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Tauromaquia: identidade cultural, enquadramento legal e desenvolvimento

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Academic year: 2021

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(1)Departamento de Economia Política. Tauromaquia Identidade Cultural, Enquadramento Legal e Desenvolvimento. Luís Filipe Marques Pereira. Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Desenvolvimento, Diversidades Locais e Desafios Mundiais – Análise e Gestão. Orientador: Doutor Luís Manuel Antunes Capucha, Professor Auxiliar, ISCTE-IUL. Setembro, 2010.

(2) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. In Memorian do meu Manuel e Graças às Marias da minha vida, Amélia, Teresa, Isabel, Francisca e Margarida.. Estou convencido de que, se todos forem educados inteligentemente, serão mais expansivos e não terão dificuldade em considerar a felicidade alheia como condição essencial para a felicidade própria. Bertrand Russel.

(3) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Agradecimentos Agradeço a todos os entrevistados que aceitaram colaborar no presente trabalho, e em particular aqueles com quem estabeleci diálogos para além das entrevistas e com quem desenvolvi o sentimento de amizade. Aos meus professores por tudo aquilo que me deram a conhecer e em especial ao Professor Eduardo Costa Dias e ao meu orientador Doutor Luís Capucha, os quais disseram presente nos momentos cruciais desta dissertação. Aos colegas e dirigentes da IGAC que me proporcionaram o acesso a alguma informação e que me atribuíram algum tempo para a elaboração deste trabalho. Agradeço também a Lúcia Gaspar, colega do ISCTE, pela ajuda em termos bibliográficos e ao Hugo Ferro pelos esclarecimentos e apoio logístico que me prestou. Aos amigos Álvaro Abreu, Paulo Abreu e Pedro Gaiolas que me deram ânimo para chegar ao fim desta etapa. Por fim é devido um agradecimento especial à minha família: o meu pai, eternamente presente, o meu tio Manuel Reis, a minha tia Helena Castilho, a minha irmã e meu sobrinho Martim, a minha mãe, as minhas filhas e em especial a minha mulher, que multiplicou as suas funções e que proporcionou o ambiente favorável à realização deste trabalho, suplantando as ausências decorrentes do trabalho de campo, do trabalho de pesquisa e todo o restante trabalho em torno da elaboração desta dissertação..

(4) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Resumo A tauromaquia, ou a arte de lidar com touros é um fenómeno com dezenas de milhares de anos de história. O percurso da tauromaquia foi moldado, a partir do século XIX, por leis convencionadas e escritas e por estruturas próprias para o seu funcionamento, mas também por aspectos socioculturais que muitas vezes as leis não conseguiram ou não visaram suprimir. Assim, nesta dissertação busca-se compreender como é que a tauromaquia formalmente organizada e regulamentada e as tauromaquias de índole popular chegaram até aos nossos dias. O estudo procura também responder a uma questão central para a compreensão da tauromaquia: como cultura com forte tradição, existe alguma relação visível entre a festa dos touros e as dinâmicas mais gerais de desenvolvimento das comunidades em que se insere? A pesquisa apoiou-se na metodologia da observação participante, na análise bibliográfica e documental e na realização de entrevistas a diversos participantes na “festa brava”. As análises efectuadas nos diferentes âmbitos de investigação permitiram compreender como é que esta manifestação cultural com raízes tradicionais, pela sua componente de diferenciação e distintividade, pode ser um elemento de desenvolvimento socioeconómico a ter em conta nas estratégias de afirmação da identidade, num quadro de relações com cultura global, e no desenvolvimento das regiões onde a festa e os espectáculos dos touros são mais intensamente vivenciados. Por fim, este trabalho de investigação pretende fornecer elementos úteis às instituições que tutelam e que intervêm no sector da tauromaquia para que possam ponderar melhor sobre as decisões que urgem neste sector das actividades culturais. Palavras-chave: Tauromaquia; Regulamentação; Cultura Popular; Identidade Cultural; Globalização; Desenvolvimento..

(5) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Abstract Tauromachy, or the art of dealing the bulls is a phenomenon with tens of thousands of years of history. Since the 19th century the path of tauromachy has been moulded by the laws, by the specific structures necessary to the activity, and also by sociocultural aspects that have often overcome the limitations imposed, or overlooked by law. As such, in this thesis an effort is made to understand how the formally organized and regulated tauromachy, and the diverse popular tauromachies, have reached our present days. This study tries to answer a core question to understand tauromachy: as culture with strong tradition, is there a clear relation between bullfight and the general dynamics of development of the communities where it belongs? The research was based on participant observation methodology, on documentary literature review and interviews of various participants on the tauromachic activities. The analysis done over different scopes of research, allowed us to understand how this cultural manifestation with traditional roots, by its components of differentiation and distinctiveness, can be an element of socioeconomic development to be taken into account in the strategies of identity definition, in the context of global culture, and in the development of the regions where tauromachy is more intensely and intrinsically experienced. To conclude, this research work intends to obtain elements that may be useful to the official entities that regulate and control the tauromachy sector, in order to support the urging decisions that these entities must take towards this sector of the cultural activities. Key-words:. Tauromachy;. Globalization; Development.. Regulations;. Popular. Culture;. Cultural. Identity;.

(6) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Lista de Imagens e Quadros no Corpo da Dissertação Imagem 1 – Campinos Lidando Gado no Ribatejo. Pag. 13. Fonte – http://www.marionkaplan.com Imagem 2 – Chega de Bois em Montalegre. Pag. 13. Fonte – http://www.cafeportugal.net Quadro 1 – IDAT e ISDR das NUT com IDAT “Forte”. Pag. 66. Quadro 2 – ISDR das NUT com IDAT “Sem Expressão”. Pag. 67. Quadro 3 – IDAT e IpC para os Concelhos das NUT com IDAT “Forte”. Pag. 68. Quadro 4 – IDAT e IpC para as NUT com IDAT “Forte”. Pag. 69. Quadro 5 – IpC para as NUT com IDAT “Sem Expressão”. Pag. 69.

(7) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Lista de Siglas e Abreviaturas ANGF – Associação Nacional de Grupos de Forcados APCTL – Associação Portuguesa de Criadores de Toiros de Lide CTT – Correios, Telégrafos e Telefones GFA – Grupo de Forcados Amadores GNR – Guarda Nacional Republicana IDAT – Índice de Densidade da Actividade Tauromáquica IGAC – Inspecção-Geral das Actividades Culturais INE – Instituto Nacional de Estatística IpC – Indicador per Capita ISCTE-IUL – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa-Instituto Universitário de Lisboa ISDR – Índice Sintético de Desenvolvimento Regional NUT – Nomenclatura de Unidade Territorial ONU – Organização das Nações Unidas PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PSP – Polícia de Segurança Pública PT – Praças de Touros RA – Região Autónoma RET – Regulamento do Espectáculo Tauromáquico SCM – Santa Casa da Misericórdia SNTP – Sindicato Nacional dos Toureiros Portugueses TAP – Transportes Aéreos Portugueses UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.

(8) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. ÍNDICE INTRODUÇÃO. 9. CAPÍTULO 1 - Tauromaquia, Cultura Popular e Espectáculo 1 - Origem e Percurso da Tauromaquia. 14. 2 - Representações de Cultura Popular. 18. 3 - Os Espectáculos em Praça. 30. 3.1 - Artistas Tauromáquicos. 33. 3.2 - Outros Actores. 36. 3.3 - Aficionados e Espectadores. 38. 3.4 - Praças de Touros. 40. CAPÍTULO 2 - Regulamentação e Controlo do Estado 1 - As Normas Legais. 44. 2 - Barrancos, a Excepção. 47. CAPÍTULO 3 - Rever Conceitos para Melhor Analisar a “Festa Brava” e a sua Relação com o Desenvolvimento 1 - Identidade Cultural Ancorada na Tauromaquia. 52. 2 - Globalização e os Desafios do Desenvolvimento Regional e Local. 57. 3 - A Tauromaquia não Gera Défices de Desenvolvimento. 65. CAPÍTULO 4 - Metodologia 1 - Observação da Acção e dos Actores. 71. 2 - À Conversa com Gente da “Festa Brava”. 73. CONCLUSÃO. 75. BIBLIOGRAFIA. 80. ANEXOS. 83.

(9) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. INTRODUÇÃO Terminada a parte lectiva de um curso de mestrado, existe a necessidade, para conclusão do mesmo, de optar por um tema de dissertação. A tauromaquia estimulou o desejo de poder estabelecer uma ponte entre a formação superior de base, a licenciatura em Antropologia, com a posterior formação do curso de mestrado em “Desenvolvimento”. Mais do que possibilitar esta ligação, o estudo sobre tauromaquia permite estabelecer uma relação positiva e biunívoca como trabalhador-estudante, entre o objecto de estudo e o campo onde exerço a profissão. Espero, assim, que esta dissertação me permita ter melhor desempenho profissional1 e que a sua futura disponibilização às instituições que regulam o sector tauromáquico possa servir para que estas tomem decisões mais assertivas em prol da tauromaquia enquanto espectáculo artístico e festa culturalmente enraizada. Não se ficaram por aqui as razões, que julgo serem já suficientes, da escolha. Vários outros factores contribuíram para ela. A relação de amizade com ex-forcados e outros aficionados2, a licenciatura numa área científica em que os hábitos, usos e costumes dos povos constituem o seu principal “objecto” de estudo, e as minhas raízes culturais que cruzam os relatos sobre as “chegas de bois”3 no concelho de Montalegre, com que meu pai, Transmontano, me encantava e as histórias sobre touros e os distintos pastores que são os campinos, com que a minha mãe, Ribatejana, me formou, foram factores que facilitaram e determinaram a escolha deste tema para dissertar. Este trabalho não é porém obra de um aficionado nem de um crítico tauromáquico, mas sim de um profissional formado em ciências sociais empenhado em abordar uma festa e um espectáculo artístico sem similar, derivado das centenárias festas de touros em que participavam nobreza e povo e ainda hoje fortemente incluído no “roteiro” das culturas populares do nosso país. Este trabalho não é, pois, trabalho de aficionado nem de quem a festa dos touros seja visto como um mal da sociedade, mas sim de quem vê na tauromaquia uma festa sui generis, presente nas raízes culturais dos portugueses e que carece de ser melhor conhecida do ponto de vista científico. 1. Inspector, da IGAC, organismo que licencia e fiscaliza as praças de touros e aspectos legais relacionados com a tauromaquia. 2 O termo é polissémico. Às vezes refere-se às pessoas que apreciam certos espectáculos, mas, a maior parte das vezes, ser aficionado implica para além de gostar, conhecer a “festa brava” com alguma profundidade. 3 Combate entre dois touros domesticados, da raça barrosã ou mirandesa, representando duas aldeias, que normalmente dura entre 5 a 20 minutos. O combate termina com a fuga de um deles, o que representa a vitória do seu opositor.. 9.

(10) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. A investigação tem como objecto geral a tauromaquia em Portugal, enquanto sistema de práticas associadas a um traço específico da identidade cultural, e o quadro legal que regula os espectáculos tauromáquicos, o qual releva para a sua valorização e que, concomitantemente, pode potenciar a preservação e valorização do património cultural. Esta investigação, através da abordagem de representações únicas, como é o caso dos grupos de forcados, da “capeia arraiana” na zona raiana da Beira Alta, do “touro à corda” nos Açores, da “vaca das cordas” em Ponte de Lima, das esperas de toiros4 na região do Ribatejo e Vale do Tejo e da “chega de bois” em Trás-os-Montes, pretende contribuir para a compreensão da tauromaquia como tradição cultural e avaliar o modo como ela interfere com indicadores genéricos de desenvolvimento, de modo a explorar a questão do seu potencial, enquanto prática tradicional, inibidor ou potenciador desse desenvolvimento. Expliquemos um pouco melhor esta última questão. Normalmente a relação entre a cultura e o desenvolvimento é abordada na óptica dos efeitos da escola e das qualificações que promove. Mas a relação da cultura com o desenvolvimento é muito mais ampla. “O desenvolvimento – mundial, nacional, ou local – pede, hoje, uma perspectivação cultural. Pede o desenvolvimento da cultura e a culturização da acção económica e política” (Silva, 1988: 71). A cultura fornece instrumentos através dos quais se conhece o mundo, se lhe confere sentido, se organiza a percepção das necessidades e se orienta a forma de as superar. Nesse sentido, a cultura é ao mesmo tempo parte e condicionante do desenvolvimento. A escola, enquanto agente cultural, afecta a distribuição desses instrumentos. Mas grande parte deles não é sequer objecto da vida escolar. Assim há que considerar a existência de diferentes tipos de culturas (cultivada/elitista, de massas e popular), mas também a existência de diferentes níveis (global, nacional, regional, local, de classes, de actividade profissional, etc.). Por vezes, os diferentes tipos e níveis aparecem sobrepostos, cruzados e confluentes “a diferença de nível entre os vários produtos não constitui a priori uma diferença de valor, mas uma diferença da relação fruitiva, na qual cada um de nós se coloca” (Eco, 1987: 58). Mas, esses diferentes tipos e níveis de cultura também se opõem no quadro de estruturas e processos de dominação cultural, articulados com mecanismos homólogos de dominação económica e social. No caso da cultura a dominação exerce-se na condição de que 4. Os signos toiro(s) e touro(s) serão utilizados em conformidade com o contexto onde se usa, tendo em conta que normalmente a palavra toiro é usada pelos aficionados. Cada signo é composto por significado e significante, ou seja, conceito e imagem acústica. A relação que ambos estabelecem dá-nos a significação do signo. Quando relacionamos um signo com outro, a significação de cada um atribui-lhe um valor comparativo. Esse valor é o campo semântico de cada signo e a sua significação é subordinada ao valor que decorre da relação entre signos (Saussure, 1999).. 10.

(11) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. não se afirme enquanto tal. Frequentemente até, as culturas eruditas apresentam-se sob a capa de manifestações de insubmissão e resistência ao poder. Mas não deixam por isso de se impor e de classificar as formas de cultura popular como menores, ou até anti-culturais. Há, por isso, neste trabalho também a vontade de revelar a injustiça implícita na desvalorização de uma prática cultural popular como a tauromaquia. Uma relação antiga do homem com o touro é um marcador identitário que está na base das actuais manifestações tauromáquicas, as quais em muitas localidades estão ligadas a rituais e festas do calendário local, nomeadamente religioso. Sabe-se que a inclusão das festas e espectáculos tauromáquicos nos roteiros culturais e turísticos depende de vários agentes e parceiros sociais. Por maior que seja o esforço de muitos a decisão final acaba, porém, por ser ditada pela lei e pela orientação política dos organismos da administração pública. Nada de novo ou especial, portanto. Assim, a par dos aspectos legais e sociais, onde releva o facto de compreender o que as diversas tauromaquias5 nos dizem sobre as comunidades em que se desenrolam e qual a relação dessas comunidades com a sociedade e o Estado, importa saber se os índices de desenvolvimento mantêm alguma correlação com a “densidade da tauromaquia”, aqui operacionalizada pelo número de recintos e de espectáculos tauromáquicos e seus actores em cada local. Como em épocas passadas, vivem-se nos nossos dias momentos de grande controvérsia, nomeadamente quanto à figura do touro e quanto aos espectáculos taurinos. Nestes momentos, as virtudes intrínsecas da tradição social conferem a capacidade de resistir às causas opressoras e permitem a manutenção de rituais e significados que atravessam várias gerações. Esta resistência é um contributo importante e fundamental para a diversidade cultural, a qual, tal como consta no primeiro artigo da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural da UNESCO6 é de primordial importância. Releva desse artigo a afirmação que a diversidade cultural é tão importante para a humanidade, quanto o é a 5. O termo tauromaquias será utilizado sempre que implique as diversas formas do homem se ligar ao touro. Ou seja, existe a tauromaquia enquanto espectáculo regulamentado pelo Estado (espectáculos em praças de touros), isto é, enquanto expressão institucionalizada de uma cultura popular, e as tauromaquias populares reguladas por comunidades mais ou menos delimitadas social e territorialmente (esperas de toiros, touradas à corda, capeias arraianas, vaca das cordas, chegas de bois, etc.). 6 Declaração adoptada pela 31.ª reunião da conferência geral da UNESCO, em Paris, a 2 de Novembro de 2001, que no artigo 1.º diz: “A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade manifesta-se na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o género humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o património comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras”.. 11.

(12) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. biodiversidade para a natureza. Como sabemos, a diversidade cultural será tanto maior quanto mais identidades culturais existirem. A tauromaquia é vista neste trabalho como uma realidade dual. Uma moeda com duas partes distintas, a saber: enquanto espectáculo oficialmente designado de natureza artística, de nível nacional e regulamentado pelo Estado; e enquanto manifestação de culturas populares locais, ou seja, num caso remetendo para um aspecto da identidade cultural nacional e no outro para identidades culturais locais cujas expressões rituais são reguladas pelas comunidades que a promovem e lhe conferem sentido. O primeiro sector está institucionalmente regulamentado, é organizado por empresas especializadas, nele intervêm várias associações corporativistas e o Estado e manifesta-se em espectáculos artísticos restringidos a espaços delimitados e licenciados, as praças de touros. O segundo sector consubstancia-se na organização de festas de populares que se realizam em espaço aberto, de livre assistência e onde participam as massas populares e estão dependentes do voluntariado e quotização dos grupos culturais e recreativos, ou das suas organizações representativas, incluindo as autarquias. O estudo a efectuar realiza-se num daqueles campos que pouco têm sido trabalhados em estudos de Antropologia e Sociologia. “Por exemplo, os meios de comunicação social são um tema favorito de investigação. Teatro, desporto, danças com carácter social, a ida ao bar, concertos, touradas e um vasto campo de outras actividades de lazer raramente têm sido tratadas como temas centrais de investigação” (Elias, 1992: 143/4). O texto citado tem já alguns anos, mas continua a reflectir as tendências actuais. Para este estudo os conceitos que mais relevam são os de cultura, valores e dominação cultural, identidade e património cultural, globalização e desenvolvimento. Em torno destas temáticas existem diferentes correntes e teorias, razão pela qual se decidiu fazer uma abordagem transversal e sucinta das mesmas. A investigação iniciou-se com a leitura de bibliografia especializada sobre tauromaquia, com o estudo da legislação do sector e com o registo etnográfico da actividade tauromáquica. Depois da fase inicial, analisaram-se documentos, realizaram-se as entrevistas e coligiu-se a informação. Por fim, com o apoio dos conhecimentos nas áreas da cultura e do desenvolvimento, obtidos durante os cursos de licenciatura e de mestrado deu-se forma a esta dissertação. Ao finalizar esta introdução, é importante referir uma das maiores dificuldades encontradas, que foi o conseguir definir o objecto principal deste trabalho, ou seja, o fenómeno da tauromaquia. Porém, chegou-se à seguinte formulação sintética: a tauromaquia é 12.

(13) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. uma obra humana que cruza várias lógicas da acção humana, como as que envolvem o rito, o jogo, o espectáculo, o combate, o desporto, a arte e o sagrado, e na qual participam transversalmente diversos grupos sociais. É uma obra que tem as raízes na festa enquanto momento de quebra do tempo linear da vida quotidiana que se desmultiplica por uma grande diversidade de formas e cujo cume se encontra nos grandes espectáculos regulamentados e presenciados por público pagante, as corridas de toiros. A Tauromaquia é também o campo onde muitos pintores, escultores, músicos e cineastas encontram tema e inspiração para criarem obras nos diferentes campos artísticos.. Imagem 1 – Campinos Lidando Gado no Ribatejo. Imagem 2 – Chega de Bois em Montalegre. 13.

(14) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Capítulo 1 – Tauromaquia, Cultura Popular e Espectáculo 1 - Origem e Percurso da Tauromaquia A tauromaquia, ou melhor, as tauromaquias, implicam a presença e a interacção de animais de espécies altamente diferenciadas, o Homo Sapiens e o Bos Taurus. A relação do homem com o touro remonta ao período Paleolítico Superior, entre cerca de 35.000 a 8.000 anos a.C., se tivermos em atenção a presença do antecessor do touro, o auroque, em várias representações rupestres, datadas desse período, como é o caso das encontradas no parque arqueológico do Vale do Côa. Parece claro, que a intervenção do touro nesta interacção está vinculada à ideia de reprodução, à opinião de que o touro tem o poder de transmitir a sua virtude fecundante aos humanos (Miranda, 1998). Com o aparecimento da escrita e com o processo de desenvolvimento da agricultura, dá-se a explosão do misticismo associado aos cultos agrícolas. O touro emerge como animal divino, símbolo de vigor e de poderes mágicos, como é o caso do Deus Baal na Fenícia e na Síria, de Min e Ápis na civilização egípcia, de Zeus na Grécia e do touro mitraico na Pérsia, Índia e do Império Romano (Eliade, 1997 e Espírito-Santo, 1994). “Um pecado colectivo do povo bíblico tinha de ser remido pela imolação de um touro” (Espírito-Santo, 1994: 16). Através das incursões de exércitos romanos o culto mitraico desenvolveu-se na Península Ibérica até cerca do ano de 155 d.C. Os exércitos romanos encheram a península de templos onde sacrificavam o touro mitraico e que se designavam por taurobólios (Teixeira, 1992). O ritual mitraico é um acto de identidade da nossa memória e o possível precursor das corridas de touros que durante a Idade Média se foram realizando até chegar aos dias de hoje. Como diz José Manuel Sobral (2006: 30) “para além das suas formas orais ou escritas, as práticas memoriais operam por outros modos como os rituais e as comemorações. Os rituais são uma via de aprendizagem e reprodução social tanto nas sociedades desprovidas de escrita, como nas sociedades em que a mesma constitui um referente memorial”. Também Ortega y Gasset notou que “sendo as corridas de touros de origem popular os andares, posturas, gestos do toureio são a projecção espectacular do reportório de movimentos que os homens da sua comarca executam na sua vida quotidiana” (Ortega y Gasset, 1968: 157). Segundo os historiadores, converteram-se datas e locais e os taurobólios deram origem a igrejas cristãs. Tudo leva a crer que o cristianismo absorveu outros aspectos do culto mitraico, como sendo o dia 25 de Dezembro, data de nascimento de Mitra e de Cristo e a 14.

(15) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Colina do Vaticano como morada dos seus representantes na terra, respectivamente, de Pater Patrum e do Papa. No entanto, seguramente, a relação com o touro na Península é muito mais antiga, como o atestam as pinturas rupestres ou a manada de Gerión que Hércules roubou cumprindo uma das suas tarefas. “Sabemos por Estrabão que na região abundavam os touros de Gerión, personagem localizada no Sul de Espanha, onde Hércules havia chegado em busca dos famosos touros” (Miranda, 1998: 24). Outros atributos associados ao touro-divindade mantêm-se, por vezes com um significado oposto. Assim acontece na doutrina católica o touro passa de antigo Deus a Diabo. Não apenas é deposto a favor do cordeiro, animal sagrado do cristianismo, mas também exorcizado pela Igreja. No Concílio de Toledo em 427 o Diabo é definido como “uma aparição negra monstruosa e gigantesca, com dois grandes cornos, um sexo imenso, pés bifurcados, orelhas de burro, com pêlos, garras, dentes terríveis, olhos ferozes e cheirando fortemente a enxofre” (Teixeira, 1992: 25). A relação do homem com o touro assumiu várias formas no tempo, tendo algumas ganho particular visibilidade. Para além das “virtudes” mágico-religiosas foi a bravura7 que valeu a não extinção dos touros como espécie, pois é um animal que ocupa muito espaço e que nada de significativo produz na actividade agropecuária. Por via do endeusamento, da diabolização e da bravura, o touro conserva uma forte carga simbólica relacionada com o potencial fecundador, a fertilidade, a força, o poder, de que já Baal, Ápis ou os belos animais lidados em Creta tinham sido investidos. As tauromaquias evoluíram e sofreram alterações quanto ao local e à forma como se foram realizando. A nossa literatura tem inúmeras referências a espectáculos taurinos entre o século XII e o século XVIII, muitos dos quais referem a iniciativa régia para celebrar pactos, bodas e entronizações (Almeida, 1951, Vol.1; Andrade, 1947; Marques, 1974). Contudo, só desde meados do século XVIII8 é que se verifica uma preocupação em acabar com alguma desordem que rodeava as corridas de touros. Essa preocupação, relativamente às tauromaquias populares, parece ainda hoje predominar na mente de quem não lhes conhece os códigos e as regras, isto é, em quem não participa das identidades culturais que as geram. A implementação de vários regulamentos alterou a tauromaquia e contribuiu para a estratégia de circunscrever os espectáculos a espaços construídos para esse fim, as praças de touros. Certo é. 7. “O comportamento a que chamamos bravura é composto por vários caracteres. A prontidão de investida, o humilhar, o recorrido, o repetir, a fijeza, a transmissão, a entrega dessa mesma investida, a duração, são alguns deles” (Grave, 2000: 36). 8 Este é o século em que historicamente se afirma o poder central dos Estados-Nação e em que as suas leis se começam a estender aos territórios nacionais, é também o século em que a festa de toiros é “metida na ordem”.. 15.

(16) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. que a partir do século XVIII os espectáculos começaram a obedecer a regulamentos e a uma lógica empresarial e profissional, que até aí era inexistente. Mas a história da tauromaquia também se faz com a história da sua proibição. Desde há séculos que alguns monarcas e papas tentaram a abolição das manifestações taurinas no mundo cristão. Em 1567 o Papa Pio V lança a eterna maldição sobre todos os que pratiquem ou consintam o toureio. Contudo, estas medidas encontraram em Espanha um opositor de peso. Filipe II foi colocado entre o seu fervor católico e o seu entusiasmo pela festa taurina e iludiu a ordem papal alegando que o seu povo tinha arreigado um gosto e tradição de picar touros. Assim, o soberano mostrou incapacidade de fazer cumprir as ordens papais e depois de algumas manobras políticas conseguiu que em 1573 o Papa Gregório XIII levantasse as penas impostas, mantendo-as somente para os religiosos. Seguiu-se o Papa Sixto V, que aplica as penas somente aos membros do clero. Por fim, Clemente VIII levanta a totalidade das penas sobre a totalidade dos homens (Almeida, 1951, Vol.1). Em 1724, em Espanha, Filipe V, influenciado pelas ideias da corte francesa, desfere um violento golpe na tauromaquia decretando a sua proibição, a qual foi revogada em 1725. Essa proibição, que só foi respeitada pelos nobres, ou seja, pelos toureiros a cavalo, leva a que os populares lutem pela manutenção da tauromaquia nas suas formas com raiz e expressão popular. Daí, de uma proibição, portanto, nasce a moderna corrida de toiros a pé. Em Portugal os ideais de “civilizar” o povo à força tiveram também alguma implantação. No reinado de D. Maria I, após esta ter sido aclamada em 1777 com três grandes corridas reais no Terreiro do Paço, começou-se a disciplinar a actividade. Ao ponto de neste reinado o Intendente de Polícia Pina Manique ter decretado, em 1790, penas para quem autorizasse a realização de espectáculos taurinos. Mas D. Miguel, o Rei Toureiro, que reinou num espaço de tempo intercalar entre os dois reinados de D. Maria I, para gáudio do povo, restaurou o hábito das touradas. Também no reinado de D. Maria II, por despacho do Ministro Passos Manuel, em 19 de Setembro de 1836, foram proibidas as corridas de touros. Após este decreto surgiu uma tal reacção discordante, por parte de populares e de fidalgos, que levou a que o decreto proibitivo fosse revogado em 30 de Junho de 1837. A partir da revogação em 1837 do decreto que proibia as touradas, a tourada à portuguesa começou a apresentar aspectos diferentes das corridas espanholas, e nelas raramente o touro encontrava a morte na arena. Em 6 de Abril de 1921, a Portaria n.º 2.700, determinou que fossem rigorosamente observadas as disposições do Decreto n.º 5.650, de 10 de Maio de 1919, cuja doutrina se opõe à realização de touradas com touros de morte. O Decreto n.º 15.355, de 14 de Abril de 1928, pretendendo pôr cobro a situações de abuso, 16.

(17) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. como foi o caso de uma corrida no Campo Pequeno em 1927, onde pela primeira vez se matou um touro, criminalizou especificamente, através de sanções pesadas, a realização de touradas com a morte do touro. O que significa que elas, apesar de tudo, se realizavam. Após a publicação do decreto de 1928, seguiu-se um período sem espectáculos com touros de morte. O interesse, por parte do público, pelas touradas sem touros de morte foi-se reduzindo. “Por melhor organizados que se apresentassem os programas, o público não acorre, como negando-se a presenciar o espectáculo sem aqueles aspectos que já lhe tinham sido dados a conhecer” (Almeida, 1951, Vol.2: 136/7). No ano de 1933 são novamente permitidas corridas integrais9, a título experimental. Apesar dos cuidados tidos na preparação das corridas, as coisas não correram bem, ao contrário do enorme êxito que aconteceu numa corrida com toiros Palha em Vila Franca de Xira (região para a qual se chegou a propor a criação de uma “zona franca” de toureio a pé com sacrifício taurino público), e os detractores da “festa brava” activaram uma campanha para a continuidade da proibição dos touros de morte, facto que ainda hoje se mantém. Contudo, em actos isolados foram-se matando touros nas arenas em Portugal. Estes episódios repetiram-se, por exemplo, no Campo Pequeno em 1951, 1959 e 1974, em Moita do Ribatejo, em 1985 e 2001 e em Vila Franca de Xira, em 1976 e 1977, acabando o último numa batalha campal entre a população e a polícia. A morte do touro na arena é o acto supremo nas corridas de toiros e corresponde a um aspecto fracturante já com séculos de existência na nossa sociedade. O gosto pelo combate com touros é, para muita gente, sintoma de força dos humanos. O perigo é uma escola de coragem e o horror do sangue um sinal de covardia. Para outros esse combate é uma forma dos homens terem prazer ao infringir sofrimento animal. Contudo, importa ter presente que a cidadania desperta com as primeiras disposições do direito consuetudinário e que gosto e o horror são direitos individuais. A lide de touros é um exemplo de que “a humanidade defronta-se constantemente com dois processos contraditórios: um tende a instaurar a unificação, enquanto o outro visa manter ou restabelecer a diversificação” (Lévi-Strauss, 2003: 80). Com a alternância dos bons e maus momentos, chegamos à contemporaneidade herdando diversas tauromaquias. Por um lado, a tauromaquia dos espectáculos formais. Por outro lado, as tauromaquias populares reguladas pela tradição e pela vontade popular, com uma forte marca de identidade das comunidades urbanas ou rurais.. 9. Corridas de toiros onde se realiza a sorte de varas e nas quais o toiro é morto na arena.. 17.

(18) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. 2 – Representações de Cultura Popular Para prosseguir torna-se mister tentar chegar a uma definição para a expressão “cultura”. Polissémica como é, convém que se torne claro do que estamos a falar quando falamos de cultura. Assim, adopta-se a proposta de António José Saraiva (2003: 11): “Em sentido mais restrito, entende-se por cultura todo o conjunto de actividades lúdicas ou utilitárias, intelectuais e afectivas que caracterizam especificamente um determinado povo”. Tendo em conta as inúmeras definições e construções que a palavra cultura convoca, importa expressar que neste ponto se irá tratar de cultura do tipo popular e de nível nacional. De nível nacional, porque a tauromaquia é uma festa fortemente enraizada em oito países de dois continentes, com culturas e certamente com formas diferenciadas de viver a festa dos touros. Basta olhar para a vizinha Espanha, para se concluir que, para além do intercâmbio de alguns artistas, quase todos os outros aspectos são diferentes. Quanto ao tipo de cultura escolhe-se a designação de popular para a diferenciar da cultura erudita, ou grande cultura e também da cultura produzida em série, ou seja, a cultura de massas (Lima dos Santos, 1988). Ao falar em cultura popular há que ter cuidado, para não sermos tentados a homogeneizar maneiras de ser e de agir diferentes. “Falando em cultura popular, falaremos, pois, desses universos de sentido, padrões de conduta, práticas e obras propriamente culturais, intrinsecamente associados à condição e à acção da multiplicidade de actores, individuais e grupais, presentes num certo espaço-tempo social” (Silva, 1994: 119). A cultura popular reproduz a arte de ser e fazer de um povo, transmitida informalmente e que constitui uma forma de criação alternativa e de resistência à dominação da grande cultura. A partilha do gosto pelas tauromaquias é um factor de identidade cultural de grupos compostos por indivíduos com os mais díspares estatutos sociais, que não se resignam a ver as suas tradições agredidas por profetas de um progresso mal entendido, os quais devem ponderar nas seguintes palavras “recusamos as visões elitistas da cultura, que nela não englobam senão as obras do espírito e que afirmam o modelo dominante da cultura como o único existente, não sendo todos os outros modelos culturais senão desvios ou imitações menores da cidadania cultural, ou mesmo aberrações culturais” (Capucha, 1990: 140). No campo do simbólico a cultura popular é dominada mas enfrenta esse domínio “de poder a poder” (idem, 1993). Acredita-se que a pouca divulgação dada a festas populares com eventos tauromáquicos não seja uma estratégia concertada das entidades que controlam a 18.

(19) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. comunicação social, no sentido de desarraigar a tauromaquia da cultura portuguesa. A não ser que, como em Barrancos, a cultura popular desafie explicitamente a dominação estatal. Nisso, onde o povo vê a defesa do seu património e identidade, já os meios de comunicação social podem ver o espectáculo que os atrai e ao qual podem dar o máximo relevo. Mas, a realidade em geral mostra-nos que por parte de algumas elites pseudo-intelectuais subsiste a tentativa de produção de identidades negativas em torno dos espectadores e aficionados da “festa brava”, na presunção de os dissuadir da defesa da sua especificidade e os levar a desprezar a sua identidade, de acordo com a teoria de que “excluídos (por razões objectivas e subjectivas) dos processos mais dinâmicos e mobilizadores de recursos intelectuais, tais grupos acabam por interiorizar inibições e sentimentos de vergonha cultural que vão sobrepor-se às suas capacidades potenciais de criação de símbolos” (Pinto, 1991: 228). Constatando que desde a última década do século passado ocorreu uma migração em grande escala de jovens casais de Lisboa para núcleos habitacionais como Alcochete, Azambuja, Vila Franca de Xira, Moita do Ribatejo, Benavente e Montijo, e que este período coincide com o desenvolvimento de estratégias e acções reactivas contra ameaças à diversidade cultural, é de antever que o número de aficionados nas camadas jovens possa crescer significativamente em consequência do contacto diário e da valorização da cultura popular desses locais, a qual se mantém impregnada de valores tauromáquicos. Contudo, deve-se ter em conta que as identidades sociais se formam através de processos ambivalentes de inclusão e/ou exclusão.. Estará em causa, antes de mais, afirmar que a produção das identidades sociais implica a imbricação de dois processos: o processo pelo qual os actores sociais se integram em conjuntos mais vastos, de pertença ou de referência com eles se fundindo de modo tendencial (processo de identificação); e o processo através do qual os agentes tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, fixando em relação a outros distâncias e fronteiras mais ou menos rígidas (processo de identização) (ibidem: 218).. Das diversas manifestações populares, ou artes lúdicas com a participação do Bos Taurus, seleccionaram-se algumas que se julgam mais representativas. Para além do “touro à corda” nos Açores, da “chega de bois” em terras do Barroso e Montemuro, da “vaca das cordas” em Ponte do Lima, da “capeia arraiana” no concelho de Sabugal e das “esperas de toiros” na zona do Ribatejo, Lisboa e Vale do Tejo, que seguidamente se caracterizam, há que referir ainda a “vaca de fogo” do Douro Litoral; a “tourada à vara larga” da encosta Leste da. 19.

(20) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Serra de Estrela e do Distrito de Portalegre; o “sacrifício taurino” da margem esquerda do Guadiana; a “garraiada” em toda a região a Norte de Lisboa até ao Mondego (Capucha, 1995).. - “Touro à Corda” – Comecemos pelos Açores, mais precisamente pela Ilha Terceira, onde a festa do touro à corda atinge a sua magnificência. O touro à corda representa a maior atracção e a mais antiga tradição dos festejos populares. Há relatos históricos que descrevem que já em 1622 a Câmara de Angra do Heroísmo organizou touradas à corda para celebrar a canonização de São Francisco Xavier e Santo Inácio de Loiola. O touro é um símbolo do brasão de armas do arquipélago e o touro à corda é uma especificidade cultural da região, na qual grande parte das populações das Ilhas Terceira, Santa Maria, São Jorge e Graciosa se revêem. Segundo a hipótese aventada por António Morais (1992), o toureio à corda teve a sua origem no Norte de África, donde foi introduzido na Península Ibérica pelos invasores muçulmanos e posteriormente levado para os Açores, pelos navegadores portugueses no tempo do Infante D. Henrique. Também segundo o mesmo autor, esta forma de tourear manifesta-se no Penedo-Sintra e também em diversíssimas localidades de Espanha e França. Quer por via das comunidades de emigrantes, quer pelo trabalho de captação e divulgação, feito por meios audiovisuais, o touro à corda é uma imagem representativa da Ilha Terceira no exterior. As cerca de duzentas e cinquenta a trezentas touradas à corda que se realizam anualmente nos Açores, são, a par das Sanjoaninas10, o maior tributo à vida e à alegria e também um cartaz turístico que constitui uma importante fonte de receita de algumas instituições terceirenses. Em artigo publicado no Diário Insular de 8 de Outubro de 2009, dizia o professor Tomaz Dentinho, que nesse ano, as touradas à corda geraram receitas superiores a um milhão de euros.. Na Ilha Terceira as toiradas à corda são coisas sérias. São, na verdade, o “facto social total” da sociedade terceirense. Pelos toiros se é da Terceira, com os toiros se cresce, a uma ganadaria se adere como símbolo de pertença, nos toiros se arranja namoro e casamento, nos toiros as pessoas se divertem. Tudo parece passar pelos toiros e por isso tudo pára para deixá-los correr (Capucha, 1995: 39).. 10. Festas de tradição popular que se realizam na cidade de Angra do Heroísmo, na ilha açoriana da Terceira, cuja duração é de cerca de dez dias, em torno do dia 24 de Junho, e onde no meio de muita alegria se realizam jogos desportivos, espectáculos etnográficos e musicais, mostras de arte e de gastronomia e onde se realizam corridas de touros e também muitas touradas à corda.. 20.

(21) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. A tourada à corda, para além de expressar uma forma especial de entender os touros, representa uma actividade económica geradora de emprego e de riqueza, pois, dinamiza a criação de gado e atrai muita gente que dinamiza fortemente a actividade da indústria hoteleira e do comércio em geral. Conforme citação anterior, uma tourada à corda é uma festa para a qual se convidam os amigos, onde se troca informação e onde se fazem amizades e iniciam namoros. As touradas à corda têm regulamentação própria e dividem-se em touradas tradicionais, não tradicionais e particulares. As tradicionais estão espaço e temporalmente previstas no regulamento, o qual prevê a realização de cento e cinquenta e oito que são organizadas no âmbito das festividades das freguesias, por entidades sem fins lucrativos, sendo que no mesmo dia não se pode realizar mais de que uma tourada na mesma freguesia ou em freguesias contíguas. Nestes espectáculos, que se realizam entre 1 de Maio e 15 de Outubro, são corridos quatro touros com três ou mais anos, num período de tempo que varia entre os quinze e trinta minutos e numa extensão de terreno que não pode ultrapassar os quinhentos metros. O touro é embolado, preso por uma corda com cerca de noventa metros e conduzido por sete pastores uniformizados com trajes tradicionais. Antigamente os touros eram conduzidos até ao lugar dos festejos pelos próprios meios. Hoje vão em transporte apropriado e são acompanhados por grandes cortejos que à chegada às freguesias em festa são recebidos com foguetes. Muito do prestígio social das freguesias é jogado nas touradas à corda e por isso elas disputam os touros mais afamados das diversas ganadarias, elevando o preço dos animais mais afamados. Ao invés do que se passa nas touradas em praça, onde, salvo nas variedades taurinas, o touro é lidado uma única vez, nas touradas à corda o touro, se agrada, ganha fama, é requisitado para mais corridas e a sua cotação torna-se maior. O sucesso da tourada à corda depende muito dos touros escolhidos, mas também do hábil manejo da corda por parte dos pastores e do modo como os “capinhas”11 os movimentam, realçando-lhes as qualidades. Como se disse, existem afinidades entre cada açoriano, e logo, em cada “capinha”, e um dos criadores de touros de touradas à corda12 existentes na ilha, pelos que os pastores colaboram com estes para fazer realçar as qualidades dos animais dos seus patrões e, por arrastamento, a qualidade da tourada. Todos os acontecimentos envoltos nas touradas à corda são motivo para longas conversas e discussões durante a época do defeso, de 16 de Outubro a 30 de Abril.. 11. Moços que toureiam e recortam os touros usando chapéus-de-chuva e muitas vezes cobertores da TAP. Existe a Associação Regional de Criadores de Touros de Touradas à Corda que tem 15 associados, dos quais 10 da Ilha Terceira, 4 da Ilha de São Jorge e 1 da Ilha do Pico. 12. 21.

(22) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. - “Chega de Bois”13 – No território continental, começando a descrição pelo Norte do país, destaca-se a chega de bois. Trata-se de combates entre animais da espécie Bos Taurus, que não são porém da raça touros de lide. Apesar de frequentes na zona da serra de Montemuro, têm a sua maior incidência em Trás-os-Montes, concretamente nos concelhos de Montalegre e Boticas, com animais de raça barrosã e em Bragança, Macedo de Cavaleiros e Vinhais, com animais de raça mirandesa. “Nas regiões comunitárias o touro costuma pertencer à comunidade e, às vezes, os habitantes de aldeias vizinhas costumam deitar os touros à luta, o que pode ocasionar grandes prejuízos, mas também é motivo de grande festa e alegria para aqueles cujo touro ficou vitorioso. Na serra de Montemuro, fazem lutas com vacas, que também são muito apreciadas” (Dias, 1990, Vol.2: 306). Postos frente a frente, os dois touros são chegados, ou seja, são acirrados ao combate pelos homens que os acompanham e pela assistência. “A importância do boi nesta área transparece ainda em certas manifestações sociais e simbólicas características da sua cultura, designadamente nas «chegas» de touros que constituem o espectáculo favorito do barrosão e são um acto pleno de significação” (Oliveira, 1995: 254). Estas representações assumiram tão grande relevância junto das populações locais que causaram que alguns municípios e associações de desenvolvimento local começassem a organizar campeonatos e demonstrações de “chegas”. Os combates têm manifestado uma grande adesão de público local e de turistas, que se deslocam até à região para assistir a estas representações culturais de grande valor etnográfico.. No concelho de Montalegre, no Norte de Portugal fronteira (“raia”) com a Galiza, as chegas ou lutas de bois são um património local vivo, que representa a rivalidade entre aldeias. No concelho galego vizinho de Calvos de Randín, as lutas de bois são proibidas pela lei autonómica da Comunidade Autónoma da Galiza, mas a tradição teima em manter-se e as pessoas solicitam os bois aos vizinhos portugueses. A Junta da Galiza (Governo Autonômico) olha para o outro lado e alguns ambientalistas da associação Adega – a maior associação ambientalista da Galiza – protestaram e denunciaram o caso porque achavam condenável esta herança cultural, por maltrato de animais. Alguns associados de Adega visitaram e admiraram comigo a luta de bois em Montalegre, considerando-a algo moralmente aceitável (Pérez, 2009: 165). 13. Nestas manifestações não se trata de tauromaquia em sentido restrito, porque não há intervenção directa de combate entre homens e touros. Trata-se de uma relação entre homens e/ou aldeias, mediada pelos touros, que lutam entre si.. 22.

(23) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Na realidade, apesar da luta se travar entre dois touros, esse combate está imbricado no sistema de relações sociais entre aldeias. Até ao século passado essa luta reflectia a competição entre duas comunidades, as quais se faziam representar e apostavam a reputação no seu touro. “O touro das «chegas» identifica-se pois, de um modo pouco menos que expresso, à aldeia a que pertence – o touro do povo é o próprio povo – e a «chega» é uma luta entre as duas aldeias, para honra ou vergonha de uma e da outra” (Oliveira, 1995: 254). Em muitas aldeias o “touro do povo” tinha pastagens próprias denominadas “lamas do touro”, que eram pertença da comunidade e estábulo privativo, a “corte do touro”, que era mantido pela comunidade. O “touro do povo” para além de garantir a honra da sua aldeia, tem também como função assegurar a qualidade das raças barrosã e mirandesa. Mas, “a solidariedade dentro da comunidade é, às vezes, acompanhada de hostilidade para com as comunidades vizinhas” (Dias, 1990, Vol.1: 174). Actualmente, atendendo à alteração de hábitos de vida em comunidade14, estes combates têm um cariz mais individual e o comportamento dos bois tem muito maior relevância para o prestígio social do seu dono, do que para o contentamento da localidade donde provêm. Assim, o animal que vence o combate, em vez de garantir primordialmente a honra da aldeia, confere ao seu dono o prestígio social e um mercado. O mercado e a iniciativa individual estão a substituir o comunitarismo tradicional. A vida em sociedade e a vida em comunidade são duas expressões utilizadas para descrever dois tipos de relacionamento entre as pessoas, a segunda implica a co-presença, o conhecimento, a proximidade, a primeira chama a atenção para a importância dos laços secundários. Tal como no passado, apesar das mudanças ocorridas nas condições de vida e na economia camponesa, face à penetração do capitalismo e das relações de mercado, aqui simbolizados pela nova figura do “dono dos bois”, os hábitos comunitários coexistem com a iniciativa privada, embora a relação de forças se venha invertendo e seja cada vez mais favorável iniciativa privada. A região de Trás-os-Montes é caracterizada por fortes traços de vida comunitária, ao invés da região das ganadarias de gado bravo que é marcada por uma diferenciação e forte contraste entre ricos e pobres. A criação dos touros das chegas não se assemelha à criação de touros de lide e o estatuto social dos seus criadores é muito diferente do estatuto dos. 14. “Os membros de uma comunidade podem constituir um grupo mais ou menos numeroso e estão ligados por laços de parentesco, convívio e interesses comuns, o que lhes dá sentimento de participarem de um destino comum” (Dias, 1990, Vol.1: 101).. 23.

(24) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. latifundiários proprietários das ganadarias de touros bravos, maioritariamente situadas no Ribatejo e Alentejo. Esta diferenciação advém de condicionalismos naturais, ou seja, das diferentes áreas e tipos de terras implicadas na criação das diferentes raças, mas também do diferente tipo de crescimento demográfico que provocou disparidades entre famílias, nomeadamente quanto à propriedade de terras. Estas questões estimulam diferentes tipos de organização social nos grupos das “comunidades do Norte e do Sul” (Godelier, 1986).. - “Vaca das Cordas” – Ainda a Norte, existe uma outra representação cultural onde o actor principal é um animal da espécie Bos Taurus. A festa, conhecida como vaca das cordas, realiza-se há vários séculos em Ponte de Lima, durante a tarde que antecede o dia de “Corpo de Deus”. A mais antiga referência a esta tradição data de 1646. Um código de posturas obrigava os moleiros do concelho a conduzir pelas ruas uma vaca brava presa por cordas. É o que resulta da informação recolhida, nomeadamente, da leitura do artigo “A Corrida da Vaca das Cordas”, da autoria de Miguel Reys Lemos (1998: 13):. Por um uso antiquíssimo, que se perde na escuridão dos séculos e que nunca foi interrompido até 1884, fez-se sempre, anualmente, em Ponte do Lima, a corrida da vaca das cordas, na tarde da véspera de Corpus-Christi. De tal função foram constantemente ministros os moleiros do concelho, que tinham a obrigação de pegarem às cordas e executarem a corrida, sob a condenação de 200 reis pagos na Cadeia por aquele que não comparecesse ou furtasse a tal mister, segundo o Código das posturas Municipais de 1646, cap.56; e de 480 reis, segundo o de 1720, cap.55. Há poucos anos, porém, a esta parte aquelas funções obrigadas passaram a ser exercidas por homens de qualquer ofício, a quem o Senado da Câmara pagava.. O programa da festa consiste em largar um animal, um touro de grande envergadura, que vai preso por três cordas e fazer com que ele, depois de preso nas barras de ferro de uma das janelas frontais da Igreja Matriz e aí regado com vinho, dê três voltas ao exterior do edifício, depois de cortada uma das cordas. De seguida o animal é conduzido, por entre trambolhões, correrias e investidas, até aos areais do rio Lima, onde se realiza a “tourada”. Por fim, ao por do sol, o animal recolhe ao curral, onde tradicionalmente é morto e vendido para refeições em família. Quantas mais investidas o animal fizer e quanto maior forem os danos provocados nos “corredores”, mais apreciada e mais relembrada será a festa.. 24.

(25) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. A vaca das cordas é hoje uma manifestação de pura diversão muito querida pelos limarenses e por milhares de pessoas que de toda a região acorrem a Ponte de Lima no dia da festa. “O mais importante, porém, para os participantes, não parecem ser as origens, mas a participação numa tradição distintiva. Sublinho a expressão distintiva. A vaca das cordas atrai milhares de forasteiros, tantos como, em Portugal, não se reúnem em mais lugar nenhum para ver um toiro” (Capucha, 1995: 38). - “Capeia Arraiana” – A capeia arraiana, ou corrida do forcão15, é uma manifestação cultural cujas raízes se perdem no tempo. Relatos históricos relacionam a capeia com as milícias civis e a necessidade das populações se defenderem das frequentes incursões e invasões inimigas. “Há nas aldeias raianas em estudo uma apropriação generalizada do principal símbolo da cultura raiana: o forcão. Trata-se do mais importante elemento material da cultura raiana (…). É através do forcão que os raianos vão reproduzindo a sua identidade e vão exportando a forma como querem ser vistos pelos outros” (Amante, 2006: 88). As capeias arraianas realizam-se normalmente no largo principal das aldeias transformado em praça de touros e constituem o ponto alto das festas anuais no concelho do Sabugal. Segundo Fernando Teixeira (1994: 131) “o Forcão apenas existe numa estreita faixa de terreno limitada ao norte pelo rio Côa, ao sul pela serra da Malcata, a ocidente pela serra da Estrela e a oriente pela fronteira de Espanha”. Embora se efectuem capeias noutras datas, é no mês de Agosto, aproveitando a presença de muitos emigrantes, que se realizam as capeias com maior fulgor. A tradição reza que as capeias devem ser organizadas pelos grupos de moços que atingem a idade de casar. De entre os elementos dos grupos organizadores destacam-se os “mordomos”, que para além de outras missões têm que “pegar ao forcão”, no local mais arriscado, à galha. “Os dois Mordomos principais entram a cavalo no recinto precedidos de um tamborileiro e vão pedir a praça dirigindo-se para esse efeito à pessoa considerada mais importante que esteja a assistir à festa” (ibidem: 134). Actualmente, aos dois mordomos, juntam-se duas moças que em cada ano se voluntariam e que expressam a vontade de seus pais se verem representados e reconhecidos pela comunidade (Capucha, 1995).. 15. O forcão é um instrumento típico da região com um peso de cerca de 300Kg, construído por troncos de carvalho bifurcados à frente e reforçados por transversais (vide anexo, Imagem 3). Na parte da frente, que deve estar sempre virada para o touro, estão duas galhas principais e cinco ou seis galhas secundárias. O forcão é empunhado por cerca de trinta rapazes orientados por um timoneiro, o “rabichador” que se coloca no vértice traseiro. Existem documentos que provam a existência de armas de guerra com a mesma forma utilizadas na Idade Média (Teixeira, 1994).. 25.

(26) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Existem documentos históricos que vão no sentido de que “por costume antigo, os touros vêm de Espanha, das aldeias vizinhas, cedidos gratuitamente em contrapartida da renúncia, por parte dos lavradores portugueses proprietários de terras na raia, a quaisquer reclamações contra os estragos que os gados espanhóis ali fazem nas suas searas” (Oliveira, 1995: 264). Mas, a mera reparação de danos não daria per si origem a uma manifestação tão complexa e simbólica. Esta manifestação parece ter muito a ver com a evocação de um passado belicoso e com um ritual de passagem dos jovens solteiros à idade adulta, aquela que os qualifica para a defesa da comunidade. Mais verosímil é o facto dos touros terem vindo sempre de Espanha, mas o preço dos curros castelhanos e as restrições de ordem sanitária fazem com que em alguns casos os touros sejam portugueses. Nesta situação é simulada a sua largada a partir da zona raiana. Em regra os touros eram alugados pelas comissões de festas, mas por vezes, como nos contou o entrevistado Carreirinha Ramos, organizador das apresentações da capeia arraiana em Lisboa, os rapazes das aldeias “afoliavam”16 os touros. Estas brincadeiras tinham por vezes um final infeliz para os autores que eram alvo dos carabineiros espanhóis. A capeia arraiana divide-se em duas partes distintas. Pela manhã inúmeros cavaleiros, seguidos de perto por pessoas a pé ou em veículos de todo o tipo, conduzem os animais por montes e vales para os encerrarem em curros improvisados no largo principal das aldeias. Ainda pela manhã é lidado “o touro da prova”, o qual serve para aquilatar da bravura das reses. A segunda parte acontece da parte da tarde. “Logo após a refeição do meio-dia, as pessoas começam a afluir à praça e as bancadas, janelas varandas, telhados e carros, vão-se enchendo” (ibidem: 265). Em regra, por volta das cinco da tarde, inicia-se a capeia. Os mordomos com um acompanhamento que varia de aldeia para aldeia começam por pedir a praça. Como já se referiu “pedir a praça é requerer autorização para a capeia, a uma autoridade presente entre os espectadores, ou, mais habitualmente, a uma pessoa natural da terra que, pelo seu prestígio ou posição social, merece essa distinção” (Tavares, 1985: 35). O “presidente” do espectáculo avisa os mordomos para que usem o forcão, a arma de defesa dos defensores da aldeia invadida, aos quais cabe dominar o inimigo, o touro, que vindo de Espanha representa simbolicamente as guerras e escaramuças com os vizinhos castelhanos (mas também franceses), que tantas vezes investiram por terras de Riba-Côa (Teixeira, 1994).. 16. Afoliar os touros significa retirá-los temporariamente do controlo do seu dono, ou seja, trazê-los de Espanha para as terras de Riba-Côa, para aí se poderem divertir com eles e a seguir devolvê-los à procedência.. 26.

(27) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. Os touros são esperados, um a um, para demonstração da coragem e da arte de “pegar ao forcão”. A luta dura até o touro desistir, altura em que os rapazes largam o forcão e correm o touro até lhe saltarem para cima. Nos casos em que o grupo dos solteiros não têm a capacidade para enfrentar o animal, o grupo dos casados salta a “pegar ao forcão”. Depois de todos lidados os touros são desencerrados e conduzidos para donde partiram, apenas acompanhados pelos vaqueiros. Em 1986 foi criado o concurso com o nome “Ó Forcão Rapazes”, que se realiza intercaladamente nas praça de touros do concelho do Sabugal, Aldeia da Ponte e mais recentemente Soito, que juntamente com a rejuvenescida praça de touros de Nave de Haver, no concelho de Almeida, formam o conjunto de três praças existentes no distrito da Guarda. O festival começou por pôr a concurso sete aldeias do concelho, mas actualmente já são nove as aldeias que se fazem representar numa lide com o limite de quinze minutos. Se as capeias arraianas realizadas nas praças das aldeias e de livre acesso ao público configuram espectáculos informais de cariz popular sem sujeição ao Regulamento do Espectáculo Tauromáquico (RET), o mesmo já não se poderá afirmar quando está em causa o festival “Ó Forcão Rapazes”. Este festival que implica a lide de rezes bravas, realiza-se numa praça de touros licenciada como recinto de espectáculos de natureza artística e está restringido ao público que paga bilhete. Por tudo isto, e apesar de pessoalmente achar caricato, o festival deveria enquadrar-se no RET como espectáculo de “variedades taurinas”. Contudo, através de decisão adequada da Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), a organização do espectáculo tem sido dispensada de alguns formalismos.. - “Esperas de Toiros” – O uso do termo toiros é aqui relevante. O facto da grafia ser diferente de “touro”, por si só, constitui um traço identitário de pertença a comunidades específicas. Para além das palavras toiro e touro nos localizarem que estamos mais a Norte ou a Sul do território, e sem qualquer rigor científico, pareceu-nos (a partir das entrevistas e da observação no terreno), que o significado de ambos também é diferente. O conceito de toiro para um indivíduo com educação relacionada com o campo da tauromaquia é significativamente diferente do conceito de touro para outro indivíduo com pouca cultura no campo tauromáquico. Os toiros eram e são criados em grandes áreas de produção ganadera no campo. Para se realizarem os espectáculos tauromáquicos tão apreciados pelos habitantes das cidades tinha que se fazer chegar um dos protagonistas, o toiro, até à presença de outros protagonistas, o toureiro e o público. Como os espectáculos em praça são anteriores aos automóveis e aos 27.

(28) TAUROMAQUIA – IDENTIDADE CULTURAL, ENQUADRAMENTO LEGAL e DESENVOLVIMENTO. comboios, os toiros tinham que percorrer o trajecto do campo até à cidade passando perto de várias localidades onde as pessoas os esperavam. Daí o termo “esperas de toiros”, durante as quais os presentes procuravam, contra o esforço dos campinos e lavradores responsáveis pela condução do gado, fazer com que algum toiro abandonasse a manada, criando assim uma situação mais ou menos caótica nas localidades. Hoje, os toiros são transportados em veículos apropriados para o efeito, mas muitas localidades, de forma mais organizada, mantêm o hábito de largar os toiros nas ruas, agora devidamente vedadas por “tronqueiras”. Assim continua-se a poder desfrutar deste divertimento popular que resiste e não transige quanto aos seus modos de expressão. As esperas de toiros em Lisboa eram as mais conhecidas, porque à sua volta se construiu todo um imaginário do universo social lisboeta, boémio e fadista e nelas participavam muitos populares e fidalgos. “As esperas de touros constituem um elemento fulcral da vida lúdica da cidade de Lisboa desde praticamente o século XIV” (Carvalho, 1994: 42). Esses acontecimentos, que tiveram o seu maior impacto nas diversas classes sociais da Lisboa do XIX, tornavam-se por vezes tumultuosos e foram gradualmente disciplinados, até que nos finais desse século o Governador Civil de Lisboa proibiu que os indivíduos estranhos à condução do gado o acompanhassem a partir de Frielas até à entrada em praça. “Tirado o acompanhamento popular, que tanta alegria dava às entradas, as esperas de toiros morriam, perdendo o espectáculo tauromáquico o seu elemento de melhor propaganda. Ficava a recordação dessas noites alegres de boémia fidalga, em que não havia repouso porque a alegria era sincera e espontânea” (Almeida, 1951, Vol.1: 160). Como se concluiu, tanto para Jayme Duarte de Almeida como para muitos entrevistados durante a elaboração deste trabalho, o contacto visual com o toiro e com as manifestações que ele proporciona quando invade os núcleos habitacionais, é contagiante e arrebata a paixão das multidões. É também possível que a tauromaquia “recrute” muitos apreciadores e aficionados através das tauromaquias populares. Corroborando esta ideia encontramos um artigo de opinião que nos diz que no Forte da Casa, freguesia do Concelho de Vila Franca de Xira resultante da recente expansão urbana para áreas até há três décadas sem qualquer núcleo habitacional, “as largadas, tendo a vantagem do livre acesso, tornaram-se rapidamente populares na freguesia e foram o melhor meio de promover o gosto pelo toiro e pela festa em que é protagonista” (Arenas do Tejo, 2004, n.º1: 30). Ainda hoje as esperas de toiros são o ponto alto das festas de muitas das localidades em toda a Região de Lisboa e Vale do Tejo e do Ribatejo. Existem várias festas onde as largadas de toiros são a principal atracção. Correndo o risco de destacar umas em detrimento 28.

Referências

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