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ESPIRITUALIDADE E VIDA SIMBÓLICA

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Academic year: 2021

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José Benedido de Ameida Júnior**

Resumo: este trabalho tem por objetivo analisar o conceito de “vida simbólica” de

Carl Gustav Jung e associá-lo à noção de espiritualidade. Para Jung, o homem moderno vive uma crise espiritual decorrente da perda de sua capacidade de reagir ao numinoso e às forças do inconsciente. A vida simbólica é expressa por meio de rituais religiosos que permitem o fluxo energético gerado pelas pressões comuns do cotidiano. Portanto, a vida simbólica é expressa por meio de símbolos das religiões, ou seja, pelas suas formas de espiritualidade presentes nos ritos coletivos ou privados. Dessa forma, quanto mais rica em símbolos maior é a capacidade de uma religião permitir o equilíbrio das relações entre o ego e o self, bem como, entre a pessoa e a vida comum. Por outro lado, quanto maior a racionalização da religião e a concepção materialista de vida, menos intensa é a vida simbólica e menor a capacidade de reagir às pulsões do inconsciente e das pressões da vida. Nesse sentido, como último recurso, o homem moderno apega-se às formas de espiritualidade superficiais como a literatura de autoajuda, aos hobbies etc.

Palavras-chave: Espiritualidade. Vida Simbólica. Filosofia. Religião.

P

ara iniciarmos este trabalho vamos citar a seguinte narrativa, que a princípio, pode parecer estranha à filosofia, porém, esperamos esclarecer seu sentido ao longo do texto. Trata-se de um excerto de uma obra de antropologia Apapaatai:

rituais de máscaras no Alto Xingu:

ESPIRITUALIDADE

E VIDA

SIMBÓLICA*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 01.10.2018. Aprovado em: 11.11.2018.

** Pós-doutor em Filosofia (FAJE). Doutor e Mestre em Filosofia (USP). Graduado e Licenciado em Filosofia (USP). Professor do Instituto e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (UFU). E-mail: jbeneditoalmeida@gmail.com

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Filha, os médicos não vão me curar, isso que eu tenho é “doença de índio”, eu quero voltar para a aldeia, para que meus tios cuidem de mim. Meu genro [o marido de Kamihã] tem que autorizar uma aeronave para me levar de volta

(BARCELOS NETO, 2008, p. 55-56).

O pequeno trecho acima descreve o pedido que Atamai, o chefe da nação awuajá, faz a sua filha, quando estava internado em um hospital em Brasília, no ano de 1991. Na obra de Barcelos Neto passamos a conhecer o ritual apapaatai, cuja realização está profundamente relacionada à mitologia, à cosmogonia e à antropogonia dos awajá. O que nos chama a atenção, e que se relaciona a este trabalho, é o fato de que a “doença de índio” deve ter como terapêutica os rituais próprios dos apapaatai e não os medicamentos que o hospital poderia oferecer. Ademais, é importante ressaltar, que a nossa concepção de doença não se aplica a este caso: no final das contas, o responsável pelo adoecimento de Atamai, não era um vírus ou bactéria a serem eliminados, mas um

apapa-atai que se incorpora à vida espiritual do chefe awajá e se torna seu protetor

espiritual, com o qual ele desenvolverá uma relação de mútua cooperação. Trata-se da Tankwara Yanumaka nãu (Onça clarinetista). Atamai lhe oferece-rá rituais com comida cozida e o apapaatai lhe retribuioferece-rá com a proteção no mundo espiritual.

Este é um exemplo de vida simbólica, na qual a espiritualidade está presente no coti-diano da vida material e representa uma forma de harmonização com o meio onde se vive. Os dois mundos, o espiritual e o material, entram momentanea-mente em choque – o adoecimento de Atamai –, porém, este conflito é resolvi-do por meio de ritos basearesolvi-dos na mitologia awuajá. O homem moderno, como veremos adiante, não mais possui esses meios de harmonização entre o mundo espiritual - ou psíquico, se quisermos - e o mundo material. Para os pesqui-sadores e estudiosos dos mitos, Carl Gustav Jung, Joseph Campbell, Mircea Eliade, para citarmos só alguns, o homem moderno vive em uma profunda cri-se espiritual, cujos reflexos aparecem claramente no campo individual, com as doenças psíquicas; e no campo social, com sociedades que provocam neuroses e são, evidentemente, neuróticas1.

Tal percepção das sociedades do homem moderno é uma resposta ao discurso que as considera evoluídas ao passo que as chamadas sociedades tribais seriam primitivas. O homem moderno acredita que graças ao desenvolvimento da razão, o estágio da plena auto-consciência e da ciência deixou de ser ingênuo, dispensado da necessidade de acreditar em deuses, enquanto, o homem pri-mitivo ainda vive em suas crendices e nos seus mitos. Quando nos referimos ao homem moderno, portanto, não estamos nos remetendo a uma história ou espaço específicos, mas a um modo de ser que acredita que é possível banir o

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sagrado da vida comum. Mircea Eliade (2010) distingue, assim, dois modos de ser no mundo, o homem moderno ou a-religioso e o homo religiosus. O homem moderno, em sua concepção, pretende superar as heranças do homo religiosus e viver sua liberdade em relação aos entes sobrenaturais:

O homem moderno a-religioso assume uma nova situação existencial: reconhe-ce-se como o único sujeito e agente da História e rejeita todo apelo à transcen-dência. Em outras palavras, não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal como ela se revela nas diversas situações históricas. O homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente desmitificado. Só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus (ELIADE, 2010, p. 165).

Este trabalho basear-se-á na noção de vida simbólica de Jung, que pode ser definida, a nosso ver, como espiritualidade, pois trata-se da valorização de parte da vida que se relacione com o sagrado. Trata-se, portanto, de uma espiritualidade necessariamente ligada aos mitos, aos ritos, logo, às tradições religiosas que se manifestam – algumas de forma mais, outras de forma menos intensa - por meio de símbolos.

Ora, na medida em que o homem moderno passa por um empobrecimento de sua vida simbólica, necessariamente, entra em um profundo processo de crise espiritu-al. A causa dessa crise é o desenvolvimento de uma sociedade materialista que exclui os mitos, consequentemente, concepções cosmológicas e antropológi-cas que poderiam servir de orientação para os momentos de crise existencial às quais todos estão sujeitos.

Estas crises existenciais provocam diferentes tipos e graus de necessidades psicológicas e, até onde entendemos da proposta de Jung, cada pessoa deve buscar formas de espiritualidade que estejam de acordo com suas necessidades psicológicas e encontrar uma religião que expresse tais necessidades. O homem moderno, muitas vezes, procura religiões de outros povos, porque o processo de racionalização também atingiu suas religiões, tornando-as muito pobres em termos de ritos, portanto, enfraquecidas simbolicamente. Tornaram-se pálidas, anêmicas. Desta forma, estas religiões não conseguem canalizar as necessidades psicológicas do homem moderno, ou, em outras palavras, não possuem o mesmo poder catártico como aquele descrito na introdução deste trabalho, o ritual apapaatai. Desta forma, o homem moderno fica à mercê dos pálidos símbolos oferecidos por nossa sociedade, tais como: formaturas, passar no vestibular, os títulos acadêmicos, o status profissional, comprar

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coisas como um carro novo, viagens etc. A saída mais comum, e fácil, é a busca de orientação nos livros de autoajuda que são, em última instância, a proposta de uma vida simbólica. Apresentam fórmulas de sucesso ou de meditações que têm por objetivo suprir a necessidade de uma vida espiritual ou de realidades trans-históricas por meio de rituais particulares. Tal literatura, porém, não deve ser descartada – não estamos aqui criticando esse nicho do mercado editorial –, afinal de contas o que define a busca espiritual são as necessidades psicológicas de cada um, portanto, ela pode muito bem cumprir um importante papel social. Trata-se, apenas, de afirmar que a literatura de autoajuda e esses títulos sociais são uma forma de espiritualidade superficial, em oposição às espiritualidades profundas oferecidas pelas religiões que possuem ritos milenares e permitem experiências catárticas bem mais intensas ou profundas.

A DEFINIÇÃO DE VIDA SIMBÓLICA

Para Carl Gustav Jung, o símbolo implica numa noção de vivência espiritual desconhe-cida pelo homem moderno. Este é capaz de produzir imagens que podem ser definidas como sinais, porém em nada se aproximam da profundidade psíquica dos símbolos. Alguns exemplos destes sinais são siglas como ONU, UNESCO, ou ainda, insígnias e desenhos das marcas comerciais de medicamentos, au-tomóveis, empresas etc. Muitos indagam os significados da insígnia da ONU e teremos uma explicação sobre o porquê algumas imagens foram escolhidas para representá-la. Da mesma forma, as marcas comerciais, o formato dos prédios, o traçado das ruas e muitos outros exemplos. No entanto, não há uma mitologia por trás destas histórias; são fatos ou situações puramente humanas que levaram à escolha de algumas imagens. Há uma grande diferença entre imagens orientadas por mitos ou hierofanias e imagens escolhidas por equipes de marketing. Jung dirá que conscientemente jamais poderemos produzir um símbolo. Assim, a imagem de uma marca de automóvel que utilize um animal será, em termos psíquicos ou espirituais, muito inferior às imagens de animais que representam três dos evangelistas, o Deus Ganesha, o Deus Thot.

Esta diferença se dá justamente pela função psíquica dos símbolos religiosos. Seus ritu-ais são compostos de símbolos expressos em forma de, por exemplo, objetos, gestos, palavras, cantos, danças, músicas. A função destes elementos é desviar a libido2 de seu alvo natural e direcioná-la para alguma atividade específica.

Segundo Jung (1999, p. 43), o homem moderno pensa que pode conseguir este mesmo efeito apenas pelo ato de vontade, ou uma decisão racional, dispensan-do cerimônias religiosas. Para exemplificar esta ideia, e demonstrar como os símbolos são o duto pelo qual a energia psíquica pode fluir, ele descreve uma

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das cerimônias de um povo aborígene da Austrália, os Watschandis. Trata-se de um rito de fertilidade:

O mecanismo psicológico que transforma a energia é o símbolo. Refiro-me ao símbolo real, e não ao seu sinal. Assim, o buraco feito pelos Watschandis no chão não é um sinal do órgão genital da mulher, mas um símbolo que representa a mulher-terra a ser fecundada. Confundi-lo com uma fêmea humana seria in-terpretar semioticamente o símbolo, e isto fatalmente perturbaria a cerimônia. E é por esse motivo que os dançarinos não olham para uma mulher (JUNG, 1999, p. 44).

Segundo Jung, o ser humano tem necessidade de canalizar a libido, vez ou outra, para determinados objetos, o que implica a necessidade de modificar seus cursos naturais, uma vez que ela não possui um único objeto. Via de regra, a libido deve continuar direcionada para suas funções naturais, a fim de que o organis-mo funcione corretamente. Porém, em certas ocasiões, é necessário concentrar os fluxos de energias em determinados aspectos da vida que necessitam de mais atenção. Os mitos narram as histórias sagradas; os ritos ou cerimônias mágicas, por sua vez, com seus símbolos, permitem passar da história para a ação e assim canalizar a energia, promovendo um intenso processo catártico, completamente desconhecido do homem moderno, a não ser por experiências superficiais como se enlevar por uma bela música, contemplar um quadro, uma paisagem, a alegria de comprar algo novo. Este processo de canalização é comparado, por Jung, a uma usina hidrelétrica que permite transformar em produção efetiva de trabalho o que seria um fluxo de energia natural.

Uma queda-d’água é, certamente, mais bela do que uma usina elétrica, mas a dira necessitas [a impiedosa necessidade] nos ensina a ter em muito mais alta estima a luz elétrica e a indústria eletrificada do que a maravilha da queda-d’água que nos delicia por um quarto de hora em nosso passeio de feriado

(JUNG, 1999, p. 46).

A definição de vida simbólica está diretamente relacionada à religião e, mais espe-cificamente, às religiões que possuem ritos complexos e ancestrais, como a cerimônia dos Watschandis, ou o ritual de máscaras apapaatai, ou ainda, o ritual católico, como veremos adiante. Vida simbólica, portanto, é a crença em valores e verdades trans-históricas, imateriais que, no entanto, possuem efeito real sobre a vida comum. Não se trata de um faz-de-conta, os mitos não são literatura, suas histórias sagradas devem ser vivenciadas nos ritos. Em termos de psicologia profunda, seus efeitos são inquestionáveis. Conforme Jung, os

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pacientes que possuem vida simbólica estão menos sujeitos às neuroses e, quando as têm, tendem a ser menos complexas. No trecho abaixo, ele demons-tra a relação entre a vivência de ritos e a saúde da psique:

Minha posição neste assunto é a seguinte: Enquanto um paciente é deveras membro de uma Igreja, deve levar isto a sério. Deveria ser real e sinceramente um membro daquela Igreja e não ir ao médico para resolver seus conflitos quan-do acredita que pode fazer isso com Deus. Quanquan-do, por exemplo, um membro do Grupo de Oxford me procura para tratamento, eu lhe digo: “Você pertence ao Grupo de Oxford; enquanto for membro dele, resolva seus assuntos com o Grupo. Não posso fazer nada melhor do que Jesus” (JUNG, 2008, § 620). Jung não cria o conceito de vida simbólica somente de análise bibliográfica: ele

mes-mo se diz um teórico empírico, ao mes-modo das ciências naturais, pois o contato direto com os pacientes e as análises dos dados obtidos o colocam mais nesse campo do que no nosso, que é a filosofia e a reflexão a partir das leituras. Como empírico, podemos dizer que ele produziu vários conceitos, dentre eles, o de vida simbólica. No trecho a seguir, ele argumenta sobre a importância da vida simbólica para o homem moderno:

A pessoa humana precisa de uma vida simbólica. E precisa com urgência. Nós só vivemos coisas banais, comuns, racionais ou irracionais [...] Mas não temos vida simbólica. Onde vivemos simbolicamente? Em parte alguma, exceto onde participamos no ritual da vida? Mas quem de nós participa do ritual da vida? Muito poucos (JUNG, 2008, § 625).

Nestas palestras proferidas para médicos ingleses na clínica Tavistock em 1935, Jung tenta demonstrar aos presentes que o tratamento terapêutico para a saúde men-tal não pode estar baseado somente em fatores da vida material, pois ela sozi-nha não é capaz de fazer com que as pessoas possam enxergar os problemas da vida comum de modo diferente. Lembra que na Índia, por mais que a maioria da população seja pobre ou miserável, a vida simbólica e a saúde psíquica são bem maiores do que a da vida abastada dos ricos e da classe média européia. Temos nosso quarto, diz Jung, mas nele há um telefone que pode tocar a qual-quer momento; não temos nem tempo, nem espaço apropriado para momentos de espiritualidade, ao passo que nas casas indianas, mesmo nas mais pobres, há sempre um altar e tempo para as orações. Posteriormente, afirma:

Portanto não temos vida simbólica, mas temos necessidade premente dela. So-mente a vida simbólica pode expressar a necessidade da alma – a necessidade

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diária da alma, bem entendida. E pelo fato de as pessoas não terem isso, não conseguem sair desta roda viva, desta vida assustadora, maçante e banal onde são “nada mais do que” (JUNG, 2008, § 627).

A vida maçante e banal do homem moderno não é preenchida com os títulos universitá-rios e profissionais, com a capacidade de consumo, com as viagens que já fez. Tudo isso está preso ao campo da vida material e não tem nada de simbólico. Podemos dizer, portanto, que do ponto de vista psíquico, nossa vida é extrema-mente pobre se comparada a de alguém que possui um pequeno altar em casa e tempo diário para suas orações – logo, espiritualidade -, como as famílias indianas citadas por Jung. Nossa vida é extremamente pobre, do ponto de vista psíquico e espiritual se comparada aos Watschandis que realizam seus ritos de fertilidade e com Atamai, que deixou o tratamento médico em Brasília para realizar os ritos apapaatai. Enfim, para concluirmos esse subitem com as pa-lavras de Jung: “Estas coisas entram fundo e não é de admirar que as pessoas fiquem neuróticas. A vida é racional demais, não há existência simbólica em que somos outra coisa, em que desempenho um papel, o meu papel, como um ator no drama divino da vida” (JUNG, 2008, § 628).

Fazendo um balanço das obras A vida simbólica e Energia Psíquica, podemos dizer que o empobrecimento da vida simbólica, decorrente do materialismo, é alar-mante. As pessoas ficam cada vez mais neuróticas, porque não conseguem ca-nalizar os fluxos de energias provocados pelas pressões cotidianas, nem pelas consequentes respostas do inconsciente a estas pressões. Podemos dizer que a clínica junguiana é útil para quem não tem vida simbólica ou se a tem, foi de tal modo empobrecida pelo processo de racionalização das religiões, que perdeu significativamente sua capacidade de canalização da libido.

Ora, aproximamos assim a concepção de vida simbólica à noção de espiritualidade, pois aquela se expressa por meio dos rituais religiosos coletivos ou privados. Os rituais podem parecer banais aos olhos do homem moderno, porém, tendo sido forjados ao longo de centenas ou milhares de anos, possuem uma capa-cidade de fluxo energético imensa. De certa forma, como dissemos, os rituais do homem moderno também possuem certa capacidade de fluxo da libido, no entanto, com menor capacidade catártica. Em outras palavras, ir ao cinema, por exemplo, pode distrair a pessoa por algumas horas, fazê-la relaxar. No entanto, não tem a mesma capacidade de redirecionar a energia psíquica de um rito religioso. Isto não significa que um deva substituir o outro. O que queremos dizer é que as ações do homem moderno não têm, nem de longe, o mesmo efeito. O mesmo vale para a prática de hobbies, ações sociais, reuniões com amigos, enfim, formas de espiritualidade superficiais ou, como dissemos, espiritualidades light.

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ESPIRITUALIDADE E RITOS

O que chamamos, pois, de espiritualidade profunda é a participação nos rituais que são a parte essencial das religiões. Rudolf Otto (2011, p. 38) observa que o sagra-do expressa: “O elemento [...] que está vivo em todas as religiões, constituinsagra-do seu mais íntimo cerne, sem o qual nem seriam religião”. A experiência do nu-minoso ou do sagrado pode ser intensa, como nos casos em que são narradas experiências místicas de audições, visões e outras. Esta experiência também está expressa nas experiências no sonho de Atamai, nos rituais de dança dos Watschandis, ou rituais de máscaras como o kápa e o iakuigâde. Podemos in-cluir aqui as orações em altares domésticos ou coletivos que, apesar de, via de regra, não proporcionarem profundas experiências místicas, reservam tempo e espaço para uma experiência de vida que está além da banalidade cotidiana do homem moderno. De todo modo, do ponto de vista psíquico, a experiência da espiritualidade permite um fluxo de energia psíquica muito mais intenso do que qualquer experiência do homem moderno, limitado às relações materiais. Ao final das contas, este percebe sua existência, frequentemente, como um ‘nada mais do que’.

Portanto, para a participação na vida simbólica ou na espiritualidade, deve-se ir contra duas correntes de pensamento do homem moderno. A primeira, que já vimos, é que se deve romper com a correria do dia a dia, reservar um tempo e um espaço para o exercício da espiritualidade. A segunda, que veremos adiante, é superar a visão do homem moderno que acredita serem os ritos meras supers-tições desnecessárias para a verdadeira fé.

OS RITOS E O ILUMINISMO

A crítica dos elementos simbólicos nas religiões remonta a tradições ocidentais bastan-te antigas, como mostram as palavras de Xenófanes, as quais encontramos na coletânea de Borheim (1993, p. 32):

Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e pro-duzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhan-tes a cavalos, e os bois semelhansemelhan-tes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo sua própria forma. [...] os etíopes dizem que os deuses são negros e de nariz chato, os trácios que têm olhos azuis e cabelos vermelhos.

O iluminismo francês nos permite demonstrar este processo de empobrecimento da vida simbólica. Um caso extremo é de Denis Diderot, cujo materialismo leva à concepção de que toda forma de religião, logo de ritos, é meramente

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fan-tasiosa, desnecessária e até mesmo perniciosa para a vida comum. Por outro lado, Jean-Jacques Rousseau preserva a sacralidade da religião, especialmente o cristianismo, mas questiona, de forma aberta, as liturgias católica e ortodoxa grega, conforme os fragmentos abaixo:

Não confundamos o cerimonial da religião com a religião. O culto que Deus pede é o do coração e este, quando sincero, é sempre uniforme. É de uma vai-dade maluca imaginar que Deus se interesse tanto pela forma da vestimenta do padre, pela ordem das palavras que ele pronuncia, pelos gestos que faz no altar, por todas as suas genuflexões (ROUSSEAU, 1992, p. 345).

A crítica de Rousseau atinge também o cristianismo ortodoxo, tal como veremos no romance Júlia ou a Nova Heloísa. Para Rousseau, a origem das superstições se encontra nas práticas cerimoniais das religiões positivas. Seu personagem, o senhor de Wolmar, homem racionalista, rebela-se contra o absurdo destas práticas religiosas, segundo ele, marcadas pela superstição e pelo fanatismo, úteis apenas para o cegamento dos fiéis. Conforme Rousseau (1994, p. 508):

O sr. de Wolmar, educado no rito grego, não era feito para suportar o absurdo de um culto tão ridículo. Sua razão, por demais superior ao jugo imbecil que lhe queriam impor, sacudiu-o cedo com desprezo e, rejeitando ao mesmo tempo tudo o que lhe vinha de uma autoridade tão suspeita, forçado a ser ímpio, tornou-se ateu.

Evidentemente, não podemos analisar as palavras de Rousseau fora do contexto em que foram produzidas, contudo, neste trabalho, podemos perceber que na perspectiva do protestantismo, os rituais católico e ortodoxo são considerados superstições desnecessárias para a verdadeira fé. De fato, uma das tendências das correntes protestantes – chamadas históricas – é que os cultos são bem menos complexos em termos de liturgia, ou seja, de ritos, bem como os ritos privados também são reduzidos. Além disso, estas confessionalidades cristãs suprimiram outros elementos simbólicos milenares tais como: o culto à Vir-gem Maria, aos Santos e, consequentemente, às imagens. Assim, percebe-se que nas correntes protestantes do cristianismo há um empobrecimento dos elementos simbólicos.

A corrente religiosa do século XVI, o socinianismo, é um caso típico de religião ra-cional ou deísmo. Fundada por Lélio Socino e por Fausto Socino propunha a ideia de que a razão é suficiente para conhecer Deus e a salvação humana; que a Bíblia é uma mensagem divina, mas pode e deve ser interpretada pela razão. Rejeitam dogmas católicos: a trindade, o pecado original, qualquer tipo de mistério. Por fim, os socinianos mantiveram o batismo e a comunhão,

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con-tudo, tais ritos tinham apenas caráter memorativo, sem atribuir-lhes nenhuma eficácia transcendental.

Jung observará, mais de um século depois, as consequências dessa concepção religio-sa que empobrece a vida simbólica e os ritos religiosos. Retomamos, aqui, os trechos de A vida simbólica, na qual ele compara alguns efeitos psíquicos da vivência dos ritos. Ele toma como ponto de partida sua experiência como terapeuta e também de pesquisas sobre esse assunto: “O menor número ou as menores características de complexos foram encontradas entre os católicos praticantes, número bem maior foi encontrado entre os protestantes e maior ainda entre os judeus” (JUNG, 2008, § 612).

Sua perspectiva é a de que esta diferença se deve ao fato de o ritual católico manter uma série de elementos simbólicos que permitem maior fluxo de libido, ao passo que o protestante se tornara, em suas palavras, um “memorial”. Em primeiro lugar, considera que o ritual da confissão é muito importante e, de fato, em grande parte, auxilia a solução de problemas psíquicos. Observa ainda que os orientadores espirituais católicos exercem um papel semelhante ao do tera-peuta. No entanto, acredita que isso é muito pouco para explicar, em relação à psique, a grande diferença entre católicos e protestantes. Assim, conclui que a missa é fundamental para demarcar esta diferença:

É fato que há relativamente poucos católicos neuróticos, contudo vivem nas mesmas condições que nós. Provavelmente, sofrem sob as mesmas condições sociais que nós, sendo de se esperar também muitas neuroses. Deve haver algo no culto, na verdadeira prática religiosa, que explique o fato peculiar de haver menos complexos, ou de estes complexos se manifestarem muito menos nos católicos do que em outras pessoas. Este algo é, além da confissão, o próprio culto. É, por exemplo, a missa. O cerne da missa contém um mistério vivo, e é isso que funciona. Por “mistério vivo” não retendo significar algo misterioso; uso “mysterium” aqui no sentido que sempre teve – um “mysterium tremen-dum”. Mas a missa não é o único mistério na Igreja Católica. Há outros mis-térios. Eles já começam na preparação simples das coisas na Igreja. Tomemos, por exemplo, a preparação da água batismal – o rito da benção da fonte batis-mal na noite da vigília pascal. Aí se pode ver que ainda se realiza uma parte dos mistérios de Elêusis (JUNG, 2008, § 615).

Fica clara, portanto, a importância dos rituais religiosos, ou seja, da espiritualidade vivenciada nos ritos, ou ainda, da vida simbólica para a saúde psíquica das pessoas, tendo em vista as demandas do dia a dia, as pressões diárias que todo mundo sofre em virtude dos relacionamentos familiares, no trabalho, a necessidade de se obter meios de sustento etc. Neste mesmo sentido, podemos

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citar Campbell (2006, p. 42): “A função do ritual, como eu a entendo, é de dar forma à vida humana, não à maneira de um mero arranjo superficial, mas em profundidade”. Podemos dizer, simplificadamente, que a experiência da vida simbólica permite redimensionar estes problemas do cotidiano da seguinte forma: uma vez que participamos de um mistério maior, os problemas deste mundo se tornam infinitamente menores. Ao vivenciá-los de perto e buscar a solução apenas em explicações materiais, estamos presos a uma roda cujo

moto continuum leva a uma quantidade maior e mais complexa de neuroses.

Por outro lado, quando se reserva um tempo, se prepara um espaço para as práticas espirituais, permite-se o fluxo de energia psíquica ou libido. É como se um problema estivesse recebendo atenção – ou energia – demais e, por isso, sua dimensão estava ficando infinitamente maior do que, de fato, era. O culto dos antepassados, por exemplo, pode trazer à memória que problemas semelhantes já foram vividos por muitas outras gerações e que, de um modo ou de outro, superaram as dificuldades. Isso reduz em dimensão de importância alguma questão que, do ponto de vista cotidiano e material, parecia ser muito grande. CONCLUSÕES

O conceito de vida simbólica, criado por Carl Gustav Jung, pode ser compreendido, portanto, como espiritualidade, pois remete diretamente à experiência de uma vida ligada ao sagrado. O sagrado se manifesta, nas religiões, por meio de três aspectos principais, a saber: das palavras, dos textos ou histórias sagra-dos; por meio de imagens, para as religiões que as possuem; ou por meio de gestos nos rituais religiosos, que são igualmente simbólicos. Há outros aspectos simbólicos nas religiões que conduzem à atmosfera do sagrado, como a arquitetura, os paramentos, as hierarquias, os cantos, as danças, mas, infelizmente, não pudemos analisar todos estes elementos neste trabalho. Não bastam, para o devido fluxo de energia psíquica, as formas de espiritualidade que

a sociedade moderna oferece às pessoas. Por exemplo, os rituais da nossa so-ciedade como formaturas, passar nos vestibulares, recepção de calouros, exer-cício da profissão etc. Apesar de serem simulacros dos rituais de passagem são extremamente incapazes de permitir o fluxo de energia psíquica e, com isso, possuem um efeito catártico muito limitado. Em Para viver os Mitos, Camp-bell (2006, p. 44) observa esse fenômeno:

Um neurótico poderia ser definido, sob esse prisma, como alguém que falhou em atravessar completamente o limiar crítico de seu “segundo nascimento” de adulto. Os estímulos que deveriam evocar nele pensamentos e atos de respon-sabilidade evocam, em vez disso, pensamentos e atos de fuga rumo à proteção,

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de medo de punição, de necessidade de conselho e assim por diante. Ele precisa corrigir continuamente a espontaneidade de seus padrões de resposta e, como uma criança, tenderá a atribuir seus fracassos e seus problemas aos pais ou àquele conveniente pai substituto, o Estado e à ordem social por cujo intermédio é protegido e mantido.

Desta forma, o homem moderno desconhece a necessidade da vida simbólica, e, sem o perceber, tenta vivê-la em determinadas expressões da sociedade, em rela-ções que se dão somente em termos da materialidade. Desenvolve, a partir disso, neuroses como a compulsão para o consumo ou o apego aos títulos e diplomas. O mercado editorial de obras de autoajuda proporciona, ao homem moderno, uma possibilidade de buscar formas de espiritualidade que não es-tão diretamente relacionados aos credos religiosos. Há uma independência de espiritualidade - como no caso de Rousseau -, formas particulares de conceber experiências de enriquecimento pessoal, em geral, ligadas à palavra felicidade que está presente em milhares de publicações dessa literatura.

Neste sentido, a apropriação cultural – com o respectivo empobrecimento de informa-ções – de formas de religião e espiritualidades orientais também toma conta deste nicho do mercado editorial. Há milhares de publicações sobre o budis-mo, por exemplo, algumas bastante interessantes, porque escritas por pessoas que vivem espiritual e intelectualmente essa religião, como no caso dos livros do monge vietnamita Thich Nhat Hanh. Há muitas, porém, que são meras apropriações culturais e venda de fórmulas prontas. Via de regra, tais publi-cações, sobre budismo, yoga e hinduísmo retiram o aspecto ritualístico destas religiões e as apresentam como filosofias de vida, por isso, podemos tratá-los como formas de espiritualidade superficiais ou seculares. Paralelamente a este processo de empobrecimento simbólico do homem moderno, podemos citar exemplos de comunidades que mantém ricas formas de expressão simbólica em suas religiões, como vimos no início deste trabalho, o caso do ritual

apa-paatai. Atamai estava convicto de que a doença que tinha não era algo que a

medicina dos “brancos” poderia curar, mas decorrente de algo relacionado à mitologia.

Enfim, quando nos referimos ao homem moderno não estamos tratando de um fenôme-no crofenôme-nológico, mas um modo de ser fenôme-no mundo que procura banir o sagrado e basear sua existência somente em valores exclusivamente humanos ou profa-nos. Para banir o sagrado, o homem moderno recusa-se às tradições religiosas, especialmente os ritos e, com eles, a espiritualidade da vida simbólica. Ocorre que, como afirma Eliade (2010, p. 165), o homem moderno não pode, simples-mente, banir o homo religiosus do qual é herdeiro: “Mas o homem a-religioso descende do homo religiosus e, queira ou não, é também obra deste,

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consti-tuiu-se a partir das situações assumidas por seus antepassados”. Por isso, o sagrado renasce camufladamente no profano: o homem moderno, pensando que suas ações e escolhas são profanas, na verdade, reproduz os arquétipos de seus antepassados, de cujas heranças culturais, portanto psíquicas também, não pode simplesmente se despojar por um ato de vontade da razão. Assim, ir ao cinema, ler um romance, ir a uma formatura, retornar aos sítios dos pri-meiros amores (ELIADE, 2010, p. 28) são atividades sagradas, camufladas de profanas. Ora, tais atividades, no entanto, não possuem o mesmo potencial catártico que os rituais religiosos, especialmente das religiões, cujos rituais são ricos simbolicamente. Desta forma, o homem moderno vive sua profunda crise espiritual uma vez que procura despojar-se das heranças do homo

religio-sus, projetando a necessidade arquetípica da vida simbólica em ações e

valo-res humanos, sem conseguir, com isso, o fluxo necessário de energia psíquica para superar as pressões diárias às quais todos estamos submetidos. Não tem tempo, nem espaço, um pequeno lugar em seu quarto que seja, onde possa de-dicar alguns minutos por dia ao sagrado, à vida simbólica ou à espiritualidade. SPIRITUALITY AND SYMBOLIC LIFE

Abstract: This work aims to analyze the concept of ‘symbolic life’ of Carl Gustav Jung

and associate it with the notion of spirituality. For Jung, modern man experi-ences a spiritual crisis due to the loss of his ability to react to the numinous and the forces of the unconscious. The symbolic life expressed through religious rituals that allow the energetic flow generated by the pressures of life on the conscience and the unconscious, in other words, expressed through symbols of religions, this is, by their forms of spirituality present in collective or private rites. In this way, as richer in symbols, the greater will be the capacity of reli-gion to balance the relationship between ego and self, as well as between the person and the ordinary life. On the other hand, the greater the rationaliza-tion of religion and the materialistic conceprationaliza-tion of life, the less intense is the symbolic life and the less the ability to react to the drives of the unconscious and the pressures of life. In this sense, as a last resort, modern man clings to superficial forms of spirituality such as self-help literature, hobbies, and so on.

Keywords: Spirituality. Symbolic Life. Philosophy. Religion.

Notas

1 Utilizaremos, neste trabalho, a expressão neurose, em decorrência do vocabulário de Carl Gustav Jung. Atualmente, os termos que definem as doenças mentais são definidos na CID – 10 a qual, via de regra, utiliza a expressão transtornos.

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2 O termo libido é popularmente mais conhecido conforme o vocabulário freudiano. Jung também o utiliza no sentido de energia psíquica, mas modifica substancialmente seu significado, pois lhe atribui um sentido de energia vital bem mais amplo do que o caráter exclusivamente sexual atribuído por Freud.

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