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O Amor Segundo Clarice Lispector

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Academic year: 2020

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Resumo: o presente artigo é uma leitura do conto Tentação,

de Clarice Lispector, à luz da teoria de Platão exposta em ‘O banque-te’. Serão abordados, também, como conseqüência desse enfoque sobre o amor, a questão da identidade, o tema do olhar, tão revelador do sentido espelhístico que permeia todo o conto e ainda uma son-dagem sobre a idéia de tentação, que justificaria o título do texto. Ao longo de uma leitura detida do conto serão feitas relações com ou-tras obras e textos representativos de Clarice Lispector.

Palavras-chave: amor, Platão, Clarice Lispector, identidade,

tentação

amor, mesmo, é a espécie rara de se achar” (1994, p. 798), assim reflete uma das personagens de Guimarães Rosa, no conto A

Estó-Célia Sebastiana Silva

O AMOR SEGUNDO CLARICE LISPECTOR

“O

ria de Lélio e Lina, em No Urubuquaquá, no Pinhém. Se, de fato, o amor não é a “espécie rara” de um ser se achar num outro ser, ele é, pelo menos, a pro-cura, a busca, constante e irremediável, desse encontro. Isso é o que confirma, também, o mito platônico do amor, expresso no discurso de Aristófanes, em

O banquete. Interessa aqui, de modo particular, uma verificação de como o

amor, visto sob essa perspectiva de busca, de procura de si mesmo, expressa pelo mito platônico, instala-se na ficção de Clarice Lispector e, mais especi-ficamente, no conto Tentação, de A legião estrangeira.

O que se observa, via de regra, na obra de Clarice, é que o tema do amor se faz sempre presente, mas contraditoriamente marcado, a um só tempo, por uma força ambígua de presença e falta; possibilidade e impos-sibilidade; beleza e feiúra; bondade e ódio; entrega e medo; avanço e recuo;

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vida e morte ou de suprimento e carência, para falar mais em consonância com Platão1 e de despojo e acréscimo, para falar em consonância com Lispector (1997, p. 173). Nesse sentido, Nunes (1969, p. 118) afirma:

Reflexivos, distanciados de si mesmos, de ânimo especulativo, os seres criados por Clarice Lispector não coincidem com os sentimentos e paixões que experimentam. Conseqüentemente a essa posição de alheamento reflexivo, eles assistem, muitas vezes, como espectado-res, à constante metamorfose de seus estados afetivos. O que é agora amor, no instante seguinte pode tornar-se ódio.

Esse conto ora em análise apresenta um enredo aparentemente ba-nal: é a história de uma menina ruiva que, num dia de muito sol, está sen-tada na porta de sua casa, segurando uma bolsa velha, e, de repente, aparece um basset, também ruivo, com sua dona. Os dois – a menina e o basset – olham-se detidamente, enamoram-se profundamente e, logo depois, o cãozinho segue seu caminho, sem olhar para trás, “nem uma só vez”. A aparente despretensão do conto é percebida até mesmo pelo fato de que, na vasta fortuna crítica de Clarice, em raríssimos momentos, esse conto é, pelo menos, mencionado. Percebe-se, porém, em seu sentido mais fundo, que um intenso drama íntimo se configura no interior das personagens e o texto, por sua vez, ganha o mesmo tom de densidade e mistério, é possível dizer, dos contos e romances mais conhecidos da autora.

O MITO PLATÔNICO

Há, intermediado pelo pensamento filosófico, um estreito laço entre o pensar mítico e o pensar lingüístico, e Cassirer (1972, p. 101) diz que “a estrutura do mundo mítico e do linguístico, em largos segmentos, é deter-minada e dodeter-minada pelos mesmos motivos espirituais”. É nesse enlaçamento entre mito e linguagem que se vêem configurados, num mesmo plano, a exposição do mito platônico sobre o amor, especialmente no discurso da personagem Aristófanes, de O banquete, e o conto Tentação, de Clarice Lispector. Uma leitura do conto deixa muito evidente uma ilustração, e de forma muito especial, do mito sobre o amor de Platão.

Diz esse mito que, outrora, havia na natureza humana não apenas duas espécies – o macho e a fêmea – mas três. O terceiro gênero era formado dos dois primeiros. Chamavam-se Andróginos. Estes herdaram de seus genitores as formas esféricas e os movimentos circulares. Diferenciavam-se

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as três espécies pelo fato de o macho ter sido engendrado pelo sol; a fêmea pela terra e o sexo composto pela lua, filha da terra e do sol. Os Andróginos, fortes, ágeis e corajosos, empreenderam uma escalada aos céus para guerrear com os deuses. Receberam de Júpiter o castigo de terem seus corpos divi-didos em dois para que ficassem enfraquecidos. Consumada a separação, cada metade passou a desejar, ardentemente, unir-se à sua outra metade:

Quando depois se encontravam, atiravam-se nos braços uma da outra, enlaçavam-se tão fortemente que, pelo desejo de se fundirem, se deixa-vam morrer de fome, inertes, sem desejo de nada empreender cada uma em separado. Quando morria uma das metades, a outra que ficava pro-curava estreitar-se à outra metade abandonada, quer se tratasse do que hoje chamamos mulher, quer de homem (PLATÃO, 1959, p. 41).

Dessa forma, a raça foi extinta e Júpiter, compadecido, obrigou que a concepção e a geração se fizessem, não mais à maneira das cigarras, mas pela união do macho e da fêmea e isso fez com que a raça humana se propagasse. Como herança dos seres primitivos, os homens são, portanto, esses seres incompletos que, movidos pela força de Eros, buscam-se errantes pelo mundo. E o amor é, então, o desejo da metade perdida de nós mesmos. Desejo que está fadado a ser sempre falta, porque, em verdade, quando encontramos o outro, por mais que as duas metades se aproximem, elas não se acoplam com perfeição, afinal, são diferentes uma da outra. Nesse ponto, pode-se, ainda em Platão, associar o mito do discurso de Aristófanes ao de Sócrates que diz que o Amor, como filho que é de Pênia, a deusa da Pobreza e de Poros, o deus da Abundância, apresenta-se como “rude e sórdido, anda descalço, deita-se na terra, sem leito, dormindo ao relento” e, por outro lado, anda sempre no encalço do belo e do bom, é “ousado, tenaz, valente urdidor de intrigas, sequioso de saber, perspícuo, filosofante, feiticeiro, mágico” (PLATÃO, 1959, p. 62). Tem-se, assim, reforçada nessa visão dialética, a idéia de que o amor, embora seja algo que supre, é ainda falta, é carência, pois a sua natureza indigente o impede de se saciar plenamente. Em A

pai-xão segundo G. H., de Lispector, há, numa reflepai-xão da personagem G. H.,

idéia similar: “Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. [...] o amor é tão inerente quanto à própria carência” (LISPECTOR, 1997, p. 174).

No conto Tentação, há transfigurados e, até mesmo, ‘denunciados’ fortes indícios do mito platônico. Mas vale observar que, nesse conto, o encontro não é entre dois humanos, mas entre um ser humano e um

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ani-mal. E é em mais um dos componentes do banquete de Platão que se pode justificar essa união insólita. Erixímaco, em seu discurso, diz: “o amor não reside apenas na alma dos homens que procuram realizar-lhe a beleza; mas também, para vários outros fins, em muitos outros sêres: nos corpos dos animais, nas plantas que brotam da terra, em toda a natureza em suma” (PLATÃO, 1959, p. 33).

E o próprio narrador do conto – na verdade, Clarice Lispector – diz que a possibilidade de comunicação surge para a menina ruiva “encarnada” na figura de um cão, ou seja, a palavra encarnada sugere que há um sentido mais transcendente nessa “possibilidade de comunicação” entre os dois se-res. O cão seria apenas um pretexto, essa possibilidade poderia advir de qualquer outro ser. É, pois, do encontro de uma menina desalentada no sol da tarde, involuntariamente revoltada por ser ruiva numa terra de morenos, e de um basset “lindo e miserável” (a própria encarnação do Amor, “rico e indigente”), também ruivo, que se podem testemunhar dois seres buscan-do, ávidos, cada qual a sua metade. O próprio narrador diz, em evidente diálogo com o mito de Platão:

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um ir-mão em Grajaú. [E ainda:] Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. [Ou:] E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne (LISPECTOR, 1991a, p. 59)2.

O fato de a personagem humana ser uma criança, no conto, é signi-ficativo, pois o infante representa uma indefinição sexual que remete à fi-gura do ser Andrógino platônico e retira a idéia de amor num sentido mais mundano, carnal, e eleva-o a um sentido de busca da unidade, de reintegra-ção da alma e corpo divididos. Tanto é assim que o grande desalento da personagem é sentir-se estrangeira em seu mundo exterior e interior: “Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária” (1991a, p. 59). O encontro da menina ruiva com o basset ruivo desencadeia nela a consciên-cia do estar-no-mundo, porque é como se ela se visse a si mesma a primeira vez. Nesse caso, o sentido desse encontro na infância prenuncia o esboço de um novo ser. Esse prenúncio vem expresso na voz do narrador: “Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse mulher. [Ou:] Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la

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erguer insolente uma cabeça de mulher?”. A marca a que se refere o narrador é exatamente o fato de ser ruiva. O que na cabeça de uma menina é uma revolta involuntária, na cabeça de uma mulher é motivo de insolência.

O ponto culminante do conto e do mito platônico é, no entanto, a impossibilidade de uma metade encaixar-se na outra metade de forma a permitir o encontro pleno de um ser com outro. O conto destaca, em um parágrafo bem distinto, introduzido pelo conectivo ‘Mas’ essa impossibili-dade: “Mas ambos eram comprometidos”. Ela, por causa de sua infância impossível e inocente, ele, por “sua natureza aprisionada”.

Ora, nessa situação em que as duas personagens sucumbem, espan-tadas, mas sem resistência, à impossibilidade de se unirem por serem com-prometidos, fica confirmada a idéia de que, na verdade, um ser afasta-se do outro – cedendo à gravidade com que se pedem – muito mais porque, na realidade, está em busca de si mesmo. A natureza aprisionada do basset ruivo é significativa à medida que o aprisionamento é um indício do desencontro amoroso. O basset já tinha dona: “A dona esperava impaciente sob o guar-da-sol.” (LISPECTOR, 1991, p. 60). E a natureza servil, obediente e sub-missa dele o impede de ceder à tentação de unir-se à “sua outra metade neste mundo”. Esse adestramento talvez justifique a adjetivação inusitada sobre o basset: “desprevenido, acostumado, cachorro”. E a menina é comprome-tida com sua infância impossível, o que confirma a idéia, já exposta, de que, por ser desprovida da noção de sexualidade, por ser um andrógino pela natureza infantil, está também impossibilitada de ceder à “tentação”. Fica evidente, porém, que a menina é quem mais sofre com essa impossibilida-de: “Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam [...]”. E isso ocorre justamente porque ela detém uma inocência que promete abrir-se, quando “ela fosse mulher”. Diferentemen-te, o basset não tem nenhuma promessa de liberdade, por isso “ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás”.

Vale notar que não só o tema do amor, mas, em específico, o da impossibilidade amorosa recorre em Clarice Lispector. E, na autora, a im-possibilidade de o amor atingir a sua plenitude está no fato de que ele sem-pre esbarra no seu extremo: “a cruel necessidade de amar” (A Menor Mulher do Mundo – LISPECTOR, 1991b, p. 91) defronta-se com “o medo de não amar” e de “não ser amado” (LISPECTOR, 1998, p. 94); o amor que é “vertigem de bondade” (Amor – LISPECTOR, 1991b) às vezes “só esgota sua paixão no ódio” (LISPECTOR, 1998, p. 61). E o mesmo amor que é “desesperada forma canhestra que o viver e o morrer tomam” (LISPECTOR,

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tação. O amor entre a menina e o basset ruivos não é dito, é figurado e, nesse ponto, um outro elemento fundamental, no conto e na obra de Clarice, entra em cena: o olhar, a potência mágica do olhar.

A POTÊNCIA MÁGICA DO OLHAR

“E assim, da energia constantemente despendida em contemplar, da própria emanação do que é contemplado, nasce o Amor: olhar pleno do que vê, visão unida a uma imagem” (PLATÃO, 1959, p. 108). Ainda uma vez em Platão. Aí está a relação entre o olhar e o amor.

É importante chamar a atenção para a presença marcante do olhar que Lispector lança para o mundo e o criva para a sua obra e a presença, mais marcante ainda, do olhar na obra da autora. Defendendo a idéia de que o forte vínculo do olhar cria uma identificação entre o sujeito que vê e o objeto que é visto, Pontieri (1999) fundamenta a sua obra Clarice Lispector: uma

poética do olhar. E Nunes (1969) faz referência a um “confronto pelo olhar”

como se lê, por exemplo, nos contos O Búfalo, Amor e, obviamente, em Tentação. E o crítico se refere, ainda, à “potência mágica do olhar [e ao] descortínio contemplativo silencioso” (NUNES, 1973, p. 83), que recor-rem tanto nos contos quanto nos romances claricianos.

No conto Tentação, a potência do olhar dispensa as palavras e toda a comunicação que ocorre na história dá-se por meio da percepção visual. Em nenhum momento, no texto, tem-se qualquer indício de diálogo verbal e muitas coisas são ditas pelo confronto do olhar.

A princípio, o narrador apresenta a menina ruiva, com soluço, sen-tada nos degraus de sua casa com “seu olhar submisso e paciente”; logo depois, uma primeira identificação. Esta entre o narrador e a menina: “Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento”. O olhar se revela impotente, nesse primeiro momento. O narrador não vê saída para a ruivice da menina e, mais à frente, ele reflete: “Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária”. Mas, eis que surge, “no ângulo quente da esquina”, o olhar mais petrificador, mais potente, mais sedutor e mais espelhístico dentre todos: o basset ruivo, “a possibilidade de comunicação”, a possibilidade de um ser unir-se a outro ser. E é um vendo o outro e se vendo no outro que eles se entregam à magia do instante: “A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam”. É curioso notar que, basicamente, toda a narrativa gira em torno deste instan-te mágico em que as personagens se encontram e se fitam “profundos,

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en-tregues, ausentes de Grajaú” e a abstração do tempo é evidente: “Quanto tempo se passava?”

Em A paixão segundo G. H., a narradora-personagem assim reflete sobre o olhar: “[...] há vários modos que significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também. Tudo isso significa ver” (LISPECTOR, 1997, p. 80). Nesse romance, olhar significa, em específico, comer; no conto O Búfalo, olhar significa odiar e em Tentação, olhar significa ver-se: de um lado, “foi quando aproximou-se a sua outra metade neste mundo, um ir-mão em Grajaú” e, do outro lado, “lá estava a menina como se fora carne de sua ruiva carne.” E olhar significa, também e principalmente, dizer: “Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapi-damente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pe-diam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos”. Essa passagem final faz lembrar a avidez com que as metades repartidas dos seres andróginos se buscam na outra metade e se desejam.

Um aspecto que não passa despercebido no conto é a excessiva cla-ridade e o sol flamejante das duas horas da tarde que testemunham o encon-tro da menina com o cachorro. Os gregos consideravam que havia um parentesco entre os olhos e o sol e, na etimologia latina, olho está ligado à idéia de luz. Somado a isso, há, no conto, a semelhança de cor entre o cabelo da menina, o pêlo do basset e o sol. Pode-se dizer, então, que entre um ser e outro (a menina e o cachorro ruivos), há o olho que refrata a luz e faz com que a imagem de um se reflita no outro, de modo a levá-los a se descobrirem e, no caso da menina em específico, a se encontrar e, sobretudo, a se aceitar, pois há a promessa de que a marca da diferença – ser ruiva – é que iria “fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher”. E, para retomar o mito p“fazê-latô- platô-nico, é plausível dizer que o excesso de claridade, de luminosidade sugere miticamente uma reintegração da alma dividida e, pelas vias do olhar, o espelhamento de um ser no outro reflete, ao mesmo tempo, a harmonia que os une e as contingências que os separam.

O OUTRO SOU EU

Merleau-Ponty (1971, p. 139) diz que “somos plenamente visíveis para nós mesmos, graças a outros olhos” e Bosi (1982, p. 437) complementa essa idéia, afirmando, em análise da obra de Machado de Assis, que “o olhar do outro é o primeiro espelho”. Essas reflexões colocam a questão da iden-tidade, do duplo, tão cara à Psicanálise, especialmente, à de Freud e de Lacan

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e tão recorrente na literatura. Otto Rank diz que a origem dos duplos na literatura situa-se no Romantismo alemão (1939) e é exemplar da presença do duplo, o conto O Homem de Areia, de Hoffman, estudado por Freud para analisar o fenômeno do ‘estranho’. Na literatura moderna, seja na prosa ou na poesia4 , a presença do duplo não é menos recorrente até mesmo porque, como afirma o mito platônico, temos, desde a origem, nossa unidade per-dida e perambulamos como fragmentos estilhaçados que se projetam e se desdobram em outros eus, sempre na busca de encontrar-se.

Em Lispector, verifica-se que os momentos epifânicos quase sempre se dão no instante em que uma personagem encontra o seu duplo, a sua identidade, a sua metade perdida . É o que ocorre, por exemplo, entre Ana e o cego, em Amor; a mulher e o búfalo, em O Búfalo, a moça e o mendigo, em A Bela e a Fera; G.H. e a barata, em A paixão segundo G. H.

No conto Tentação, fica evidente que o olhar do basset ruivo repre-senta para a menina um espelho em que ela se vê pela primeira vez. A in-tensidade e a profundidade do encontro entre ambos é para ela um abrir-se para o conhecimento de si mesma e para a assumência de sua condição humana. Tanto é verdade que constatamos nela uma passagem do estado de insatisfação – o soluço é sugestivo nesse sentido –, de passividade ini-cial para, senão uma tomada de atitude diante da impossibilidade de ficar com seu objeto narcísico, pelo menos uma quase indignação ante o rom-pimento com o contemplar-se na figura do cão: “Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compre-enderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam [...]”. Apesar das contingências que separam menina e cão, não ocorre entre eles uma quebra da hegemonia imagética. Opera-se neles um processo de descoberta mútua. O instante do olhar e do ver-se no outro fica petrifi-cado e, na menina, isso fica como promessa de uma mulher marcada pela singularidade.

Curiosamente, para a menina ruiva (e para muitas outras persona-gens de Clarice), o desdobramento do eu, a descoberta de um duplo à sua imagem e semelhança dá-se na figura de um animal. A própria Lispector faz uma distinção, numa fala do professor para Joana, em Perto do coração

selvagem. O professor diz que “na busca de prazer está resumida a vida animal.

A vida humana é mais complexa: resume na busca do prazer, no seu temor, e sobretudo na insatisfação dos seus intervalos” (LISPECTOR, 1998, p. 52). Desse ponto de vista, o que diferencia o animal do homem é a complexida-de maior complexida-deste representada pelo remorso, piedacomplexida-de, bondacomplexida-de, temor e o desespero e as buscas de outros caminhos, na insatisfação dos intervalos.

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A ânsia é a busca do prazer comum também no animal. O diferencial da raça humana talvez seja exatamente a existência do amor representada pelo temor e pela idéia de incompletude (o que mais uma vez confirma a visão platônica).

A observação de Nunes (1973, p. 131) é também elucidativa em relação à presença do animal na obra de Clarice:

Os animais gozam, no mundo de Clarice Lispector, de uma liberdade incondicionada, espontânea, originária que nada [...] seria capaz de anular. Se o reino que eles formam está [...] firmemente assentado na própria Natureza, é porque se acham integrados ao ser universal de que não se separaram e de que guardam a essência primitiva, an-cestral e inumana.

Ora, vemos nessa observação que a idéia de animais “integrados ao ser universal de que não se separaram” coloca-os, sob a ótica do mito pla-tônico, em oposição ao ser humano, visto que este tem, na sua essência primitiva, a perda da unidade, justamente por ter sido dividido. Enquanto o animal apresenta uma “identidade sem fissuras” (NUNES, 1973, p. 131), o homem apresenta uma identidade estilhaçada, por isso está sempre na busca do outro. Pode-se dizer, então, que o basset ruivo atua como mediador da ruptura que a menina tem com a própria imagem e com o mundo. A pri-meira parte do conto infere que ela não se aceita: “Sentada nos degraus de sua casa, ela ‘suportava’”. A ausência do objeto no verbo sugere que a me-nina ‘suportava’ tanto o calor, quanto a sua condição de ser ruiva numa terra de morenos.

Diante disso, é possível dizer que o modo de ser narcísico é da natu-reza do homem e a busca eterna dos mais fundos arquétipos é atitude hu-mana que se justifica por ser uma forma de autoconservação, de reintegração da unidade perdida ou ainda uma “garantia de imortalidade”, conforme Freud (1976, p. 294) explica o duplo. Mas em relação a tudo isso – o ho-mem, o animal (o basset), a busca, o amor, nós e, por que não, o conto Tentação – é mesmo Clarice Lispector que vem nos dar um “soco no estô-mago”. Ela diz, na já citada crônica “É pra lá que eu vou”: “Oh, cachorro, cadê a tua alma? está à beira do teu corpo? Eu estou à beira do teu corpo e feneço lentamente. Que estou a dizer? Estou dizendo o amor. E à beira do amor estamos nós”. E, ante a dificuldade de nos encontrarmos e de encon-trarmos o amor, “por dentro”, estamos fadados a ficar sempre à beira dele, na busca, no desejo, na tentação.

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A TENTAÇÃO

A palavra tentação vem do latim tentatio e liga-se à idéia de desejo veemente, apetite, impulso, sedução. Em outro sentido, significa impulso para a prática de algo censurável ou não recomendável. Como palavra de-rivada de tentiginis significa ardor amoroso. Ante tais sentidos para o ter-mo, percebe-se que o título do conto de Clarice Lispector não é despretensioso. A palavra é carregada de segundas intenções – que o digam Adão e Eva no Paraíso – como carregada de segundas intenções está a au-tora, ao usá-la num texto que envolve aparentemente dois seres desprovidos da noção de sexualidade. Mas o texto indicia o tempo todo a força de Eros. O modo como a menina ruiva e o basset ruivo se pedem é pura veemência: “Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos”. Esse tal-vez seja o modo como também nós, seres do desejo por natureza, nos mo-vemos desde a origem, seja a origem do mito adâmico ou a do mito platônico. No conto, até quase ao final do segundo parágrafo, o narrador se ocupa de apresentar o desalento da menina com sua ruivice realçada pelo sol e pela claridade das duas horas. O signo sol é significafivo: é metáfora do princí-pio masculino e, no mito platônico, o macho foi engendrado pelo sol. No penúltimo período do segundo parágrafo, o narrador menciona uma bolsa velha que a menina segura: “O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida”. O verbo salvar, sem um objeto indireto, deixa no leitor uma questão: a bolsa salvava a menina de quê? Logo em seguida, é menci-onado, pela única vez no conto, a palavra amor acompanhada do modificador conjugal: “Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos”. Segunda questão para o leitor: O que significa a bolsa e o amor conjugal? Uma resposta plausível para a primeira pergunta é de que a bolsa salvava a menina de sua condição de estrangeira, do fato de ser ruiva e de não se aceitar. Nesse sentido, a bolsa poderia ser uma metáfora do encontro futuro da menina com a sua metade. Agarrar-se à bolsa é safar-se do estrangeiro e aí a segunda questão se explica. O amor conjugal é “já habituado”, é familiar. A bolsa é o primeiro e único apego, leia-se, também, afeto, que a menina tem até então. Até então porque: eis que a tentação maior surge trotando, no ângulo quente da esquina, e estaca diante dela – é o basset ruivo, “a sua outra metade neste mundo”. O fascínio e a ruptura que o instante do encontro provoca na menina é tal que, quando o basset desprega-se dela e vai embora, ela fica, espantada, “com o acontecimento nas mãos”. Ora, nesse ponto, a bolsa e o acontecimento se equivalem. Ela segura ambos nas mãos (no corpo e na alma, pode-se dizer), porque, apesar da retirada do

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cachorro parecer quebra do “acontecimento”, fica com ela o desejo veemen-te, o fascínio, a tentação, e por que não, o ardor amoroso.

Mas a tentação vai além desse instante mágico em que um ser encon-tra-se com outro ser. Ela surge também como uma estratégia narrativa, na relação autor-leitor. E aí aparece o outro sentido da palavra-título. Clarice seduz o leitor, a começar pelo título, para a prática de algo possivelmente censurável: ler o conto. E faz isso recorrendo mais que às entrelinhas co-muns ao seu estilo, ela vale-se de uma linguagem inusitada, insólita, marcada por lacunas. Quando diz, por exemplo, “Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.”, na palavra “fatalidade” há uma lacuna. O leitor fica a indagar a que se refere tal fatalidade: à condição de cachorro do basset? ao fato de ser ruivo? à impossibilidade de unir-se a sua outra metade? à sua natureza aprisionada? Essas e outras lacunas ficam a cargo e a termo do leitor que irá preenchê-las, conforme o grau de tenta-ção que o texto lhe proporcionar.

CONCLUSÃO

“O essencial não foi destinado a ser compreendido”, assim diz Lispector em A maçã no escuro. Ao fim dessa leitura do conto Tentação, pode-se dizer quão difícil é penetrar a essência do amor e, mais difícil ainda, é falar do infalável, como quer Barthes, pois, até em Clarice, que “sempre perseguiu o indizível” (KANAAN, 2003, p. 21), a linguagem se faz precá-ria para dizer o amor.

É importante ressaltar que Tentação é um conto bastante singular, como singular é a menina ruiva numa terra de morenos. Por essa razão, ele exige uma leitura também singular. Nesse sentido, fica ainda intocados alguns aspectos que nele se impõem inquietantes como o fato de a personagem “ser ruiva numa terra de morenos”. Esse tema, que dialoga intertextualmente com a história do patinho feio, do canário azul, é fértil na produção literária de Lispector. Kanaan (2003, p. 36) diz que “Clarice foi testemunha de vários êxodos” e por isso a própria autora deve ter experimentado muito o que é ser diferente em terra de iguais. Aliás, em se tratando de Clarice, ainda que nunca tivesse saído da terra dos iguais, ela seria sempre estrangeira. E a menina ruiva não deixa de ser um desdobramento da própria autora. No caso dela, se o exílio não vem de fora, vem de dentro. Outro aspecto que pode ser explorado no conto é, na mitologia cristã, a idéia de tentação e a simbologia da cor vermelha, representada na menina, no cão, no sol e na tentação cujo símbolo – a maçã – é também vermelho.

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Enfim, pode-se dizer que retomar o mito platônico do amor, pelas vias do texto de Clarice Lispector, é uma forma de mostrar como a escritura da autora é capaz de permitir um retorno às origens e ao desejo de unidade, manifesto no “élan amoroso”.

Notas

1 Para Platão (1959, p. 106), o amor nasceu de Pênia, a deusa da pobreza, e de Poros, o deus da

Abun-dância.

2 Pelo fato de o conto Tentação ser bem breve não faremos mais as citações de página, quando nos

referimos a ele.

3 Expressão usada pelo narrador de A Quinta História, ao comparar a petrificação das baratas (pelo uso

do açúcar e gesso) justamente com a “palavra cortada da boca: Eu te ...” (LE, 1991a, p. 83).

4 O subtítulo desta parte do trabalho, O Outro Sou Eu, é inspirado numa frase do poeta Rimbaud.

Referências

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FREUD, S. O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Obras Psicológicas Completas, v. 17). KANAAN, D. A.-B. À escuta de Clarice Lispector: entre o biográfico e o literário: uma ficção possível. São Paulo: Limiar; Educ, 2003.

LISPECTOR, C. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. LISPECTOR, C. A legião estrangeira. São Paulo: Ática, 1991a.

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CÉLIA SEBASTIANA SILVA

Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília. Professora no Departamento de Letras da Universidade Católica de Goiás e da Universidade Estadual de Goiás.

Abstract: the purpose of this study is to explore how Manoel de Barros

creates and composes his poems. His poetic discourse is marked by his own universe whose themes are so important to modern lyric. It also points to some connections between this aspect of his work and literary tradition; self reflexive poetry; lyrical self development in different selves; fragmentary aesthetics; negation and identification with the worst human beings. The data was collected, particularly, from Retrato do artista quando coisa as well as other poeta pantaneiro´s poems.

Key words: Modern Lyric, Manoel de Barros, Literary Tradition and

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