietários da terra, segundo divisão pactuada ou consuetudinária. Uma pequena parte de produção era comercializada. Os moradores,

65 Cf. FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Comunidades quilombolas: direito à terra.

Brasília: Fundação Nacional Palmares, 2002; FIABANI, Adelmir. “Mato, palhoça e pilão. O quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes.” [1523-2004]. Passo Fundo, Programa de Pós-Graduação em História, 2004. [Dissertação de Mestrado.]

66 Cf. ALMEIDA, Alfredo Waner Berno de. “Os quilombos e as novas etnias”. O’DWYER, Eliane Cantarino

[Org.] Quilombo: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: EdFGV, 2002, pp. 43-82.

67 Cf. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. 4a ed. revista e atualizada. São Paulo:

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agregados, posteiros, rendeiros etc. e suas famílias viviam em isolamento relativo nos latifúndios, gozando de um frágil direito de uso da terra que exploravam.

Como os caboclos, os posseiros, os intrusos etc., esses moradores precários dos grandes latifúndios foram comumente expulsos da terra que ocuparam pela expansão da produção mercantil, no interior daquelas unidades produtivas, ou devido à introdução de melhorias tecnológicas que tornaram desnecessários seus serviços. A partir dos anos de 1870, o cercamento das fazendas pastoris sulinas com arame liso e a seguir farpado teria expulsado milhares de posteiros e suas famílias dos latifúndios.68

A inexistência de fortes laços aldeões e familiares aprofundava ainda mais os handicaps social, político e cultural negativos vividos por caboclos, posseiros, meeiros, moradores, intrusos etc., que raramente chegaram a vislumbrar a possibilidade da legalização das posses que exploraram, assegurada pela Lei de Terras de 1850. Fazendeiros e especuladores compraram comumente direitos de posse e legalizavam terras ocupadas por posseiros. Não raro, esses últimos foram sumariamente expulsos ou eliminados fisicamente por capangas do latifúndio, quando exteriorizaram a intenção de legalizar suas posses.

O racismo; a falta de representação política; a ausência de conhecimentos legais; a baixa renda monetária; a prática de línguas e de padrões não oficiais da língua nacional etc. foram fenômenos que, associados à falta de experiência histórica com a propriedade da terra e uma forma de produção que estabelecia frágeis vínculos com ela, tornaram comumente “inviáveis as possibilidades de legitimação” das terras detidas por essas comunidades.69

Ordem oligárquica

A partir de 1889, na república oligárquica, a sociedade camponesa subsistiu apenas nos poros de uma sociedade de classes que manteve em forma hegemônica o caráter latifundiário da apropriação da terra. No novo contexto, prosseguiu a marginalização política e social das comunidades caboclas de raízes nativas ou africanas.

Como assinalado, sobretudo a inexistência da sólidas comunidades familiares e aldeãs e as frágeis ligações orgânicas com a terra ocupada permitiram que as terras caboclas, indígenas, negras e quilombolas continuassem a ser apropriadas pelo latifúndio em contínua expansão,

68 Cf. MAESTRI. Deus é grande, o mato é maior. Op.cit., pp. 85 et seq.

69 DIAS, Gentil Martins. Depois do latifúndio: continuidade e mudança na sociedade rural nordestina. Rio de

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comumente através da compra e legalização fraudulenta de posses e da expulsão dos posseiros por jagunços.70

A história do incessante processo de espoliação das comunidades caboclas e indígenas nacionais, que prossegue até hoje, encontra-se registrado na documentação oficial, sobretudo policial; nos cartórios e registros de terra; nos processos civis e penais etc. Pelas razões assinaladas, essas comunidades raramente conseguiram organizar-se solidamente.

Nos casos singulares em que se insurgiram contra a ordem instituída, esses grupos sociais foram massacradas pelos exércitos e tropas regionais e nacionais, sem conseguirem elevar ao nível de consciência política as cresças messiânico-religiosas que expressaram subjetivamente a decisão de luta pela terra. Elevação da consciência necessária para a ampliação e generalização da mobilização contra a ordem latifundiária.

Neste contexto geral, até 1930, a República manteve facilmente as classes subalternizadas plenamente afastadas da gestão do Estado. Sem conseguirem organizar-se política e socialmente, esses segmentos sociais rurais foram mantidos à margem do jogo político e da legislação social e trabalhista. Como na ordem escravista, a nacionalidade e a cidadania prosseguiram sendo compreendidas como monopólio exclusivo das classes proprietárias, de origem ou pretensa origem européia.

O hiato camponês

O surgimento de campesinato nacional propriamente dito deve-se sobretudo a fenômeno inicialmente marginal no processo de ocupação e exploração do território brasileiro. Ou seja, à exploração policultora de pequenos lotes de terras, sobretudo por agricultores proprietários imigrantes europeus não portugueses, em regiões do território não adaptadas à exploração agrícola e pastoril latifundiária.

Em meados do século 18, a Coroa portuguesa tentou inutilmente formar segmento camponês no Brasil. Sobretudo para povoar as Missões, trocadas em Madrid, em 1750, pela Colônia de Sacramento, e ocupar parte do litoral Sul do Brasil, foram trazidos casais camponeses das ilhas Açores e da Madeira, sob a promessa da concessão gratuita de 275 hectares de terras,

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