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Psicologia e subjetividade

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Academic year: 2021

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(1)

A PSICANÁLISE E A CLIVAGEM DA SUBJETIVIDADE

(2)

CENTRO DE pdS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

PSICOLOGIA E SUBJETIVIDADE

LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA

FGV/ISOP/CPGP

Praia de Botafogo, 190 - sala 1108 Rio de Janeiro - Brasil

_~ ,,'<~c ,: .

(3)

CENTRO DE POS-GRADUAÇAO EM PSICOLOGIA

PSICOLOGIA E SUBJETIVIDADE ~

Por

LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA

Tese submetida como requisito parcial 'para obtenção do grau de

DOUTOR EM PSICOLOGIA

(4)

Quero agradecer a três colegas e amigos que, em momentos diversos e d~ maneiras diversas, contribuiram para a elaboração deste trabalho. são eles os professores:

Antonio Gomes Penna Clauze Ronalde de Abreu Claudio Ulpiano

(5)
(6)

Este ~rabalho se propoe como uma anilise histórica da questão da subjetividade tal como ela foi pensada desde sua emergência com Descartes,até Freud. Não se trata propriamen-te da história' de um conceito mas de uma abordagem h'istórica a um espaço mais amplo de questões que tem como referencial ' 0 sujeito e a subjetividade.

o

texto esti dividido em três partes. Na Parte I, é analisada a emergência da subjetividade como objeto do sa-ber e o esforço do racionali~mo para identifici-Ia com a ra-zão. A Parte 11, é dedicada

ã

abordagem empirista e seus des-.

.

dobramentos psicológicos. 'A Parte 111 é toda ela qcupada pela questão da clivazem da subjeti~idade operada pela teoria psi-canalítica.

o

objetivo mais imediato do trabalho, é o de con -frontar as virias concepções da subjetividad~ considerada co-mo una e identificada com a consciência, ã concepção que nos é oferecida por'Freud e que implica numa subjetividade cliva-da e num descentramento cliva-da razão. Face a este objetivo, a di-visão do trabalho em suas duas partes iniciais, não se ofere-ce como' rigorosa mas visa apenas uma maior comodidade exposi-tiva.

o

objetivo mais amplo do trabalho é, no entanto

(7)

discurso psicanalítico.

(8)

This work· proposes to be a historical analysis of the question of subjectivity such as it has been underst00d since its inception from Descartes until Freud. It is not ·the history of a concept actually, but rather the historical

approach of a broader area of matters with the in~ividual and subjectivity as references.

The text is divided into three parts. In Part I it is analysed the emergence of subjectivity as object of knowledge, and the effort of ·rationalism to identify it with the reason. Part 11 is concerning the empiricism approach and its psychological unfoldings. Part 111 is alI concerned with the question ofcleavage of subjectivity operated by

psychoanalytical theory.

The most immediate purpose of the work is to confront the various conceptions of subjectivity co~sidered

as one and identified with consciouness, with the conception as offered by Freud which implies a cleaved subjectivity and decentraIization ofreason. In the light of this purpose, the two initial parts ofthe work do not stand fo~ a strict divi-sion, but are rather 50 divided for greater expIanatory conve nience.

The braader purpose of the work, however, is the

(9)

text, including the psychoanalytical discourse.

(10)

Agradecimentos --- iv

Resumo --- .. --- v

Summary --- vi

PAkTE I:A SUBJETIVIDADE FEITA RAZÃO CAP!TULO 1: Descartes e a emerg~ncia da subjetividade 005 CAP!TULO 2: A teoria das idéias de Ma1ebranche --- 033

CAPfTULO 3: Spinoza e a subjetividade como o lugar da

i1u--

.

sao ---CAPfTULO 4: A mônada 1eibniziana ---~---CAP!TULO 5: Kant e a consciência transcendental 044 056 075 CAPfTULO 6: Hege{ e a subjetividade feita razão --- 095

CONCLUSÃO ---~--- 115

PARTE 11: A SUBJETIVIDADE FEITA EXPERIENCIA CAPfTULO 1: O empirismo de Locke --- 120

CAPfTULO 2: O fenomenismo de Berke1ey --- 152

CAPfTULO 3: Hume e o delírio da subjetividade --- 168

CAPfTULO 4: O associacionismo inglês --- 191

CAPfTULO 5: A psicofísica de Fechner --- 226

CAP!TULO 6: Wundt: psicologia atualista vs. psicologia dos conteGdos mentais 236 CAPfTULO 7: William James e o fluxo da consciência --- 249

(11)

ca --- 307 CAPrTULO 10: Brentano e a psicologia empírica --- 329

CAPrTULO 11: Husserl e a subjetividade transcenãental --- 345

CONCLUSÃO 380

PARTE 111: A PSICANÁLISE E A CLIVAGEM DA SUBJETIVIDADE

INTRODUÇÃO: --- 383 CAPrTULO 1: A P~-HIST6RIA DA PSICANÁLISE I --- 391

A consciência da .loucura. O saber p~iquiátri­ co. O interrogatório e a confissão. A loucura experimental. A hipnose. Charcot e a histeria. Trauma e ab-reação. Trauma e defesa psíquica. A sexualidade.

CAPfTULO 2: A PRg-HIST6RIA DA PSICANÁLISE Ir· O "Projeto" 418

de 1895

---O aparelho psíquico. A noção de quantidade

(Q).

O princípio de inércia. Os neurônios ~ , ~ e w • A experiência de satisfação. A emer -gência do "ego". Processo primário e processo secundário. Os sonhos.

CAP!TULO 3: O DISCURSO DO DESEJO: A Interpre~ação de So- 448

nhos ---·Sentido e intepretação. Elaboração onírica e

interpretação. O simbolismo nos sonhos. O Ca-pítulo VII e a primeira tópica. Os sistemas

(12)

quico~ O recalcamento.

CAPITULO 4: O DISCURSO DA PULsA0: OS,Três Ensaios sobre

a Sexualidade. --- 496

Os perversos. A sexualidade infantil. O auto-erotismo. Zonas erógenas e pulsões parciais. As fases de organização da libido. As trans -formações da puberdade. A teoria da libido.

CAPITULO 5: PULSÃO E REPRESENTAÇÃO --- 525 O conceito de pulsão. Pulsões do ego e

pul-sões sexuais. Os destinos da pulsão. Pulpul-sões de vida e pulsões de morte.

CAPITULO 6: O DESEJO

O modelo hegeliano do desejo. Hegel, Freud e Lacan

CAPITULO 7: O RECALCAMENTO

O recalcamento e os representantes da pulsão. O recalcamento originirio. O recalcamento se cundário. O retorno do recalcado.

CAPITULO 8: O INCONSCIENTE

A psicani1ise e a psicologia da consciência. Os fenômenos lacunare~. O inconsciente e o simbólico. A estrutura do inconsciente. As característ icas do sistema inconscien·te. "O inconsciente ~ estruturado como uma lingua

-569

588

(13)

ginária.

CAP!TULO 9: O SUJEITO E O EU --- 658 A no~io de Ego nos textos metapsico16gicos. "Wo Es war, 5011 Ich werden". O estágio do espelho e o imaginário. O fenômeno edípico. Psicanálise e subjetividade.

CONCLUSÃO FINAL --- 714

(14)

Este, é um discurso universitário. Discurso que se propoe como .retransmis·sor de um saber e, ao mesmo . tempo,

discurso marcado pelo comentário.

Enquanto retransmissor de um saber, expoe-se ao risco de ser tomado como um mero recitativo do saber veicula-do pela história; enquanto comentário, é ameaçaveicula-do pela prete~ sao de dizer algo mais do que· aquilo que foi dito no texto uma espécie de' discurso epifânico, revelador de uma

ocul ta nos textos dos Mes t·res .

.

verdade

. g,

ainda, um discurso que se coloca no lugar da doxa, da opinião, muito mais do que no lugar da sophia, do Sa ber. Portan'to, discurso de um aspirante ao saber, cujo recur-so aos Mestres mal consegue disfarçar uma reverênc~a semi-re-ligiosa. Essa ieverência é,. no entanto, ilus6ria, posto que esse "amateur" da Sabedoria esconde em seu íntimo a pretensão de dizer a verdade que o Mestre não disse.

O que esse discurso-comentá!io pretende portanto, nao é apenas ~reencher o vazio da ignorância mas assinalar ainda o desconhecimento de que é marcado o texto do Mestre isto é, aquilo que esse texto oculta como verdade.

(15)

o discurso universitário nao nos coloca a salvo dos seus efei tos mas, ao contrário, nos torna conscientes da luta de morte que através dele travamos. Tal como nos enígmas propostos

pe-la esfinge tebana, ou deciframos os textos ou somos por eles devorados. Reviv~ncia cotidiana aa situação edípica. Não da-quele 'Edipo, imerso ainda na aleatoriedade do acontecimento mas desse outro, mais, próximo, protegido pelo simbólico.

Mas esse discurso que nos ameaça, nos fornece tam bém a garantia. Discurso platônico sobre ~ platonismo, está ao abrigo dos acontecimentos. O simbólico é para ele a media-ção irredutível. Se ele não

é

neutro enquanto manifestação das nossas idéias, ele é neutro enquanto significação das Idéias ou dos conceitos universais. E assim, escapamos cotidianamen-te da morcotidianamen-te real com a condição,

é

verdade, de não vivermos esse real. Essa é, porém, a marca distintiva do platonismo astúcia maior do homem ocidental face

à

exigência irredutível do desejo.

Evidentemente, nao posso negar aqui meu compromi~

so com esse discurso. Antes mesmo de nascermos para o saber , já somos (com)prometidos. O rompimento desse compr,omisso, no meu caso, é lento e penoso. Talvez esse seja o momento catár-tico que antecede

à

ruptura. Só que uma catarse invertida. En ; quanto que para os gregos a catarse tinha por objetivo purifi car a alma das falsas opiniões, trata-se aqui de purificar a alma da Verdade d~s. Idéias.

-O tema desse discurso e a subjetividade. Esta

(16)

não é tomada aqui como algo acabado que se apresentará ã aná-lise e em relação à qual cada filósofo colocará seu ponto de vista. Não é um objeto já pronto que se oferece aos vários olhares e que se sub,meterá às várias "grades" teóricas, mas algo que irá se constituindo ne próprio caminhar do pensame~to 'filosófico. Esta é a razão pela qual não começo pelo que

tra-dicionalmente € considerado como o ponto de partida: à defini çao do objeto. Isso seria come~ar pelo fim.

Sabemos que algo emergiu no interior do saber século XVII e que se apresentou como contraposto ao corpo,

do ,

a matéria, ao comportamento manifesto, aos acontecimentos ditos

.:..

objetivos e que, por esta razao, se'apresentóu como subjetivo. Podemos constatar ainda que esta realidade ,subjetiva se pro-pôs como sendo mais "real'" e mais "evidente" do que . qualquer objeto do mundo. ,yerificamos também que esta subj eti vidade foi considerada como estritamente· individual, isto é. como pe.E tencente a ,um sujeito e acessível somente a ele. Finalmente , tomamos conhecimento de que essa subjetividade foi

apresenta-;..

da como substancial. Ist·o pode parecer mui to, mas e apenas o começo. Sua história se desenrola por mais de três séculos.

Este, é mais o trabalho de um inventariante do que o trabalho de um historiador; mais o trabalho de um pro -fessor do que o trabalho de um pensador.

(17)

Como todo inventário, ele

é

longo e por vezes ma-çante.

Paciência .

(18)
(19)

CAP!TULO I .

DESCARTES.E A.EMERGENCIA DA SUBJETIVIDADE

o

século XVII foi um momento da históría do saber ao qual estamos, de alguma maneira, até hoje ligados. A par-tir das críticas de Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e Galileu Galilei ele presenciou o progressivo e inexorável declínio do modo de pensar aristotélico e viu surgir a nova concepçao do mundo produzida por Newton. A.nova física, juntamente com as descobertas e a invenção de novas técnicas, ampliaram enorme-mente os domínios da exterioridade, transportando-nos "do mun do fechado ao universo infinito". O modelo mecânico da física de Newton é aplicado a uma nova concepção do corpo e um novo saber sobre o homem começa a se consti tuir. Em meio a esse no vo modo de pensar que reune o céu e a terra numa só explica -çao, surge a figura complexa de René Descartes, ao mesmo tem-po revolucionário e herdeiro do pensamento grego e medieval. ~

com Descartes que a subjetividade emerge como tema para o sa-ber e is·to no exato . momento em que este sasa-ber se volta para a

, exterioridade de um mundo novo. Duplo movimer.to, em di reção a

i, •

exterioridade do mundo e à interioridade da consciência.

Estas 'duas direções do pensamento moderno nao es-tão, porem, desvinculadas uma da outra. Na verdade, a investi

(20)

gaçao da subjetividade se coloca como prioritária em relação

ã

investigação do mundo, a consc~ência é o problema primeiro a ser resolvido para que possa ser colocada em termos corre -tos a questão do -mundo. Durante séculos, o saber ocidental confundiu o olho e o olhar, acumulou um imenso conjunto de c~

nhecimentos a respei to çlo mundo sem se perguntar sobre o suj ei to desse conhecimento. Os pensadores procederam como se a subj eti. vidade fosse o lugar neutro aonde a realidade se deixaria reve -lar docilmente. Oque Descartes deixa bem c-laro é que o objeto pri vile giaco a se pensar, naquele momen to, não é o universo que se abre ao olhar dos fil6sofos, mas sim esse pr6prio olhar. Trata-se de pensar o pr6prio pepsamen~o para em seguida, sobre a base s6lida dos seus fundamentos, edificar a ciência. O que Descartes procura é uma ga.rantia para o sa.ber, e esta' garantia não será procurada na realidade externa mas na pr6pria subjetividade .

...

O ponto de partida de sua filosofia sera, pois, o método. Est'e, deverá ser independente de qualquer conteúdo particular, para poder ser aplicado a todas a~ ciências e nes te caso, o modelo' ideal a s~r imitado é o da matemática. Des-cartes entende esse método como um conjunto de regras para a direção do espírito e estas podem ser reduzidas às quatro se-guintes: la.) Não aceitar como verdadeiro senão o que é tão claro e, tão distinto que não possa ser ~olocado em dúvida 2a.) Dividir ~ada dificuldade em tantas parcelas quantas fo -rem possíveis; 3a.) Começar pelos objetos mais simples para ascender gradualmente aos mais complexos; 4a.) Fazer em todos os sentidos enumerações tão completas e revisões tão gerais

(21)

11). Dessas quatro regras, a primeira

é

a mais importante e

é

ela que impõe o critério de certeza, as outras três sao ape-nas indicações complementares.

Entendido como "regras para a orientação do espír,i to", o método de'fato orienta o espírito para duas operaçoes intelectuais que são fundamentais: a intuição e a dedução. O privilégio atribuido a estas Juas operações assinalam ji a di reçã~ racionalis~a que vai tomar a filosofia cartesiana. A in tuição nos fornecerá evidências, isto é, idéias claras que se apresentam imediatamente à razãp e sobre as quais não pode re cair qualquer dúvida. Escreve Descartes (48),

"Entendo por intuição - não a crença ou o teste-munho variável dos sentidos ou 09 juizos

ilu~6-rios da imaginação" mas 'a concepção de um eSI}í-rito são e atento, tão fácil e tão distinta que nenhuma dúvida possa restar sobre o que compre-endemos" ; ,

Sobre as evidências fornecidas pela intuição seri aplicada a dedução, a' qual nos conduziri às noções derivadas. ~ sobre este segundo momento que devem ser aplicadas as r~gras do mé-todo; o primeiro momento, o da intuição, é anterior à aplica-ção das regras" e é ele que fornece os princípios que são ad'-mitidos como inconstestáveis pela razão, independente de qual quer prova ou de qualquer argumentação.

A primeira das regras que Descartes enuncia, as-sim como o trecho acima no qual ele nos esclarece o que ente~

de porintuiçio~ terminam com a afirmação categ6rica de que "nenhuma 'dúvida possa restar"'. Este é talvez o ponto fundamen tal do pr6cedimento estabelecido por Descartes e sua importa~

(22)

cia pode ser avaliada pelo fato dele permanecer corno ponto de a-poio de toda uma linha de pensamento que vai de Descartes a Hegel.

Vimos que o saber ocidental acumulou, durante vin, te s~culos, um conjurito de conh~cimentos que, pela áutoridade de seus autores ou pela "evidência" d!l. realidade, parecia ser eterno. No entanto, a partir do s~culo XVI este conjunto de conhecimentos começa a dar sinais de sua fragilidade e pouco a pouco vai cedendo lugar a novos conhecimentos decorrentes 00 novas descobertas ou de novos modos de pensar. E de repente , o mundo, com toda a sua solidez aparente, deixa de ser um cri tério crível de verdade, pois que ele próprio começa a ser colocado em dúvida. Verdades consagradas há dois mil' anos sao questionadas e não resis.tem a' ess.e questionamento. Não há mais garantia para o saber. Nem a autoridade dos filósofos ou a dos santos, nem o peso da realidade objetiva podem, a partir de então, ser considerados como garantia suficiente para o co nhecimento.

Assim, quando Descartes pede uma intuição - e uma apenas basta - sobre a qual não possa recair nenhuma dúvida , o que ele está procurando ~ a garantia de um fundamento sóli-do e irrecusável para a filosofia que pretende construir. Eis aí a extensão da chamada dúvida metódica: "rejeitar como abs~ lutamente falso, tudo aquiÍo sobre o qual possa se imaginar a menor dúviqa, a fim de ver se, após isso, não restará algo que seja inteiramente indubitável" (Descartes, 48, IV). Veja-mos o que restou.

(23)

so-bre os dados sensíveis. Sabemos que os sentidos nos enganam freqUentemente; de~endendo das circunstâncias, os objetos se nos àpresentam de diferentes maneiras, alterando sua forma sua cor, seu tamanho. O'mesmo objeto apresentado dentro de um determinado contexto, apresenta certas características qu~ se .a1teram quando ele é apresentado em outro contexto. Assim sen do, não podemos conferir ao dado dos sentidos uma credibi.1ida de como a que Descartes exigia para um fundarr~nto originário. Ou seja, não podemos confiar nos sentidos, eles nos enganam quanto ã realidade e como não dispomos de. um critério seguro de correção desse engano, temos que duvidar do c onhe ci men to sensível. Não há nada, ao nível do sensível que possa ser con s.iderado como indubi táve 1.

Se ao nível da sensibilidade nao encontramos uma evidência, poderíamos admitir que ao nível da razão ela seria encontrada em grande quantidade, posto que a universalidade e a necessidade lógica que lhe são inerentes garantiriam a exigên cia de indubitabi1idade feita por Descartes. Porém, é um enga no, pensarmos assim~ Descartes é muito'mais radical, na

ap1i-cação da dúvida metódica, do que poderiamos supor ã primeira vista.

"Considerando que todos os pensamentos que temos quando despertos podem nos ocorrer quando dormi mos, sem que haja nerihum, neste caso. que sejã verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espí rito, não eram mais verdadeiras que as ilusões-dos meus sonhos" (Des cartes, 48, IV).

Descartes coloca-se assim, na posição do.poeta chinês que a-firmou: "Na noite passada, sonhei que eu era uma borboleta, e

(24)

agora nao sei se sou um homem que sonhou que era borboleta ou talvez uma borboleta que agora está sonhando que é homem".

g claro que Descartes nio colocava em dGvida se ele era uma borboleta ou um homem, mas nao era uma certeza psicológica' que ele estava procurando. Ele podia acreditar que era um ho-mem, mas não podia encontrar nesta crença a certeza de sê-lo.

o

que ele estava exigindo do seu procedimento metodológico era uma certeza que, de forma alguma, pudesse ser questionada. O altamente provável, não era suficiente, era preciso uma cer teza. Desta forma, a própria existência da realidade acabou sendo colocada em dGvida, pois aquilo que se apresenta a nos

-como sendo o mundo externo póde não ser senão produto de nos-sos sonhos ou de nosnos-sos delírios. Assim, a dGvida que de

iRí-. ,

cio recaiu sobre o conhecimento sensível, passa a incidir so-bre a própria razão. Não somente o que me é dado pela sensi-bilidade, mas at6 mesmo aquilo ao qual eu chego pela razio pode ser colocado em dGvida, posto que posso estar louco e,

assim sendo, aquilo que julgo ser lógico, nãó passa de delí -rio.

Ampliáda dessa forma a dGvida, parece que nada lhe escapa, tudo é dubitável, não há evidência possível. Mas na verdade, ao duvidar de tudo. resta algo do qual não pode -mos duvi,dar: é que estamos duvidando, pois mesmo que duvide

,

mos que estamos duvidando. continuamos duvidélndo. Estranha conclusão a que chega Descartes, a Gnica certeza é a dGvida . Mas, se duvi~o, penso, pois a dGvida

é

uma forma de

pensamen-to. Assim sendo, a única coisa que resiste

ã

dúvida

é

o pens~ mento, ou melhor, é que pensamos.

(25)

"Logo me adverti de que. enquanto eu queria pen-sar que tudo era falso, cumprla necespen-sarlamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa, e

no-tando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais ex-travagantes suposições dos críticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá -la. sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava". (Descartes. 48. IV).

Da dúvida chegamos. portanto.

à

consciência. 'A única coisa que se apresenta como indubitável é o sujeito pe~ sante. portanto, uma subjetividade individual. g aqui que ap~ rece. pela primeira vez no vocabulário filosófico, a palavra "consciência". que Descartes identifica com o pensamento:

"Pelo nome de ~nsamerito. entendo tudo o que em nós se dá, de tal maneira que o percebemos ime-diatamente por nós mesmos tendo dele um conheci mento interior; de modo que todas as operações-da vontade. do entendimento, operações-da imaginação e dos sentimentos. são pensamentos" (Descartes 5 O) •

ou ainda,

"pela palavra ~~ar. entendo tudo o que nos a -contece. de tal maneira que o percebemos imedia tamente em nós mesmos; por isso, não 'apenas en~ tender. querer, imaginar, mas' também sentir,

é

aqui o mesmo que. pens ar" (Des cartes, 53, I, art.

9) •

Conclui-se destes trechos, que Descartes não somente'identifi ca o pensamento com a consciência, como também identifica a consciência com o psiquismo. Não há, em seu sistema. lugar p~ raoinconsciente psíquico. Q in·consciente ou um pensamento in-consciente, seria um pensamento que não se daria como tal, i5

to é, um pensamento que não poderia se pensar, o que, para o filósofo, era um absurdo.

Dessa forma. se até o século XVII o mundo era a

(26)

reálidade e a garantia de toda verdade, como consequência da dúvida cartesiana o que restou foi a consciência. Desse momen to em diante, o mundo fica redizido i representaçio.

A extensio dessa nova concepçao é bastante discu-tida e a questão 40 "idealismo" em Descartes, é, desde entio, um tema acadêmico inesgotável. Hamelin (119, cap. XII)" dis-'tingue duas fases na caracterização do pensamento por Descar-.tes: uma dualista (realista) e uma monista (idealista). Napri meira fase, o pensamento é definido por oposição i coisa não-pensante" isto é, existe o pensamento e frente a ele existe a coisa(não-pensante) que é ao mesmo tempo sua causa e seu oh jeto. O pensamento (ou consciência} 'nada mais seria, neste ca so, que uma realidade secundaria, um epifenômeno. Sendo ele uma representação da coisa', é esta que detérmina sua -existên-cia. O dualismo

é

aqui bastante ,~laro,: de um lado temos o peg samento - a 'tIres cogi tans" - e 'de, outro te'mos a realidade ma-terial - a tIres extensa". O que caracteriza a realidade mate-rial

é

a extensio e o que caracteriza o pensa~ento é a nao-ex tensão. Assim, é precisamente essa característica 'da coisa não-pensante, a extensão, que vái servir de critério distintivo en

tre ela e o pensamento: a coisa não-pensante é extensa e o pensamento é inextenso. Entre uma arvore real e uma arvore

..

pensada, a diferença está em que a primeira é material (exteg sal e a segunda é imaterial (inextensa);

"Me referi muitas vezes ao verdadeiro critério pelo qual podemos conhecer que o espírito

é

diferente do corpo; é que a essência ou natu-reza do espírito consiste apenas em pensar , enquanto que a natureza do corpo consiste ap~

nas em ser extenso; de' modo que não há absolu tamente nada de comum entre o pensamento e a extensão" (Descartes, 50)

(27)

o

caráter realista desse dualismo está também cla ramente·caracterizado. Ao rejeitar o pensamento como extenso e ao afirmar que ele se cons.tiiui por oposição i extensão que lhe

é

exterior, Desc~rtes está supondo a existência desse ex-terior que

é

a realidade material. Seu dualismo implica, por-tanto, no postulado realista.

Mas, e é aqui que se inicia o movimento em dire .çao à fase monista, a função do pensamento é representar a

coisa extensa e nada há na realidade extensa que não seja re-presentável pelo pensamento. Nesse dualismo não há lugar para o mistério, para o insondável; nã~ existe realidade alguma que o pensamento não possa conter. Tal ponto de vista

é

sufi-ciente para não deixar margem i hip6tese .da existência de um inconsciente, seja ele de que natureza for. Para Deséartes pensamento e consçiência sao uma'só e mesma coisa, não sendo admissível um pensamento que não 'fizesse parte da consciência.

Foi a afirmação de que o pensamen~o expressa a re~ lidade total da coisa não-pensante, que deu margem'ao apareci. mento da segunda fase a que·se refere Hamelin a fase idea

-lista. Vejamos porque: l')Descartes admite duas realidades: a tIres cogi tans" e a tIres extensa"; 2') O que distingue uma da outra é a extensão; 3') A função da tIres cogitans" é a de representar a tIres extensa"; 4') A tIres cogi tans" (o pensamen -to) representa a realidade total da tIres extensa"; 5') Logo. representa da " res extensa", a pr6pria extensão; 6 ') Se isto ocorre, como dintinguir a coi~a pensante (res cogitans) da coisa não-pensante (res extensa)?

(28)

Dito de outra maneira: se meu pensamento de uma árvore ~eproduz da árvore todas as suas características, como posso distinguir a árvore real "da árvore pensada? Escreve Ha-melin:

"Com efeito, o peculiar da coisa não pensante ter minou por absorver-se no pensamento Réplica-da coisa, o pensamento reproduzia todos os deta-lhes do original que duplicava; eis que agora re p.róduz inclusive a' característica que perruitiaao original distinguir-se dele: a cópia suplanta o original (H ame lin, 119).

'Aqui s.e encontra e.m germe a tese idealista de que nao há coi-sas independentes da consciência; toda a realidade está encer da na subjetividade individual. Se esta tese não fica total -mente explícita em Descartes, com o desenvolvimento do racio-nalismo a encontraremos claramente exposta por Leibnii. pelo menos no que diz respeito

ã

realidade material.

Enquanto que para Déscartes a extensão

é

uma subs tincia independente da consciênc~a e existente por si mesma • para a filosofia racionalista posterior ao cartesianismo ela se reduz a algo mental. Assim, para Leibniz e ,Kant, a exten -sao não

é

uma realidade absoluta existente em si mesma. mas uma "ordenação" ideal dos fenômenos (Leibni z) ou uma forma a priori da sensibilidade (Kant). Este aspecto da questão sera

...

trat.ado mais amplamente nos capítulos 4 e 5. De qualquer for-ma, nao me parece que este sej a o aspecto mais importante a se destacar no momento, voltarei a ele mais adiante.

Retornemos

ã

questão da dfivida e da consci~ncia. Vimos que a consequência imediata da dúvida metódica é a exis t~ncia da consci~ncia. Creio, ~orém, que se faz necessário

(29)

precisar um pouco mais como Descartes entende a ambas. Pri meiramente a consciência. Esta, não era compreendida por Des-cartes como uma consciência qualquer, nada tinha a ver com a concepção da consciência exposta pelos espiritualistas, pelos românticos, pela psicologia ou pela psicanálise: 'a consciên -cia de' que nos fala Descartes, é .!,.azão, ou pelo menos, o e~ -forço cartesiano se dirige no sentido 'dessa identificação. Se tal esforço não foi totalmente bem sucedido em DesGartes, po-demos chegar à compreensão deste "insucesso" parcial analisan do um pouco mais o seu método.

Em primeiro lugar, temos que precisar melhor os limites da dúvida metódica para,' em seguida, compreen:dermo~ o seu racionalismo e como nele se insere sua conce~ção da cons-ciência.

A dúvida de Descartes nao é total, ela se restrin ge

à

ordem do conhecimento. Isto significa que há questões que permanecem aquém da dúvida limitando, de fora, o espaço da filosofia ()6). são questões acei tas provisoriamente e que são tratadas de outra maneira. Isto nao está em desacordo com o que foi dito anteriormente acerca da aplicação raàical da dúvida. Este radicalismo dizia respeito ao espaço do conheci-mento e apenas a ele. Não se pode, face à realidade, simples-mente duvidar de tudo, posto que aquele que d~vida, exerce es ta dúvida a partir de algum lugar e este lugar. por definição, está aquém da dúvida. A dúvida ~elimita os espaços da verdade científica e dos valores relativos à condução da vida. Mas a-té chegar às últimas consequências da dúvida metódica, isto é,

(30)

à

aplicação extensiva a estes espaços, impunha-se a Descartes, viver. Ou seja, Descartes antes de elaborar sua filosofia,não

.

dispunha ainda das verdades que essa mesma filosofia iria lhe fornecer e, sobretudo. não dispunha ainda daquelas verdades' relativas ao viver posto que est'as só seriam obt';;'das ao final de sua elaboração filosófica. Assim sendo. era imperioso que ele acei tasse como provisoriamente verdadeiras, uma série de questões que servissem para orientar a sua vida. Escreve Des -cartes:

"Como nao basta, antes de começar a .reconstruir a casa onde se mora, derrubá-la, o~ prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-se a si mes-mo na arquitetura. nem, além disso, ter traçado cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra casa qualquer onde a gen te possa se alojar cômodamente durante o tempõ em que nele se trabalha; assim. a fim de não per manecer irresoluto em minhas ações, enquanto a

razão me obrigasse ~ s~-lo em meus juizos, e de não deixar de viver desde então o mais felizmen-te possível. formei para mim mesmo uma moral pro visória". (Descartes. 48, lI!)

-Desta forma, antes de delinear e.concluir sua fi-losofia, cumpria ao filósofo. agir, controlar seu corpo e seus afetos, limitar seus desejos, orientar-se quanto aos valores e a Deus. Isso s5mente seria possível na medida em que' ele acei tasse como pressupostos necessários as leis, os costumes e as práticas da sociedade. segundo o bom senso e a moderação. E é sob essa guia provisória q~e Descartes se lança ao conhecer . Portanto. a moral, a religião e o próprio método, ficam fora do espaço de abrang~ncia da dGvida.

Feita essa delimitação, Descartes se lança i cons trução de sua filosofia. Essa filosofia, construida de confor

(31)

midade com o método, era concebida como uma ciência cujo mode

10 era a matemitica. Tal é a Filosofia Primeira ou Metafísica da qual Descartes nos fornece três versões: a do Discurso do Método, a das Medi tações Metafís icas e a Cios Princípios de Fi-' losofia.

Não pretendo apresentar aqui uma anilise detalha-da des·sa filosofia. mesmo porque não é esse o meu propósito, o que me interessa é a concepção cartesiana da subjetividade, suas condições de emergência e a importância que ela teve no desenvolvimento posterior do saber ocidental.

foi assinaladó. anteriormente, o cariter de des continuidade de que se reveste a concepção cartesiana, em relação ao pensamento que a precedeu. Claro esti que esta des -continuidade não pode ser atribui da específicamente a uma pe~ soa - no caso, Descartes - nem ao conteúdo particular de um discurso. mas a um conjunto de condições históricas que abar-ca a produção discursiva, as mudanças sociais. a emergência de novas .técnicas, a trans.formações econômicas e políticas, etc A descontinuidade de um pensamento esti necessiriamente liga-da ao problema liga-das relações entre este pensamento e a cultura. E a descontinuidade que marca o aparecimento de Descartes, re

fere-se .muito mais ?- uma mudança no modo de pensar do que a um conteúdo pa!ticular do discurso cartesiano. O pensamento de Descartes move-se dentro do que Foucault chamou de uma nova episteme (66·, capo 111) - em que pese o desagrado manifestado posteriormente por Foucault em relação a essa noção.

(32)

ber no qual o pensamento é dominado pelo conceito de similitu de. Era inteligível, aquilo que era semelhante, e a ciência consistia em procurar semelhanças na realidade. Face ã incrí-vel diversidade do re~l, cabia ao pensamento procurar caracte rísticas comuns entre os seres a'fim de agrupá-los em classes. Essas características comuns representavam o mesmo, aquilo que se mantinha imutável, a essência das coisas. A diferença, o fato único, era o impensável.

Como já foi dito, a ruptura co~ esse modo de pen-sar nao deve ser atribuída exclusivamente a Descartes. A crí-ti ca da seme lhança, j á se insinvava com Bac.on e Gal i leu, mas é sem dúvida com Descartes que ela vai se fazer de modo mais radical. A nova episteme surgida no século XVII é regida pela categoria da ordem e não mais pela da semelhança. O projeto de todo o saber passa a ser o da constituição de uma ciência geral da ordem. A idéia que sustenta esse novo modo de pensar é a de que o real pode ser reduzido a um quadro que

é

a esque matização da ordem e a p~ssibilidade desse quadro é dada pelo conceito de representação que

é

o grande instrumento operató-rio dessa nova episteme. Se na episteme anteoperató-rior, a relação entre o signo e o significado era regida pela semelhança, na nova episteme ela p~ssa a ser considerada arbitrária. Assim , os sistemas de signos podem representar tudo, e tudo pode ser representado pelos signos. Se todo o real é representável, o quadro geral. do saber pode abrigar a totalidade do ser (205). Esse e o ideal da Mathesis Universalis: a ciência geral da me dida e da ordem.

(33)

Agora. a palavra vale na medida em que ela expri-me uma representação. Todas coisas podem ser representadas e

todas a~ representações podem ser articuladas pelo discurso . O obj eti vo final é, como j á foi di to, o de formar um "quadro": Este, pode ser visto como um sis"tema explicativo, como um cor po uni.tário de conhecimentos exatos, ~omo um dicionário enci clopédico, etc. O fundamental é compreendermos o discurso co-mo o ponto de encontro entre a representação e o ser. O sonho da Mathesis Universalis é o de constituir o discurso totalmen te transparente através do qual os seres se tornarão visíveis na sua verdade (Foucault. 66, p. 405). Podemos ver a linha racionalista da filosofia moderna, como o esforço concentrado de tornar esse sonho uma realidade. Spinoza, Leibnize He~el

sao os grandes representantes dessa nova epistem~, e a esco -lha do modelo matemático por parte de Descartes decorre do fa to de que, para que o discurso possa desempenhar este papel que lhe foi conferido, torna-se necessário que a razao se mo-va sobre princípios a priori. O fim para o qual tende o ideal da mathesis, é oda racionalidade integral do real.

Esse discurso todo-poderoso, lugar oride a realida

...

de se torna transparente e no qual toda a opacidade e relega-da ao absurdo, carelega-da vez mais se recusa a pensar o homem en-quanto s'ubjetividade individual e concreta. Uma ciência do ho mem nao tem lugar nessa episteme. O "eu pensu" de Descartes , não é a afirmação de uma consciência individual mas a própria razao colocando se~ valor universal, seus principios inatos, necessários e verdadeiros e se afirmando como suficiente para dizer o ser.

(34)

Essa consciência, porém, nao fala apenas de si mesma, fala também do corpo, posto que o homem não é somente "res cogi tansil

, ele é também "res extensa"., Se a consciência, por nao ser material, é regida por leis próprias e irredutí -veis, o corpo permanece sendo material e, portanto, um obj~to

do mundo como qualquer outro. Cumpre. pois, determinar as leis de _seu fun'cionamento paralelamente às leis da consciên -cia.

Maravilhado com o modelo mecânico oferecido pela física galileana. Descartes tenta aplicá-lo ao ho~em, desvin-culandó a explicação do comportamento de qualquer compromisso com o animismo vitalista até então dominante. Galileu. e so-bretudo Newton. são os grandes inspiradores dessa nova conceR ção do homem. Se o mundo pode ser pensado,- segundo o. modelo mecânico. como redutível a maté~ia e mavimento. porque não fa zer o mesmo' com o corpo humano' j ~ que ele também

é

material ?

Juntando a concepção newtoniana do mundo com as descobertas de Harvey sobre a circulação sanguínea, Descartes procura con~ truir uma fisiologia na qual as coisas pudessem ser explica -das segundo processos mecânicos, sem a intervenção de nenhuma outra realidade 'que não fosse matéria e movimento.

Dessa forma, é suprimida a antiga doutrina da alma como princípio vital do corpo, passando a vida a ser com -preendida essencialmente em termos de movimentos mecânicos

dos mfisculos e dos nervos . Descartes não conseguiu se liber-tar da antiga concepção dos "espíri tos animais", mas estes se rao compreendidos de uma forma inteiramente materialista.

(35)

Pa-ra Descartes, todos os movimentos dos músculos, assim como to dos os sentidos, dependem dos nervos que são concebidos como pequenos tubos cuj a origem está no cérebro e por dentro dos quais circulam os "espíri tos animais" (entendidos como partí- . cuIas materiais). Descartes não admite mais a divisão que fa-zia Galeno entre os espíritos animais, espíritos vitais e es-píritos naturais, originados respectivamente do cérebro. do coraçao e do fígado. A diferença qualitativa que havia sido estabelecida entre eles por Galeno. é substituida por uma di-ferença meramente quantitativa. "diferença de calibre e mobi:. lidade entre elementos mais ou menos refinados". O prlnclplo

.

...

material do movimento e dos sentidos ~ um calor localizado no coraçao, "uma espécie de fogo aí mantido pelo sangue das veias". A localização do fogo no coraçao se deve ao fato de que Descartes julgava ser este o mais quente de todo os órgãos do corpo. A função principal deste fogo é a de dilatar o

san-gue que enche as cavidades do coração. fazendo-o circular. Os espíritos animais seriam constituido~ por pequeninas partícu-las de sangue, muito fin,as, que se filtram através de diminu-tos poros e passam das artérias para as cavidades do cérebro e daí para os nervos atE os músculos. produzindo sua disten-sao e os movimentos das partes dos corpos.

"Enfim, é preciso notar que a máquina de nosso cor po é de tal modo composta que todas as mudanças que ocorrem no movimento dos espírito~ podem

levá-los a abrir alguns poros do cérebro mais do que ou tros. e reciprocamente que, quando alguns desses-poros. estão mais ou menos abertos que de costume pela ação dos nervos que servem aos sentidos, is-so altera algo no movimento dos espíritos e deter mina que sejam conduzidos aos músculos destinados a mover o corpo da forma como ele é comumente mo-vido por ocasião de tal ação. De sorte que todos os movimentos que fazemos sem que para isso a nos

(36)

sa vontade contribua (como acontece muitas vezes quando respiramos, andamos, comemos e enfim quan do praticamos todas as ações que são comuns a nOs e aos animais) não dependem senão da conformação de nossos membros e do curso que os espíritos, ex citados pelo calor do coração, se~uem naturalmen te no céreb ro, nos ne rvos e nos mus culos, tal co mo o movimento de um relógico é produzido pela exclusiva força de sua mola e pela forma de suas rodas" (Descartes, 51, art. 9-16)

o

passo seguinte é explicar os sentidos.Estes sao divididos por Descartes em duas classes: os sentidos externos °e os internos. Os .primeiros se identificam com os cinco senti dos habitu8is: visão, audição, tato, gosto e olfato; os segu~ dos abarcam as afecções dos nervos )que vao até o estômago, e-s5fago e partes adjacentes, caracterizando principalmente a fome e a sede, junto is quais Descartes coloca a dor e a irri tação que a alma percebe c.omo interiores· c.~rett. 24). A estru tura fundamental dos modos de sensaçoes pode ser representada pela relação entre o objeto externo, os nervos e a alma sensi tiva, funcionando os nervos como intermediarias entre o obje-to externo

e

a alma.

A relação entre o objeto externo e o corpo, nao apresenta grand~s problemas, já que se trata da relação entr~ duas realidades materiais. Tanto o objeto externo como o cor-°po são materiais; trata-se, portanto, do contato entre uma

"re s exte ns a" e outra "res extensa", o que nao ap resent a qual. quer problema !undamentalmente insolfivel já que a física o en

carava como uma questão simples de coextensão e movimento (2~.

O mesmo, porém, nao ocorria com a relação entre a realidade ex terna, material, ou seu intermediário (o ~ervo) e a alma, já

(37)

que se trata aí da relação entre uma realidade extensa e outra inextensa. O estudo dessa relação será tratado na obra de Des cartes intitulada As Paixões da Alma e se constituirá na psi-cofísica cartesiana~

O estudo das paixõe~ da alma se refere is mo~ifi­ caçoe~ que esta sofre por influ~ncia de agentes e~ternos. ~o­ mo veremos mais adiante, a alma possui atividades que decor -rem da ação de elementos estranhos a ela assim come possui a-tividades que decorrem dela mesma, sendo estas últimas denomi nadas por Descartes de atividades puras da alma. As primeiras, estão ligadas is sensações como fonte de informações e sao es sas atividades que são chamadas de pai~ões~ As paixões sao portanto, estados de consci~n~ia decorrentes da ação de ele -mentos externos sobre a alma e. como tais, sao irredutíveis

a "res extensa", apesar de possuirem nesta última, sua origem. Em contraposi"ção is paixões, as volições seriam ati vidades pr~ prias da alma e que teriam nela própria a sua origem.

Essa distinç.ão coloca um problema particularmente interessante. Se paixão e volição são atividades distintas e irredutíveis uma ã outra, isto significa que o conhecimento adquirido pelo contato com a realidade externa, nada tem a ver com a atividade pura da alma, funcionando esta como passiva quando ele ocorre. Ou seja., a alma só

é

ativa quando

é

vonta-de; quando é conhecimento do mundo externo, ela é passiva. I~ to significa afirmar que, se alma fosse sempre passiva, isto

é, se sua atividade· única fosse a cognição, nunca haveria er-ro, pois o conhecimento seria pura impressão da realidade ex-terior sobre a alma. Mesmo que o pensamento não reproduzisse

(38)

exâtamente o objeto, ele lhe seria adeqaudo porque naohave-Tia a intromissão de nenhum elemento extranho. No entanto,De~ cartes considera que a alma, enquanto volitiva, tem a capaci-dade de agir e, portanto, de modificar as paixões, tornando o pensamento inadequado ã realidade que ele pretende represen

-tar.

o

problema fundamental permanece, porém, nao re -solvido: como é possível a ação do corpo sobre a alma e vice-versa~ Descartes afirma que a alma esti ligada ao corpo intei ro, mas nao exerce suas funções sobre todas as partes do cor-po da mesma maneira. Hi uma dentre todas as demais partes do corpo humano com a qual a alma esti.ligadade forma mais es-treita; esta parte é o cérebro porque é através dele que ela se relaciona com os sentidos. Descartes precisa melhor o pon-to de articulação entre a alma e o corpo, dizendo que não e

-cérebro. em sua t~talidade, o local dessa articulação, mas uma pequena parte dele, uma glândula "situada no meio de sua subs tância" que vai ser apontada como o lugar aonde se localiza a relação do corpo com a alma e desta com o corpo. Esta glându-la (glânduglându-la pineal}, seria~ portanto, a se~e da alma. Situa-da no meio Situa-da substância cerebral e suspensa por cima do con-duto por onde os espíritos das cavidades anteriores mantém comunicação com o das cavidades posteriores, ela se encontra numa posição tal, que qualquer movimento que nela ocorra, por menor que seja, pode contribuir para modificar o curso dos es piritas e, reciprocamente, sofrer modificações decorrentes da

(39)

Qualquer que tenha sido a tentativa de solução a-presentada para o problema das relações entre a alma e o cor-po, permanece como característica fundamental do pensamento cartesiano. a irredutibilidade de uma ao outro. Corpo e alma permanecem sendo definidos por e"xclusão: enquanto o primeiro

é

tIres extensa", o segundo

é

tIres cogi tans", sendo que esta e ...

definida pela exclusão da propriedade fundamental do corpo - a extensão. Se o corpo

é

substância extensa, a alma é substân -cia não-extensa.

No entanto. apesar de serem duas substâncias sepa radas, algumas atividades da alma possuem sua origem no corpo, enquanto que outras são atividades exclusivas da própria alma. A atividade que pertence

ã

alma e que

é

totalmente independe~ te do corpo, é o pensamento. "Verfico - escreve Descartes que o pensamento é um atrihuto que me pertence; só ele nao p~

de ser separado de mim". (Descartes. 49. 11). A alma quando pensa, pensa idéias; idéias que não dependem de modo algum do corpo. Como estas não tem origem em causas externas ao pro-... prio pensamento, Descart'es as considera inatas. isto é, qued~ correm da atividade pura da alma e não do contat~ desta com a realidade externa. As idéias que decorrem de condições ex-ternas são chamadas "adventícias". Descartes distinguia ainda um terciiro tipo de idéias que, apesar de serem produzidas pela alma, não eram consideradas inatas. são· as idéias

fictí-cias.

Referindo-se aos virios tipos de idéias,Descartes escreve:

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"ora, destas idéias, umas me parecem ter nasci-do comigo, outras serem extranhas e virem de fora, e outras serem feitas e inventadas por mim mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade de conceber o que é aquilo que geralmente se cha-ma ucha-ma coisa ou ucha-ma verdade ou um pensamento , parece-me que não o obtenho em outra parte se-não em minha'própria natureza; mas se ouço al-gum ruído, se vejo o sol, se sinto calor, até o presente julguei que estes sentimentos proce diam de algumas coisas que existem fora de mim; e, enfim, parece-me que as sereias, os hipogri fos e todas as outras quimeras semelhantes são ficções e inveções do meu espíri to". (Descartes

49, 11).

Esta concepçao inatista gozou de enorme prestígio na filoso -fia moderna de inspiração racionalista e ~erviu de ponto fo-cal da crítica dos empiristas.. O desenvolvimento do inatismo cartesiano ficari claro nos capítulos seguintes, particular -mente no que se refere a Leihniz.

A questão do inatismo esti íntimamente ligada da universalidade da razão. A dGvida metódica nos conduziu

-a

-

a subjetividade como sendo a Gnica realidade que se apresentava com evidente, mas o conteGdo dessa. svbjetivicade era todo ele questionivel. De que me adiantaria chegar i conclusão de que o pensamento é a Gnica verdade, se aquilo que este pensamento pensa é totalmente falso ou falseivel7 A primeira consequên -cia do método - o "penso" - só teria algum sentido se, a par-tir del~, algo mais. pudesse ser afirmado. Não

é

preciso ser nenhum Descartes para se chegar

à

conclusão de que se pensa. O importante não é propriamente o ter-se atingido este ponto mas sim o como sair dele. Como não permanecer prisioneiro da subjetividade? Co~o evitar o solipsismo? A Gnica forma de se evitar o enclausuramento total da subjetividade nela mesma, é

(41)

transcen-d~ncia; algo que nesta subjetividade escape ao contingente, ao part~cular e que se imponha a ela com uma força tal que ela pr6pria tenha que se submeter. 'Trata-se de .encontrar no

inte-rior da subjetividade, algo que pela sua universalidade e pe-la sua necessidade escape às ficções epe-laboradas por esta s~b­

jetivid~de. Este algo é a Razão. A razão é o lugar da subjeti vidade que por 'se exercer segundo princípios lógico uni ver sais, escapa ao psicologismo q1le am~açava a fiJ.osofia cartesi .ana. Se a razão está sujeita à universalidade da lógica, ela não pode ser dependente da minha vontade individual, das fic-ções da 'minha imaginação ou do delírio da minha loucura. Aliás, a maneira como Descartes v~ a loucura é bas.tante.~expressiva desse racionalismo. A loucura é algo que pode atingir o homem mas não o pensamento; este só

é

ameaçado'pe10 erro e pela i1u sao e contra ambos a razão possui remédios eficazes. A loucu-ra, porém, pertence a outro espaço, o que ela ameaça é o ho-mem enquanto tal e não o pensamen'to. Não existe, segundo Des-cartes, um pensamento louco, estes termos se excluem mutuamen te de tal modo que a loucura da razão é o próprio não-ser da razão. Não é o conteúdo do pensamento do louco que é atingido pela loucura ma~ o indivíduo enquanto tal. e o indivíduo

lou-co não pensa. O que garante o pensamento lou-contra a loucura não . é o conteúdo deste pensamento mas o sujei to que pensa: "

Não se pode supor,·mesmo através do pensamento, que se é lou-co, pois a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento" C.Foucau1t. 68, p. 46). A razão é o lugar de a-brigo contra a loucura; não existe loucura na razão assim co-mo nao existe razão na loucura'. Uma "razão irrazoave1" ou um

(42)

"razoavel desatino" - como diz Foucault, - ficam definitivamen te banidos a partir de Descartes e só vão recuperar direito de cidadania na subjetividade, a partir da segunda metade so século XIX.

o

ideal da Mathesis Universalis, que é o de cons-'truir o discurso totalmente transparente, só pode pois ser rea

lizado neste espaço da subjetividade que é ocupado pela razão. Melhor ainda, para que esta "mathesis" possa se concretizar

de forma plena. é necessário ampliar os limites da razão até que ela se identifique com a própria subjetividade. Mas isto somente vai ser atingido com Hegel; Descartes apenas inicia o empreendimento da racionalidade integral.

A força do modelo, no entanto, já era evidente. O modelo de racionalidade imposto ao social, sonho platônico de vinte séculos, mostrou-se extremamente eficaz, e não é exage-ro afirmar que vivemos atualmente sua plenitude. A teoria do "animal máquina" proposta por Descartes articula~se perfei ta-mente com este modo de pensar.

A definição da alma como substância pensante, co-loca para Descartes um problema que não poderia mais ser resolvido segundo os esquemas vigentes desde Aristóteles: Pos -suem os animais, alma? Desde 'Aristóteles que se distinguiatuna alma vegetal, uma alma animal e uma alma humana. Quando, po-rém, Descartes identifica a razão com a alma, ele se vê'na si tuação de ter que optar por uma das seguintes soluções: ou ad mite que os animais possuem alma e, neste caso, eles também seriam racionais; ou afirma que os animais não possuem alma.

(43)

Descartes optou pela segunda. Os animais sao máquinas; eles são em sua totalid,ade o que o homem é em parte. Assim como o corpo humano é concebido por ele como uma máquina, os animais, por nao possuírem alma, sao em sua totalidade máquinas regi

-das por leis mecânicas.

Temos. portanto, de um lado o Cogito, encerrado em si mesmo. falando uma linguagem universal segundo o modelo matemático e incapaz de dizer alguma coisa sobre o homem

con-creto; de outro lado, um corpo funcionando como uma máquina, segundo o modelo da física newtoniana. Este, definido como e,! tensão pura. como matéria; aquele, definido como nao extensão, puro espírito.

Aparentemente, o "cogite" e o " an imal-máquinà' são concepçoes mutuamente excludentes. A verdade, porém, pode ser be'm outra. Como nos mostra Canguilhem em seu belo artigo "Ma-chine et Organisme" (26). a teoria dos animais-máquina é inse parável do "penso. logo exis to". Tomando por base o trabalho de P.M. Schuhl: "Machinisme et Philosophie" (212), no qual o autor demonstra que na filosofia'antiga a oposição entre a ci ência e a técnica correspondia

ã

oposição entre o liberal o servil, entre a cidade do homem livre e a dos escravos, Can-guilhem nos mostra o fundamento da teoria do animal máquina. Segundo ele, Descartes teria feito com o animal o que Aristó-teles havia feito com o escravo: desvaloriza-o com a finalida de de utilizá-lo como instrumento.

O capítulo 11 do Livro I dlA'Política de Aristóte les é quase todo dedicado à análise das relações entre o

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sc-nhor e o escravo. Concebendo o Estado como uma reunião de fa-mílias, o filósofo estagirita passa a fazer uma exposição a respei to da economia doméstica na qual o escravo desempenha um papel de suma importância. Se todas as artes precisam de

ins-trumentos, diz Aristóteles, a ci~ncia da economia doméstica também deve ter os seus. Alguns instrumentos são inanimados outros são animados. O operário é· um instrumento animado. O trabalhador é o primeiro dentre os instrumentos, e·sendo o instrumento uma propriedade, o escravo é uma propriedade viva. No entanto, o escravo não é escravo por acidente, ele é "natu

ralmente" escravo. Ser escravo é uma propriedade que pertence a certos homens como uma natureza. ~ verdade que há certos ho mens que são reduzidos à escr~vidão, mas esta não lhes é natu ral, posto que lhes

é

imposta pela violência. "Mas há na esp~ cie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o

é

em relação

ã

alma ou a fera aos homens; são os homens nos quais o emprêgo da força física é o melhor que deles se obtém'

(Aristóteles, 2, L.I, capo 2, par. 13). Tais . indivíduos sao destinados. por naturez~. à escravidão, nao possuem razao se-nao a necessária para dela experimentar um sentimento vago "Desta maneira - conclui o filósofo no mesmo texto - a utili-dade dos escravos é mais ou menos a mesma dos animais doméstí cos: ajudam-nos com.sua força física em nossas necessidades co tidíanas" .

O mesmo faz Descartes com relação ao animal. O fa to dele não possui,r. alma, transforma-o num instrumento. Assim como para a economia doméstica, segundo Aristóteles, o escra-vo era um instrumento chave, para a estrutura econômica e p~

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lítica das sociedades ocidentais a mecanização da vida e a u-tilização da técnica nos animais são teórica e práticamente ig dispensáveis. Mas com"o desenvolvímento das sociedades ociden tais, fez-se necessário submeter não apenas os animais, mas também os homens. Estes, no entanto, eram dotados de razão Não sendo possível subtrair-lhes a ra2.ão. foi-lhe retirada to da possibilidade de inteligibilidade de seu trabalho. As fá -bricas, os escritórios, as grandes empresas, elimi~aram a po~ sibilidade de urna razão individual a nao ser aquela necessá -ria para que o corpo pudesse funcionar com.o um instrumento e-ficaz. Para que o corpo possa ser submetido, seja ele animal ou humano. é necessário que e·le não pense, ou como di zia Aris tóteles, "que não possua razão senão a necess ária para de.la experimentar um sentimento vago". A doutrina do animal-máqui-na e o cartesianismo das sociedades contemporâneas estão, por

tanto, perfeitamente articulados.

Evidentemente nao pretendo atribuir a Descartes a responsabilidade da mecanização da vi·da na sociedade atual assim como entendo também que a análise feita por Aristóteles do escravo-instrumento pertence a outro solo histórico e que só recorrentemente toma o caráter odioso de que se reveste p~

-

-ra nos. Mas o fato e que a mesma -razao que foi por ele apont~

da como fator distiritivo entre o homem e o animal, voltou- se contra o homem, reduzindo sua subjetividade, com suas incerte zas, suas fantasias e suas opacidades, ao erro e ã ilusão. Se Descartes não afirma ainda, corno Hegel, que o real é o racio-nal, ele já está no caminho que conduz ã inexistência o impe!! sável logicamente.

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Assim, se sob certos aspectos se abre com Descar-tes uma nova "episteme", mantém-se também entre ele e o pens!!: mento aristótelico'um fio de continuidade, o que faz do autor do Discurso do Método, ao mesmo tempo um revolucionário e um herdeiro da tradição medieval, como foi dito no início do ca-pítulo.

(47)

CAP!TULO 1-1

A TEORIA DAS IDfIAS DE MALEBRANCHE

A filosofia de Descartes, ao manter a crença na existência de duas substâncias distintas e irredutíveis uma à

outra - a substância pensante e a substância extensa - conce-de relevo a um problema que se tornará, durante muito tempo, foco de atenção dos pensadores modernos: como é possível a co municação entre estas duas substâncias? Como o espírito, que é uma substância simples. pode atuar sobre o corpo que é com-posto e como a matéria composta pode sofrer a ação do espíri-to que é simples?

Admitimos sem grandes questionamentos que a maté-ria possa agir sobre a matématé-ria; admitimos também que o espíri:. to possa agir sobre ele pr6prio; trata-se nestes casos, de substâncias de igual natureza interatuando. Mas não é tão fácil de se compreender como a matéria pode atuar sobre a nao -matéria e vice-versa.

O dualismo de Descartes coloca o problema mas nao o resolve. O apêlo à glândula píneal não se fez no sentido de solucionar a qu~stão, pois que, como solução, era ingênua demais para ser proposta por Descartes; podemos supor que se tratou mui to mais de localizar o problema do que de solucioná-10.

(48)

-Durante o seco XVII, duas novas propostas foram feitas. Estas, não consistiram em manter o mesmo equacionameQ to do problema, mas sobretudo em reformular sua apresentação: foram as propostas de Malebranche e de Spinoza.

Para Malebranche, espírito e matéria continuavam a ser concebidos como duas substâncias distintas, mas a união entre elas só poderia ser explicada através da introdução de uma terceira substância, Deus, que interviria sempre que a co municação entre espírito e matéria, alma e corpo, se fizesse necessária.

Para Spinoza, a comunicação entre o espírito e a matéria nao se constitui como.problema, pois que nao se tra

-tam de duas substâncias distintas, mas de uma só substânciacom dois atributos. Desta forma, a comunicação não se faz entre substâncias diferentes, mas entre atributos ou modos da mesma substância.

A concepçao de Malebranche pode ser resumida da seguinte forma: Há o espaço e há os corpos que nele se movem. Este é um fato da observação que pode ser constatado por qua.!. quer um de nós. Mas se os corpos se movem, é necessário que alguma coisa seja a causa do movimento, pois que este não po-de estar contido nos próprios corpos, já que o corpo

é

maté -ria e maté-ria é extensão e esta não pode conter um princípio de movimento porque é, por natureza, inerte. Para Malebranche, assim como para Descartes, não havia distinção entre a maté -ria e a extensão. Um corpo nada mais era, para eles, que uma extensão limitada, resultando daí que o conceito de corpo se

(49)

identificava com o conceito geométrico de figura. Não podendo o corpo conter seu próprio princípio de movimento, posto que sua natureza é" idêntica a de uma figura geométrica, a causa do movimento que percebemos no corpo tem que estar fora dêle .. Mas a realidade não

é

constituida apenas por corpos; há tam -bém os" espíritos. No entanto, estes tam-bém não podem ser a

causa do movimento dos corpos, porque sendo os espíritos uma natureza simples, não podem exercer influência sob~e o corpo que é composto. Também não pode, pela mesma razao, o espírito ser causa de movimento do próprio espírit~. Assim, nem o cor-po cor-pode mover o corcor-po, nem o espírito cor-pode mover o espírito, nem corpo e espíri to podem se"r movidos um pelo outro. A causa do movimento não pode, portanto, estar contida nem no corpo, nem no espírito; só pode estar contida em outra substância que, de fora, atue sobre ambas. Esta substância só pode ser Deus, princípio de todo movimento e fonte de toda energia.

o

caminho tomado por Malebranche .segue uma dire -çao teológica e apologética do cristianismo. No entanto, ele nao é tão simplista como pode dar a parecer o resumo acima a-presentado. Partindo de uma crítica ao cogito cartesiano, de

uma rejeição das idéias inatas, Malebranche professará um ra-cionalismo inflexível. Vejamos seus pontos essenciais de for-ma for-mais detalhada.

Se temos por habito apontar nos autores que estu-damos um ponto de partida - no caso de Descartes, o método em Malebranche este ponto seria o de uma ciência descritiva da natureza, sobretudo a fisiologia. O porque deste ponto de

(50)

partida nao é difícil de compreendermos~ Assim como Descartes procurava, através do método, afastar a dúvida para poder

al-cançàr as certezas.da razão, Malebranche se preocupa inicial-mente em afastar as ilus6es dos sentidos e as fantasias da i-maginação.

A verdade só pode ser alcançada pela dedução. Só há conhecimento quando um procedimento estritamente dedutivo é desenvolvido a partir de definiç6es rigorosas. Estas, no en tanto, são impossíveis de serem estabelecidas se não forem a-fastadas as causas psicológicas do erro. ·Di.to de outra manei-ra não encontmanei-ramos na consciência. no campo dos nossos fenôme nos psíquicos. a garantia de nenhuma idéia que possamos tomar como base para empreendermos. a partir dela. o caminho deduti vo ~m direção i verdade. Os sentidos são fonte de ~rros e de ilus6es. Daí a necessidade de partirmos de uma análise fisio-lógica das sensaç6es. sobretudo da ótica fisiofisio-lógica, para que possam ser descobertas e eliminadas as causas do êrro. Sobre este ponto. é oportuno reproduzir aqui a observação de Cangui lhem de que

lia psicologia se constitui, pois, como um empre endimento de desculpa do espírito. Seu projeto é o de uma ciência que, face ã física. expli -que por-que o espírito é por .natureza obrigado a enganar inicialmente a razã'o relativamente i

realidade. A psicologia se faz física do senti do externo. para dar .conta dos contra-sentidos de que a física mecanicista acusa o exercício dos sentidos na função de conhecimento" (Can -guilhem, 27).

A' análise empreendida por Malebranche' sobre o pr~ blema da percepção antecipa em muitos pontos a teoria de Ber-keley. o que faz com que Cassirer o considere como "o

Referências

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