• Nenhum resultado encontrado

Brasil: um país possessório / Brazil: a possessor country

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "Brasil: um país possessório / Brazil: a possessor country"

Copied!
22
0
0

Texto

(1)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

Brasil: um país possessório

Brazil: a possessor country

DOI:10.34117/bjdv6n8-678

Recebimento dos originais: 25/07/2020 Aceitação para publicação: 31/08/2020

Breno de Andrade Zoehler Santa Helena

Tabelião de Notas e Protesto de Títulos de Planaltina – DF Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasilia – UNICEUB Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB

Email: breno@cartoriodf.com.br

Eber Zoehler Santa Helena

Tabelião de Notas e Protesto de Títulos de Águas Lindas de Goiás

Consultor aposentado de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasilia – UNICEUB

Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB E-mail: zoehler@gmail.com

RESUMO

No Brasil colonial e imperial, a posse predominou, legitimadora das ocupações dos colonizadores, só vindo a propriedade registral a surgir a partir de meados do século XIX. Derivadas de concessões da Coroa Portuguesa e ocupações irregulares de áreas públicas, a propriedade fundiária só veio a ser regulada pela Lei de Terras de 1850, pois desde 1822 tinham sido extintas as concessões por sesmarias, mas ainda assim a posse continuou a coexistir com a propriedade e com ela dialogando. Ainda são reconhecidas por nosso ordenamento ocupações tradicionais de terras: as ocupadas por indígenas, por quilombolas e as terras comunais bahianas. A posse continua a ser elemento social e econômico relevante, constituinte de um mercado imobiliário informal, lastreada por uma infinidade de títulos e negócios jurídicos, alheios à propriedade, mas fundamento de um mercado de trocas, paralelo ao registro imobiliário e ao próprio direito.

Palavras-chave: Posse, sesmarias, ocupação, registro imobiliário, posse indígena, posse

quilombola, mercado imobiliário informal e mercado possessório

ABSTRACT

In colonial and imperial Brazil, possession predominated, legitimizing the occupations of the colonizers, and registration property only emerged from the middle of the 19th century. Derived from concessions from the Portuguese Crown and irregular occupations of public areas, land ownership only came to be regulated by the Land Law of 1850, since 1822 the concessions for sesmarias had been extinguished, but still the possession continued to coexist with the property and talking to her. Traditional land occupations are still recognized by our planning: those occupied by indigenous people, quilombolas and Bahian communal lands. Ownership continues to be a relevant social and economic element, constituting an informal real estate market, backed by a plethora of titles and legal businesses, alien to property, but the foundation of an exchange market, parallel to real estate registration and the right itself.

(2)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

Keywords: Possession, sesmarias, occupation, real estate registration, indigenous possession,

quilombola possession, informal real estate market and possessory market

1 INTRODUÇÃO

O Brasil primeiro nasce como um país possessório, somente vindo a ter projeção o direito de propriedade muitos séculos após. Todo o período colonial brasileiro foi marcado pela forte presença da posse como instrumento a legitimar as ocupações. Eram elas derivadas de concessões feitas pela Coroa sobre suas terras ou até mesmo pela ocupação “espontânea” (irregular) dos imóveis públicos. A posse, inclusive, imediatamente antes da introdução da propriedade fundiária pela Lei de Terras de 1850 se sagrou como o único instituto hábil para a aquisição de terras, vez que em 1822 fora extinta a concessão via sesmarias. Mesmo após a Lei de Terras, a posse não deixou de ser algo relevante coexistindo com a propriedade e com ela dialogando.

A ocupação histórica e social por comunidades reconhecidas por nossa sociedade justifica até hoje a existência de ocupações tradicionais de terras legitimadas por nosso ordenamento pátrio. Inúmeras comunidades existentes em território nacional, apesar de sua relevância histórica e social, ficaram alijadas do processo de aquisição da propriedade fundiária. Todavia, em razão de suas relevâncias para a sociedade, conceberam-se formas de reconhecer e titular tais ocupações. Os três casos são: as terras ocupadas por indígenas, as terras ocupadas por quilombolas e as terras ocupadas comunalmente na Bahia.

A posse fundiária apresente relevante utilidade econômica ainda nos tempos hodiernos, como constituinte de um mercado imobiliário informal, presente em quase todas as áreas urbanas brasileiras. A posse, lastreada por uma infinidade de títulos e negócios jurídicos, alheios à propriedade, é apta a gerar um mercado de trocas, onde a população se assenta e ocupa os espaços ao arrepio do registro imobiliário e, em boa parte, do próprio direito.

2 ANTES DA PROPRIEDADE A POSSE

Se na esfera constitucional todas as atenções, desde nossa primeira constituição, foram dadas à propriedade, não havendo qualquer menção à posse nas iniciais e pouca menção ainda nas mais atuais, na esfera infraconstitucional, mais próxima da vida cotidiana, a posse se apresentava desde nossas origens.

A propriedade privada fundiária no Brasil é decorrência necessária da propriedade pública. Aliás, tamanha a força da propriedade pública que, ao analisar o Tratado de Tordesilhas de 1494 comparando com o “descobrimento” do Brasil de 1500, afirma Messias Junqueira (Terras devolutas,

(3)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

1978, p. 417): “Isso nos dá a conclusão de que o Brasil, antes de ser descoberto, já pertencia a Portugal (...)” Segue ele (JUNQUEIRA, 1978, p. 420) esclarecendo que “Dois meios existem, no Brasil, de formação da propriedade privada, decorrência que é da propriedade pública. O primeiro são as cartas de sesmaria; o segundo meio são as leis de terras.”

A ocupação de terras no Brasil é marcadamente possessória. Desde nossas origens, a posse é mecanismo trivial e essencial na ordenação do espaço, como explica Ruy Cirne:

Apoderar-se de terras devolutas e cultivá-las tornou-se cousa corrente entre os nossos colonizadores, e tais proporções essa prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir a ser considerada como modo legítimo de aquisição do domínio, paralelamente a princípio, e, após, em substituição ao nosso tão desvirtuado regime de sesmarias. (LIMA, 1954, p. 47)

A legislação infraconstitucional acerca da propriedade imobiliária brasileira tem suas raízes na legislação lusitana que regulamentava o solo brasileiro no período de colônia. As sesmarias foram criadas em Portugal, em 26 de junho de 1375, pelo rei D. Fernando I que utilizou o instituto para assegurar a produção, após o trauma ocasionado pela peste negra no país, que esvaziou, nas décadas anteriores, o campo ao dizimar boa parte da população (LOPES, 2019, p. 270). Posteriormente vindo a ser disciplinada pelas Ordenações: Ordenações Afonsinas de 1446, Livro IV, Título 81; Ordenações Manuelinas de 1511, Livro IV, Título 67, parágrafo 3º; e Ordenações Filipinas de 1603, Livro IV, Título 43.

As sesmarias eram marcadas pela obrigatoriedade de o sesmeiro tornar a terra produtiva. Por exemplo, o parágrafo 1º do Título 43, Livro IV das Ordenações Filipinas disciplinava procedimento de notificação do sesmeiro para dar produtividade a terra, que se não o fizesse em até um ano, poderia perder a sesmaria. O parágrafo 4º, por sua vez, determinava que as terras não tornadas produtivas fossem dadas a outra pessoa, para que cumprisse o desiderato do bem. Já o parágrafo 8º determinava que os donos de imóveis que estejam abandonados tornem o bem produtivo, sob pena, de se assim não fizerem, sejam dados os bens em sesmarias.

Ao se introduzir no Brasil, então colônia, a sistema donatarial de sesmaria, ordenou D. João III que se aplicasse a sua Ordenação. Contudo, a adoção no Brasil de sesmaria divergiu do modelo e dos fundamentos pelos quais foram adotados em Portugal (VARELA, 2005, p. 78). A realidade fundiária no Brasil era muito distinta de Portugal. Se lá, o instituto servia, para garantir o abastecimento, aqui a intenção era a colonização e ocupação do extenso território desocupado. Em Portugal, a sesmaria servia como uma restrição do domínio privado inculto, atribuindo a terceiro a ocupação da terra para cultivo. Aqui, o instituto serviu com feição de concessão (LIMA, 1954, p.

(4)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

38).1 Aliás, não havia que se falar em domínios privados, vez que tudo era público2. O caráter idiossincrático da sesmaria brasileira frente a portuguesa fez-se sentir e, ao mesmo tempo decorreu, das normas produzidas especificamente para e na colônia, a ponto se cogitar em um “estatuto autônomo”3 para as sesmarias brasileiras (LIMA, 1954, p. 39).

A concessão das sesmarias, segundo Ruy Cirne, era relativamente simples, fez que o interessado deveria fazer um requerimento ao ouvidor da capitania acompanhado de certidão de que não fora previamente agraciado com outra concessão. O ouvidor passaria editais para verificar se alguém se opunha, caso positivo procederia a instrução e julgamento, caso não houvesse oposição, verificaria se o requerente tinha condições de aproveitar a terra requerida. De tudo, o ouvidor documentava, e encaminhava ao capitão-general ou governador, que, por sua vez, emitia a carta de concessão, que posteriormente era registrada na Secretaria de Governo. Registrada a concessão, dava-se posse ao requerente, e registrava-se a ocupação na Casa da Fazenda e Administração. Mas como adverte o mesmo autor:

Esta simplicidade no processo, e aquela nitidez nas providências da legislação, podemos nós, presentemente descobri-las, mas, recuados, como estamos, de séculos, na perspectiva da história.

Nos próprios quadros da época, todavia, a legislação e o processo das sesmarias se complicam, emaranham e confundem, sob a trama invencível da incongruência dos textos, da contradição dos dispositivos, do defeituoso mecanismo das repartições e ofícios de govêrno, tudo reunido num amontoado constrangedor de dúvidas e tropeços. (LIMA, 1954, p. 42)

O sistema de concessão então de sesmarias não comportava a organização do espaço brasileiro. A posse permeava a ocupação das terras. Não por menos que o Alvará de 5 de outubro de 1795 disciplinou várias regras acerca da organização fundiária, em especial: da titulação de sesmeiros possuidores “sem títulos”, item XIII; demarcação de registro das sesmarias, itens XIV,

1 “A imposição de foros, nas sesmarias do Brasil, equivalendo a uma apropriação legal do respectivo domínio direto,

feria de frente êsse preceito inaugurava, entre nós, o regime dominialista da instituição das sesmarias, que perde, desde então, o seu carácter de restrição administrativa do domínio privado e do das entidades públicas, para assumir definitivamente a feição de concessão, segundo os preceitos ordinários, de latifúndios, talhados no domínio régio.” (LIMA, 1954, p. 38)

2 “O espírito dominialista inspira as disposições novas: - as concessões de sesmarias são meramente concessões

administrativas sôbre o domínio público, pôsto que com o encargo de cultivo” (LIMA, 1954, p. 39)

3 Ruy Cirne utiliza o termo “estatuto autônomo”, mas logo em seguida melhor explica: “Dizem, porém, estatuto, talvez

exprimamos mal o que, realmente, se verificou, e foi o estabelecimento de normas e providências isoladas, com aplicação, assim a tôdas as capitanias, como só a algumas delas, e, além de tudo, dispersas por inumeráveis alvarás e cartas régias. Havia, não obstante, nessa legislação avulsa, tal unidade de fundo, que a denominação de estatuto não lhe é descabida. O Alvará de 5 de outubro de 1795, que em grande parte a consolidou, claramente o mostra.” (LIMA, 1954, p. 39)

(5)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

XV, XVII a XXVI; regras sobre conflitos fundiários, itens, XVII, XVIII. Sobre as regras envolvendo conflitos fundiários, o Alvará traz duas situações distintas: uma na qual o conflito envolve ocupantes sem título de sesmaria, item XVII; e outra na qual uma das partes é sesmeiro e outro possuidor sem título “legítimo”, item XVIII. No primeiro caso, o Alvará remeteu a discussão à legislação ordinária, sem utilização de suas disposições. Na segunda hipótese, o Alvará prestigiou o detentor do justo título, de forma que, no conflito entre um possuidor sesmeiro, legitimamente titulado, e outro ocupante lindeiro sem título, os interesses do primeiro deveriam prevalecer. O Alvará prestigiou assim a realidade formal, consubstanciada no título4.

Roberto Smith (1990, p. 345) descreve que a existência do sistema de sesmarias, apesar de ter sido um sistema, quando adotado no Brasil, de limitada efetividade, teve o papel social impeditivo da legitimação da propriedade privada fundiária. Segundo ele (SMITH, 1990, p. 344), as classes dominantes agrárias (classe dos produtores escravistas) não objetivaram um projeto político e econômico que implicasse campo de autodeterminação e de absolutização da propriedade, vez que a riqueza em tal modelo estava não nas terras em si, mas nos escravos. As terras, em abundância, eram adquiridas pela posse ou, ainda que por meio de sesmarias, com o auxílio da mão-de-obra escrava5, vez que, como visto, para a concessão havia a necessidade de se comprovar a aptidão de laborá-la.

No Brasil, as sesmarias foram utilizadas como instrumento para fixar as pessoas ao campo, ao titular os potenciais exploradores da terra. Para tanto as terras eram doadas, mas o domínio eminente permanecia com a Coroa.

Não se tratava, como no caso do território de Portugal, de retomar terras que haviam antes pertencido a outros súditos, mas de simplesmente dar terras recém-descobertas. (LOPES, 2019, p. 270)

4Alvará de 5 de outubro de 1795: “XXVIII – Item: Ordeno que havendo igual dúvida entre dois Confinantes, um com

Título Legítimo, e legal; e outro sem ele, por não ter pedido Carta, ou Mercê, se este se apossar de parte das terras, que pertencerem àquele Sesmeiro titulado, quanto à restituição da sua posse, no ato de Demarcação, deverão competir-lhe os mesmos Direitos sumaríssimos, que Tenho determinado; e por eles se deverá regular, processar, e conhecer de toda, e qualquer força, ou violência, que altere a pacífica posse daquele Sesmeiro, que a conservava com legítimo, e legal Título. Quando porém o Sesmeiro titulado entrar pelas terras do seu Confinante não titulado, este se não poderá valer daqueles Direitos, mas sim dos Ordinários, e Comuns da Lei do Reino, ainda que alegue a disturnidade da sua posse, fundada este em alguma Carta de Partilhas, Escritura de Compra, Doação, ou outro qualquer gênero de contrato, não estando aprovado cada um daqueles Títulos por Carta de Sesmarias Legal, e confirmada por Mim, muito principalmente depois de findos os dois anos, que Tenho permitido a estes, e outros Possuidores, que desfrutam iguais Sesmarias, sem terem requerido as suas respectivas Cartas, e Confirmações delas; “ Disponível em: https://arisp.files.wordpress.com/2010/02/alvara-de-5-de-outubro-de-1795-dig.pdf Acessado em 21.01.2020.

5 “Dentro dos cânones do escravismo mercantil, a dinâmica econômica será a da acumulação escravista. Compram-se

escravos para comprar mais escravos. Escravo é riqueza e substrato de status da classe proprietária, é garantia de dívida. O escravismo conduz ao latifúndio e não o inverso. Escravo é estoque, enraizado na tradição dos valores mercantilistas. (...) O escravo, e não a terra, tinha valor mercantil.” (SMITH, 1990, p. 345)

(6)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

Pela lei, deveria haver limites à concessão das sesmarias: um limite territorial máximo, conforme a capacidade do donatário, e que variou muitas vezes ao longo dos séculos de colonização; um limite funcional, pois a terra abandonada deveria em tese voltar à Coroa para redistribuição. Os limites territoriais foram de 4 léguas de comprimento por 1 de largura, pela Carta Régia de 27 de dezembro de 1695, diminuídos no ano seguinte para 3 léguas. Como o tempo, tendo em vista os abusos, passou-se a exigir a confirmação da doação pela Coroa (Carta Régia de 4 de novembro de 1698). Mais tarde, passou-se à exigência da demarcação judicial (Carta Régia de 2 de março de 1704). Finalmente, foi proibida a confirmação sem que houvesse demarcação (decreto de 20 de outubro de 1753). (LOPES, 2019, p. 272)

O regime de sesmarias perdurou no Brasil até 1822, quando, por força da Resolução nº 76, de 17 de julho de 1822, mandou-se suspender a concessão de futuras sesmarias até que fosse convocada a Assembleia Geral Constituinte. O fim da sesmaria deu-se por questões de briga entre o Príncipe Regente do Brasil Pedro de Alcântara e a Corte (JUNQUEIRA, 1978, p. 422), não tendo sido posto nenhum substituto seu na Constituição de 1824.6

Criou-se então um hiato fundiário no Brasil. Quase a integralidade do território brasileiro era da Coroa, todavia, o instituto que até então era utilizado para regulamentar a ocupação de tais terras públicas por particulares, as sesmarias, fora suspenso. Após a suspensão da emissão de novas sesmarias, a posse passou a ser a forma predominante de se adquirir novas terras. Como descreve Ruy Cirne (LIMA, 1954, p. 47):

Depois da abolição das sesmarias, - então, a posse passou a campear livremente, ampliando-se de zona a zona à proporção que a civilização dilatava a sua expansão geográfica. Era a ocupação, tomando o lugar das concessões do Poder Público, e era, igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado, sôbre o senhor de engenhos ou fazendas, o latifundiário sob o favor da metrópole.

A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos.

A posse é, pelo contrário, - ao menos, nos seus primórdios, - a pequena propriedade agrícola, criada pela necessidade, na ausência de providência administrativa sôbre a sorte do colono livre, e vitoriosamente firmada pela ocupação.

6 “E assim chegamos com o instituto da sesmaria até 1822. Neste ano, 1822, era Príncipe Regente do Brasil Pedro de

Alcântara. João IV, seu pai, voltou para Portugal. Aqui deixou o filho. Cai na mão do Príncipe um requerimento de um pobre posseiro da comarca do Rio das Mortes, chamado Manoel José dos Reis. Manoel pedia ao Príncipe que não desse em sesmaria a terrinha que ele cultivava há vinte anos, com sua numerosa família de filhos e netos. O Príncipe, sensibilizado pela sorte de Manoel José dos Reis, dá o seguinte despacho: “Fique o suplicante na posse das terras que tem cultivado, e suspendam-se todas as sesmarias futuras, até a convocação da Assembléia Geral Constituinte. Paço, 17.7.1822.” No dia 17 de julho de 1822, o Príncipe está falando em Assembléia Geral Constituinte a ser convocada. Quem diz Assembléia Geral Constituinte, diz Constituição; e quem diz Constituição, diz organização política e jurídica de Estado independente! Então, o 7 de setembro, 50 dias depois, é apenas a parte ornamental de nossa independência, porque ela já estava planejada na cabeça do Príncipe, desde 17 de julho de 1822. O retrato diz que ele se sensibilizou com o pedido de Manoel José dos Reis; a radiografia diz outra coisa: ele, estando brigado com a Corte e como a sesmaria era expedida em nome do rei, ele, para cortar a autoridade do rei, cortou o instituto. Extinguiu-se, então, o instituto três vezes centenário da sesmaria. A Constituição outorgada a 25 de março de 1824, não deu substituto ao instituto da sesmaria. Apenas, no art. 115, ela disse que “Os palácios e terrenos nacionais possuídos atualmente pelo Sr. D. Pedro I ficarão sempre pertencendo a seus sucessores. E a Nação cuidará das aquisições e construções que julgar convenientes para decência e recreio do Imperador e sua família.”” (JUNQUEIRA, 1978, p. 422)

(7)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

Pouco antes da suspensão das sesmarias, a Mesa do Desembaraço do Paço já havia emitido Provisão de nº 14, de 14 de março de 1822, onde determinada que no procedimento de medição para emissão de sesmarias deveriam ser reconhecidas quaisquer posses que fossem encontradas na área e que tais possuidores deveriam ser mantidos em suas posses, vez que tais posses poderiam ser opostas a sesmarias que fossem emitidas posteriormente.7 A provisão demostra a relevância que a posse tomava na ocupação territorial brasileira.

A situação de anomia perdurou até 1850, quando foi editada a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, também chamada de Lei de Terras. A Lei de Terras inseriu-se em um contexto complexo de alteração social e econômica, como narra Sanches:

Nesse contexto, a Lei de Terras (Lei 601 de 1850) pode ser entendida como parte de um conjunto de medidas, como a proibição efetiva do tráfico, o Código Comercial, a legislação bancária e hipotecária, as concessões ferroviárias e a proposta de realização de um censo, caracterizando uma “modernização conservadora”, entendimento seguido por vários autores, como José Murilo de Carvalho, Warren Dean e Emília Viotti e Robert Smith. A legislação de 1850 reflete uma conjuntura complexa e nenhuma das explicações citadas – o interesse ou “veto” da elite (Dean e José Murilo de Carvalho), a transformação da terra em mercadoria (Vioti) ou o processo de transição para o capitalismo (Smith), se tomadas isoladamente, não dão conta do processo. O Estado não é simplesmente um objeto de classes, mas sua ação resulta da relação sociedade civil e sociedade politica, nem tampouco a lei é simples complemento da Lei Euzébio de Queirós. (SANCHES, 2016, p. 131)

Juntamente com a Lei de Terras, já em processo há muito anos, ocorreu o início da abolição da escravatura, com a Lei Eusébio de Queirós, Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850. Apenas duas semanas separou a Lei Eusébio de Queirós e Lei de Terras. Ambas a leis se inseriam em um contexto de alteração das bases sociais e econômicas por que passava a sociedade brasileira (SMITH, 1990,

7 “Provisão da Mesa do Desembargo do Paço de 14 de março de 1822. Sobre os posseiros de terrenos que forem concedidos por sesmaria. D. Pedro de Alcantara, (...) Faço saber a vós, Juiz das sesmarias do districto de villa de S. João do Príncipe, que, sendo vista a representação em que me pedíeis houvesse por bem declarar quaes eram as posses que devíeis respeitar nas medições de algumas sesmarias, dentro das quaes, achando-se vários indivíduos arranchados, se queriam estes oppôr às mesmas medições, sobre cuja matéria Mandei ouvir o Desembargador da Corôa e Fazenda: Hei por bem Ordenar-vos procedais nas respectivas medições e demarcações, sem prejudicar a quaisquer possuidores que tenham effectivas culturas no terreno, porquanto devem eles ser conservados nas suas posses, bastando para título as Reaes Ordens, para que as mesmas posses prevaleçam às sesmarias posteriormente concedidas, visto que, na conformidade do Decreto de 3 de Janeiro de 1781, e da Ordem que foi expedida ao Vice Rei do Rio de Janeiro, Luiz de Vasconcellos e Souza, em 14 de Abril de 1789, e ao Governador da Capitania de S. Paulo, Antonio Manoel de Mello, em 4 de Novembro dito, não se deve fazer despojar os moradores de qualquer terreno por causa de sesmarias posteriormente concedidas, e sendo anteriores, devem ser judicialmente convencidos, depois de serem ouvidos com os embargos que tiverem, e que deverão competentemente offerecer às respectivas medições. O que assim havereis por entendido, e cumprireis pela parte que vos toca. O Príncipe Regente o Mandou pelos Ministros abaixo assignados, do Conselho de S. Magestade, e seus Desembargadores do Paço. Joaquim José da Silveira a fez no Ri de Janeiro aos 14 de Março de 1822. José Caetano de Andrade Pinto a fez escrever. – Dr. Antonio José de Miranda. – Claudio José Pereira da Costa.”

(8)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

p. 237). A alteração, ainda que embrionária, do modelo escravagista para um modelo assalariado refletia também na forma de manifestação de riqueza, com a transformação da titularidade de terras, de um modelo possessório ou concessionário para um modelo de propriedade absolutizada. A riqueza, então, em tal contexto, migrava dos escravos para o solo.

A Lei de Terras teve por objetivo tentar ordenar o caos fundiário que reinava até então no Brasil, onde os imóveis eram ocupados seja dentro do modelo de sesmarias ou então simplesmente como posse nas terras devolutas (VARELA, 2005, p. 7).8 A lei objetivava delimitar mais precisamente os bens públicos dos particulares, introduzindo a propriedade privada fundiária de forma apartada dos vínculos até então existentes com o Poder Público.

Vários foram os mecanismos adotados pela Lei de Terras no intuito de cumprir seus objetivos. Primeiramente, a Lei de Terras rompeu com a forma de concessão das terras. Abandonou o modelo anterior das sesmarias em que as terras eram concedidas gratuitamente e estabeleceu que somente seria possível a aquisição de terras devolutas por particulares por meio de compra, com exceção das regiões de fronteira, onde continuava a possível a doação pelo Governo, art. 1º. Tentou reprimir novos atos de ocupações ilegítimas das terras públicas, cominando vários tipos de penas aos invasores, art. 2º: despejo, perda de benfeitorias, obrigatoriedade de indenizar, multa e até mesmo prisão. Procurou definir com clareza o que seriam as terras devolutas, art. 3º. Criou regra para a demarcação das terras públicas com sua estremação das terras particulares, arts. 10, 19 e 21. A tentativa de delimitação pela Lei de Terras das terras devolutas em seu art. 3º ilustra bem a complexidade fundiária, bem como da importância da posse à época de sua edição. A cada parágrafo do artigo se excluía uma categoria ocupação do conceito de terras devolutas. No §1º, excluiu os bens públicos de uso específico. No 2º, foram excluídas as terras particulares, sendo elas qualquer uma que tivesse justo título, seja decorrente de concessão de sesmaria ou qualquer outra espécie. Em tal, parágrafo transparece as constantes burlas ao modelo anterior, pois seriam consideradas como terras devolutas as terras ainda cujo particulares tivessem justo título, mas que houvessem caído em comisso ou que o particular não tivesse cumprido suas obrigações de medição, confirmação e cultura. No §3º, a Lei abranda a regra do parágrafo anterior e exclui das terras devolutas as sesmarias que forem revalidadas nos termos do seu art. 4º. E, no §4º, exclui as posses existentes, à época, que fossem revalidadas nos termos da mesma lei.

8 “Daí a importância da Lei de Terras de 1850, que marca a definitiva passagem do patrimônio fundiário da Coroa às

mãos dos particulares, buscando disciplinar a caótica realidade agrária brasileira de então, composta pelas terras dadas de sesmaria – muitas vezes não cultivadas, não demarcadas, não registradas, em desconformidade à legislação vigente – e pelas posses em terras devolutas.” (VARELA, 2005, p. 7)

(9)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

A Lei de Terras pode ser vista como uma primeva tentativa de regularização fundiária brasileira, como se diria hoje em dia. Em seu intuito de resolver os problemas fundiários existentes no Brasil e migrar do modelo de sesmaria para um modelo proprietário, a Lei de Terras criou instrumentos de legitimação dos ocupantes irregulares de terras. Neste processo valorizou-se a ocupação efetiva e produtiva e a posse (JUNQUEIRA, 1978, p. 424).

Dois dispositivos são nodais na regularização fundiária disciplinada pela Lei de Terras, os arts. 4º e 5º. Cada um a tratar de uma situação jurídica distinta: o art. 4º, a tratar dos sesmeiros ou concessionários, e o art. 5º, a tratar dos posseiros. A distinção entre o posseiro e o sesmeiro ou concessionário estaria em sua titulação. Enquanto os últimos teriam sua ocupação legitimada por meio de título emitido pelo ente público, os primeiros estariam desprovidos de tais títulos públicos. Tanto no caso dos sesmeiros e concessionários, como no caso dos possuidores, o requisito para o reconhecimento da ocupação e consequente titulação era o cultivo e morada habitual. Era necessária a comprovação de uma ocupação mais permanente do imóvel, não bastando atos precários, como excluía o art. 6º.

Os possuidores ocupavam a terra sem qualquer vínculo jurídico com o ente público, contudo, isso não significava que necessariamente despido de qualquer relação jurídica. Duas situações se apresentavam aos possuidores: a posse poderia decorrer da simples invasão da terra e de sua destinação ao cultivo e moradia ou então tal ocupação poderia estar lastreada em vínculo jurídico estabelecido entre o sesmeiro ou concessionário e o possuidor. Era comum que, para a exploração das terras concedidas pelo ente público, os sesmeiros e concessionários outorgassem a outros particulares a exploração do bem, dividindo assim os frutos.

A existência coeva de sesmeiros e posseiros, ambos sendo tutelados pela Lei de Terra, inexoravelmente faria surgir conflitos. Buscando resolver tais embates, a Lei de Terras, no §2º do art. 5º, disciplinou que posseiros em terras de sesmaria ou concessão que não estivessem em comisso ou que fossem revalidadas, não dariam direito ao possuidor, cabendo a ele somente a indenização pelas benfeitorias. A regra, portanto, era a de que, no conflito entre sesmeiros e possuidores, se tutelaria o primeiro.9 Contudo, o próprio dispositivo logo em seguida cria três exceções onde os possuidores prevaleceriam em relação aos sesmeiros ou concessionários: em respeito a decisões judiciais; ter a posse se assentado antes da medição da sesmaria e transcorrido 5 anos de ocupação; ou ter a posse se estabelecido depois da medição e transcorridos 10 anos sem perturbação. Aliás, o

9 “A restrição à legalização das áreas de posse e a colisão destas com as sesmarias não confirmadas e outras mais punham

em evidência a impossibilidade de que fórmulas gerais viessem a atender os interesses em conflito. A pequena propriedade, o pequeno produtor, o pobre aparecem como temas recorrentes nas argumentações – eram no entanto, apenas sujeitos de retórica.” (SMITH, 1990, p. 316)

(10)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

embate entre posse e sesmaria não era algo tão raro, não por menos, a Resolução de 76, de 1822, que suspendeu a emissão de novas sesmarias, originou-se do pedido de um posseiro da comarca de Rio das Mortes, chamado Manoel José dos Reis que suplicou ao Príncipe que ele não desse em sesmarias a terra que cultivava.

A desvinculação da ocupação fundiária com o cultivo percebe-se bem no art. 16 da Lei de Terras. Enquanto que para a regularização das terras anteriormente possuídas ainda havia a necessidade de comprovação de cultivo, habitação e uso do terreno, como se vê nos arts. 4º, 5º, 6º e 10, as propriedades oriundas das vendas pelo ente público se limitavam somente a atos de necessidade pública, §1º, ou normas de vizinhança, §§2º e 3º, sem qualquer vinculação à sua produtividade.

Ao iniciar tal processo de segregação entre terras públicas e privadas e desvencilhar a propriedade fundiárias de suas obrigações de cultivo e produtividade, fez-se necessária a instrumentalização da surgente propriedade privada “absolutizada”. Em 1864, foi editada então a Lei Hipotecária, embrião do sistema registral, que permitia a transcrição de títulos nos tabelionatos com o fim de garantia.

Nossa história fundiária, portanto, é marcada pela migração do modelo de apoderamento baseado na posse e em títulos de sesmarias, para o modelo de propriedade liberal, absolutizada e mercantilizada, como nos narra Laura Beck, em resumo à sua obra (VARELA, 2005):

A história do direito de propriedade no Brasil corresponde a um processo de ruptura em relação à propriedade sesmarial, de natureza pública e condicionada por deveres como o de cultivo e morada habitual, cuja origem remonta à legislação agrária de D. Fernando I, de 1375, posteriormente incorporada às Ordenações do Reino. No período colonial, a legislação sesmarial amolda-se às exigências da economia baseada no latifúndio e na escravidão, mantendo, porém, sua forma essencialmente condicionada pelos deveres do cultivo, da medição e demarcação das terras, dentre outros.

Na passagem para a forma jurídica absoluta e individual, poder exclusivo da vontade, etapas fundamentais foram, entre nós, a promulgação da Lei de Terras de 1850 – que afastou o fundamento do cultivo e procurou extremar o domínio público do particular – e a reforma hipotecária de 1864 – que sentou as bases para a organização registral e a concepção da transcrição como modo de aquisição da propriedade. Atende-se às exigências econômicas da absolutização e da mercantilização da terra, no contexto da introdução das relações capitalistas de produção no Brasil. (VARELA, 2005)

O abandono do modelo baseado em sesmarias e a introdução a propriedade privada no Brasil pela Lei de Terras mercantilizou os imóveis, ou nas palavras que Junqueira:

Logo depois de votada a Lei 601, em que a propriedade se tornou mercadoria – porque até então era privilégio, semarias era privilégio, dada pela Coroa aos amigos, ao passo que na Lei 601 a terra é mercadoria; valorizou-se a posse; porque o Brasil esteve, de 1822 a 1850, à mercê de quem o quisesse.

(11)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

A propriedade urbana surgiu da ocupação. Até o advento da Lei de Terras, os imóveis urbanos eram reconhecidos por meio da ocupação e a terra até então não era vista como uma mercadoria. Somente com o advento da Lei de Terras transformou-se os imóveis em bem na mão daqueles que detinham títulos (cartas de sesmarias) ou outras provas de ocupação (FERREIRA, 2005).

Desta forma, a propriedade privada moderna de bens imóveis no Brasil só veio a surgir paulatinamente na segunda metade do século XIX (SMITH, 1990, p. 351).

3 DAS OCUPAÇÕES TRADICIONAIS

Essa transformação da ocupação do solo não foi completa. Pode-se afirmar que o modelo proprietário liberal, após introduzido no Brasil, se tornou hegemônico, e, em sua pretensão universalizante e padronizante, praticamente obliterou as outras formas de ocupação do solo. Contudo, ainda é possível se vislumbrar algumas formas e ocupação que “sobreviveram” à hecatombe liberal e encontram guarida em nosso ordenamento jurídico. O modelo proprietário liberal, nesses casos, entra em choque direto com modelos de ocupação do solo históricas, de grupos muitas vezes segregados ou excluídos dos novos processos econômicos.

Existem no Brasil algumas posses que têm certo grau de independência em relação à propriedade. A essas posses chamaremos posses autônomas, mesmo reconhecendo que em vários dos casos elencados não se poderia falar em total emancipação da posse em relação à propriedade, ou que o ordenamento jurídico as vê com o único intuito de convertê-las em propriedade. Exemplos de posses autônomas são: posse dos indígenas, posse na regularização fundiária, posse na desapropriação.

3.1 POSSE INDÍGENA

Comecemos pelas origens. Antes dos europeus, aqui no Brasil existiam inúmera etnias autóctones. A “descoberta”, em realidade, nada mais foi que uma invasão e com a invasão foi implementado o modelo de ocupação do vencedor, como narrado alhures. A fim de reparar essa chaga histórica, todas as constituições federais, desde a de 1934 trouxeram disposições acerca da utilização das terras indígenas: Constituição de 1934, art. 12910; Constituição de 1937, art. 15411;

10 Constituição Federal de 1934. “Art 129 - Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem.

permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.”

11 Constituição Federal de 1937. “Art 154 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados

(12)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

Constituição de 1946, art. 21612; Constituição de 1967, art. 14 e 18613; Emenda Constitucional n 1/69, 19814. A posse indígena se encontrava tutelada em todas as Constituições.

A Constituição Federal de 1988 não fugiu à regra. Ela dispõe em seu art. 20, XI, serem terras da União aquelas que sejam tradicionalmente ocupadas por índios, sendo que o art. 231, §1º, define tais terras e seu §2º assegura-lhes a posse dessas áreas:

§1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

A propriedade então da terra é pública da União, mas o §2º do art. 231 reconhece a posse permanente de tais terras aos seus ocupantes autóctones, “cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Essas terras, conforme o §4º, são inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis.

Terras indígenas são as tradicionalmente ocupadas, ou seja, a tutela a tais ocupações dá-se alheia a titularidade das mesmas. A existência de titularidade pública ou privada não impede o seu reconhecimento, que se dá por meio de procedimento demarcatório, determinado pelo art. 19 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 197315, regulamentado pelo Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de

12 Constituição Federal de 1946. “Art 216 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem

permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.”

13 Constituição Federal de 1967. “Art 186 - É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e

reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.”

14 Emenda Constitucional nº 1 de 1969. “Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que

a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes.

15 Lei nº 6.001 de 1973. “Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao

índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.

§ 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.”

§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras. § 2º Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão de interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória.”

(13)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

1996. Todavia, a posse dos indígenas é assegurada de forma independente do processo demarcatório, como disposto no art. 25 da Lei nº 6.001 de 197316.

Inúmeras são as discussões que permeiam o processo de demarcação, principalmente, porque o reconhecimento da vinculação da terra à comunidade indígena tem efeitos retroativos, extirpando qualquer propriedade que tenha se firmado sobre ela17, nos termos do art. 231, §6º da Constituição Federal18,

16 Lei nº 6.001 de 1973. “Art. 25. O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras

por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República.”

17 “Poder de menor intensidade é o encontrado no decreto expropriatório das terras essenciais para a reforma agrária.

Existem, com efeito, diferenças entre o decreto expropriatório da reforma agrária e o demarcatório de terras indígenas. Nesta, os títulos são considerados inexistentes e nulos, pois eivados de ilegalidades históricas presumidas. Dessa forma, pagam-se apenas as benfeitorias derivadas de boa-fé, jamais o valor da terra nua. Já na reforma agrária, os títulos são válidos, mas passíveis de desapropriação, mediante indenização em títulos da dívida agrária. Sem dúvida alguma, ambos os poderes incomodam um País de índole patrimonialista e agrária, que, em muitos casos, protege as terras agriculturáveis como patrimônio inatacável, mesmo quando apenas utilizadas como reserva de valor, patrimônio acumulável, a despeito de seus fins sociais.” (VILLARES, 2009, p. 143-144)

18 Constituição Federal. “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e

tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.”

(14)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

e reconhecido pelo STF19. Não por menos, a fim de evitar graves danos sociais20, o STF possui entendimento sumulado a melhor delimitar o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”,

19 “E M E N T A: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – INOCORRÊNCIA DE CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE

OU OMISSÃO – PRETENDIDO REEXAME DA CAUSA – CARÁTER INFRINGENTE – INADMISSIBILIDADE – A TERRA INDÍGENA COMO “RES EXTRA COMMERCIUM” – INSUBSISTÊNCIA DE TÍTULOS DOMINIAIS PRIVADOS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (ART. 231, § 6º) – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REVESTIDOS DE CARÁTER INFRINGENTE – Não se revelam cabíveis os embargos de declaração, quando a parte recorrente – a pretexto de esclarecer uma inexistente situação de obscuridade, omissão ou contradição – vem a utilizá-los com o objetivo de infringir o julgado e de, assim, viabilizar um indevido reexame da causa. Precedentes. TERRAS INDÍGENAS E TÍTULOS DOMINIAIS PRIVADOS – A eventual existência de registro imobiliário em nome de particular, a despeito do que dispunha o art. 859 do Código Civil de 1916 ou do que prescreve o art. 1.245 e §§ do vigente Código Civil, não torna oponível à União Federal esse título de domínio privado, pois a Constituição da República pré-excluiu do comércio jurídico as terras indígenas (“res extra commercium”), proclamando a nulidade e declarando a extinção de atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse de tais áreas, considerando ineficazes, ainda, as pactuações negociais que sobre elas incidam, sem possibilidade de quaisquer consequências de ordem jurídica, inclusive aquelas que provocam, por efeito de expressa recusa constitucional, a própria denegação do direito à indenização ou do acesso a ações judiciais contra a União Federal, ressalvadas, unicamente, as benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF, art. 231, § 6º). Doutrina. Precedentes. – Foi a própria Constituição da República que proclamou a invalidade de títulos dominiais existentes sobre áreas qualificadas como terras indígenas (CF, art. 231, § 6º), posto que integram, constitucionalmente, o domínio patrimonial da União Federal (CF, art. 20, XI). INCOMPORTABILIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA INCIDENTAL NA VIA SUMARÍSSIMA DO MANDADO DE SEGURANÇA – A ação de mandado de segurança – que faz instaurar processo de natureza eminentemente documental – caracteriza-se por somente admitir prova literal pré-constituída, não comportando, por isso mesmo, a possibilidade de dilação probatória incidental, pois a noção de direito líquido e certo ajusta-se ao conceito de fato incontroverso e suscetível de comprovação imediata e inequívoca. Doutrina. Precedentes.

(RMS 29193 AgR-ED, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 16/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-2015)”

20 “A Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal é constantemente utilizada para afastar o conceito de terras indígenas

tradicionalmente ocupadas. (...)

A questão subjacente dos julgados originadores da Súmula 650 é diversa das ocasiões que são albergadas pelo caput e parágrafos do art. 231 da Constituição. O art. 231 reconhece o direito originário dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam e a obrigação da União de demarcá-las, enquanto os julgados que precederam a Súmula afastam a alegação de impossibilidade de usucapião de terras da União, pois são hoje áreas urbanas dos municípios de Santo André e Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, anteriormente terras indígenas.

O STF reconhece que a ocupação indígena que há muito se verificou em dada região, hoje densamente povoada, parte da região metropolitana de São Paulo, que congrega inúmeros municípios sem limites físicos a separar sua área urbana, não pode ser considerada bem da União. Não são essas áreas terras indígenas, pois terras indígenas como bens da União, previstas no art. 20, são aquelas tratadas no art. 231, ambos da Constituição Federal.

Reflete-se no julgamento o entendimento de que a usucapião é um instrumento importantíssimo de política urbana, que se coaduna com a função social do imóvel urbano. Áreas urbanas, de grande aglomeração humana, que num passado remoto foram terras ocupadas por índios, podem ser usucapidas, pois não devem ser consideradas terras indígenas de propriedade da União. Se o entendimento fosse diverso, não se protegeria o direito indígena às suas terras de ocupação tradicional, mas a vontade da União de aquinhoar mais um patrimônio.” (VILLARES, 2009, p. 142)

Ou como diria Ilmar Galvão acerca da necessidade de critérios temporais claros para a demarcação: “O índio, na verdade, não está investido do poder de transformar em terra pública federal aquela em que vai pondo os pés, por efeito de eventuais perambulações, como se fossem os Reis Midas dos tempos modernos, numa versão indígena e fundiária”. (GALVÃO, 2013, p. 319)

(15)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

retirando as terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto, súmula 6502122.

3.2 POSSE QUILOMBOLA

Outra comunidade tradicional contemplada constitucionalmente foi a dos escravos fugidos, os quilombolas. A Constituição Federal reconheceu o direito das terras tradicionalmente ocupadas por comunidades quilombolas a terem o direito de propriedade assegurado, nos termos do art. 68, do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias23 . O procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação é regulado pelo Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. O decreto estabelece os critérios para a definição dos remanescentes das comunidades dos quilombos em seu art. 2º 24. Esse dispositivo foi objeto de Ação Direta de

Inconstitucionalidade perante o STF protocolada sob o nº 3239. Na decisão de tal ação, foi decidida pela constitucionalidade formal e material do decreto e suas disposições. Dentre outras questões

21 Súmula 650 do STF. “Os incisos I e XI do art. 20 da CF não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que

ocupadas por indígenas em passado remoto.”

22 A caracterização da terra indígena como aquela existente durante a promulgação da Constituição Federal de 1988 não

quer dizer que elas estejam efetivamente ocupadas pela população indígena, podendo ser reconhecido seu direito caso a terra esteja sendo disputada, o chamado “esbulho renitente”, como se vê no precedente do STF.

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO VERDE”. ÁREA

TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. 2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014. 3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. 4. Agravo regimental a que se dá provimento.

(ARE 803462 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 09/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-029 DIVULG 11-02-2015 PUBLIC 12-02-2015)”

23 Constituição Federal, Atos de Disposições Constitucionais Transitórias. “Art. 68. Aos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” “O índio, na verdade, não está investido do poder de transformar em terra pública federal aquela em que vai pondo os pés, por efeito de eventuais perambulações, como se fossem os Reis Midas dos tempos modernos, numa versão indígena e fundiária”

24 Decreto 4.887, de 2003. “Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste

Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.”

(16)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

abordadas, o voto atenta que o tratamento dado pela Constituição Federal e ordenamento jurídico às terras quilombolas não é igual ao das terras indígenas.25 Enquanto que nas terras indígenas, a existência de propriedade privada sobre as áreas demarcadas implicam a declaração de sua nulidade, nas terras de quilombolas, as propriedades privadas podem existir, devendo o ente público proceder com a devida expropriação da propriedade privada, nos termos do art. 13 do decreto 26.

A dominialidade reconhecida foge da forma tradicional de propriedade, pois a titulação é outorgada em benefício da coletividade, ao invés dos indivíduos, como se vê no art. 17 do decreto.

Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2º, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.

Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas.

25 “EMENTA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO Nº 4.887/2003. PROCEDIMENTO

PARA IDENTIFICAÇÃO, RECONHECIMENTO, DELIMITAÇÃO, DEMARCAÇÃO E TITULAÇÃO DAS TERRAS OCUPADAS POR REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS. ATO NORMATIVO AUTÔNOMO. ART. 68 DO ADCT. DIREITO FUNDAMENTAL. EFICÁCIA PLENA E IMEDIATA. INVASÃO DA ESFERA RESERVADA A LEI. ART. 84, IV E VI, "A", DA CF. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL.

INOCORRÊNCIA. CRITÉRIO DE IDENTIFICAÇÃO. AUTOATRIBUIÇÃO. TERRAS OCUPADAS.

DESAPROPRIAÇÃO. ART. 2º, CAPUT E §§ 1º, 2º E 3º, E ART. 13, CAPUT E § 2º, DO DECRETO Nº 4.887/2003. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. INOCORRÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. (...)

11. Diverso do que ocorre no tocante às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios – art. 231, § 6º – a Constituição não reputa nulos ou extintos os títulos de terceiros eventualmente incidentes sobre as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de modo que a regularização do registro exige o necessário o procedimento expropriatório. A exegese sistemática dos arts. 5º, XXIV, 215 e 216 da Carta Política e art. 68 do ADCT impõe, quando incidente título de propriedade particular legítimo sobre as terras ocupadas por quilombolas, seja o processo de transferência da propriedade mediado por regular procedimento de desapropriação. Improcedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade material do art. 13 do Decreto 4.887/2003. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.”

(ADI 3239, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019)

26 Decreto nº 4.887, de 2003. “Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos

quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.

§ 1º Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o efeitos de comunicação prévia.

§ 2º O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem.”

(17)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

O domínio coletivo é inalienável, imprescritível e impenhorável, bem como o exercício dos poderes relativos a tais bens se dá por meio de associação constituída para falar em nome da comunidade.

3.3 COMPOSSE EM FUNDO DE PASTO

O fundo de pasto é um resquício de terras comunais existente ainda hoje em nosso ordenamento jurídico. A Constituição do Estado da Bahia, em seu art. 178, tutela os fundos e fechos de pasto2728. Como terras comunais, o fundo de pasto é dotado de posses exclusivas em relação à unidades habitacionais com sua área contigua de cultivo e outra área de composse onde se mantém o uso comum para a criação de animais de pequeno e médio porte 29. No caso da Bahia, a fim de instrumentalizar a proteção da área, a Constituição estadual, em seu dispositivo, determinou que fossem criadas associações compostas por todos os reais ocupantes. Todavia, deixou claro o dispositivo, em seu parágrafo único, que essas terras poderão ser concedidas como concessão de uso com cláusula de inalienabilidade, vedando qualquer forma de transferência do domínio por parte do Estado.

Esse dispositivo na Constituição baiana foi fruto de grande luta pelos ocupantes comunais frente à pretensões proprietárias de pecuaristas da região e de legislações municipais de restrição ao uso tradicional de exploração solta de caprinos30.

27 Constituição do Estado da Bahia. “Art. 178. Sempre que o Estado considerar conveniente, poderá utilizarse do direito

real de concessão de uso, dispondo sobre a destinação da gleba, o prazo de concessão e outras condições. Parágrafo único. No caso de uso e cultivo da terra sob forma comunitária, o Estado, se considerar conveniente, poderá conceder o direito real da concessão de uso, gravado de cláusula de inalienabilidade, à associação legitimamente constituída e integrada por todos os seus reais ocupantes, especialmente nas áreas denominadas de Fundos de Pastos ou Fechos e nas ilhas de propriedade do Estado, vedada a este transferência do domínio.”

28 Para mais informações, há farta produção acadêmica pela Universidade Federal da Bahia acerca do tema disponível

no domínio https://geografar.ufba.br/catalogo-bibliografico-ffp Acessado em 17.02.2020.

29 “Fundo e Fecho de Pasto (FPP) é a designação de comunidades rurais que, além das áreas de terras para a ocupação

de núcleos familiares com casas de moradia e cultivo em regime de economia familiar, mantém áreas para uso comum, onde se desenvolve a criação de animais de pequeno e médio porte como forma de convivência com o semiárido nordestino. Essas condições propiciam a construção de uma territorialização imbricada na identidade coletiva, nos laços de parentesco e solidariedade entre as famílias que compartilham o acesso e o uso dos recursos territoriais em áreas abertas para o pastoreio, obtendo com isso maior aproveitamento das potencialidades da caatinga.” (SOUZA, 2014, p. 4-5)

30 “Nesse período, um componente legal tornou mais difícil ainda a situação das comunidades de fundo de pasto, a

criação de “leis municipais denominadas popularmente de “Lei do pé alto” ou “Lei dos 4 fios”. Estas favoreciam a ocupação de terras por grandes pecuaristas de gado de corte em detrimento da ocupação no regime de bode solto”. A referida Lei previa principalmente que a criação de criação de caprinos e ovinos deveria ser feita em área cercada para evitar prejuízos a propriedades alheias. Diante dessa realidade, os trabalhadores do Fundo de Pasto, travaram uma intensa luta junto aos poderes públicos para que o direito de posse comunitária das terras fosse juridicamente

(18)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

4 MERCADO IMOBILIÁRIO INFORMAL: MERCADO POSSESSÓRIO

A posse se encontra tão presente na regulação do solo brasileiro que seu volume torna capaz e presente em todas as grandes capitais de verdadeiros mercados imobiliários informais, onde uma diversidade de situações jurídicas são comercializadas. Saindo da propriedade, é possível se encontrar em oferta uma infinidade de situações jurídicas, desde o promitente comprador do lote ao “grileiro” cuja posse é destituída de qualquer legitimidade.

Veríssimo (2007, p. 159) narra esse tipo de comércio no Rio de Janeiro:

A informalidade e a irregularidade têm sido a regra, e não a exceção, no processo de produção e reprodução do espaço urbano dos pobres na cidade do Rio de Janeiro. As diversas iniciativas de controle do crescimento urbano efetuadas pelo Estado, via de regra, não alcançaram os resultados desejados, pelo menos não os declarados, não obstante as legislações tenham sido reformuladas de tempos em tempos.

A implantação e comercialização de lotes sem obediência às normas estabelecidas, locais ou nacionais, foi prática recorrente que marcou o processo de expansão e consolidação da malha urbana, especialmente nas áreas ocupadas pela população de baixa renda. (VERÍSSIMO, 2007, p. 159)

Esse mercado informal é diagnosticado em outras capitais, como em Recife, Maceió (SOUZA, 2003) ou São Paulo (BALTRUSIS, 2003). Baltrusis (2003, p. 215-216) inclusive assim narra acerca desse mercado informal:

A questão do mercado informal pode ser vista como uma disputa entre o direito que o Estado tem de legislar e a atividade produtiva em um mercado livre sem regras. Em outras palavras, o desenvolvimento estatal planejado versus a economia de mercado pura e simplesmente. Em relação ao mercado imobiliário, o setor informal se apresenta como um instrumento capaz de viabilizar o acesso à mercadoria moradia a uma camada da população excluída do mercado formal e dos programas oficiais.

Contudo, o déficit habitacional não pode ser visto como o único fator a impulsionar o mercado informal. Para isso, basta constatar a proibição de venda de unidades imobiliárias dentro do programa Minha Casa Minha Vida. A Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, veda expressamente qualquer cessão ou transferência das unidades imobiliárias atribuídas na primeira faixa, da

reconhecido e estas pudessem ser medidas, demarcadas e tituladas, assegurando assim que a posse da terra garantisse a manutenção do seu trabalho.

Após intensas mobilizações, abaixo-assinados, ocupações sucessivas aos órgãos públicos, os trabalhadores das comunidades de fundo de pasto, apoiados por organizações, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) e outras entidades, conseguiram finalmente o reconhecimento legal da posse comunitária da terra na Constituição Baiana de 1989, no Artigo 179, Parágrafo Único.” (DIAS, 2012, p. 6)

(19)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

população com menor renda.31 Por óbvio que a pretensão de alienação das unidades nada tem a ver com a habitação em si. As pessoas dessa faixa estão enquadradas dentro das classes sociais mais excluídas, onde impera o maior déficit habitacional. Pela lógica, não teriam qualquer interesse em alienar suas unidades. Contudo, o que se vê é o inverso, não por menos sendo duramente coibido dentro do programa. As alienações, de qualquer espécie, dessas unidades levam à nulidade peremptória pela lei do contrato celebrado.

O Distrito Federal possui caso interessante onde o próprio Estado disciplinou, de certa forma, esse mercado informal. Tradicionalmente no Distrito Federal, os tabeliães de notas não fazem escrituras de alienação de posse. Isso em boa parte em razão da exigência de comprovação da propriedade pela Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985, art. 1º, §2º.32 Em outra parte, em razão da insegurança em se saber quem é o possuidor ou não de determinado imóvel. Desta forma, as transações imobiliárias envolvendo unidades urbanas sem registro imobiliário eram relegadas somente aos instrumentos particulares.

O CTN, em seu art. 32, delimita como fato gerador do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU a propriedade, o domínio útil e a posse. Desta forma, por ser um imposto municipal, é de competência do Distrito Federal, sobre sua extensão territorial, art. 32, §1º da Constituição Federal. O Distrito Federal, para isso, mantém cadastro imobiliário correlacionando as unidades imobiliárias e pessoas titulares.

O problema então surge quando esse cadastro é abastecido pelas informações constantes dos instrumentos particulares. Ainda que eles tenham firma reconhecida dos signatários, a qualidade de sua elaboração, ausência de perpetuidade da documentação e inúmeras fraudes envolvidas, acabavam por tornar o cadastro de difícil utilidade. Muitas das vezes, quando o imposto estava

31 Lei nº 11.977, de 2009. “Art. 6º-A. As operações realizadas com recursos advindos da integralização de cotas no

FAR e recursos transferidos ao FDS, conforme previsto no inciso II do caput do art. 2o, são limitadas a famílias com renda mensal de até R$ 1.395,00 (mil trezentos e noventa e cinco reais), e condicionadas a: (...)

§ 5º Nas operações com recursos previstos no caput: (...)

III – não se admite transferência inter vivos de imóveis sem a respectiva quitação.

§ 6º As cessões de direitos, promessas de cessões de direitos ou procurações que tenham por objeto a compra e venda, promessa de compra e venda ou cessão de imóveis adquiridos sob as regras do PMCMV, quando em desacordo com o inciso III do § 5º, serão consideradas nulas.”

32 Lei nº 7.433, de 1985. “Art 1º - Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos

de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei. (...) § 2º O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição.”

(20)

Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 8, p. 63327-63348, aug. 2020. ISSN 2525-8761

inadimplido, o Distrito Federal ajuizava execuções fiscais com base em tais cadastros, que frequentemente restavam frustradas ou inócuas em relação aos imóveis irregulares.

Como forma de “higienizar” as informações cadastrais, aumentando seu grau de segurança, evitando a utilização de documentos falsos, e assim consequentemente a efetividade das execuções fiscais, em 2017, a Secretaria de Fazenda do Distrito Federal editou a Instrução Normativa nº 4, de 26 de abril de 2017. Por meio dela, passava-se, depois de uma vacatio de 6 meses, a ser obrigatória a utilização de escrituras públicas para a modificação e atualização das informações cadastrais, mesmo para os imóveis irregulares.

As serventias de notas do Distrito Federal passaram então a acessar o cadastro distrital imobiliário para verificar o legitimado tributariamente pelo imóvel e, com base nestas informações, proceder com escrituras de cessão de direito com base na posse de imóveis, quando estivessem esses não registrados.33 Introduziu-se assim o mercado possessório dentro da atividade tabelioa

distrital.

O reconhecimento do viés econômico e mercadológico da posse frente à propriedade permite não só a melhor compreensão do fenômeno, mas também sua instrumentalização. Por meio desse reconhecimento da autonomia possessória, sua presença constante no meio social e sua indubitável manifestação como mercadoria, necessária é a adequação da atuação do Estado frente ao instituto, por exemplo, incorporando-a aos seus cadastros, como no caso narrado no Distrito Federal, ou até mesmo permitindo sua indenização em casos de desapropriação, como defende Jefferson Carús (GUEDES, 1998)34.

33 Instrução Normativa nº 4, de 26 de abril de 2017. “Art. 1º Para fins de alteração no cadastro imobiliário fiscal dos

dados do titular do imóvel, serão aceitos um dos seguintes documentos, sem prejuízo do disposto no § 1º deste artigo: I - imóvel registrado no cartório de imóveis:

a) certidão da matrícula e ônus do imóvel;

b) escritura pública da transação imobiliária, desde que averbada ou registrada na matrícula do imóvel.

c) instrumento particular que, por lei, tenha força de escritura pública, desde que averbado ou registrado na matrícula do imóvel;

II - imóvel sem registro no cartório de registro de imóveis: a) escritura pública de cessão de direito de posse;

b) formal de partilha em processo judicial de inventário; c) escritura pública de inventário;

d) decisão judicial autorizando a transferência de titularidade do imóvel.”

34 “Quanto à posse, inserta ou destacável do direito de propriedade, sendo ou não um direito, integra aqueles possíveis

de expropriação, por atender, assim como atendem o domínio e/ou a propriedade, os pressupostos antes anunciados: a) comercialidade; b) valor econômico; c) interesse à consecução da política estatal.” (GUEDES, 1998, p. 59)

Referências

Documentos relacionados

Considerando que, no Brasil, o teste de FC é realizado com antígenos importados c.c.pro - Alemanha e USDA - USA e que recentemente foi desenvolvido um antígeno nacional

By interpreting equations of Table 1, it is possible to see that the EM radiation process involves a periodic chain reaction where originally a time variant conduction

O desenvolvimento desta pesquisa está alicerçado ao método Dialético Crítico fundamentado no Materialismo Histórico, que segundo Triviños (1987)permite que se aproxime de

Como já destacado anteriormente, o campus Viamão (campus da última fase de expansão da instituição), possui o mesmo número de grupos de pesquisa que alguns dos campi

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

Foi apresentada, pelo Ademar, a documentação encaminhada pelo APL ao INMETRO, o qual argumentar sobre a PORTARIA Nº 398, DE 31 DE JULHO DE 2012 E SEU REGULAMENTO TÉCNICO

Neste trabalho avaliamos as respostas de duas espécies de aranhas errantes do gênero Ctenus às pistas químicas de presas e predadores e ao tipo de solo (arenoso ou

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação