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ATLAS: um produto cultural da Época Moderna

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Academic year: 2020

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO COLÉGIO PEDRO II – RIO DE JANEIRO

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ATLAS

Um produto cultural da Época Moderna

Martha Couto Neves1

Resumo: No contexto dos chamados Descobrimentos ultramarinos e do Renascimento cultural e científico, a produção cartográfica europeia se intensifica na ânsia de conhecer e difundir os espaços geográficos recém-descobertos. Terras, fauna, flora e povos diferentes passam a fazer parte de um mundo que os conquistadores e exploradores ampliaram aos olhos dos habitantes do Velho Continente. No esforço para abarcar novos territórios e gentes, introduzindo-os na sua esfera de conhecimento e domínio, os europeus produzem obras que visam a totalização: são os atlas, que surgem nas décadas finais do século XVI, unindo Geografia e História. As especificidades de sua composição - que mescla o pictórico e o textual -, os circuitos de sua produção e difusão e seus significados e usos políticos os tornam fonte interessante para estudar a cultura na Época Moderna. Palavras-chave: Atlas; Época Moderna; Cartografia; Descobrimentos; Mapas.

Abstract: During the period known as Discoveries and Renaissance, European cartography increases its production, intending to develop and disseminate knowledge about the lands recently found. Various geographic characters, animals, vegetation and people featured the world that conquerors and explorers turned wider to the inhabitants of the Old Continent. Making efforts to cover and introduce all the new territories and human groups in their science and domain, Europeans initiate the production of atlases. Searching the totalization, this type of cartographic work combines Geography and History and appeared at the late XVI century. Owing to the peculiarities of their construction, which put together picture and texts, and to their social and political meanings, the atlases are interesting sources to study culture at Modern Age.

Keywords: Atlas; Modern Age; Cartography; Discoveries; Maps.

“Filho do Titã Jáspeto e da oceânida Clímene, teve como irmãos a Prometeu, Epimeteu e Menécio, pertencendo, desse modo, à geração de seres monstruosos e descomedidos, anterior aos deuses olímpicos. Participou ativamente da luta dos Titãs contra Zeus. Vencidos, o novo senhor do Olimpo lançou-os no Tártaro, mas infligiu ao irmão de Prometeu um castigo original: sustentar em seus ombros para sempre a abóbada celeste. Seu domicílio habitual é no extremo ocidente, junto aos pais das Hespérides ou mais raramente na região dos Hiperbóreos. Geograficamente, Atlas seria um nome do monte Cilene na Arcádia e, em seguida, com Heródoto (...) passou a designar uma cadeia de montanhas situadas na África do Norte. Teria sido Perseu, que, em seu retorno ao ocidente, aonde fora matar a Medusa, transformara o Titã em rochedo, mostrando-lhe a cabeça da Górgona (...). Uma versão evemerista considera Atlas como astrônomo, que instruiu os homens acerca das leis que governam os astros e, por isso, foi divinizado (...).”

Junito Brandão.2

1 Professora de História do Colégio Pedro II (Unidade São Cristóvão II) e da Fundação Municipal de Educação

de Niterói; Licenciada, Bacharel e Mestre em História pela UFF. Esse artigo foi adaptado do capítulo 2 da dissertação de Mestrado, defendida em 2002 sob a orientação do Professor Ronald Raminelli.

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45 Enorme, forte, conhecedor do Céu e da Terra. A primeira vez que o nome Atlas apareceu no título de um volume de cartas geográficas foi na obra de 1595 de Gerard Mercator, publicada um ano após sua morte por seu filho Rumold: Atlas sive Cosmographicae Meditationes de Fabrica Mundi et Fabricati Figura. Porém, no prefácio, o autor explica que o título pretende homenagear o lendário rei Atlas da Mauritânia, que se destacou na Antiguidade por sua piedade e seus conhecimentos da natureza3, não se tratando do mitológico irmão de

Prometeu. Seja como for, em 1602 o neto de Mercator passa a usar a imagem do gigante no frontispício da obra.

Foi o impressor e negociante de mapas italiano Lafreri o primeiro a mostrar a figura simbólica do titã Atlas sustentando o mundo nos ombros no frontispício de uma coletânea de cartas de cerca de 1560. No entanto, nesse volume, como em outras coleções preparadas sob encomenda de algum cliente especial, as cartas variavam de tamanho e de autoria, não obedeciam a uma lógica de ordenação e representavam mais de uma vez a mesma região.

Inspirando-se nessas coleções italianas e nas edições recentes da obra de Ptolomeu, que apresentavam um mapa-múndi, seguido de cartas especiais dos três continentes conhecidos na Antiguidade, e de cartas modernas que revelavam os avanços dos conhecimentos geográficos desde então, Abraham Ortelius (1527-1598), da Antuérpia, decidiu-se a publicar uma obra diferente: um conjunto de mapas de mesmo formato, com um apenas para cada área representada, retratando todo o mundo recém-descoberto, baseando-se em diversos documentos cartográficos antigos e modernos.4 Ela viria a ser

considerada, por suas características inovadoras, o primeiro atlas moderno.

3 DREYER-EIMBCK, O. O descobrimento da Terra. História e histórias da aventura cartográfica. São Paulo:

Melhoramentos, 1992, p. 38.

4 Segundo Leo Bagrow (History of Cartography. London: C.A. Watts, 1964. p.179), consta que em 1569, quando

trabalhavam juntos, Mercator lhe expôs seus planos para a elaboração de obra semelhante e ele resolveu sair na frente.

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46 O Theatrum Orbis Terrarum (Anexo 1) teve, em sua primeira edição de 20 de maio de 1570, 70 cartas e 87 nomes na lista de cartógrafos cujas obras contribuíram para a elaboração do atlas. A procura foi tão grande que, no mesmo ano, foram publicadas mais duas edições5

e, até 1601, foram feitas cerca de outras 40 pela Europa. O número de cartas e de nomes na relação de colaboradores cresceu continuamente até a morte de Ortelius, que, no entanto, não pôs fim ao ciclo de publicação de sua obra. Seus herdeiros se responsabilizaram por ela até 1601, quando então as pranchas foram vendidas ao livreiro Jan Baptist Vrients, que fez novas edições, sendo que as últimas foram executadas já pela casa publicadora de Plantino e Moretus, que adquiriu os direitos sobre elas em 1612. O Theatrum também gerou pequenos atlas, com títulos onde se incluem as palavras Spieghel, Le Miroir, Epitome e Enchiridion, que foram publicados durante o período que vai de 1577 a 1724.6

As novidades introduzidas pela obra de Ortelius na produção cartográfica podem ser assim resumidas: conferia uma ordem lógica às cartas, apresentando das mais gerais para as mais específicas (mapa-múndi, Europa, Ásia, África, América e cartas parciais), fornecia uma lista de autores que tiveram trabalhos consultados para a confecção das cartas, fazia adendos nas sucessivas edições para corrigir eventuais erros e manter-se, na medida do possível, atualizada em relação ao conhecimento geográfico, e ainda complementava o volume com cartas do mundo clássico.

Outro atlas ainda antecedeu a ambiciosa empresa de Mercator. Foi o Speculum Orbis Terrarum, de Gerard de Jode em colaboração com Daniel Cellarius, publicado em 1578 em dois volumes, com 84 cartas. Gravador e editor de pranchas compradas de outros cartógrafos, De Jode trabalhou com Ortelius e, quando ia expirar o privilégio de dez anos obtido por ele para confeccionar atlas, negociou as primeiras cópias de sua obra com um

5 A Mapoteca da Marinha possui um exemplar desse ano e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro tem um

volume datado de 1575.

6 A Biblioteca Nacional possui um Epitome du Theatre du monde d’Abraham Ortelius, do ano de 1588, e a Biblioteca

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47 livreiro de Paris. Com textos descritivos sobre o mundo, os continentes, ducados e reinos europeus, o atlas contém um catálogo com 92 autores cujos escritos e mapas foram consultados para a execução da obra. A segunda edição foi feita por seu filho, Cornelis de Jode, em 15937, seguindo basicamente a estrutura da anterior, apenas a tabela de autores foi

retirada e incluiu-se a representação dos continentes por alegorias femininas e animais, além de regras e explicações matemáticas e astronômicas. Os direitos de publicação da obra passaram para as mãos de De Vrients e Moretus, mas ela foi deixada de lado devido ao sucesso comercial e ao prestígio acadêmico alcançado pelo Theatrum de Ortelius.

O atlas de Mercator só foi concluído após a sua morte, com a introdução de material produzido por seus filhos e netos. No total, foi editado com 107 cartas, depois de dez anos de iniciado e publicado em partes. Adquiriu grande projeção já nas suas primeiras edições de 1595 e 1602, e daí em diante as edições se multiplicaram, sob a responsabilidade de Jodocus Hondius e seus herdeiros, que utilizavam o nome de Mercator no título e incluíam textos descritivos nas várias línguas nacionais para atrair mais público8. A exemplo do que já

ocorrera com a obra de Ortelius, Hondius publicou em 1607 um pequeno volume baseado no trabalho de Mercator, intitulado Atlas Minor, que também teve muitas edições9.

Outro atlas que merece menção como um dos pioneiros do gênero é o Descriptionis Ptolomaicae Augmentum sive Occidentis, de Cornelius à Wytfliet, datado de 1597, em Louvain. É considerado o primeiro atlas inteiramente dedicado às Américas e seu objetivo era suplementar a obra de Ptolomeu com as descobertas mais recentes realizadas no quarto continente. O volume é uma compilação de fontes cartográficas impressas e de bibliografia

7 A Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores possui um exemplar original dessa segunda edição e um

fac-símile da primeira, datado de 1965.

8 Cerca de 40 edições são conhecidas até 1637. A Biblioteca Nacional possui exemplares das edições de 1613,

1630 e 1636/38, e a Mapoteca do Itamaraty tem um datado de 1641.

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48 antiga e moderna, tendo sido publicado seis vezes em latim e três vezes em francês durante os séculos XVI e XVII.10

Sob a influência desses trabalhos, o século XVII assistiu à predominância dos atlas como forma de expressão cartográfica. Além das obras monumentais dos cartógrafos holandeses, também vemos iniciar-se a produção dos atlas franceses a partir de meados do século, com Nicolas Sanson d’Abbeville (Anexo 2), Alexis Hubert Jaillot e Pierre Du Val. O seu auge, no entanto, foi no século XVIII, quando a escola de cartografia francesa toma impulso rumo ao aperfeiçoamento científico.

Mas ao lado dessas obras impressas, constata-se o aumento do número de conjuntos de cartas manuscritas compostos por cartógrafos portugueses, no período que vai de 1550 a 1680: de um total de 39 que incluem cartas representando o Brasil, apenas três datam de anos anteriores. Embora não tragam a palavra atlas no título, essas obras podem ser incluídas no gênero por obedecerem à mesma lógica de acumulação de dados geográficos e possuírem uma certa ordenação das cartas das regiões do mundo, que são, em geral, do mesmo tamanho e da autoria de um só cartógrafo. O mesmo pode-se dizer dos atlas manuscritos franceses, elaborados sob a influência dos mestres lusos durante o século XVI.

A possibilidade de apresentarem todo o mundo, assinalando as novidades trazidas pelas viagens de descobrimento e revelando a existência de espaços e gentes que antes apenas se faziam presentes na imaginação dos habitantes do Velho Mundo, exerceu um poderoso fascínio sobre os cartógrafos e sobre o público europeu. E, mais ainda, a inserção de textos, sob a forma de legendas, de explicações náuticas e cosmográficas, e de descrições das diversas áreas, pareceu tornar a obra mais completa, capaz de conciliar a perspectiva global com o detalhe local. O atlas constituiu-se um dispositivo que permitia ao leitor sentir-se no controle do mundo e, ao mesmo tempo, transportava-o a lugares distantes, onde via paisagens e

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49 encontrava espécies muito diferentes daquelas com as quais estava familiarizado. Ele convidava o leitor a uma viagem imaginária pelo planeta, satisfazendo a necessidade de expandir seus conhecimentos e também o seu desejo de realizar conquistas pelo mundo afora. A curiosidade e a cobiça despertadas pela multiplicação dos contatos com o estrangeiro, a partir das navegações oceânicas, encontravam no atlas uma fonte considerável de informações. Podemos perceber essa vocação das obras pelos seguintes trechos, extraídos das Palavras ao Leitor e da Dedicatória de dois atlas holandeses:

O curioso e o útil se encontram eminentemente nesta parte. Um tem do que se satisfazer nas pesquisas de História tanto Antiga, quanto Moderna, dos lugares, que nós representamos, em nossa Hidrografia: O outro não tem motivo para reclamar, considerando que nós lhe fornecemos todas as direções e Cartas necessárias para os negócios; nós lhe damos um detalhe perfeito das fronteiras Marítimas, de suas qualidades e dependências, dos gêneros que as Províncias e Reinos produzem em geral; a fim de que ele possa sair-se bem em suas ações.11

Ilustríssimos e poderosos Senhores, elevado e Magnânimo Príncipe, Não há coisa mais digna à grandeza de vossos poderes, ou mais proveitosa para vossos assuntos, que a contemplação deste universo, para entreter e aguçar o entendimento na observação da situação e grandeza de tantos lugares, não somente da Europa, nem tampouco da Ásia e da África, mas ainda do novo Mundo, pouco conhecido durante um século inteiro onde atualmente os estandartes de vossas Vitórias, e a reputação de vossa força, tanto na paz quanto na guerra têm penetrado. 12

A leitura dos atlas modernos conduz do geral ao particular e do familiar ao desconhecido, nos permitindo reconhecer a progressiva construção do espaço terrestre na medida em que aumentava a produção desses materiais cartográficos, compostos por uma aliança entre imagem e texto. Assim, o volume geralmente começava com um planisfério e a descrição do mundo, seguindo-se a representação da Europa, da Ásia, da África13 e da

América, com suas respectivas descrições. Quando não havia texto descritivo, legendas e figuras forneciam informações específicas sobre cada uma das regiões. Depois, sucediam-se

10 Cinquième Partie du Grand Atlas contenant une parfaicte Description Du Monde Maritime ou Hydrographie generale de

toute la Terre. Amsterdam, Ioannem Ianssonium, 1650. (Tradução minha)

12 Gerardi Mercatoris Atlas sive Cosmographicae Meditationes de Fabrica mundi et fabricati figura. De novo multis in locis

emendatus et Appendice auctus. Amsterdam, Judoci Hondy, 1630. (Tradução minha)

13 A ordem entre esses dois continentes variava, pelo que pudemos observar na documentação

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50 cartas parciais de certas áreas dos continentes, que abrangiam espaços menores em escalas maiores, cabendo à Europa o maior número delas, pois era, obviamente, mais conhecida. Os textos que as acompanhavam, além de fornecerem indicadores náuticos e geográficos (como localização, portos, ventos, marés, clima, limites), davam especial atenção aos aspectos da chamada história natural, que atendiam tanto aos interesses econômicos (existência de recursos aproveitáveis), como aos científicos (diversidade de espécies). É claro que tais informações se prestavam também a usos políticos, como planejar e legitimar expedições ou invasões, confirmar a posse de territórios e propagandear conquistas.

Os atlas incorporam, de certa forma, um legado das cosmografias. A ânsia da totalidade se acha na base do gênero: conhecimento global, controle total. O mundo inteiro e todas as possibilidades que ele oferece à ação humana contidos numa obra, num livro a ser consultado num gabinete, num palácio, numa biblioteca ou em casa. Porque, assim como os exemplares do gênero anterior, os volumes dos atlas não são, em geral, para serem manipulados durante as viagens concretas, e sim durante seu planejamento, ou mesmo durante sua imaginação. O nome cosmógrafo é ainda aplicado àqueles que confeccionam as cartas e escrevem os textos, porém agora não é ele quem pessoalmente recolhe informações em viagens pelo mundo. Via de regra, ele apenas organiza os dados trazidos pelos pilotos, coligindo-os com os fornecidos por obras anteriores. Ainda que atribuído a um autor, o atlas resulta de um trabalho mais coletivo, em que os colaboradores merecem créditos, e do qual tomam parte ativa ajudantes e aprendizes (que executam iluminuras, inscrevem topônimos e legendas), e também os gravadores, impressores e editores. A palavra “cosmografia” aparece por vezes nos títulos ou no decorrer dos textos dos atlas, mas os elementos teológicos que se faziam presentes de forma marcante se esvanecem, abrindo-se mão dos seus conteúdos morais para se privilegiar os geográficos. As interações entre o homem e o seu espaço tornam-se primordiais na concepção da obra, mesmo que se reconheça o papel divino na

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51 Criação, como está claro no seguinte trecho do Prefácio do Nouveau Theatre Dv Monde ou Nouvel Atlas, de I. Jansson, datado de 1639, em Amsterdã:

Todas as criaturas visíveis que Deus fez, estão compreendidas nestas duas, o Homem e o Mundo. Aquele foi designado Senhor do Universo: este é a sede de seu Império. Aquele é o hóspede e habitante do mundo: este é a magnífica e espaçosa casa de um hóspede tão notável. Nós reconhecemos no homem a imagem desse excelente Operário que a criou: e no mundo a do homem. Aquele se assemelha de alguma maneira a Deus, em sua alma, em sua ciência, em santidade e em poder: Este representa o homem; de sorte que devido à essa semelhança os Filósofos deram ao homem o nome de pequeno mundo.14

Ou ainda na citação tomada de Cícero, que aparece no verso da folha de rosto do Epitome Dv Theatre Dv Monde d’Abraham Ortelius, de Philippe Galle, impresso por Christofle Plantin em Anvers, no ano de 1588: “O Cavalo foi criado para carregar e puxar: o Boi para arar e trabalhar a terra: o Cachorro para caçar e proteger a casa: Mas o homem para considerar e contemplar com os olhos do entendimento a disposição do Mundo Universal”. 15

Enfim, podemos considerar o atlas como a culminância cartográfica de um processo que teve início no século XIV e que visava estabelecer um modelo visual para o mundo, que adquiria novas dimensões graças ao desenvolvimento dos intercâmbios comerciais entre os europeus e os árabes e às navegações oceânicas empreendidas pelos ibéricos. Nesse processo, o homem renascentista forjou explicações para aquilo que não conhecia e criou identidades para as terras e gentes que encontrava. Com a imagem do todo definida, partiu para decifrar as características particulares de cada região. É significativo que os atlas tenham proliferado numa época em que o homem já tinha alcançado todas as partes do planeta e buscava meios de explorá-lo.

Agora para observar o Método dos meus Autores nesta, e em todas as demais descrições Geográficas, primeiro é dado o nome, depois a Localização, o Tamanho, os Limites, a Fertilidade, as principais Cidades, Vilas, Castelos, Fortes, Aldeias, Rios, Montanhas, Bosques, Florestas, Gado e bestas estranhas de todos os vários Reinos, Países e Regiões do Mundo, as diversas raridades e maravilhas da natureza, primeiro num País, em seguida noutro, a Religião, o Costume, as Maneiras, Condições e

14 Tradução minha.

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Qualidades das várias nações da Terra. Aqui os grandes Monarcas, Reis e Príncipes desse Universo, podem representativamente em seus Gabinetes dar uma olhada na extensão, e nos limites de seus próprios Reinos, e Domínios: e ver a Genealogia dos diversos Príncipes, e a Política de Governo de seus Estados. E se eles estiverem em hostilidade com o seu vizinho os Príncipes podem espiar aqueles lugares, cidades e Fortes, que situam-se mais vantajosamente e comodamente para satisfazerem suas ambições, e as memoráveis ações bélicas, que ocorreram nas Monarquias do mundo. Aqui os Nobres e Cavalheiros por especulação em seus quartos, podem viajar através de cada Província do mundo inteiro. Aqui o Divino tem matéria de contemplação, observando a Terra Santa, sobre a qual os Patriarcas e Profetas Sagrados, e o Senhor da vida, o Príncipe da nossa salvação pisaram com seus pés abençoados (...); e vê por demonstrações esses Países, admirando o amor infinito, e a bondade de Deus, onde a luz gloriosa do Evangelho primeiro irrompeu, e onde é hoje pregada? Enquanto isso milhões de outras nações permanecem ainda no paganismo, Maometanismo, Idolatria, superstição, escuridão, e na sombra da morte, sendo estranhos à vida de Deus. Aqui o Soldado tem assunto de deleite oferecido a ele, lendo a história, e contemplando o lugar onde foram travadas muitas batalhas sangrentas, e muitos militares atuaram. Aqui o Navegador pode perceber como cada Costa, Promontório, Porto, Baía, Cidade e Fortaleza se encontra, de Pólo a Pólo de Leste a Oeste, junto com sua altitude, longitude e latitude. Aqui o comerciante sentado em seu balcão, pode saber que Mercadorias cada País fornece, quais produtos desejam, e para onde ele pode transportar, e vender aqueles que são mais procurados para trazer ganhos e lucros para o seu bolso. Aqui também os Físicos podem aprender quais ervas Medicinais e simples, drogas, e minerais cada País apresenta, para o restabelecimento da saúde do homem. Em resumo, este livro é útil a todos os homens, qualquer que seja a profissão, qualidade ou condição que possuam (...).16

Projeto ambicioso o do atlas, que pretende servir a um público tão eclético: governantes, fidalgos, religiosos, soldados, comerciantes, médicos, enfim, a todo tipo de pessoa, independente de sua posição social. As informações que veiculam abrangem diversos aspectos das regiões representadas: localização, extensão, limites, topônimos, povoados, construções significativas, acidentes geográficos, pontos estratégicos, recursos econômicos, formas de governo, animais, vegetação, caminhos, elementos exóticos, práticas religiosas, modos de vida, batalhas ocorridas, plantas medicinais.

Tal proposta enciclopédica tinha a sua base na associação entre a Geografia e a História, como está explicitado no mesmo volume:

16 Trecho do Prefácio escrito por Henry Hexham para a edição em inglês do Gerardi Mercatoris et I. Hondii Atlas,

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Este trabalho é composto de Geografia, (que é uma descrição da terra conhecida e de suas partes) e História, que é (Oculus mundi) o olho do Mundo. Essas duas andam inseparavelmente juntas, como se estivessem de mãos dadas (...) e são como duas irmãs que se amam, e não podem sem pesar ser divididas.

Na introdução da obra monumental de Blaeu, Le Grand Atlas ou Geographie Blaviane (1663) (Anexo 3), essa ligação também é destacada, sendo a geografia definida como o “olho e a luz da história”. E a dedicatória do atlas de Sanson e filhos ao Príncipe de Brandebourg faz questão de enfatizar a complementaridade e a necessidade do estudo de ambas para a formação dos homens de governo:

Senhor, não há pessoa que não conheça a utilidade da História, e que não saiba que para bem a entender, é necessário saber a Geografia. É isso que tem sempre obrigado personagens sábios a se dedicarem a ela, particularmente a fim de facilitar o entendimento de Histórias antigas e modernas; Estudo muito útil em geral a todo tipo de pessoa, e que é em particular a verdadeira Escola de Príncipes, que a Providência chama à condução dos Povos e ao Governo dos Estados.17

Svetlana Alpers18 vê nessa relação estreita entre as duas disciplinas um reforço mútuo

de autoridade; se a história conferiu à geografia vida e alargou-lhe o escopo, a geografia deu à história uma base material concreta e uma aparência de neutralidade. Nas cartas do período moderno, e particularmente nos atlas, geografia e história se misturaram em desenhos e palavras para formar um mundo único e uma imagem pretensamente imparcial daquilo que devia ser conhecido.

As imagens e explicações que enchem as superfícies dos mapas individuais passaram para as páginas, as páginas multiplicaram-se para encher os volumes de um atlas - que no caso de um rico protetor particular como Van der Hern podia chegar a não menos de quarenta e oito volumes - e finalmente se estenderam a tal ponto que já não podiam ser encadernadas e, assim, passaram a constituir coleções separadas. De fato, não há fim para tamanha reunião enciclopédica do conhecimento. 19

Convém assinalar, no entanto, que essa associação não é uma novidade do Renascimento. Até fins do século XVI, o ensino de história nos colégios e universidades ocorria sob a legenda de “letras de humanidade” ou “retórica”, e não se dava com o recurso a manuais ou programas sistematizados, mas sim através da leitura dos historiadores clássicos

17 Original em francês. Tradução minha.

18 ALPERS, S. A Arte de Descrever: A arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp,1999, p. 302-309. 19 Ibid., p. 311.

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54 (Tito Lívio, Salustio, Tucídides, por exemplo). Era um elemento importante na formação moral e ética dos jovens, pois além de instruí-los acerca de acontecimentos importantes do passado e dar-lhes a erudição necessária a um bom orador, fazia-os refletirem sobre os vícios e virtudes humanas a partir dos exemplos que divulgava. A geografia andava junto com o ensino da história, situando os heróis clássicos no ambiente físico e na paisagem do seu tempo.20 O que as novas obras trazem de diferente é a ampliação do espaço e da humanidade

analisada, fruto da expansão marítima, e também uma valorização das experiências adquiridas pelos homens modernos diante da autoridade dos antigos.

É lícito perguntar se as obras realmente atingiram um público tão amplo e diversificado e se, efetivamente, iam ao encontro dos interesses dos homens do seu tempo. A questão da recepção das obras revela-se problemática, pois não temos fontes para nos informar a respeito da reação dos leitores a essas publicações. Afinal, “a leitura raramente deixa marcas, e (...) ao dispersar-se em uma infinidade de atos singulares, liberta-se de todos os entraves que visam submetê-la” 21

Assim, o que se tem são os registros das casas editoras e dos negociantes de mapas e livreiros. Através das listas de edições, de vendas e dos preços pode-se ter uma ideia do número de obras em circulação no período e do sucesso e prestígio que elas alcançaram. Também se fazendo levantamentos dos acervos das bibliotecas particulares, de escolas e universidades é possível se chegar a algumas conclusões acerca do tipo de leitor que se interessou pelos atlas. Porém, mesmo assim, é difícil termos uma exata dimensão do público que teve acesso às obras. E, mais ainda, como eles receberam essa enorme gama de

20 Cf. DAINVILLE, F. de. “Histoire et Geographie” In: L’Éducation des Jésuites (XVI – XVIII siècles). Paris: Les

Éditions de Minuit, 1978.

21 CHARTIER, R. A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília:

Ed. UnB, 1994, p. 11. O autor se propõe a refletir exatamente sobre o desafio que representa para o historiador investigar a prática da leitura em outras épocas e suas relações com o escrito. Distingue três pólos que devem ser considerados para a execução dessa tarefa: a análise dos textos, sua estrutura e seus objetivos; a história do livro, como uma das formas possíveis tomadas pelo escrito; o estudo das práticas que se apossam desse objeto produzindo usos e significados diferenciados.

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55 informações contidas nos volumes, que impacto os atlas tiveram sobre sua formação e sua atuação.

Em relação aos atlas manuscritos, as respostas a essas questões podem ser mais simples, tendo em vista as condições limitadas de sua circulação. Além do autor e do receptor, as obras devem ter passado pelas mãos de poucas pessoas, provavelmente ligadas a funções de governo e de planejamento e execução de expedições ultramarinas. Em se tratando dos atlas lusitanos, muitos daqueles que tem um frontispício indicam, além do nome do cartógrafo e a data, o destino da obra; seja através de uma dedicatória ou da apresentação de um brasão de armas, eles eram oferecidos a figuras das altas esferas da época - reis, príncipes, vice-reis, governadores, nobres, bispos.

É de se presumir que os volumes tenham sido objetos de análise por ocasião da organização de novas viagens marítimas, pois compunham-se predominantemente de cartas náuticas, isto é, centradas nos oceanos e mares para o fornecimento de informações sobre rotas para a navegação. Além disso, traziam regimentos náuticos e tábuas de declinação solar, úteis àqueles que pretendem se localizar em alto mar. Mas, sendo a maior parte deles confeccionados em tamanho grande e ricamente iluminados, não devem ter servido aos homens embarcados nas naus do Reino. Figurando estandartes e brasões nos continentes, permitiam visualizar a extensão dos domínios dos soberanos e seus rivais, e realçavam seu poder, podendo ser considerados como material para estudo e admiração. No entanto, é importante não esquecer que algumas obras foram mutiladas, se deterioraram com o passar do tempo, ou realmente não foram assinadas nem contêm dedicatórias, impedindo a verificação dos objetivos de sua elaboração.

Sem dúvida, a imprensa foi a grande responsável pela vulgarização da imagem cartográfica do mundo e pela circulação de notícias relativas aos Descobrimentos na Europa Moderna. Se em Portugal as obras impressas não assumiram um papel tão decisivo, pelo resto do continente relatos e roteiros de viagem, textos literários e atlas foram editados e

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56 reeditados para atender à demanda de um público fascinado pelo mundo que emergia da aventura marítima europeia. Mas será que essas obras divulgadas pela imprensa podiam ser adquiridas e lidas realmente por todo tipo de pessoa? Evidentemente, a resposta é não.

Primeiro, porque os atlas eram caros, muitas vezes compostos em mais de um volume, demandando somas consideráveis dos clientes interessados. E segundo, que mesmo os mais simples, confeccionados em tamanhos menores, sem cartas aquareladas ou iluminadas, exigiam do público um pré-requisito ainda raro para a época: o domínio da leitura. Se levarmos em conta que o processo de alfabetização se acelera na França, e em outras partes da Europa, ao longo dos Setecentos, e apenas no século XIX se organiza um sistema nacional de ensino com instituições especialmente destinadas a esse fim22, fica claro

que, na verdade, os atlas eram voltados para um tipo bem específico de pessoa: alfabetizada, iniciada em retórica, gozando de uma boa situação econômica, com tempo disponível para se dedicar aos estudos, provavelmente ligada a atividades administrativas, comerciais, financeiras, religiosas ou militares. Não devemos ignorar a possibilidade de ter havido uma transmissão visual e oral das informações contidas nas cartas e nos textos, porém nada podemos afirmar com segurança a respeito desses circuitos sem cairmos no terreno das especulações.

No entanto, ainda que os atlas não tenham alcançado um público tão amplo quanto pretendiam, o seu impacto social não deve ser menosprezado. Afinal, se eles atraíram a atenção de homens de negócios e de governo, se prestaram a usos políticos e econômicos, servindo de base ao planejamento de ações e à tomada de decisões, interferindo diretamente nas sociedades de sua época. Além disso, o fato de serem impressos lhes conferiu condições

22 Sobre a questão da difusão da escrita e do aparecimento das sociedades letradas, ver texto de Goody e Watt,

“The Consequences of Literacy”. In: GOODY, J. (ed.). Literacy in traditional societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. A demanda social pela alfabetização e a atuação do estado republicano francês na educação são avaliados por Furet e Ozouf, no texto “Trois siècles de métissage culturel”. In: FURET, F.; OZOUF, J. Lire et écrire. Paris: Minuit, 1977.

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57 de produzirem efeitos a longo prazo e de atingirem um público mais distante no tempo e no espaço. Portanto, uma avaliação da repercussão dessas obras não pode ser feita apenas com base em critérios quantitativos, devendo levar em conta também o seu tipo de público e a sua capacidade de provocar mudanças nas sociedades que as produziram e consumiram.23

* * *

23 Seguindo essa linha de pensamento, C. Mukerji faz a crítica de alguns trabalhos, que subdimensionam o

impacto provocado pelos documentos de caráter geográfico sobre as sociedades contemporâneas aos Descobrimentos em virtude do pequeno número de obras impressas encontradas. “A New world-Picture: Maps as Capital Goods for the Modern World System”. In: From Graven Images. Patterns of Modern Materialism. New York: Columbia University Press, 1983, p. 97-98.

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58 ANEXOS

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60 Anexo 3

“Americae nova Tabula”. Geographie Blaviane – Vol. XII. Joan Blaeu, Amsterdã. Fac-símile da edição de 1663 publicado por Theatrum Orbis Terraru

Referências

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