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A câmara nupcial e o evangelho de Tomé

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

A câmara nupcial como chave hermenêutica

do

Evangelho de Tomé

Ricardo Gomes

Tese orientada pelo Prof. Doutor José Augusto Ramos,

especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em

História e Cultura das Religiões.

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Resumo

O evangelho de Tomé tem sido lido e relido ao longo dos séculos, as leituras têm sido literais, figurativas ou simbólicas. Desde os seus primórdios este texto apresenta-se ao seu leitor envolto numa aura de mistério e enigma com mensagens por desvelar e significados por desvendar. No âmbito do mestrado de História e Cultura das Religiões foi desenvolvido um esforço de investigação que terá como objetivo situar as vivências e mentalidades do evangelho de Tomé. Vivências estas diretamente associadas ao desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaço geográfico da Síria oriental nomeadamente em Edessa. Esta investigação procura responder às seguintes questões: qual foi o contexto histórico deste evangelho, o seu espaço social, os seus vínculos sociais e as suas vivências e mentalidades; qual é o núcleo da sua mensagem e quais são as caraterísticas específicas da linguagem e da experiência no cristianismo primitivo de Edessa a leste do Eufrates. Espera-se assim dar um contributo à compreensão histórica do desenvolvimento do espaço mental cristão no primeiro século. O evangelho de Tomé, em especial a sua cristologia e antropologia, forma uma nova perspetiva a partir da qual será possível observar as origens do movimento cristão e a forma como a figura de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaços geográficos do mundo antigo.

Palavras Chave: Evangelho de Tomé, mentalidades, vivências, espaço simbólico,

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Abstract

The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries, the readings have been literal, figurative, or symbolic. From its beginnings this text presents itself to its reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings to unveil. In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions, a research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of the Gospel of Thomas. These experiences are directly associated with the development of early Christianity in Eastern Europe, especially in Edessa. This research seeks to answer the following questions: what was the historical context of this gospel, its social space, its social ties and its experiences and mentalities; what is the core of his message and what are the specific characteristics of language and experience in the early Christianity of Edessa east of the Euphrates. It is hoped, therefore, to contribute to the historical understanding of the development of the Christian mental space in the first century. The Gospel of Thomas, especially its christology and anthropology, forms a new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social contexts and geographical spaces of the ancient world.

Key words:

Gospel of Thomas, mentalities, experiences, symbolic space, figure of Jesus, primitive Christianity.

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Agradecimentos

Dedico este trabalho primeiramente а Deus, pоr ser essencial na minha vida, como mistério e enigma, como deslumbre e amor. Agradeço ao meu orientador, professor José Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusão deste projeto. A sua paixão pelo mundo bíblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu intelecto para buscar estar entre os melhores. Agradeço à minha mãe o seu apoio e o seu sonho de me levar longe, um obrigado também à minha noiva e uma homenagem à minha tão doce Virgem Maria.

Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades maternais, nada foi duro ou difícil com estas tremendas fontes de inspiração e beleza.

“Ó mistérios verdadeiramente santos! Ó luz diáfana! Levo tochas para contemplar Deus e os céus; torno-me santo ao ser iniciado: o Senhor é o hierofante e marca o iniciado com o sinal da cruz, conduzindo-o à luz e apresenta ao Pai aquele que creu, para que Ele o guarde eternamente.

Essas são as festas báquicas dos meus mistérios; se tu o queres, recebe tu, também, a iniciação e tomarás parte com os anjos, em torno do Deus único e verdadeiro, incriado e imortal, enquanto o Logos de Deus se unirá a nossos hinos. Esse é o eterno Jesus, o único e sumo sacerdote do Deus único, também seu pai; ele roga pelos homens e os exorta: "Escutai, tribos inumeráveis" ou melhor, todos os que, dentre os homens, são racionais, bárbaros e gregos; eu conclamo toda a raça humana, sendo eu o criador, pela vontade do Pai.”

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Índice

Introdução ... 14

1. Tratamento de Fontes Históricas e Metodologia ... 19

2. O Simbolismo da Câmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo ... 20

Literatura Profética ... 21

Literatura Sapiencial Judaica ... 21

Os Quatro Estágios da Câmara Nupcial ... 22

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Éden ... 23

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Êxodo e no Sinai ... 24

União Nupcial no Templo ... 24

Ben Sirá 24 “O Cântico da Senhora Sabedoria” ... 25

O Simbolismo Nupcial em Textos Apócrifos e Pseudepígrafos ... 31

Uma leitura introdutória do termo «câmara nupcial» no Evangelho de Tomé ... 33

3. O Contexto Histórico do Evangelho de Tomé... 36

Os Manuscritos ... 37

A Língua Original de Tomé... 37

A Data de Tomé ... 38

A Origem do Evangelho de Tomé ... 39

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomé... 41

4. O Evangelho de Tomé no Espaço e no Tempo ... 47

Vivências e Mentalidades na outra Margem do Eufrates ... 52

O Evangelho de Tomé e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristão ... 62

5. A Experiência Mística Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomé ... 65

A Glória do Trono ... 69

O Templo... 70

A Merkavá ... 72

O Misticismo do Evangelho de Tomé ... 77

Exposição do Lógion 37 ... 79

O Misticismo Visionário no Mundo Antigo: o Horizonte Religioso Histórico ... 85

Exposição do Lógion 50 ... 86

Misticismo Visionário em Tomé: Logia 15,83 e 59 ... 92

6. O Quadro Simbólico do Evangelho de Tomé e a centralidade do Templo no seu mundo simbólico... 95

O Simbolismo Místico do Templo de Jerusalém ... 97

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O Grande Mar ... 102

A Fonte da Vida ... 106

Os Rios do Paraíso ... 108

O Véu ... 110

Por Detrás do Véu ... 114

A Grande Luz ... 118

A Exegese de Tomé a Génesis 1 ... 122

A Imagem e a Luz ... 125

Síntese da Cosmologia de Tomé e a Protologia e Deificação da Câmara Nupcial ... 130

Experiência Ascética como Interioridade Luminosa ... 138

7. O Evangelho de Tomé e o Pensamento Gnóstico ... 143

As variedades da experiência gnóstica ... 147

O Pensamento de Tomé e o Pensamento Gnóstico ... 150

8. A Câmara Nupcial como chave hermenêutica no Evangelho de Tomé ... 154

9. Síntese Hermenêutica da Interpretação Simbólica e Textual de Tomé ... 166

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Introdução

“Jesus disse: Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e, reparai, conservo-o até que se alumie”.

Log. 10

O Evangelho de Tomé expressa-se por enigmas, figuras e conceitos, convidando o olhar a uma reflexão para lá da leitura. Dividido em 114 ditos, este evangelho não menciona os milagres, a morte e a ressurreição de Jesus. A chave para a salvação da alma reside nos ensinamentos mistéricos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos alcança a vida eterna. Vários estudos e leituras têm sido propostos no mundo académico para uma interpretação mais adequada dos ditos de Tomé.

Numa fase inicial não estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canónicos, por motivos de força maior, nomeadamente a questão entre a escatologia desses evangelhos e a protologia do evangelho que será nesta tese estudado.

Várias das metáforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenções, uma vez que o simbolismo a estas associado, não provém do mesmo espaço simbólico.

Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado, será proposta uma chave hermenêutica para interpretar vários ditos do evangelho, que aludem à cosmologia, cristologia e protologia apresentada por Tomé.

Serão apresentados os vários elementos simbólicos da narrativa de Tomé, devidamente interpretados de forma a confluírem numa nova leitura mais consciente das dimensões simbólicas do texto.

Deste modo esta tese é um esforço de trabalho exegético e hermenêutico a todo o panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomé e pelos textos que agreguem valor a esta linha de interpretação e de busca de sentido textual.

Designaremos esta abordagem de grelha simbólica e optamos por desenvolver uma linha orientadora que prepare o leitor à compreensão do simbolismo da câmara nupcial no Evangelho de Tomé.

Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete tópicos que num esforço de síntese apresentam as várias conclusões no oitavo tópico.

No primeiro tópico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes históricas e a metodologia que iremos utilizar. No segundo tópico abordaremos o simbolismo da câmara nupcial na literatura do Segundo Templo, culminando com uma questão pertinente, acerca do papel da tradição sapiencial judaica, nas representações simbólicas do gnosticismo presente na textualidade de Tomé.

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15 Em terceiro lugar, serão apresentados os vários elementos históricos necessários para contextualizar devidamente o documento, concluindo essa secção com uma breve discussão dos conceitos religiosos do documento.

No quarto tópico, aprofundaremos o tópico anterior, não estamos focados apenas na história material do texto, mas sim na sua história imaterial, situando o documento no espaço e no tempo. Desenvolvendo o tópico das mentalidades e da estrutura social que influenciou a forma como o evangelho foi redigido. Este tópico conclui-se com uma importante reflexão comparativa entre o evangelho de Tomé e os fragmentos do

Evangelho Judaico-Cristão. Comparação esta que atesta a antiguidade do documento e

serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referências documentais judaicas, como fontes de interpretação para os ditos do nosso documento.

No quinto tópico este trabalho introduzira uma reflexão fundamental para toda a compreensão desta tese, primeiramente analisaremos a experiência mística da linguagem no evangelho de Tomé e abordaremos com vários exemplos tirados do próprio evangelho o fenómeno do misticismo visionário.

Para que o leitor não tome posições precipitadas, quanto ao uso do termo «misticismo», fica desde já assente a nossa definição de misticismo: “Jesus é um místico e um mensageiro. Seu misticismo, como a maioria dos misticismos, é caracterizado pelos dois conceitos de Presença e Transformação. Os logia de Jesus como palavras sagradas são a chave para várias portas, para entender a boa mensagem. Alguns termos cruciais da lógica devem ser entendidos em diferentes níveis de compreensão.”1

Conforme as palavras deste autor o fenómeno do misticismo é uma realidade transversal a qualquer experiência religiosa e que remete aquilo que é místico à consciência humana. A capacidade de perceção da presença divina e a transformação que se manifesta pela perceção dessa presença, são a definição de misticismo assumida por este trabalho. Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do evangelho de Tomé, aumentar a sua perceção em relação ao divino e alcançar um senso de presença interior.

Serão evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as temáticas de experiências do foro místico de interioridade visionária na experiência religiosa do evangelho de Tomé.

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16 No sexto tópico serão apresentados os símbolos que constituem o panorama simbólico que permitirá ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e até à própria forma como o evangelho de Tomé foi redigido. Serão aqui naturalmente mencionadas as realidades cosmológicas do Templo de Jerusalém e como estas influenciaram os ditos cosmológicos de Jesus em Tomé. Após redigirmos um comentário a cada um dos símbolos e ao significado geral do Templo no espaço mental dos escribas. Iniciaremos o processo de reconstrução textual do pensamento de Tomé, provando que este evangelho é uma exegese típica de uma forma típica de interpretar a história da criação do ser humano em Génesis 1. Várias evidências serão reunidas para fundamentar estas afirmações, assim o leitor terá facilidade em compreender o texto de Tomé como uma produção literária unificada. Com temas unificados em torno de símbolos transversais à sua realidade, mas convergentes com várias tradições exegéticas do seu tempo.

O nosso sétimo tópico abrirá a discussão sobre o papel e o significado do gnosticismo no evangelho de Tomé, procurámos antes de mais explanar de forma sintetizada o que é a experiência gnóstica por si só, explorando as variedades desta experiência e as suas atitudes para com o conhecimento. Concluímos que aqui o gnosticismo de Tomé é um gnosticismo tipicamente seu, centrado na sua textualidade e que não se insere facilmente noutras escolas gnósticas, por ausência de mitologia gnóstica.

Por fim a nossa conclusão vai apresentar o tema da câmara nupcial no evangelho de Tomé e vai sintetizar toda a conclusão até aqui reunida desta hermenêutica e desta exegese.

Podemos afirmar que esta tese é um esforço de enquadramento histórico, dos meios mentais e criativos assim como hermenêuticos e exegéticos do autor que compôs o texto de Tomé.

Um percurso de comentários e análises aparentemente isoladas de alguns temas são uma realidade de força maior, se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta conclusão.

Unir estes temas é uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho

de Tomé.

O tema proposto como chave hermenêutica será a Câmara Nupcial, temática presente no pensamento do judaísmo de II Templo.

Repensar o texto, a partir das suas principais ideias, dará originalidade a este trabalho ao ser estudado as várias relações entre as diferentes correntes de tradições bíblicas e a

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17 compreensão da dimensão histórica do simbolismo nupcial no antigo pensamento judaico e no Evangelho de Tomé.

Este estudo intertextual interpretará os significados místicos de vários ditos e aprofundará a linguagem simbólica, comparando-o com várias realidades textuais do seu contexto.

Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do

Evangelho de Tomé, pareceu-nos necessário sublinhar o enquadramento e receção deste

texto na literatura primitiva do cristianismo siríaco.

O Evangelho de Tomé enquadra-se na agenda teológica da literatura siríaca primitiva dos séculos II-III d.C. partilhando perspetivas teológicas, simbolismos e linguagem técnica. Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradição e no qual podemos enquadrar Tomé são: Odes de Salomão, Hino da Pérola, Atos de Tomé, Ad graecos de

Taciano e Livro de Tomé.

Existem dois pontos de interseção na tradição de Tomé que podem ser de grande ajuda na sua interpretação: a tradição da sabedoria personificada por um lado e a tradição cristã siríaca de redentor divino por outro.

O Evangelho de Tomé corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da doutrina cristã que surge na teologia dos textos siríacos tardios. Para suportar esta opinião podemos aferir que Tomé se apresenta como uma coleção de ditos aleatórios reunidos sem um plano de composição unificador.

Os paralelos literários mais próximos são o livro de Provérbios, o tratado mishnáico de

Pirkei Avot, com coleções similares a aparecerem no livro de Ben Sirá, Sabedoria de Ahiqar e textos sapienciais de Qumran.

Durante o segundo século estes géneros de composições foram gradualmente sendo substituídos por géneros literários mais elaborados como os Hinos de Salomão e o Hino

da Pérola que datam aproximadamente do 3 século e.c. refletindo assim um estágio

posterior no desenvolvimento da literatura siríaca.

Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta época histórica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomé, tendo como suporte a caraterização histórica da sociedade de Edessa onde o evangelho terá sido escrito. Definindo a questão literária e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento filosófico que inspirou a textualidade de Tomé.

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18 Como hipótese apresentamos metodologicamente a exegese do judaísmo helenista no período intertestamental, a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de interpretação do pensamento filosófico de Tomé.

Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a tradução da Bíblia de

Jerusalém em todas as passagens citadas, nalguns casos no capítulo 5 utilizamos a

versão do Génesis traduzida por André Chouraqui, quanto ao evangelho de Tomé recorremos à tradução presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da edição Ésquilo. As obras de Fílon de Alexandria foram traduzidas do inglês por mim a partir da publicação completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc. As restantes passagens de apócrifos, deuterocanónicos, literatura rabínica e samaritana assim como gnóstica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglês e devidamente identificadas nas passagens traduzidas.

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1. Tratamento de Fontes Históricas e Metodologia

As fontes históricas propostas para a análise comparativa deste projeto consistem numa seleção de textos, cujo pensamento filosófico e os termos linguísticos e simbólicos influenciaram a textualidade de Tomé.

Estes textos estão presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo: Ben Sirá,

Sabedoria de Salomão. Outros textos da literatura siríaca primitiva: Odes de Salomão, Hino da Pérola, Atos de Tomé, Ad graecos de Taciano, Livro de Tomé e os Evangelhos de João e Filipe.

Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta época histórica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomé, caraterizando historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho terá sido escrito.

O simbolismo da câmara nupcial será o elo de ligação necessário entre as diferentes tradições para uma compreensão do símbolo dentro do texto de Tomé.

A nossa investigação inicial irá tratar da metáfora nupcial nos profetas da Bíblia Hebraica e na Literatura Sapiencial.

Esta breve análise tornará possível realizar o resto do estudo, que terá como foco alguns dos textos nupciais mais relevantes do Período do Segundo Templo e períodos rabínicos posteriores.

Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincrónico de textos selecionados, como

Ben Sirá 24, o texto de Fílon de Alexandria à figura do Querubim no Templo, textos

pseudepígrafos e algumas exegeses rabínicas ao Cântico dos Cânticos.

Após realizarmos um estudo temático que organize os motivos observados nos nossos textos iremos desenhar uma síntese que será utilizada para interpretar os temas nupciais no Evangelho de Tomé.

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2. O Simbolismo da Câmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo

A metáfora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa, no pacto entre Deus e Israel, cresceu no fértil solo mitológico de vários mitos do mundo antigo que envolviam uniões sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano. As tradições bíblicas apresentam um modelo único no sentido divino escolher entrar num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo específico.

Na literatura profética2 Deus é marido de Israel, a sua noiva e esposa. Como marido ele é monogâmico mesmo quando a sua noiva é infiel. A poligamia era uma realidade comum, mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar à fidelidade do matrimónimo com o divino.

Mas qual o papel da imagética nupcial nos antigos textos judaico-cristãos? O que é que eles pretendiam retratar na sua essência profunda? Será plausível a nossa leitura os tratar como mera metáfora, uma descrição alegórica e ilustrativa do amor de Deus pelo seu povo? Ou será como alguns autores sugerem3, uma tentativa de descrição da união mística, substancial e metafisica entre o humano e o divino?

Várias evidências mostram que nalguns círculos no período do Segundo Templo, a imagem nupcial representava um ato de “fusão espiritual” entre Deus e o ser humano, uma “transfusão da energia divina para o mundo” por meio de que o noivo, ao unir-se com a humanidade levantou-a para o céu de onde ele procedeu4.

Desde a literatura sapiencial, aos escritos paulinos e rabínicos, parece surgir um padrão recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a torná-lo santo. O Evangelho de

Tomé, a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnósticos,

inserem-se neste mesmo padrão.

Segundo o autor André Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta união como um processo que ocorre em quatro estágios distintos da história.

Os textos nupciais recordam um estado idílico primitivo que foi perdido, um estado “nupcial” existente no momento paradísiaco da existência humana. Momento este que se perdeu dando lugar a um estado de separação entre o divino e o humano.

2 Oseias, Jeremias e Ezequiel. 3 Cf. Villeneuve A, (2016), 3.

4Idem.

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21 Este estado foi recuperado por um momento singular, um terceiro estágio salvífico, num evento de redenção único, retratado como casamento. Este evento nupcial é estendido no tempo através da adoração litúrgica, recordando e reencenando o casamento redentor nas vidas das gerações subsequentes.

A adoração litúrgica antecipa a final, o cumprimento escatológico do casamento divino-humano no final da história.

Estes quatro estágios da união nupcial correspondem simbolicamente a quatro estágios da história de salvação de Israel: A criação e o jardim do Éden, o êxodo e o monte Sinai, o Templo de Jerusalém no Monte Sião e o final dos tempos.

Literatura Profética

Na literatura profética, a metáfora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns profetas de Israel (Oseias, Jeremias, Ezequiel e Isaías). Nestes textos o casamento é direcionado para uma restauração futura com a esperança de retornarem a uma perfeição intocada. O registo mais antigo a nível bíblico da metáfora nupcial encontra-se em

Oseias 1-3 e foi redigido por volta do século VIII a.C, pouco antes da queda do Reino

do Norte6.

O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma união mística percetível com o divino. Permanece sempre como uma alegoria simbólica da aliança entre Deus e o seu povo, vivida nos parâmetros da fidelidade religiosa aos preceitos da lei, a observância apropriada do culto no Templo e uma ética irrepreensível para com o próximo.

Literatura Sapiencial Judaica

No livro de Provérbios é relatada a origem divina da Sabedoria7. No livro da

Sabedoria de Salomão, Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanação de Deus

identificada com o espírito divino8. Neste tipo de literatura a relação da Senhora Sabedoria com o homem é descrita frequentemente numa linguagem nupcial, muitas vezes reminiscência do Cântico dos Cânticos: a sua beleza é exaltada, ela é desejada e

6 Cf. Villeneuve A. (2016), 5.

7Pr 8:22-31.

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22 amada como uma noiva; Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma sedutora para comerem à sua mesa, prometendo riquezas, honras e vida abundante. A imagem nupcial apresentada pela literatura profética difere da imagem nupcial apresentada pela literatura sapiencial.

Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do casamento era o próprio Deus retratado como marido.

Na literatura sapiencial a protagonista feminina é a quase divina figura da Senhora Sabedoria, e os humanos que ela corteja são implicitamente masculinos.

É importante sublinharmos estas diferenças a fim de compreendermos a evolução da crença, onde a coletividade típica dos profetas hebreus deu lugar à individualidade de cada pessoa que é chamada pela Sabedoria para ter comunhão com ela.

A metáfora nupcial contém um triângulo amoroso peculiar9, constituído por Deus, pela Sabedoria e pelo ser humano. Já não existe uma relação direta entre Deus e o seu povo, antes a Sabedoria age como intermediária entre Deus e os seres humanos.

É uma espécie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhão com o homem.

Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaço à cristalização do papel da Sabedoria como figura mediadora, casada com Deus nas dimensões celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre.

Convidando o ser humano a casar-se com ela, a relação nupcial com Sophia imitava a união de Deus com ela, e isto era a experiência pessoal do sábio com o divino.

Os Quatro Estágios da Câmara Nupcial

Esta breve introdução permite-nos discernir uma certa convergência temática no tratamento histórico da metáfora nupcial nos profetas da Bíblia Hebraica e na Literatura Sapiencial, abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento no livro de Ben Sirá, nalguns textos do Novo Testamento, em textos apócrifos e pseudepígrafos selecionados bem como em alguma exegese rabínica antiga do Cântico dos Cânticos.

Através desta análise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Câmara Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomé e de Filipe.

9Cf. Villeneuve A. (2016), 33-34. 10Cf. Idem, 29.

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23 Nas fontes judaicas a metáfora nupcial associa-se frequentemente à história da salvação ao apresentar a criação (Éden) ao protótipo ideal do casamento entre Deus e Israel, fundamentado na experiência singular do Êxodo e na revelação no Sinai, liturgicamente transportada através do tempo para a adoração no tabernáculo e no templo, tendendo para o cumprimento escatológico no final dos tempos, na Idade Messiânica11.

Na literatura neotestamentária é possível discernirmos um padrão semelhante de simbolismo nupcial: o casamento entre Cristo e a Igreja é frequentemente relacionado com a tipologia de Adão e Eva. Este casamento fundamenta-se no sacrifício pascal redentor de Cristo. É aplicada à vida do fiel ou da igreja coletiva através da tipologia sacrificial e do templo, sendo manifesta através dos sacramentos do batismo e da eucaristia. Por fim aguarda a sua consumação plena na eternidade12.

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Éden

Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel é frequentemente associado ao jardim do Éden. No Novo Testamento as passagens nupciais frequentemente estão associadas à tipologia de Adão e Eva, descrevendo a ordem da criação até ao dano causado pelo pecado de Adão e de como este foi reparado por Cristo, o novo Adão.

Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situação geográfica, o próprio Éden e o Novo Testamento apontar para uma situação antropológica (Adão e Eva), ambos os temas se referem à mesma tradição edénica de um ideal primordial. O primeiro casamento da criação, seguido da rotura e da desordem13.

Algumas questões devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os nossos textos. Foi o casamento de Cristo (novo Adão) e da Igreja (nova Eva) algo com que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauração da humanidade ao estado primordial do Éden? Como é que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes no Judaísmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de Tomé?

11 Idem, 35.

12Villeneuve A. (2016), 35. 13Idem.

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24 Poderemos discernir uma relação intertextual entre estes textos que nos esclareça o significado da câmara nupcial, como metáfora explicativa da antropologia e cosmologia destas tradições?

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Êxodo e no Sinai

Nas tradições cristãs e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por um único momento na história da redenção. Na tradição judaica esse tempo foi o tempo do Êxodo14, considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel. No Novo Testamento o evento que marca a redenção para a aliança nupcial é o mistério pascal sacrificial de Jesus, inspirado na narrativa do Êxodo.

União Nupcial no Templo

Seguindo este fio condutor por meio de um único evento redentor, o simbolismo nupcial é perpetuado na história do povo de Deus através da adoração litúrgica.

Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai é reencontrado na história da nação no Tabernáculo do deserto e o Templo de Jerusalém, enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo, ganhando expressão nos sacramentos do batismo e da eucaristia.

Em ambas as tradições, o templo, quer seja físico ou espiritual, é uma extensão litúrgica, uma comemoração e atualização ao longo do tempo do verdadeiro pacto nupcial (selado no Sinai ou no Gólgota) entre Deus e o seu amado povo.

O templo é o lugar de antecipação da consumação escatológica do casamento sagrado. Ao compreendermos o papel do templo, como espaço do casamento místico no Antigo Israel, torna-se mais percetível a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo Testamento.

A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no templo poderá lançar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento

14 A literatura rabínica sempre deu ênfase aqui á travessia do mar Vermelho e a teofania do

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25 místico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado através dos ritos litúrgicos do batismo e da eucaristia15.

Temas Simbólicos da Câmara Nupcial O Tabernáculo e o Templo como Câmara

Nupcial

Os templos de vários povos antigos consideravam o Templo, especialmente o Santo dos Santos, como o lugar simbólico que representava a Câmara Nupcial.

O Tabernáculo e o Templo como uma atualização perpétua da liturgia do Sinai

O Tabernáculo e o Templo serviram para perpetuar a teofania do Monte Sinai entre o povo de Israel.

O Templo como microcosmos O Templo de Jerusalém estava imbuído de simbolismo cósmico, sendo considerado um microcosmos que representava o universo inteiro. Também é relevante a ideia antiga do homem como microcosmo e templo, uma ideia encontrada no Novo Testamento onde o fiel é o Templo do Espirito Santo e o “lugar” onde a união nupcial acontece entre o humano e o divino.

O Templo como o Jardim do Éden O Templo de Jerusalém era considerado a fonte da bênção divina, edénica, o lugar onde habitava a Shekináh, a presença do divino na terra.

Ben Sirá 24 “O Cântico da Senhora Sabedoria”

Neste capítulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a tradução da Bíblia de Jerusalém.

Este é um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simbólicos necessários para podermos interpretar e compreender o uso da metáfora nupcial.

As suas interpretações criativas de vários motivos da Bíblia Hebraica tornam-no uma ponte de ligação entre esta e a imagética nupcial do Novo Testamento.

A escolha deste capítulo do livro de Ben Sirá deve-se não somente ao facto de este ser o capítulo central do livro, mas também é um tempo marcado pelo seu caráter nupcial em todas as ressonâncias.

15 Cf. Villeneuve A. (2016), 37. 16 Cf. Villeneuve A. (2016), 56.

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26 O poema permeado com alusões ao Cântico dos Cânticos descreve a figura personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se a si, numa comunhão íntima onde a “bebem” e “comem” (vv.19-21).

Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela é a parte feminina da relação e o ser humano, a parte masculina.

Como referimos anteriormente esta tendência já aparece na literatura sapiencial judaica. O capítulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo da história israelita, especialmente presente no Éden, no Sinai, no Templo e no final dos tempos.

Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descrição da Senhora Sabedoria encaixa nos “4 momentos” da história da salvação.

A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv.1-7)

“A Sabedoria faz o seu próprio elogio, ela se exalta no meio de seu povo. Na assembleia do Altíssimo abre a boca,

ela se exalta diante do seu Poder.

‘Saí da boca do Altíssimo e como a neblina cobre a terra.

Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens. Só eu rodeei a abóbada celeste,

eu percorri a profundeza dos abismos, as ondas do mar, a terra inteira, reinei sobre todos os povos e nações.

Junto de todos estes procurei onde pousar e em qual herança pudesse habitar.”

Os primeiros dois versos deste poema são uma introdução, na terceira pessoa, ao cântico da Senhora Sabedoria. Ela irá elogiar-se a si própria (literalmente – elogiar a sua alma ψυχὴν αὐτῆς)17.

O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo, na assembleia do Altíssimo. A tradição de uma personificação pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na tradição sapiencial mais antiga, especialmente os capítulos 8-9 do Livro de Provérbios. No verso 3 inicia-se o cântico da Sabedoria; nos versos 3-7 ela descreve a sua origem em Deus e a sua universalidade.

Ela procedeu da “boca do Altíssimo, cobrindo a terra como neblina”.

Existe aqui uma simbólica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificação com a

palavra de Deus, associada originalmente à profecia18, desenvolvendo-se mais tarde

(27)

27 como o Logos joanino (Jo 1:1-3). O versículo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria “desde o princípio, e para sempre…”, ela estava presente no tempo da criação quando “as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava, a superfície das águas.” (Gn 1:2).

O tema “como neblina” (ὁμίχλη) a cobrir a terra é um reminiscente da escuridão caótica que reinava no início da criação19.

Neste capítulo de Ben Sirá20, a Sabedoria habitava “nas alturas”21devido ao lugar central do santuário e do Templo.Talvez esta seja uma alusão aos lugares altos celestiais e terrenos, uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma réplica do santuário no céu.

O trono da Sabedoria localiza-se numa “coluna de nuvens” aludindo à mesma coluna que guiou os israelitas através do deserto e pousava acima do santuário do Tabernáculo e do Templo como um sinal da presença de Deus22.

A ocorrência da expressão στῦλος [τῆς] νεφέλης na Bíblia Hebraica refere-se sempre à coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23.

Fílon de Alexandria comentou que a nuvem “suavemente derrama sabedoria sobre as mentes que estudam a virtude”24.

Isto confirma a dupla localização da habitação da Sabedoria, nos céus e na terra, tendo a nuvem como uma ponte entre as duas esferas.

A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no céu e descendo à terra e a sua identificação com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomão: “Aos santos deu a paga de suas penas, guiou-os por um caminho maravilhoso: de dia, serviu-lhes de sombra e à noite, de luz de astros. Fê-los passar o mar Vermelho, conduziu-os por águas caudalosas; ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismo.”25

Os versículos 5 e 6 ressaltam a universalidade cósmica da Sabedoria, as suas origens primordiais no tempo e a sua omnipresença no espaço e na criação.

A Sabedoria “rodeou a abóbada celeste” e “caminhou nas profundezas do abismo”.

18 Is 45:23; 48:3; 55:11. 19Cf. Villeneuve A. (2016), 29. 20 Especialmente os vv.10-11.

21 Esta expressão “nas alturas” pode ser inspirada “nos lugares altos” da passagem de Pr 8:2, na

referência àmontanha santa do Senhor, “Sião, minha montanha sagrada” (Sl 2:6).

22Cf. Villeneuve A. (2016), 58.

23 Ex 13:21–22; 14:19, 24; 19:9; 33:9–10; 40:34–38; Nm 12:5; 14:14; Dt 31:15; Ne 9:12, 19; Sl

98:7.

24Quis. rer. div. heres. 24 c.f. Yonge D. (1993) 25Sb 10:17-19.

(28)

28 O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 22:14 como o lugar onde Deus caminha, e o termo ἄβυσσος é a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico “escuridão”, a escuridão primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princípio da criação (Gn 1:2)26.

Ben Sirá ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princípio estando

presente em tudo, fazendo alusão a Provérbios27.

O seu domínio total expressa-se em quatro dimensões polares que enquadram todo o universo: verticalmente, os dois extremos dos céus e do abismo, e horizontalmente, os dois elementos do mar e da terra.

Apesar da sua omnipresença e universalidade cósmica, a Sabedoria procurou um lugar específico onde pudesse habitar num “lugar de repouso”.

Este paradoxo é uma ponte entre o universalismo dos versículos 3-6 e o particularismo dos versículos 8-12. A tensão e o paradoxo entre estes dois polos diferentes são dignos de nota28.

A Senhora Sabedoria, infinita e eterna, orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o universo no espaço e no tempo. No entanto a sua ilimitabilidade não a satisfaz e ela deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular, limitando-se a si mesma pelos limites do tempo e do espaço em Israel, mais concretamente no Tabernáculo do monte Sião, num ato de auto contração. Num movimento de descida e concentração, a Senhora Sabedoria caminha numa jornada entre os céus e a terra, da boca de Deus para Israel.

A Habitação da Senhora Sabedoria em Israel (vv. 8-12)

“Então o criador de todas as coisas deu-me uma ordem, aquele que me criou armou a minha tenda e disse: ‘Instala-te em Jacó, em Israel recebe a tua herança.’ Criou-me antes dos séculos, desde o princípio, e para sempre não deixarei de existir.

Na Tenda Santa, em sua presença, oficiei; deste modo, estabeleci-me em Sião

e na cidade amada encontrei repouso,

26Cf. Villeneuve A. (2016), 59.

27Pr 8:15-16 e 29; Sl 24:1-2; 104:2-6.

(29)

29

meu poder está em Jerusalém.

Enraizei-me num povo cheio de glória,

no domínio do Senhor se encontra minha herança.”

Esta secção retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez, onde esta deixou o céu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens.

Os primeiros versos (8-12) descrevem como é que a Senhora Sabedoria se contraiu da sua universalidade sobre toda a criação e da sua existência eterna à limitada esfera de Israel.

No verso 8, Deus designa um local para a “tenda” da Sabedoria, ordenando-lhe que habitasse em Israel.

O verso 9 interrompe a descrição do movimento através do espaço da Sabedoria e volta-se para a esfera do tempo, afirmando que pela sua existência desde o princípio até ao fim da criação, o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal é total assim como o seu reino sobre a esfera espacial.

“Criou-me antes dos séculos, desde o princípio, e para sempre não deixarei de existir” (vv.9). O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusão do seu processo de tzimtzum29à medida que ela se instala no Tabernáculo.

Senhora Sabedoria, árvores e especiarias (vv.13-17)

“Cresci como o cedro do Líbano, Como o cipreste no monte Hermon. Cresci como a palmeira em Engadi, Como roseira em Jericó,

Como formosa oliveira na planície, Cresci como plátano.

Como a canela e o acanto aromático exalei perfume, Como a mirra escolhida exalei bom odor,

Como o gálbano, o ônix, o estoraque, Como o vapor do incenso na Tenda.

29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulação metafísica acerca do processo da

criação da realidade. Nesta especulação, o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a um espaço conceitual finito. A percepção relativa comum aceita a existência das coisas apenas por causa dos seus limites. Cf. Smith D. (2010), 21.

(30)

30

Estendi os meus ramos como o terebinto, Meus ramos, ramos de glória e graça.

Eu, como a videira, fiz germinar graciosos sarmentos E minhas flores são frutos de glória e riqueza.”

A Sabedoria enraizou-se num povo honrado.

A descrição das árvores, a rica vegetação e especiarias, bem como a flora ligada à terra de Israel é a linguagem do Cântico dos Cânticos.

Grande parte das metáforas sobre árvores e flores, assim como a sua respetiva localização geográfica, ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cântico dos

Cânticos.

No Cântico dos Cânticos as vigas da casa dos amantes são feitas de cedro (Ct 1:17), o palanquim de Salomão é feito de madeira do Líbano e o topo de Hermon (Ct 4:8) associado ao domínio das árvores ciprestes em Sir 24:13.

A fragrância das suas vestes é como a fragrância do Líbano (Ct 4:11), o semblante do rei é “como o Líbano, excelente em cedros” (Ct 5:15).

Digno de nota ainda é a menção ao terebinto (τερέμινθος/ τερέβινθος, 24:16) que se trata de uma alusão indireta à atividade sexual. Na literatura bíblica o terebinto é associado à prostituição cultual em santuários idólatras30.

A Senhora Sabedoria aparece como “roseira” (Sir 24:14) e a sua “floração” (Sir 24:17) também nos lembra as imagens abundantes de flores no Cântico dos Cânticos, onde a noiva é chamada “rosa de Saron” e “lírio dos vales” (Ct 2:1-2).

Ben Sirá 24:15 faz eco aos odores e fragrâncias de especiarias e óleos presentes no Cântico dos Cânticos, acentuando assim a sua insinuação erótica.

O cântico menciona logo de início a fragrância dos bons unguentos da amada (Ct 1:3). Ele é para a sua noiva a montanha de mirra, e a colina de incenso (Ct 1:13; 4:6).

As suas faces são “canteiros de bálsamo, e colinas de ervas perfumadas” e os seus lábios são lírios com mirra, que flui e se derrama.” (Ct5:13).

A imagem das árvores, flores e especiarias nestes versículos evoca o paraíso: a Senhora Sabedoria, localizada em Jerusalém, prospera como o primeiro jardim do Éden.

(31)

31

O Banquete da Senhora Sabedoria (vv.19-22)

“Vinde a mim todos os que me desejais, Fartai-vos de meus frutos.

Porque a minha lembrança é mais doce do que o mel, Minha herança mais doce do que o favo de mel. Os que me comem terão ainda fome,

Os que me bebem terão ainda sede. Quem me obedece não se envergonhará, Os que trabalham por mim não pecarão.”

Nesta última parte a Sabedoria convida “todos os que a desejam” para um banquete sumptuoso, para comerem os frutos que ela produz.

Existe uma alusão a Provérbios 9:1-5, onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o vinho, convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu pão e beberem o seu vinho31.

O amor erótico era frequentemente associado ao comer e festejar, sendo um símbolo universal do vínculo de amizade e comunhão, atividades que tiveram lugar no Éden, Monte Sinai e no Templo32.

O Simbolismo Nupcial em Textos Apócrifos e Pseudepígrafos

Na presente secção iremos analisar alguns textos selecionados dos livros pseudepígrafos cristãos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no primeiro século da era comum.

As Odes de Salomão (30-150 d.C.) são uma coleção de hinos judaico-cristãos que datam do primeiro século. Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do fiel por Deus. Este amor concretiza-se numa união entre o amante humano e o seu amado (Deus): o homem, através da união com o “Filho”, também se torna um filho de Deus participante na sua imortalidade:

31 Cf. Sir 1:14-15; 6:19; 15:2-3.

(32)

32 “Eu amo o Amado e eu mesmo o amo, onde está o seu descanso, também eu estou (…) Eu fui unido a Ele, porque o amante encontrou o Amado, porque eu amo Aquele que é o Filho, eu me tornarei um filho. Na verdade, aquele que está unido àquele que é imortal, verdadeiramente será imortal”

Ode de Salomão 3:5-8

A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissão de vida divina para o ser humano, recorrendo a uma linguagem incarnacional. O Amado assume a forma humana para unir-se à humanidade: “Ele tornou-se como eu, para que o receba. Em forma ele foi considerado como eu, para que pudesse colocá-lo” (Ode 7:4-6).

Este amor vivificante é expresso numa linguagem nupcial através de um “abraço ou beijo sagrado” entre o ser humano e o divino, dando vida imortal ao humano através do Espírito Santo33.

“E a vida imortal abraçou-me e beijou-me. E naquela vida está o espírito que está dentro de mim. E não pode morrer porque é vida.” (Ode 28:7-8).

Noutra instância as odes descrevem a união em termos nupciais: “Eu lancei sobre eles o jugo do meu amor. Como o braço do noivo sobre a noiva, também é o meu jugo sobre aqueles que me conhecem. E como a câmara de noiva é espalhada para fora pela casa nupcial do par, também é o meu amor por aqueles que acreditam em mim.” (Ode

42:7-9).

Noutros lugares a imagem da união entre o ser humano e o divino são descritas como sendo o Paraíso. O jardim do Éden é assim identificado com o santo dos santos dos escritos contemporâneos, onde ambos são conhecidos como fontes de correntes de águas vivas.

As Odes de Salomão descrevem uma união mística entre Deus e o fiel através da figura mediadora do messias. Esta união tem lugar na ‘Câmara Nupcial’ entendida neste contexto como sendo o Templo espiritual e o ‘Paraíso’.

Nesta Câmara Nupcial/Templo/Paraíso, correntes de águas vivas e fontes de leite e mel procedem dos ‘lábios do Senhor’.

Tocando nos lábios dos seus amados, matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34.

33 Villeneuve A. (2016), 277.

(33)

33

Uma leitura introdutória do termo «câmara nupcial» no Evangelho de Tomé

Após uma síntese nestas tradições apresentadas do simbolismo nupcial, iremos proceder a uma leitura introdutória do mesmo simbolismo no evangelho de Tomé.

Apesar da abrangência desta interpretação ser apresentada nas discussões de resultados e na conclusão do trabalho. É importante como ponto de partida estabelecermos alguns elementos na nossa linha de pensamento que não permitam desvios interpretativos e posições alienadas com a investigação que procuramos desenvolver.

O título deste trabalho é: A Câmara Nupcial como Chave Hermenêutica do Evangelho

de Tomé, só pelo título estamos a pressupor que a câmara nupcial, como expressão

textual, como elemento simbólico e como conceito filosófico, antropológica e teológico, reúne por si só o princípio interpretativo fundamental do evangelho de Tomé.

Primeiramente o leitor será convidado a ler o evangelho como um documento literário unificado com um pensamento subjacente, excluímos assim a hipótese que se trata de um texto com vários ditos aleatórios que não dispõe de qualquer ligação entre si.

Existem duas referências à câmara nupcial nos 114 ditos do evangelho, a primeira encontra-se no log 75 “Jesus disse: Há muitos que estão junto à porta, mas os unificados (monachos) são os que entrarão na câmara nupcial”. E o log 104 “Disseram-lhe: Vem, hoje, para que oremos e jejuemos. Jesus disse: Qual foi o pecado que cometi, ou em que é que fui vencido? Só quando o esposo sair da câmara nupcial, então que se jejue e que se ore!”.

A câmara nupcial é a expressão síntese que enquadra o pensamento teológico e antropológico do evangelho de Tomé, sendo assim a chave interpretativa da sua mensagem. Podemos afirmar que o termo monachos, traduzido por unificado, revela perfeitamente a mensagem de Tomé. Neste evangelho entrar na câmara nupcial é o mesmo do que entrar no Reino dos Céus, nos evangelhos canónicos. Ao entrar na câmara nupcial, o leitor entrava no lugar da salvação, da união, o lugar da vida.

Entrar na câmara nupcial era regressar ao Éden, ao estado original primordial da existência e da organização do ser, idealmente unificado sem conflitos nem divisões. Haviam porém certas condições, que dificultavam esta entrada, o evangelho de Tomé, ao contrário dos evangelhos canónicos, não parte do pressuposto que o problema existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcançar o Reino dos Céus.

(34)

34 Em Tomé o problema da existência humana é a sua desintegração existencial, uma identidade dividida e em constante conflito interior e exterior. Daí o termo unificado ser fundamental para compreendermos a hermenêutica da câmara nupcial. Neste evangelho o problema da humanidade é a sua eterna divisão, constante geradora de conflitos e responsável por um estado de ausência de gnose (gnose aqui entendida como a perceção natural do divino na consciência).

O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de género, em termos de interioridade e exterioridade, em termos de imagem e luz.

A pessoa que transcende estas divisões interiores e alcança o verdadeiro significado das palavras de Jesus, alcança a imortalidade e não experimenta a morte.

Esta pessoa unificada supera a divisão de género e é uma nova espécie de ser humano espiritualizado que se tornou como Jesus, pois entrou na câmara nupcial e bebeu da sua boca. Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado, para enquadrarmos melhor este pensamento, é justamente a ação que ocorre na câmara nupcial que nos revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomé. Este lado começa quando colocamos esta questão, qual é a finalidade ideológica deste texto?

Por vezes lêmos ou ouvimos certas interpretações que afirmam que o enquadramento e o discurso ideológico de Tomé não se afastam muito do enquadramento dos evangelhos

canónicos.

Para começar a realidade de uma deificação é completamente absurda nos evangelhos canónicos, para além disso a finalidade de o discípulo entrar na câmara nupcial é o retorno ao paraíso original. Ou seja, em Tomé, o discípulo tem um objetivo, restaurar em si a imagem divina que perdeu, uma imagem primordial unificada e deificada. E ainda temos a crença de regressar ao início, ao tempo antes do tempo, ao paraíso. O lugar onde a luz procedeu de si mesma, esta luz é Jesus.

Nos evangelhos canónicos o discurso assume os contornos apocalípticos e escatológicos do final dos tempos, existe a ideia de um julgamento e uma ânsia por cada discípulo entrar numa época em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz e justiça beneficia os justos e castiga os ímpios.

Temos aqui duas teologias opostas, uns sonham em entrar no paraíso nesta vida, porque para eles não existe final, não existe desfecho absoluto. Para eles existe iluminação interior, perceção do reino do Pai da luz entre todas as coisas. Estão de passagem por este mundo, enquanto buscam entrar na câmara nupcial.

(35)

35 No contexto canónico, a finalidade teológica é a perceção do Filho de Deus, como cada um o vai entender e receber, vai determinar o seu destino salvífico.

Evitar o caminho da injustiça para beneficiar de um estado de justiça e paz na eternidade é a ideia que transparece que o paraíso começa onde termina a terra. São duas realidades separadas, quando existe ainda a questão de abordarmos uma espécie de comunhão mística na linha da unio mystica dentro da câmara nupcial entre Jesus e o discípulo. Várias dificuldades rapidamente surgem, primeiro o objetivo da unio mystica é uma unificação sacramental em que a alma é noiva de Jesus.

Este estado de misticismo cristão que é definido como o quarto estágio no caminho do misticismo cristão, não existia na época em que o evangelho de Tomé foi escrito, pelo menos não existia nos termos que assumiu na forma medieval.

A finalidade da unio mystica não pressupõe obrigatoriamente a deificação ou divinização da alma, tornando esta semelhante à alma de Jesus. A união que ocorre dentro da câmara nupcial no evangelho de Tomé pressupõe sem qualquer sombra de dúvida este fenómeno que embora estejamos longe de o compreender, não devemos sacrificar a afirmação do texto para satisfazer a fome por definições académicas mais simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussão.

A nossa investigação não nega que o misticismo do mundo antigo, definido no nosso trabalho com a sua vertente visionária e extática, teve lugar na textualidade e na experiência hermenêutica do evangelho de Tomé. No entanto apenas recorre às manifestações místicas que existiam no seu tempo e não pretende adoptar formas de misticismo mais tardias como a unio mystica.

O conceito de deificação em Tomé no interior da câmara nupcial está mais orientado para a deificação e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um processo de iluminação gnóstica. Com isto refiro-me à aquisição de gnose, se entendermos que a gnose é o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro conhecimento da identidade pessoal. Então faz sentido pegarmos na nossa leitura inicial: “Jesus disse: Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que façais o masculino e o feminino num só, para que o masculino não seja masculino nem o feminino seja o feminino; quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma mão em lugar de uma mão,

(36)

36 e um pé em lugar de um pé, uma imagem em lugar de uma imagem, então entrareis no Reino.”35

A unificação do ser humano no seu íntimo e a transcendência da sua essência é a explicação deste texto e com este texto podemos arriscar propor não uma unio mystica no interior da câmara nupcial. Mas uma união unificada que leva à iluminação e à fusão completa com Deus, se a ideia de Jesus é ele ser uma figura que beneficia de algum tipo de fusão e união com o divino que a humanidade comum não possuí, então a camâra nupcial iria abordar estes benefícios e esta união àqueles que nela entrassem.

Só me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas serão explorados com profundidade, e que não estamos perto de compreender com toda a certeza o que acontece dentro da câmara nupcial, dentro da mentalidade original do autor.

3. O Contexto Histórico do Evangelho de Tomé

O objetivo do presente capítulo é situar o Evangelho de Tomé no espaço e no tempo. Procurando as sensibilidades filosóficas e culturais que envolveram a sua palavra. O significado dos seus ditos no contexto histórico do segundo século e o impacto da sua reflexão na audiência que os escutava.

A perspetiva religiosa de Tomé assenta no ambiente da sua composição. A nossa investigação pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode ser interpretado legitimamente como tal36.

A unidade textual notada no razoável grau de semelhanças existentes entre os textos gregos e coptas, e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possível defender uma abordagem baseada na consistência de Tomé.

Segundo o texto de Pístis Sophia37, Jesus, após ter ressuscitado comissionou Filipe, Mateus e Tomé a registarem as suas palavras por escrito.

No imaginário da tradição cristã, Tomé era considerado o fiador dos ensinos orais de Jesus para poder elaborar um evangelho. Um trabalho literário com o seu nome - “Evangelho de Tomé” - é conhecido na tradição desde o terceiro século.

Hipólito ano duzentos e trinta e dois d.C. no seu relato aos Naassenos menciona o

Evangelho de Tomé e cita várias passagens do texto.

35Log 22

36Cf. Gathercole Simon (2014), 10. 37 Capítulos 42 e 43

(37)

37 O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos célebres autores do cristianismo: Jerónimo, Ambrósio e o Venerável Beda. Na língua grega Eusébio de Cesareia situou o Evangelho de Tomé no grupo dos apócrifos de caráter puramente heterodoxo, entre o Evangelho de Pedro e de Matatias.

Os Manuscritos

O Evangelho de Tomé é uma coleção de ditos atribuídos a Jesus, que existem num manuscrito copta bem preservado e em três fragmentos gregos. O manuscrito copta termina com a expressão “o Evangelho segundo Tomé”. Os manuscritos fragmentados gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897; o London Daily Graphic publicou uma notícia de um rapaz de oito anos, Sabr’ Sair, “o rapaz que encontrou os Logia”. Estes três fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus.

O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi, Egito em 1945, fazia parte de uma coleção de doze códices. O Evangelho é o segundo texto do Codex 2, onde é precedido por uma cópia do Apócrifo de João e do Evangelho de Filipe.

O papiro grego data do ano duzentos d.C. e o documento copta data da metade do século IV d.C. Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidências para um evangelho escrito mais antigo, originalmente em grego ou siríaco, provavelmente proveniente da comunidade judaico-cristã falante de grego na Antioquia siríaca38. Meio século depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto de Nag hammadi. O texto copta divide-se em 114 ditos, com um prólogo no início e um título - “o Evangelho segundo Tomé” - no final39.

A Língua Original de Tomé

A linguagem de Tomé começou a ser debatida com o surgimento do texto copta onde alguns académicos consideraram que o copta era a língua original da composição do evangelho40. Esta proposta foi refutada, e as três opções mais viáveis para a maioria dos estudiosos são o aramaico ocidental, o siríaco e o grego41.

38 Cf. Valantasis R. (2007), 3.

39 "Thomas, Gospel of." In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible. ,edited by

Stevan

Davies. Oxford BiblicalStudies Online, (accessed 13-April-2017).

(38)

38 Existem alguns problemas a nível metodológico para identificarmos semitismos nos textos gregos e coptas de Tomé. Primeiro porque muitos semitismos são insignificantes num argumento para a composição de uma linguagem semita. Seria necessário que a frase em questão não fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que reciprocamente fosse aramaica ou siríaca do período da sua composição. Isto é difícil uma vez que existem poucas inscrições siríacas dos primeiros dois séculos42.

O Evangelho de Tomé pode assim ter sido escrito originalmente em grego, existindo alguns pontos que podem sustentar esta afirmação.

Existem 27 palavras gregas nas seções paralelas da versão copta. No manuscrito copta encontramos uma densidade considerável de palavras gregas praticamente por todo o texto.

Podemos ainda considerar o testemunho de Tomé e as evidências materiais dos manuscritos. O facto de termos três fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a língua grega a língua de origem de muitos trabalhos antigos, preservados em manuscritos coptas, indica que o grego pode ser a língua original do Evangelho de

Tomé.

A maioria dos evangelhos daquele período foi composta em grego; apenas os evangelhos tardios começaram a ser escritos em latim e copta, mas esses não são relevantes para o período histórico de Tomé.

O Evangelho de Marcos, Lucas e João foram redigidos originalmente em grego, e os documentos relacionados com Tomé também são considerados originalmente gregos: o

Evangelho de Judas, o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria; o Evangelho de Filipe também é atestado como composição grega apesar de ter interesses em temas

siríacos43.

Podemos assim concluir que a existência de manuscritos gregos e a ausência de manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomé originalmente é um texto grego, sem originais siríacos ou aramaicos.

A Data de Tomé

41Cf. Idem, 91. 42 Cf. Idem, 92.

(39)

39 Situar o Evangelho de Tomé no espaço temporal tem-se revelado uma tarefa complexa para os académicos44. Os dados papirológicos reunidos até então tendem a ser datados até ao terceiro século. O testemunho histórico mais antigo está em Hipólito, onde “o Evangelho segundo Tomé é mencionado, e uma citação simples é fornecida”, em Refutatio 5.7.20-2145. O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta e cinco d.C.

Por estes elementos o Evangelho de Tomé situa-se entre duzentos a trezentos d.C. de acordo com vários autores46; o melhor espaço histórico para situar o Evangelho de

Tomé, encontra-se no tempo após centro e trinta e cinco d.C. e antes do ano duzentos

d.C.

Esta linha temporal estabelece-se devido às influências literárias presentes no texto e à confiança na não reconstrução do templo no lg. 71.

O papiro e a menção do Evangelho de Tomé em Hipólito fornecem-nos um terminus

ante quem de duzentos d.C início do terceiro século. As afinidades de certos elementos

de Tomé com outras obras literárias do segundo século são também pontos de segurança para atestarmos esta datação.

A Origem do Evangelho de Tomé

Iremos agora tratar da proveniência do Evangelho de Tomé.

A maioria dos académicos situa Tomé na Síria47 e uma minoria propõe o Egito. Faremos um breve comentário situando o evangelho na Síria, nomeadamente em Edessa.

Quatro argumentos são essenciais para situar o Evangelho de Tomé em Edessa: (1) a origem siríaca do nome ‘Judas Tomé’; (2) a receção siríaca de Tomé; (3) as afinidades de Tomé com as formas textuais siríacas (4) as afinidades de Tomé com a literatura siríaca como as Odes de Salomão e os Atos de Tomé.

O nome Judas Tomé

44Gathercole Simon (2014), 113.

45Citado em Gathercole Simon (2014), 113

46 Idem, 124.

(40)

40 Esta forma particular do nome indica uma proveniência siríaca, este nome duplo aparece nos Atos de Tomé e no Livro de Tomé.

Apesar da diferente natureza destas obras, estão relacionadas entre si de uma forma particular. Surgiram na Síria Oriental onde as tradições ligadas ao nome ‘Judas Tomé’ eram amadas e as obras literárias assim como as lendas eram associadas a este irmão gémeo de Jesus48.

Judas Tomé ou Judas o Dídimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siríaco Oriental. As versões siríacas do evangelho de João 14:22 leem “Tomé e Judas Tomé” em vez de “Judas não o Iscariotes”. Isso demonstra que os escribas sírios identificaram o outro Judas no Evangelho de João, ‘Judas o filho de Tiago’, em Lc 6:16 e At 1:13 com Tomé, que não tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradição cristã ocidental.

O nome também aparece em fontes de origem siríaca como a lenda de Abgar, a História

da Igreja de Eusébio e a doutrina de Addai 5.

Os Atos de Tomé também originários da Síria Oriental e provavelmente escritos em siríaco relatam a história do apóstolo Judas que é descrito como o ‘gémeo’ de Jesus49. O nome Tomé é a transliteração da palavra aramaica que significa ‘gémeo’. Não encontramos evidências que este nome era usado como nome próprio no grego, aramaico ou hebraico pré-cristão e há claras indicações que foi entendido como um apelido na tradição cristã siríaca50.

Podemos assim concluir que a tradição de Judas o irmão gémeo de Jesus terá nascido provavelmente na Síria.

A nível da receção siríaca de Tomé o uso de Tomé nos Atos de Tomé, nos Atos de João e no Evangelho de Filipe testificam que a influência de Tomé foi forte e até notável nalguma literatura maniqueísta.

Existem vários paralelismos entre Tomé e as versões siríacas dos evangelhos.

As afinidades de Tomé com a literatura siríaca

48 Cf. Uro R. (2003), 9. 49 Atos de Tomé 31 e 39.

Referências

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