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P A N Ó P T I C A FILME, OBRA, LIVRO: CAMADAS PARA PENSAR A ANTROPOLOGIA VISUAL A PARTIR DO NIGHT CAFÉ, DE LÍGIA DABUL 1

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Academic year: 2021

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FILME, OBRA, LIVRO: CAMADAS PARA PENSAR A ANTROPOLOGIA

VISUAL A PARTIR DO NIGHT CAFÉ, DE LÍGIA DABUL

1

Sabrina Parracho Sant’Anna Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

1. INTRODUÇÃO

Dirigido por Lígia Dabul, Night Café2 é um documentário em curta-metragem, produzido no

âmbito do Núcleo de Estudos Cidadania, Trabalho e Arte da Universidade Federal Fluminense e que veio a público pela primeira vez em 2011, no circuito fechado de pequenas apresentações acadêmicas em debates universitários.

Casamento feliz entre diferentes pesquisas empreendidas pelos participantes do núcleo, o filme inevitavelmente faz pensar sobre o modo como sociólogos e antropólogos têm se apropriado de discursos imagéticos para construir objetos de pesquisa, fixar entrevistas, construir seu estar ali ou apresentar resultados já ordenados. Fazendo referência à discussão de Strathern que toma o corpo como último referencial de análise dos antropólogos, mas também – e por que não? – dos cientistas sociais, Marco Antonio Gonçalves e Scott Head fazem pertinente comentário aludindo aos aparatos técnicos de captação e produção de imagens como extensão dos sentidos: corpo mutante em tempos digitais.

Pois – para o bem ou para o mal – estas mídias fotográficas, fílmicas, vídeo-digitais e o imaginário ‘imagético’ que elas animam já fazem parte do corpo etnográfico-ciborgue que conecta a Antropologia ao mundo dos outros e às representações e apresentações que estes outros fazem de seus mundos e do(s) nosso(s) (Gonçalves & Head, 2009: 9).

1 Uma versão reduzida deste texto foi traduzida e publicada em Vibrant, dez. 2012.

2 Night Café está disponível em http://www.youtube.com/watch?v=itOEFip3zuA. Legendagem para o inglês, por

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De fato, uma vez que as imagens estão-aí, é preciso refletir sobre o modo como vêm sendo construídas e apresentadas. O filme de Lígia Dabul coloca, assim, interessantes questões para discutir o uso da imagem fílmica nas Ciências Sociais.

Pondo em relação diferentes camadas de reflexão e de pesquisa, o documentário efetivamente se coloca como produção de discursos diversos e propõe uma solução inovadora para a construção de objetos coletivos. Apresentando os resultados de pesquisa de Renan Muros Prestes sobre a produção de Van Gogh e sobre as cartas escritas a seu irmão Theo como espaços fundamentais da construção da interação e da experiência do artista imerso na vida social, o filme proporciona também importante reflexão sobre a recepção da obra de arte por seu público, questão premente nos trabalhos recentes de Lígia Dabul, diretora do filme e orientadora dos alunos envolvidos na filmagem.

2. A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA:

O Night Café que dá nome ao filme é também o título da obra homônima de Van Gogh (Le

café de nuit) que ordena a construção da narrativa. As primeiras tomadas do documentário

apresentam o intrincado enredo que constitui o argumento central dos pesquisadores. O nome da tela de Van Gogh aparece na seqüência de uma série de imagens de um bar de Niterói filmadas em menos de 24 quadros por segundo, em baixa velocidade, e que dão a impressão borrada, marca deliberada da subjetividade do artista-pesquisador. As seqüências filmadas no bar, Caverna do Bin Laden, são imediatamente seguidas da imagem da obra de Van Gogh e que passará a ser discutida com os freqüentadores do bar.

O Night Café de Van Gogh, de 1888, representando o Café de la Gare, e que é leitmotiv do filme, apresenta um bar de Arles tematizado pelo artista. A pintura, das mais conhecidas de Van Gogh, revela no centro da composição a mesa de sinuca, rodeada por mesas menores ocupadas por freqüentadores de cabeça baixa e casais na penumbra. O quadro pintado predominantemente no par de cores complementares, vermelho e verde, de efeito sempre controverso e expressivo, é encimado por luzes de um amarelo dramático. No filme, a

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apresentação da obra é intercalada pela voz em off que lê trechos das cartas de Van Gogh: “é a obra mais feia que já fiz”.

Transposta para um livro de arte, a imagem se torna objeto facilmente transportável e, uma vez beneficiada da reprodutibilidade técnica que permite extraí-la do contexto do museu, pode ser manuseada e colocada no contexto específico do bar, onde a verde mesa de sinuca e a parede de tijolos levemente escarlate criam o interesse do espaço onde a experiência etnográfica será encenada. O bar de Niterói se torna o espaço real representado pelo pintor. Entre as mesas de aqui e agora, os pesquisadores se tornam entrevistadores e passam a levar a imagem para entender a recepção da obra de Van Gogh pelo público comum dos freqüentadores da Caverna do Bin Laden.

Confrontados pela imagem e por trechos das cartas do pintor, os depoimentos começam a revelar relações possíveis com a obra de Van Gogh. Difícil não associar elementos de discurso ao livro de Nathalie Heinich (1992), e pensar a construção da figura do artista como o gênio e o mártir ou como seu contraponto o louco e o incapaz.

O ponto alto do filme, no entanto, se dá no momento em que arte e vida parecem se confundir e apresentam efetivamente o momento em que as diferentes pesquisas e narrativas se cruzam. A surpresa acontece já nos primeiros minutos das entrevistas quando os entrevistados, confrontados pela imagem e leitura das cartas, passam a entabular uma conversa que passa muito mais pelo bar ali presente que pela imagem apresentada na obra de arte. O discurso, que deixa de falar sobre a obra para se referir ao bar, é o momento do não esperado, feliz acontecimento de serendipidade, quando a recepção de Van Gogh, deixando de expressar as categorias artísticas, passa a se remeter não à imagem, mas ao bar; não à arte, mas à vida. Mise en abyme fundamentalmente reveladora das práticas sociais coletivas que, no ato de interação, ordenam o discurso sobre a obra a partir da experiência vivida aqui e agora e constroem interpretações a partir de uma presença no mundo. Se Night Café, apresentando as obras de Van Gogh, pode parecer um filme sobre um bar, ele, em verdade, coloca com delicadeza em evidência, um público que, ao falar sobre arte, inevitavelmente, fala sobre si mesmo. Com efeito, conforme Lígia Dabul já havia observado em outras ocasiões:

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Comentários de visitantes sobre obras de arte numa exposição em muitos casos fluem para assuntos de seu cotidiano e do interesse comum, o prazer da conversa fixando-se especialmente nessas referências a fatos e a considerações sobre fatos compartilhados ou conhecidos por eles, que não têm relação com aquela situação da exposição. (Dabul, 2008: 56-57)

O filme, portanto, efetivamente apresenta pesquisa sociológica de maneira original. Uma vez que a recepção sobre a obra e as cartas de Van Gogh acaba apresentando narrativas sobre a vida, a noite, o bar, o inusitado dos depoimentos dos entrevistados apresenta o processo de pesquisa. Momentos em que, enveredando pela vida social, ao procurarmos uma resposta encontramos outra, às vezes mais interessante e certamente mais reveladora dos processos de interação. Abordagem inusitada tanto para leitores das reflexões sociológicas correntes sobre a recepção da obra de arte, referidas usualmente a um indivíduo erudito inserido no mundo da arte, quanto para espectadores habituados a narrativas de campo que correntemente, como já dizia Clifford (1998: 17-62), privilegiam a narrativa coerente dos enquadramentos do autor. Ao deixar os atores sociais discorrerem livremente sobre a percepção da obra e do discurso, o filme de Lígia Dabul, com efeito, abre novos caminhos para pensar o uso da imagem na Antropologia e na Sociologia.

3. BREVES REFLEXÕES SOBRE A RECEPÇÃO DE NIGHT CAFÉ

NOS

CIRCUITOS

LEGÍTIMOS

DO

FILME

ANTROPOLÓGICO/SOCIOLÓGICO:

Há quase duas décadas, o discurso fílmico vem ganhando crescente importância no âmbito da produção acadêmica das Ciências Sociais. Desde 1993, a Mostra Internacional do Filme Etnográfico vem tendo papel fundamental da difusão de narrativas cinematográficas e videográficas sobre objetos da vida social. Com oferta crescente de filmes3, a mostra tem se

constituído num dos principais espaços para este novo gênero de produção audiovisual.

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Na esteira da Mostra do Filme Etnográfico, também a Associação Brasileira de Antropologia exibe e premia, desde 1996, filmes etnográficos produzidos por antropólogos. Neste mesmo movimento, também a partir de 2007, um grupo de trabalho composto por especialistas do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e do Departamento de Patrimônio Imaterial, do Iphan, organiza o edital Etnodoc que apóia documentários etnográficos sobre patrimônio de cultura imaterial. Mais recentemente, também a Sociedade Brasileira de Sociologia vem organizando, desde 2009, sessões de vídeo em seus congressos bianuais.

A proliferação de imagens tem feito emergir importantes discussões especializadas sobre o tema e têm buscado estabelecer novos parâmetros para o uso de imagens em movimento na academia. Com efeito, o crescente debate sobre a autoridade do cientista social e sobre o uso de novos enquadramentos de pesquisa coloca em questão o uso exclusivo do plano seqüência, o recurso da narrativa em off e recursos amplamente difundidos na filmografia dos cientistas sociais desde Malinowski e Margareth Mead. Novas abordagens se tornam possíveis tanto pelo turvamento de fronteiras entre ficção e realidade, como fez Jean Rouch nos anos 1950/1960, quanto pelas entrevistas que, deliberadamente, apresentam a perspectiva do entrevistador.

No entanto, no feliz momento de proliferação de discursos, um novo gênero de filme acadêmico pode surgir e a Antropologia e a Sociologia correm mais uma vez o risco de cristalizar cânones, fixar fórmulas e de apresentar resultados prontos de pesquisa como textos. A iniciativa do Núcleo de Estudos Cidadania, Trabalho e Arte da Universidade Federal Fluminense procurando integrar pesquisadores com diferentes interesses de pesquisa no intuito comum de refletir sobre a captação, invenção e uso de imagens nas Ciências Sociais vem, portanto, em boa hora. De fato, a apresentação da pesquisa como processo e movimento e a reflexão sobre a forma são mérito do filme. Resta saber até que ponto boas iniciativas como esta terão lugar nos espaços formais de exibição, ou ficarão cada vez mais restritas aos espaços dos pequenos debates acadêmicos de grupos de pesquisa.

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CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: CLIFFORD, J. A experiência

etnográfica: Antropologia e Literatura no século XXI. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1998.

DABUL, Lígia. Conversas em exposição: sentidos da arte no contato com ela. Arte &

Ensaios (UFRJ), v. 16, 2008.

GONÇALVES, Marco Antonio & HEAD, Scott. Confabulações da alteridade: imagem dos outros (e) de si mesmos. In: GONÇALVES & HEAD (Org.) Devires Imagéticos: a etnografia, o

outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

HEINICH, Nathalie. La gloire de Van Gogh: essai d’anthropologie de l’admiration. Paris: Éditions de Minuit, 1991.

PRESTES, Renan Muros. Diálogo com Van Gogh: Cartas e o Processo Criativo. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais). Universidade Federal Fluminense, 2010.

Sabrina Parracho Sant’Anna Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

[Recebido em 06-03-2013] [Aprovado em 01-05-2013]

Referências

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