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Boa-fé nos Contratos: entre a fonte e a solução do caso concreto

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Thiago Borges1

Introdução. 1. Breve Desenvolvimento Histórico da Boa-fé. 1.1. Primórdios. 1.2. O Jusracionalismo e as Primeiras Codificações. 1.2.1. A Boa-fé nos Paradigmas da Codificação. 1.2.1.1. O Code Napoleón. 1.2.1.2. O BGB Alemão. 1.2.2. O Código Civil Brasileiro de 1916. 1.3. A Nova Codificação e o Sistema Aberto. 2. A Cláusula Geral de Boa-fé nas Obrigações. 2.1. Boa-fé Subjetiva e Boa-fé Objetiva. 2.2. A Cláusula Geral de

Boa-fé. 2.3. As Funções da Boa-fé Objetiva. 3. A Boa-fé nos Contratos no Projeto de Código Civil. 3.1. A Responsabilidade Pré-negocial. 3.2. A Teoria do Adimplemento Substancial. 3.3. A Responsabilidade Pós-contratual. 3.4. Boa-fé e as Tendências do Direito

Privado Contemporâneo. Conclusão.

Introdução.

A noção jurídica de boa-fé, embora bastante antiga, ganhou nos últimos tempos grande relevância. A complexidade das relações sociais contemporâneas impõe à ciência jurídica um novo paradigma, que permita ao direito acompanhar a constante modificação da realidade. Neste contexto, a boa-fé, especialmente em seu conteúdo objetivo, exerce um papel preponderante no que tange à regulação das relações obrigacionais.

O uso da boa-fé objetiva, como cláusula geral, possibilita, como se verá, através da abertura do sistema formado pelo ordenamento jurídico, uma constante renovação do direito, sem descurar, no entanto, da segurança jurídica. Com efeito, a determinação das funções da boa-fé assegura a aplicação técnico-jurídica do instituto em

1 Advogado. Professor de Direito Civil na UNYAHNA e na FABAC. Professor de Direito Internacional na

UNIFACS. Coordenador Adjunto do Curso de Direito da UNYAHNA. Mestre em Direito Comunitário pela Universidade de Coimbra.

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conformidade com a nova realidade da ciência jurídica, na qual os princípios funcionam como conexões axiológicas e teleológicas entre, de um lado, o ordenamento jurídico e o dado cultural, e de outro, a Constituição e a legislação infra-constitucional.

O presente trabalho tem por finalidade propiciar uma visão doutrinária e jurisprudencial da cláusula geral de boa-fé, prevista no art. 422 do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), em matéria de contratos. Ressalte-se desde já que nesta cláusula geral está contido o princípio da boa-fé, que, contudo, não se confundem. De fato, as cláusulas gerais são, por definição, formuladas legislativamente, contendo sempre conceitos dotados de vagueza semântica; os princípios, ao contrário, podem ser inexpressos, não sendo essencial a presença dos conceitos vagos.

Vale dizer, ainda, que tal vagueza não se confunde com generalidade, pois a boa-fé não deve ser tida como um “princípio geral”, de sentido tecnicamente impreciso. Boa-fé também não se confunde com a eqüidade, como muito se vê na doutrina, pois o recurso a esta deve ser a ultima ratio do julgador, enquanto aquela opera como regra sempre presente na busca de soluções para casos concretos.

Karl Larenz, analisando a base do negócio jurídico objetiva, afirma que “para los casos típicos [de quebra da base] hay que descubrir en la naturaleza de las cosas y en el principio de buena fe soluciones de validez general que eviten, al menos de ordinario, recurrir a puras consideraciones de equidad. Estas soluciones de validez general tienen frente a aquéllas la ventaja de que garantizan no solo una gran seguridad y continuidad de la jurisprudencia, sino también la comprensión de sus fundamentaciones que el hombre moderno exige para aceptar la autoridad de las sentencias. La sentencia según la equidad y en consideración a todas las circunstancias del caso concreto queda, por tanto, como la

ultima ratio” (Larenz, 1956: 103-4).

A equiparação da boa-fé com outros institutos como a equidade e os bons costumes conduz a uma indesejável diluição do instituto, ficando mais ligada à moral que

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ao direito. Torna-se, assim, necessária uma delimitação do campo de atuação da boa-fé objetiva no direito contratual, resgatando a sua natureza técnico-jurídica.

Na primeira parte do trabalho, que se intitula de breve desenvolvimento

histórico da boa-fé, corre-se o risco de passar uma falsa imagem de linearidade dos fatos, o que, na realidade, não acontece2. Entretanto, apenas para facilitar a compreensão, procurou-se situar os modelos normativos de boa-fé numa linha cronológica, ficando, de logo, o leitor alertado para este dado. Na “evolução” proposta, boa-fé assume ora o conteúdo subjetivo, ora o objetivo, ora ambos, dando-se ênfase ao objetivo por estar mais ligado ao tema do trabalho.

Na segunda parte, inicialmente, apresentam-se os traços distintivos entre a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. Em seguida, com mais detalhes, discorrer-se-á acerca da cláusula geral de boa-fé. E, por fim, serão enumeradas as suas funções. Nesta parte, pretende-se sedimentar o caráter técnico-jurídico do instituto, bem como a sua relevância para o desenvolvimento do direito em matéria contratual.

Na última parte, será analisada a cláusula geral de boa-fé presente no art. 422 do novo Código Civil, apontando os seus possíveis efeitos em matéria de responsabilidade pré-negocial, na execução do contrato e até após a conclusão do contrato, exercendo aí uma crítica ao dispositivo legal, que não previu esta última hipótese. Para tanto, recorrer-se-á a precedentes jurisprudenciais que já utilizam o princípio da boa-fé em matéria de contratos antes mesmo da previsão da cláusula geral na nova codificação civil3.

A hipótese proposta é a verificação de um duplo efeito da utilização da cláusula geral de boa-fé nos contratos: de um lado, o sistema codificado evolui em direção

2 De fato, Franz Wieacker afirma que o sistema, os princípios doutrinais e os conceitos “têm, enquanto tais,

tão pouca história como as leis da natureza ou os princípios lógicos. (...) A sua evolução é, na verdade, constituída apenas por mutações na consciência, nas convicções e nas regras de comportamento dos ‘corpos’ [Stände] históricos de juristas. Só a conexão da atual dogmática com as anteriores, operada através da tradição, provoca a ilusão de que a dogmática teria uma história”. (Wieacker, 1993: p. 6, nota 14). Para uma história dos institutos de Direito Privado no mundo ocidental, ver, ainda, Coing, 1996.

3 Desde o Código Comercial, art. 131, 1, a boa-fé objetiva está prevista em nosso ordenamento, porém

permaneceu como letra morta até o advento do Código de Defesa do Consumidor, que a prevê como princípio geral, no art. 4º, III, e como cláusula geral, no art. 51, IV.

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ao Common Law, acentuando a tendência recente de aproximação mútua destes sistemas, mormente na realidade global contemporânea4; e, de outro, abre uma maior possibilidade de aplicação dos princípios constitucionais no direito contratual, tornando ainda mais tênue a linha divisória entre direito público e direito privado, outra tendência atual da ciência jurídica.

1. Breve Desenvolvimento Histórico da Boa-fé.

1.1. Primórdios.

A acepção jurídica da boa-fé tem seus primórdios verificados no direito

romano. Abstraídas questões ligadas à história, que remetem o seu conhecimento a

momentos anteriores, foi no mundo romano que a idéia de fides ganhou expressão na seara jurídica.5 No direito obrigacional, que interessa a este trabalho, a fides romana era ligada à fé que liga a coletividade ao respeito das convenções livremente pactuadas.

Conforme lição de Humberto Theodoro Júnior, “historicamente, o direito contratual romano se caracterizava pela dicotomia entre contratos de direito estrito e contratos de boa fé [consensuais]. Os primeiros eram formais (do direito civil, ou quiritário) e os de boa fé, os que não dependiam de forma ou solenidade para produzir sua eficácia” (Theodoro Jr.: p.248).

Dado este caráter extremamente formal e solene da maioria dos contratos na era romana, a fides assumiu grande importância nos contratos ditos consensuais. Nestas relações intersubjetivas, a fides, com o qualificativo bona, “atuava como o ‘elemento catalisador’ do conteúdo econômico dos contratos, porque, funcionalmente, constringe as partes a ter claro e presente qual o conteúdo concreto dos interesses que se encontram no

4 Esta “tendência” é apontada por Cappelletti, 1993, especialmente § 14. No caso europeu, o princípio da

boa-fé tem sido objeto de inúmeras discussões sobre a compatibilidade entre o common law britânico e o civil law continental. Ver, a este respeito, entre outros, a Dissertação de Mestrado do autor na Universidade de Coimbra, Políticas de Harmonização do Direito dos Contratos na União Européia.

5 Para um maior aprofundamento no conceito da fides romana, assim como de todo o perfil histórico da

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ajuste, clarificação essa necessária para ‘vincular os contraentes ao leal adimplemento das obrigações assumidas’”6.

Os interesses dos contratantes no campo da boa-fé só viriam a ser tutelados no direito pretoriano, através das bonae fidei iudicia, atuando como tópico e como expediente técnico-jurídico de uso da jurisdição. Sumariamente, pode-se dizer que, neste procedimento, o juiz detinha um certo poder para decidir o caso de acordo com as circunstâncias concretas. Atuava, assim, a boa-fé em sentido objetivo, atribuindo ao juiz um elemento técnico para o julgamento, afastando conotações morais que poderiam tirar força do instituto.

Contudo, com o tempo, a fides bona passará a expressar princípios gerais, não isolados de outros princípios, enfraquecendo a sua acepção técnica e objetiva. Com esta diluição, encerraria o período romano com um viés eminentemente subjetivo, ligado à intenção ou ao estado de ignorância, especialmente em direitos reais. Por isso, neste setor, não projetava quaisquer normas jurídicas, sendo apenas um elemento fático extrajurídico.

Na cultura germânica medieval, a boa-fé obrigacional é traçada numa linha diversa do direito romano (idéia de fidelidade ao pactuado), traduzindo, na fórmula Treu

und Glauben (lealdade e crença), qualidades ou estados humanos objetivados. Assumia, assim, uma feição de regra de comportamento social, necessária ao estabelecimento da confiança geral, induzida ao “alter” ou à coletividade pelo comportamento do que jura por honra (Martins-Costa, 2000: 126). No campo das relações comerciais ainda incipientes, adquiriu o conteúdo de cumprimento exato dos deveres assumidos, com a necessária observância dos interesses da contraparte.

A boa-fé germânica, portanto, introduz no conceito um conjunto de valores novos, que teria conseqüências duradouras na cultura jurídica ocidental. A formação tardia do Estado alemão colaborou para o desenvolvimento de um direito mais ligado aos usos e

6 Martins-Costa, 2000, p. 116, citando Frezza, Paolo. Fides Bona. Studi sulla buona fede, publicação da

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aos costumes, adquirindo particular importância os “usos do tráfico”, que daria conteúdo à boa-fé e refletiria, mais tarde, na codificação civil alemã.

Já no direito canônico, a boa-fé obrigacional encontrava-se generalizada na legitimação das nuda pacta7, diluída, sem um papel técnico-jurídico, representando uma categoria sem conteúdo substancial. A Igreja atribuía valor moral à promessa, ou ao consentimento, conferindo à boa-fé o significado de ausência de pecado. Desta forma, se considerado que quem promete deve cumprir a palavra dada, sob pena de incorrer em pecado, a regra, de preceito moral, se faz jurídica – passando-se a admitir que o simples acordo obriga. Agir em boa-fé, no âmbito obrigacional do direito canônico, é respeitar fielmente o pactuado, sob pena de agir em má-fé, isto é, em pecado – assume, assim, um conteúdo eminentemente subjetivo.

1.2. O Jusracionalismo e as Primeiras Codificações.

Os princípios do direito natural foram recepcionados pela ideologia humanista através do jusracionalismo que, mediante a razão, os assumiria como inerentes ao homem e à sociedade. “A noção de direito natural foi, por esta forma, extraviada pelo racionalismo jurídico-filosófico, buscando olhar somente ‘para a essência, não para a existência do homem’” (Azevedo, 1996: p. 100).

Segundo Franz Wieacker, “o jusracionalismo lançou as bases do caráter ideológico ou mesmo utópico da teoria constitucional, da política e dos princípios fundamentais do direito; (...) na história do direito privado, com ele se iniciou, antes de tudo, a racionalização e sistematização do direito comum” (1993:12).

Nesta forma de pensar, o direito se iguala totalmente à lei, que é tida como expressão da vontade superior. O perfil metodológico de elaboração dos conceitos jurídicos é constituído através da precisão matemática, configurando um sistema fechado. Os

7 As nuda pacta seriam os acordos meramente consensuais, desprovidos de formalidades, que o direito

canônico emprestava efeitos jurídicos. O emprego da boa-fé teve, neste caso, importante papel subversivo na desformalização dos contratos da era romana, pois trazia a idéia de que “a promessa obriga”.

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códigos, assim, surgem como meio perfeito de materialização do direito, pois configurariam um sistema fechado externamente, pois desvinculado de qualquer outro sistema e dispondo de fonte exclusiva, com funcionamento próprio, e internamente, já que racionalmente compreensível e demonstrável, racionalidade esta que se equipara à das matemáticas, sem espaço para a existência de lacunas.

Neste ambiente, o tratamento da boa-fé obrigacional passa por uma excessiva setorização, pois os deveres decorrentes da fides romana são ligados estritamente ao campo da correspectividade e do sinalagma contratual. O direcionamento unicamente a este vetor reduz o poder do juiz de interferir na relação contratual em desequilíbrio para corrigi-la.

Com a codificação, a boa-fé obrigacional não conseguiu fugir à diluição, pois os deveres decorrentes de sua infração, não sancionada em lei, caem no campo da moral não-jurídica, misturando-se com a equidade, e assume o papel de mero reforço obrigatoriedade do pactuado. Por se referir ao modo do ato e não ao eu (subjetivo e racional), não é considerado o papel fundante da boa-fé, nem o seu encadeamento em um sistema lógico-dedutivo, ficando equiparada a muitas coisas ao mesmo tempo, sem poder ser vista como uma fattispecie unitária.

1.2.1. A Boa-fé nos Paradigmas da Codificação.

Em que pese a diferença dos modelos adotados pelo Code Civil francês (com sede doutrinária na Escola da Exegese) e pelo Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), o código civil alemão (com raízes na pandectística e no formalismo positivista), estes constituem os grandes paradigmas da codificação oitocentista, ambos concebidos como um sistema fechado pretensamente dotado de unidade, coerência e completude. Assim, a legitimação da fonte legislativa exclusiva (autoridade histórica ou estatal) e a inexistência de antinomias ou de lacunas dominaram o modelo de código concebido na época.

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No Código Civil de Napoleão, de 1804, a boa-fé obrigacional recebe interferência da boa-fé canônica, do jusracionalismo e da elaboração da moderna teoria dos contratos, fundada no dogma da autonomia da vontade. Na obra de Pothier (um dos pais daquele Código, juntamente com Domat), há o total esvaziamento e a completa subjetivação da boa-fé, que se torna matéria de “foro íntimo”.

Com efeito, ao tratar do dolo como vício de consentimento, Pothier afirma que “se o dolo não produz nulidade – uma vez que, de qualquer forma, foi expresso o consentimento –, pode produzir, no entanto, o direito a rescindir o contrato, porque o consentimento expresso em razão de um artifício enganoso constitui um pecado contra a

boa-fé” (Martins-Costa, 2000: 199).

Desta forma, a boa-fé é afirmada por Pothier8 como “conseqüência dos ditames do ‘amor ao próximo’, como regra moral, como ausência de pecado – tal qual fora perspectivada no direito canônico, e não como instituto jurídico” (Martins-Costa, 2000: 201), daí provindo seu frágil conteúdo e a sua ineficácia na ordem prática, na qual acabará como mero reforço do princípio da obrigatoriedade do pactuado.

Na opção metodológica do código civil francês, baseada na doutrina da Escola da Exegese, a boa-fé obrigacional não tem qualquer função, posto que o conteúdo do seu dispositivo legal (seu campo e grau de extensão e as conseqüências de sua violação) não vem materialmente explicitado. Além disso, sua aplicabilidade encontra grande barreira na força atribuída à autonomia da vontade na formação dos contratos. Naquela metodologia, portanto, a boa-fé objetiva não encontraria modo de raciocínio hábil para sua concretização.

1.2.1.2. O BGB Alemão.

8 Pothier ainda afirma que “no foro externo, uma parte não seria atendida, se se queixasse destes ligeiros

ataques feitos por aquele que contratou à boa-fé: de outra sorte, um muito grande número de contratos estaria sujeito à rescisão, os processos seriam inumeráveis e causariam um grande desarranjo no comércio”. (apud Martins-Costa, A boa-fé..., cit., p. 200).

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Na Alemanha, a boa-fé nas obrigações encontrou terreno fértil na prática comercial. Entretanto, nem a doutrina da época, nem o código civil alemão, de 1896, em vigor a partir de 1900, adotaram a boa-fé objetiva expressamente, já que não foi este o sentido dado pelos autores do BGB ao § 242, que versa “O devedor deve [está adstrito a] cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico”9.

O entendimento deste parágrafo como configuração de uma verdadeira cláusula geral só aconteceu após a entrada em vigor do código, no século XX, através da interpretação jurisprudencial, que lhe deu preenchimento. Antes disto, conforme Menezes Cordeiro relata, apenas alguns tribunais comerciais de cidades alemãs livres é que proferiam decisões que destacam a boa-fé utilizada como tópica, na acepção objetiva, exprimindo “um modo de exercício das posições jurídicas, uma fórmula de interpretação objectiva dos contratos, ou, até, uma fonte de deveres, independentemente do fenômeno contratual” (Menezes Cordeiro, 1984: 317).

O BGB, concebido conforme o pensamento da escola dos pandectas10, adotava a dogmática como método no qual o raciocínio jurídico “se eleva ao plano teórico dos princípios e conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e sistematização dos preceitos e institutos de que se compõe o ordenamento”11. Ou seja, na pandectística alemã, a dogmática é um método de construção do sistema.

O nexo sistemático da ordem trazida pelo BGB é encontrado nas instituições. Daí porque “a ‘totalidade’ do sistema será confinada aos seus aspectos lógico-dogmáticos, presididos pela lógica formal, que o compreende de modo conceitual-abstrato e à subsunção dos conceitos neste sistema” (Martins-Costa, 2000: 221). Na escola dos pandectas, a ciência do direito, por ser o conhecimento do direito positivo, só é possível

9 Conforme a tradução de Menezes Cordeiro, p.325.

10 Sinteticamente, Wieacker aponta que “com a neutralização da ética jurídica e com o seu formalismo

racionalista, a pandectística tornou-se, a despeito das suas origens ideológicas e historicistas, no instrumento da ‘sociedade aquisitiva’ (Erwerbsgesellshaft) do Estado de direito burguês” (1993: 13).

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num direito sistemático, tendente a eliminar todas as considerações que são, por essência, alheias ao seu objeto, pensamento que deu origem ao positivismo kelseniano.

Enquanto código do liberalismo, produto da pandectística, o BGB, assim como o Code Napoleón12, constituía um sistema fechado. Com efeito, ensina Habermas que “no decorrer do século XIX, portanto, até a codificação do código civil de 1900, o direito privado estruturou-se como um domínio jurídico sistematicamente fechado e autônomo, a salvo de uma força impregnadora de uma ordem constitucional democrática” (Habermas, 1997: 132).

Somente neste século a jurisprudência alemã conseguiu superar as limitações impostas por esta estrutura13, tornando o sistema aberto, com a utilização de técnicas como o preenchimento do conteúdo das cláusulas gerais, em especial a da boa-fé, posta no § 242.

1.2.2. O Código Civil Brasileiro de 1916.

Embora o Código Civil brasileiro, elaborado por Clóvis Beviláqua, seja de 1916, pode ser considerado como o último dos códigos oitocentistas. Isto porque recebeu influência direta dos paradigmas do século anterior. Do ponto de vista estrutural, aproxima-se do BGB, dividido em parte geral e parte especial; materialmente, contudo, aproxima-se parece mais com o Code Napoleón, com algumas fontes do direito comum alemão, anterior ao BGB.

Adotado este modelo, não houve espaço para a adoção de cláusulas gerais e, por isso, a boa-fé, na maioria das vezes em que aparece citada no código, assumiu o seu conteúdo subjetivo14, como ignorância escusável, na regulação da aparência no direito de

12 Para uma análise comparativa entre o BGB e o Code Napoleón, ver Martins-Costa, 2000: 226-236.

13 Conforme Habermas afirma, “na Alemanha (...), o direito privado desenvolveu-se como um domínio da

ciência jurídica e do direito aplicado pelos juízes” (Habermas, 1997: 132).

14 Pontualmente, entretanto, pode-se observar alguns exemplos de boa-fé objetiva no Código Civil brasileiro

de 1916, como na disciplina do contrato de seguro, no art. 1.443, que versa “o segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”. Trata-se de perfeita cláusula geral, pois os efeitos do

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família e na proteção possessória. O comércio ainda muito incipiente, pelo modelo de produção quase feudal então em vigor no Brasil, não permitiu o desenvolvimento de um direito dos comerciantes que, como na Alemanha, fomentasse a presença da boa-fé objetiva no pensamento jurídico da época.

1.3. A Nova Codificação e o Sistema Aberto.

A partir do século XX, o desenvolvimento da ciência jurídica permitiu observar que o direito não se resumia ao conteúdo dos códigos, nem a jurisprudência atuava numa mera exegese. Os métodos baseados no raciocínio puramente subsuntivo impediram que o sistema acompanhasse os avanços da sociedade, visto que novas fattispecies, não previstas pelo legislador, surgem com o tempo, gerando novas questões que os velhos institutos formadores do sistema fechado não podem resolver.

Já no início do século, Georges Ripert já observava que “a criação da grande indústria, o desenvolvimento dos meios de transporte, a organização do crédito transformaram as condições da produção e da venda; novas formas de riqueza apareceram e ganharam uma importância que os redatores do Código Civil (francês) não podiam suspeitar” (Ripert, 1966: p. 156).

A pluralidade e a complexidade das relações sociais e a aceleração da história, com a diminuição do espaço ideal e o aumento das possibilidades de interação entre os indivíduos, exigem um novo modelo de código, mais dinâmico e flexível. Surge, assim, a noção de “sistema aberto”15, capaz de acompanhar, através de uma constante ressistematização, as modificações sociais, permitindo o ingresso no ordenamento de novos conceitos e valores não previstos originalmente pelo legislador.

descumprimento da ordem legal não se restringem aos previstos nos arts. 1.444 a 1.446, podendo ser ampliados a depender das circunstâncias do caso concreto.

15 Claro está que não se trata de sistema literalmente aberto, pois assim não constituiria sistema. O que há, na

realidade, é um sistema de auto-referência relativa (em contrapartida a um sistema absoluto ou fechado), que permite a contínua absorção dos dados e elementos que estão a sua volta, operando uma ressistematização constante (ver Martins-Costa, 2000).

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Esta nova noção de sistema assume uma postura diversa da anterior, fechada, baseada nos dogmas rígidos da unidade, da coerência e da completude16. De fato, a unidade permanece, na medida em que as normas que compõem o ordenamento permanecem dispostas hierarquicamente. Contudo, o sistema aberto admite a existência de antinomias e de lacunas, que devem ser solucionadas através de ressistematizações constantes. Desta forma, a coerência e a completude flexibilizam-se para continuarem a existir, assim como, conseqüentemente, o sistema em si.

As normas deste novo modelo de código trazem conceitos jurídicos

indeterminados e cláusulas gerais. Os primeiros são “conceitos cujos termos têm significados intencionalmente imprecisos e abertos”; as segundas, “normas cujo enunciado é intencionalmente desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela abrangência de sua formulação, a incorporação de valores, princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiras ao corpus codificado, bem como a constante formulação de novas normas” (Martins-Costa, 2000: 286).

Por isso, Habermas, descrevendo a materialização do direito privado, aponta que “considerações de ética social infiltram-se em regiões do direito que até então se limitavam a garantir a autonomia privada. O ponto de vista da justiça social exige uma interpretação diferenciadora de relações jurídicas formalmente iguais, porém diferentes, do ponto de vista material, sendo que os mesmos institutos jurídicos preenchem funções sociais distintas” (1997: 134).

A disposição das normas codificadas formando um sistema aberto possibilita, ainda, a aplicação dos princípios constitucionais, que na nova ordem do direito assumem um papel preponderante. O Código Civil deixa de ser, assim, a “constituição da vida privada”, passando a submeter a aplicação de suas normas aos programas do Estado Democrático de Direito. Desta forma, a igualdade formal que antes dava força ao princípio da autonomia da vontade, deve ser lida agora em seu viés material, ligado ao pensamento democrático.

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Com efeito, na visão, a meu ver correta, de Teresa Negreiros, “nesta nova ordem de idéias, que os princípios, enquanto normas, não guardam em relação a estas qualquer especificidade estrutural, ou essencial, mas sim de caráter externo, mais precisamente, funcional” (1998: 106). Mais adiante, a autora complementa, “o reconhecimento de um preceito normativo como princípio ou como regra resulta de uma tarefa de interpretação, na medida em que, em última instância, a distinção entre uns e outros se dá no momento de sua utilização como fundamento decisório, sendo os atributos de generalidade e de fundamentalidade, referidos como critérios de distinção, apenas elementos de que se vale o intérprete para justificar a aplicação de um dado preceito normativo como um princípio” (1998: 124).

No sistema jurídico aberto, os princípios assumem uma posição hierarquicamente superior17 em relação às normas de conteúdo específico, visto que são justamente aqueles que proporcionam a interligação entre a ordem social e a ordem jurídica, viabilizando uma constante renovação desta última.

É em sintonia com esse novo paradigma que surgem as codificações deste século, como a portuguesa (1966), a espanhola e a italiana, e é assim que se propõe ser o novo Código Civil brasileiro.

2. A Cláusula Geral de Boa-fé nas Obrigações.

2.1. Boa-fé Subjetiva e Boa-fé Objetiva.

Antes de adentrar especificamente na definição da boa-fé enquanto cláusula geral, cumpre fazer a distinção entre a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. No direito alemão esta distinção é mais fácil, pois a primeira traduz a guter Glauben; já a acepção objetiva corresponde à fórmula Treu und Glauben18. A doutrina tradicional brasileira,

17 No sentido de prioridade na aplicação.

18 Se, por um lado, estas diferentes acepções, significando a subjetiva “boa crença” e a objetiva “lealdade e

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entretanto, atribui à boa-fé a acepção subjetiva, como a “convicção de alguém que acredita estar agindo de acordo com a lei, na prática ou omissão de determinado ato”19, levando em consideração o estado psicológico do sujeito da relação jurídica. Com este conteúdo a boa-fé aparece, normalmente, na proteção da aparência, especialmente em matéria possessória

Contudo, mesmo no que se refere ao direito contratual, os autores brasileiros emprestaram à boa-fé um caráter subjetivo20, ao liga-la a “sinceridade das vontades [das partes] ao firmarem os direitos e obrigações”, sem a qual “fica viciado o consentimento das partes”21; ou, ainda, ao afirmar que “não se pode aceitar que um contratante tenha firmado o pacto de má fé, visando locupletar-se injustamente à causa do prejuízo do outro” (Theodoro Jr., 1997: 248).

Neste sentido subjetivo, possui dupla denotação: “primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular”. E, “secundariamente, a idéia de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito contratual, nada mais aí significando do que um reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado, de modo a se poder afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar lesando direito alheio, ou na adstrição ‘egoística’ à literalidade do pactuado” (Martins-Costa, 2000: 412).

aproximação dos institutos, que são essenciais para a proteção jurídica da confiança. A este respeito ver Menezes Cordeiro, Da boa fé..., cit., p. 1.234 e ss.

19 Acquaviva, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. São Paulo : Ed. Jurídica Brasileira,

1995.

20 Segundo Orlando Gomes, “o princípio da boa-fé entende mais com a interpretação do contrato que com a

estrutura. Por ele significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível”. Relaciona a boa-fé com a identificação, no “conteúdo do contrato”, de proposições que decorrem da natureza das obrigações contraídas, impostas pelo uso regular ou pela

equidade. O mesmo autor empresta à boa-fé um outro significado, mais próximo da boa-fé objetiva, traduzindo o interesse social de segurança das relações jurídicas. Neste ponto aventa o dever das partes de proceder com boa-fé e agir com lealdade e confiança recíprocos. Chega a tocar no ponto da idéia de que entre

o credor e o devedor é necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato, impedindo a boa-fé que a conduta de uma parte dificulte a ação da outra. No entanto, a aproximação pára por aí. (In

Contratos, 18ª ed., atualizada e anotada por Humberto Theodoro Jr., Rio de Janeiro : Forense, 1998, p. 42).

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Por boa-fé objetiva deve-se entender, por outro lado, um modelo de conduta social (arquétipo ou standard jurídico) que deve ser observado pelos indivíduos enquanto membros de uma sociedade organizada. Não deve ser descrita como um “princípio geral” indeterminado, pois qualifica uma norma de comportamento leal, dotada, como se verá, de caráter técnico-jurídico.

Na análise deste modelo objetivo de conduta são considerados os elementos do caso concreto, como a condição sócio-econômico-cultural dos envolvidos, sendo impossível o emprego do raciocínio meramente subsuntivo. Já a determinação do modelo

de conduta social é dada por um conjunto de qualidades (honestidade, probidade, lealdade, retidão) que é exigido dos homens no trato com seus pares, num dado momento histórico-cultural da sociedade.

No direito das obrigações, a boa-fé objetiva qualifica uma norma de comportamento leal de uma parte para com os interesses alheios, especialmente os da contraparte. São consideradas, assim, as expectativas geradas, pelo próprio comportamento, nos demais membros da comunidade juridicamente tutelada.

Embora o conteúdo desta norma não possa ser fixado, dependendo sempre das circunstâncias do caso concreto22, é “regra de caráter marcadamente técnico-jurídico, porque enseja a solução dos casos particulares no quadro dos demais modelos jurídicos postos em cada ordenamento, à vista das suas particulares circunstâncias”. Esta juridicidade advém “do fato de remeter e submeter a solução do caso concreto à estrutura, às normas e aos modelos do sistema, considerado este de modo aberto” (Martins-Costa: 2000, 413). Não se constitui mera norma dispositiva, antes configurando uma norma cogente, de aplicação obrigatória.

Segundo Clóvis V. do Couto e Silva, “a inexistência, no Código Civil, de artigo semelhante ao § 242 do BGB não impede que o princípio tenha vigência em nosso

22 O conteúdo da norma será fixado pelo juiz em razão das circunstâncias do caso concreto que lhe é

apresentado. Por isso, “a boa fé objectiva é entendida como do domínio do Direito jurisprudencial: o seu conteúdo não adviria da lei, mas da sua aplicação pelo juiz” (Menezes Cordeiro, 1984: 43).

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direito das obrigações, pois se trata de proposição jurídica, com significado de regra de conduta. O mandamento de conduta engloba todos os que participam do vínculo obrigacional e estabelece, entre eles, um elo de cooperação, em face do fim objetivo a que visam”23. Para tanto, o julgador teria que recorrer a denominações diversas da boa-fé, como equidade, equilíbrio social, enriquecimento sem causa, etc.

Martins-Costa, entretanto, alerta para as dificuldades que esta prática pode trazer para a sistematização das decisões judiciais e para o próprio desenvolvimento do direito, pois, “o recurso a tantos princípios diversos impede a promoção, progressiva, de ‘tipizações’ normativo-jurisprudenciais de comportamentos contrários à boa-fé, através da formação, via jurisprudencial, de grupos de casos ‘típicos’ de sua aplicação” (2000: 427). Além disso, o uso de vários institutos torna obscura a fonte dos deveres impostos às partes.

Daí a vital importância da inserção da cláusula geral de boa-fé no direito brasileiro como prevista no art. 422 do novo Código Civil, in verbis: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Uma análise mais aprofundada da cláusula geral de boa-fé será feita a seguir.

2.2. A Cláusula Geral de Boa-fé.

No novo paradigma da codificação, a boa-fé objetiva, enquanto cláusula geral, assumirá um papel fundamental no direito das obrigações. Os novos ideais do pensamento jurídico não atingirão somente as normas, mas também a autonomia da vontade na formação dos contratos perde força, posto que a abertura do sistema permite até mesmo que os juizes, no julgamento do caso concreto, afastem o rigor do pactuado em nome da boa-fé objetiva.

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Nesta nova sistemática, conformeAlberto do Amaral Júnior, “o princípio da boa-fé passou a ter importância decisiva como cláusula geral destinada a conferir ao intérprete poderoso instrumento para avaliar a licitude das cláusulas contratuais24”.

Esta crise da liberdade contratual foi prenunciada por Gaston Morin, para quem “a idéia nova vai alargar significativamente a missão do juiz que não terá de respeitar, em sua plenitude, a convenção das partes, mas de pô-la em harmonia com as exigências da consciência pública”25. Não é, assim, a boa-fé, um mero reforço do princípio da força obrigatória; vai além, podendo mesmo interferir na autonomia da vontade das partes.

Para Menezes Cordeiro, “o dever de julgar, em quaisquer circunstâncias, deu, à boa fé, um relevo dogmático real: ela assegura a reprodução do sistema, seja conquistando para o seu seio áreas que ganham características de juridicidade, seja adaptando à nova realidade, científica ou social, dispositivos arcaicos, seja, por fim, realizando, na vida real, um projecto que o legislador deixou a meio ou, apenas, indiciou” (1984: 46).

Com efeito, a vagueza intencional da cláusula geral de boa-fé26 deixa ao juiz a possibilidade discricionária, mas não arbitrária, de lhe determinar o conteúdo, de acordo com aquilo que exige a solução do caso concreto. Não é arbitrária esta atuação jurisdicional, pois deve ser motivada. Além disso, o poder de criação do juiz está adstrito a todas as limitações existentes no próprio sistema27.

24 Amaral Júnior, Alberto do. A função da boa-fé no controle da abusividade das cláusulas contratuais. Na

internet: http://www.cartamaior.com.br/exibe_artigo.asp?cd_artigo=7. Palestra proferida no I Simpósio Internacional de Direito Bancário, realizado em março de 1998, em São Paulo.

25 Morin, Gaston. A Crise da Liberdade Contratual. In O Direito e a Vida Social, cit., p. 154. Extraído de La

loi et lê contrat – La décadence de leur souveraineté., p. 57-71, Felix Alcan, Paris, 1927. Trad. A. L. Machado Neto.

26 “O uso, em direito, de normas vagas não é necessariamente um defeito”, pois a clareza e a precisão, embora

valiosos para a metodologia da ciência, podem apresentar inconvenientes nas prescrições legais (Perelman, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo : Martins Fontes, 1996, p. 510).

27 Neste sentido, Mauro Cappelletti afirma que “discricionariedade não quer dizer necessariamente

arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos”. In Juízes... cit, p. 23-4.

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Com relação especificamente à boa-fé nos contratos, Ruy Rosado de Aguiar Jr. destaca que “como toda cláusula geral, permite atividade criadora do juiz. Esta porém não é arbitrária, mas contida nos limites da realidade do contrato, sua tipicidade, estrutura e funcionalidade, com aplicação dos princípios admitidos pelo sistema”28. Estes princípios são aqueles previstos na constituição, dotados de força normativa, aos quais deverá o julgador sempre se reportar no atual paradigma.

Plauto Faraco de Azevedo tenta enumerar alguns dos “limites naturais” que a atividade judicial encontra. “Primeiro, a atividade do juiz é circunscrita pelo espírito da ordem jurídica, de que derivam diretrizes fundamentais que plasmam, em maior ou menor medida, todas as instituições que a integram. Segundo, a atividade judicial cinge-se, em regra, aos dados do caso sub judice. Terceiro, das decisões dos juízes cabe recurso para instâncias diversas, hierarquicamente organizadas (...). Quarto, a atividade judicial é sempre fiscalizada pelo advogado, órgão do Ministério Público e pelos juízes de instância superior (...). Quinto, nos juízos colegiados, o pensamento do juiz precisa, em certa medida, ajustar-se ao de ajustar-seus pares” (1996: 121)29.

A aplicação das cláusulas gerais não pode adotar o mesmo raciocínio lógico-dedutivo utilizado pelo sistema fechado. Este, porém, não deve ser totalmente afastado, porquanto ainda se faz útil nos casos em que a situação concreta se identifica com a

fattispecie prevista na norma positivada, bastando operar a subsunção. Contudo, o sistema aberto exige a sua complementação pelo pensamento tópico.

Existem, de fato, situações em que não ocorre a identidade entre a hipótese jurídica abstrata e o problema, ou porque não há uma única solução possível, ou a solução aparentemente indicada não se mostra adequada à justa resolução do caso, ou, ainda, existem variadas medidas de cumprimento ou otimização da norma. Quando isso ocorre, no caso dos contratos, será necessário aplicar uma norma que configure uma cláusula geral.

28 Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. A boa-fé na relação de consumo. Na internet:

http://www.cartamaior.com.br/exibe_artigo.asp?cd_artigo=41. Extraído da Rev. Dir. do Consumidor 14/20.

29 Mauro Cappelletti, quanto à liberdade judicial, fala em limites substanciais e processuais. In Juízes...cit., §§

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Para fazê-lo, o aplicador deverá determinar “o seu campo e o seu grau de extensão – o que significará concretizar o standard ou o valor ao qual ela [a cláusula geral] reenvia” – e definir as suas conseqüências (Martins-Costa, 2000: 367).

Segundo Martins-Costa, “a escolha do conteúdo que há de ser conferido à norma que caracteriza cláusula geral, não estando indicado no texto legislativo, implica ponderações e valorizações que se reportam a um âmbito de referência tecido por variadas

escalas: os precedentes, a história institucional, as opiniões consolidadas doutrinariamente, os usos e costumes do tráfego jurídico, as soluções advindas do direito comparado” (2000: 368).

Já a determinação das conseqüências se dará “através de relações de

semelhança, ou com casos figurados na realização jurisprudencial precedente, ou indicados pela communis opinio, assim entendido o que vem sendo consagrado através de processos, lentos, mas contínuos, da elaboração do direito” (2000: 369). Vale observar que as cláusulas gerais possuem uma função ressistematizadora, na medida em que a resposta obtida pela sua aplicação passará a integrar a experiência jurídica, alargando os contornos do sistema.

Mas não é somente ao raciocínio dos juizes que interessa a compreensão da aplicação da cláusula geral. É o que sustenta Ruy Rosado de Aguiar Júnior: “a plena consciência de que tal cláusula funciona de modo diverso da subsunção comum às normas tipificadoras é importante não apenas para o julgador, a permitir-lhe a utilização adequada de valioso instrumento para a solução do caso, mas também para a orientação das partes, seja na elaboração do seu pedido, seja principalmente na produção da prova, uma vez que

a norma de dever será formulada judicialmente em função dos fatos provados no processo e atendendo a critérios jurídicos e metajurídicos que possam auxiliar nessa formulação. Como a elaboração retórica do juiz não se limita à simples invocação da norma de dever

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positivada, pois esta não existe e deve ser construída para o caso, cumpre trazer aos autos todos os elementos que interessam para esta definição”30.

O poder de apreciação do juiz aumenta proporcionalmente à vagueza dos termos da norma instituidora da cláusula geral. Segundo Perelman, “estando os fatos estabelecidos, e qualificados em conformidade com a lei, a conseqüência jurídica pode impor-se ao juiz sem lhe deixar nenhum poder de apreciação, ela pode deixar-lhe uma margem de apreciação limitada, ou mesmo conceder-lhe um poder discricionário ou de livre apreciação” (1996: 487).

Em relação aos contratos, Ruy Rosado de Aguiar Jr. afirma que “a boa-fé significa a aceitação da interferência de elementos externos na intimidade da relação obrigacional, com poder limitador da autonomia contratual, pois através dela pode ser regulada a extensão e o exercício do direito subjetivo. A força e a abrangência dessa limitação dependem da filosofia que orienta o sistema, e da preferência dada a um ou outro dos princípios em confronto”31.

A cláusula geral de boa-fé subverte o entendimento do direito das obrigações, tradicionalmente apegado ao princípio da autonomia da vontade. Para Habermas, “o direito contratual que aí se materializa não deixa mais a ‘correção’ do conteúdo do contrato entregue à ficção da declaração livre da vontade e à liberdade de celebrar contratos”. E arremata, “a vinculação social da propriedade, definida por lei, e a intervenção do juiz no conteúdo e na efetivação do contrato, visam compensar assimetrias nas posições do poder econômico” (1997: 141/142).

2.3. As Funções da Boa-fé Objetiva.

Seguindo a doutrina de Martins-Costa, serão analisadas três funções distintas da boa-fé objetiva. Primeiramente, utilizada como cânone hermenêutico-integrativo do

30 Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. A boa-fé na..., cit., grifei. 31 Idem.

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contrato; depois, na função de norma de criação de deveres jurídicos; e, por fim, operando como norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos.

A boa-fé objetiva, assumindo um caráter hermenêutico-integrativo dos

contratos, além de buscar a composição da vontade real das partes no momento da

formação do negócio, também atua na integração das lacunas surgidas no decurso da relação contratual em razão de fatos não previstos pelos contratantes ou imprevisíveis à época da concretização do contrato.

Segundo Couto e Silva, “por meio da interpretação da vontade é possível integrar o conteúdo do negócio jurídico com outros deveres que não emergem diretamente da declaração”. A boa-fé, além de possuir outras funções, como se verá, delineia o campo desta interpretação integradora, pois, da “perquirição dos propósitos e intenções dos contratantes pode manifestar-se a contrariedade do ato aos bons costumes ou à boa fé” (1976: 33/4).

De acordo com o Enunciado n. 26 do Conselho da Justiça Federal, “a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes”32.

Na análise da complexidade da relação contratual deve-se levar em conta o conjunto de direitos e deveres concatenados instrumentalmente para obtenção de um determinado fim (econômico), realizando uma função social. Esta complexidade deve ser tomada como um todo, de forma a tornar possível a interpretação da regulação objetiva do contrato33. Enquanto norma direcionada à determinação do comportamento devido, a boa-fé operará na atividade jurisdicional dando o sentindo do complexo contratual nas hipóteses

32 Enunciado nº 26 do Conselho da Justiça Federal, na internet, in http://www.cjf.gov.br.

33 De acordo com Fernando Noronha, “considerada em si mesma, a relação obrigacional simples é mera

abstração; aquilo que encontramos na vida real são relações obrigacionais complexas” (In O Direito dos

Contratos e seus Princípios Fundamentais: Autonomia Privada, Boa-fé, Justiça Contratual. São Paulo : Saraiva, 1994, p.158).

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em que se mostrem insuficientes a literalidade do texto, a reconstrução da intenção das partes e, até mesmo, o recurso aos usos do tráfico34.

Neste papel integrativo, a boa-fé objetiva poderá inserir no complexo contratual o dever de atendimento aos legítimos interesses da contraparte; promover, juntamente com a boa-fé subjetiva, a proteção da confiança35, controlar cláusulas contratuais abusivas36; e atuar em muitas outras situações em que a relação contratual se mostre lacunosa. Na realidade, esta função está bastante atrelada à função que será analisada a seguir, de norma criadora de deveres jurídicos, posto que esta nada mais é que a continuação da interpretação integrativa dos contratos.

Martins-Costa aponta ainda que “a boa-fé, utilizada como cânone hermenêutico-integrativo, desempenha exponencial papel no campo metodológico, pois

permite a sistematização das decisões judiciais” (2000: 436)37.

A boa-fé objetiva exerce também uma função de norma criadora de

deveres jurídicos. De fato, ao lado dos deveres principais e acessórios de uma relação

obrigacional, vista como um processo, ou um sistema, há outros deveres, ditos instrumentais38, que podem derivar de uma cláusula contratual, de um dispositivo legal ou da cláusula geral de boa-fé. Tais deveres podem recair tanto sobre o devedor quanto sobre o credor, não estando ligados, diretamente, ao cumprimento da prestação principal. Visam, outrossim, a satisfação da relação contratual considerada em sua complexidade.

34 Couto e Silva diferencia a boa-fé dos usos do tráfico, na medida em que estes, “para incidirem como norma,

necessitam recepção legislativa”. Assim, “não se manifestam como meio para a pesquisa da vontade individualmente declarada, mas explicam e complementam a declaração, como regra geral de hermenêutica”. E arremata, “uma vez admitido em artigo de lei, passa a integrar o negócio jurídico, complementando a declaração de vontade das partes, não sendo alegável, conseqüentemente, erro a respeito de sua existência ou significação” (1976: 34/35). Em poucas palavras, quando legalmente previstos, os usos do tráfico se impõem aos contratantes, integrando necessariamente o negócio jurídico.

35 Neste ponto, consultar Menezes Cordeiro, Da boa fé..., cit., p. 1234 e ss.

36 Sobre este assunto, mais especificamente, ver Amaral Júnior, A função da boa-fé..., cit.

37 Aspecto já referido acima. De fato, o recurso à boa-fé torna desnecessário o uso de outros institutos

desprovidos de qualquer noção técnico-operativa, como a equidade, os bons costumes, etc., e facilitaria uma sistematização das decisões jurisprudenciais em torno de um só instituto.

38 Segundo Carlos Alberto da Motta Pinto, os deveres instrumentais “são deveres de adoção de determinados

comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato (...) dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação”. (In Cessão de

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O Conselho da Justiça Federal, no Enunciado n. 24, interpretou que “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”39. O deveres anexos, ou instrumentais, são, portanto, deveres que fazem parte da obrigação, tida como um processo, composto por uma seqüência de atos jurídicos que lhe confere substância.

Quando os deveres instrumentais advêm do emprego de uma cláusula geral de boa-fé, esta assume o caráter de fonte autônoma de obrigações (ou deveres), independentemente da vontade das partes ou do texto factual da lei40. A identificação destes deveres se dá pela interpretação integrativa dos contratos e eles determinam a otimização da relação obrigacional no contrato, ou mesmo antes, na fase pré-negocial, e até depois de sua extinção.

A boa-fé impõe às partes da relação obrigacional a adoção de determinados comportamentos, em razão da confiança objetiva que o contrato (ou as tratativas) fundamenta(m). Cumpre observar que a concretização destes deveres instrumentais depende da verificação, no caso concreto, das circunstâncias que os determine, variando, ainda, quanto à intensidade.

A confiança objetiva41 mútua que a relação obrigacional proporciona resulta em deveres instrumentais, tendo em vista o fim do contrato. A boa-fé objetiva, atuando como cláusula geral, é que confere base juspositiva a esta confiança quando o sistema não lhe oferece proteção expressa (Menezes Cordeiro, 1984: 1250).

Martins-Costa enumera, exemplificativamente, alguns desses deveres instrumentais determinados pela boa-fé objetiva, alguns deles já tipicizados pelo legislador

39 Enunciado nº 24 do Conselho da Justiça Federal, na internet, in http://www.cjf.gov.br.

40 Isto é, independe da existência de uma fattispecie própria, podendo promover a tipização no caso concreto. 41 Para Menezes Cordeiro, a confiança nos contratos atua menos num âmbito “de expectativas de

comportamento regular da outra parte” (subjetivo), e mais como “segurança inculcada pela inserção do pacto em canais jurídicos, cujo percurso se encontra pré-determinado” (objetivo) (1984: 1242/3).

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no Código de Defesa do Consumidor brasileiro ou em outros diplomas legais: a) os deveres

de cuidado, previdência e segurança, como o do depositário; b) os deveres de aviso e

esclarecimento, como o do advogado com o cliente, ou o do consultor financeiro, ou o do médico com o paciente sobre o custo/benefício de determinado tratamento; c) os deveres de

informação, nas relações de consumo; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o do credor que deve colaborar com o devedor para o correto adimplemento da prestação principal, não podendo dificultar o pagamento; f) os deveres de proteção e

cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como o do proprietário de um teatro planejar arquitetonicamente o prédio, de modo a reduzir os riscos de acidentes; g) os

deveres de omissão e de segredo, como o de guardar sigilo sobre algo que soube em razão do contrato ou das tratativas (2000: 439).

Muitos outros deveres podem surgir das relações obrigacionais, devendo o juiz, ao analisar uma situação, despir-se de toda a veste jusracional, ligada a um paradigma ultrapassado, lógico-dedutivo, matemático e abstrato, e passar a enxergar a obrigação como processo, o sistema de modo aberto e o contrato em toda sua complexidade. É desta forma que a cláusula geral de boa-fé poderá servirá como fonte para a solução do caso concreto.

A boa-fé atua, ainda, como limite ao exercício de direitos subjetivos, na medida em que estes contrariem o mandamento de agir com lealdade e correção no trato com o alter na relação obrigacional. Em outras palavras, o juiz, na análise do caso concreto, poderá, presentes algumas circunstâncias, inadmitir que uma parte exerça determinado direito subjetivo decorrente da própria relação.

Como bem coloca Noronha, “se o contrato tem uma função social, se os direitos reconhecidos a cada parte têm por finalidade não só a satisfação de interesses privativos de cada uma das partes, como também a realização de interesses sociais (o interesse geral, ou o bem comum, como quer que estas expressões sejam entendidas em cada sociedade, mas que, em matéria de contratos, sempre serão integradas pela finalidade de assegurar a maximização da riqueza, pelo melhor aproveitamento dos recursos

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disponíveis), não se vê como seja possível tutelar pretensões de um contratante que, considerando o seu interesse, representem sacrifício manifestamente desproporcional dos interesses do co-contratante” (1994: 174).

Para exemplificar esta função exercida pela boa-fé objetiva, serão analisados os direitos subjetivos à resolução do contrato e ao exercício da exceção de contrato não

cumprido, nos quais possui significativa operacionalidade. Observe-se, contudo, que a aplicação do instituto neste sentido não se restringe a estas circunstâncias.

Parece incontestável o direito da parte de resolver o contrato com base no art. 1.092, parágrafo único, do antigo Código Civil42 (ou art. 475 do novo Código Civil43), por inadimplemento da contraparte – é a chamada cláusula resolutiva tácita. Entretanto, em certos casos, o exercício deste direito subjetivo irá caracterizar conduta incompatível com a boa-fé objetiva.

Com efeito, em certas ocasiões, o inadimplemento do contrato não gera para o lesado o direito a resolver o contrato, pois aquele ocorreu quando já havia o

adimplemento substancial do contrato. Trata-se de hipótese, bastante aventada no common

law, em que o devedor, após quitar as diversas prestações que lhe cabia, deixa de pagar em dia a última. Ora, seria absurdo que nestes casos a parte lesada pudesse resolver o contrato, a contragosto da parte inadimplente, mormente se esta já promoveu uma ação de consignação em pagamento ou tentou promover, em atraso, o pagamento44.

42 “Art. 1.092. (...) Parágrafo único. A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato

com perdas e danos”.

43 “Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe

o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.”

44 Noronha inclui esta hipótese no que chama de exercício desequilibrado de direitos, que se insere na

categoria do desleal exercício de direitos, na qual “o titular exerce seu direito de forma contrária à legítima confiança criada na contraparte”. As outras categorias que o autor aponta são o desleal não-exercício de

direitos, no qual “o titular não-efetiva o seu direito e, em determinadas circunstâncias, acaba criando na contraparte uma confiança justificada na estabilidade da situação existente”; e a desleal constituição de

direitos, em que “uma pessoa defrauda a confiança da outra e assim, indevidamente, acaba adquirindo contra ela um direito”, que se exercido, será desleal (1994: 177 e ss).

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No que concerne ao direito de invocar a exceptio non adimpleti contractus45, a boa-fé também poderá ter papel fundamental na disciplina da relação obrigacional, enxergada como um processo, pois impedirá que uma parte se beneficie da torpeza de seus próprios atos. Assim, uma parte que deixa de cumprir uma norma jurídica, legal ou contratual, não pode se utilizar deste ato para exigir da outra parte o cumprimento da sua prestação.

A referida exceção decorre da noção de sinalagma, presente nos contratos bilaterais, que traduz a “dependência recíproca das obrigações”, isto é, “uma obrigação é a causa, a razão de ser, o pressuposto da outra, verificando-se interdependência essencial entre as prestações” (Gomes, 1998: 71). Nos dizeres de Carlos Rodríguez, “el equilíbrio de las prestaciones constituye la naturaleza o el ‘sentido’ del contrato bilateral”46. Este equilíbrio, no entanto, deve se impor também quando a uma parte que descumpriu algum de seus deveres contratuais não seja permitido recorrer àquela exceção – é a regra do tu

quoque.

A ausência no ordenamento jurídico de um comando, como a cláusula geral de boa-fé, que inserisse no sistema a regra do tu quoque resultaria em grande insegurança à estrutura sinalagmática dos contratos bilaterais.

Ainda com relação à função da boa-fé como limite ao exercício de direitos subjetivos, deve-se fazer menção à regra que coíbe o venire contra factum proprium, que é definida por Menezes Cordeiro como o “exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente pelo exercente” (1984: 742).

Vale observar que a relação do venire com a boa-fé objetiva evidencia a desnecessidade de existência de culpa do titular do direito, pois “o dever de não agir contraditoriamente, de atuar de acordo com os padrões exigíveis de correção e lealdade, é

45 O dispositivo legal que enseja a argüição da exceção é o art.476, primeira parte, do Código Civil, que versa:

“Nos contratos bilaterais, nenhum dos contraentes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”. No antigo Código Civil, art. 1.092, com texto idêntico.

46 Rodríguez, Carlos R. Fernández. Estudio Preliminar à obra de Karl Larenz, Base del Negocio Juridico...,

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infringido sempre que o desrespeito pela confiança legítima da contraparte possa ser imputado ao titular do direito, mesmo que só a título objetivo, por a situação ainda lhe ser referível” (Noronha, 1994: 184/5). Além disso, o que se quer não é “preservar a conduta inicial, mas antes sancionar a própria violação objetiva do dever de lealdade para com a contraparte” (Martins-Costa, 2000: 471).

3. A Boa-fé nos Contratos no Código Civil.

A boa-fé, em seu sentido objetivo, está no novo Código Civil, Parte Especial, Livro I – Do Direito das Obrigações, Título V – Dos Contratos em Geral, Capítulo I – Disposições Gerais, Seção I – Preliminares, composta de seis artigos, no citado art. 422, que vale repetir: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Quando o legislador se refere à “conclusão do contrato”, quer dizer que os contratantes devem observar a regra desde as tratativas. Isto é, concluído o contrato, se vier a ser provado que algum dos contratantes agiu de forma contrária à boa-fé antes desta conclusão e a questão for levada a juízo, deverá o julgador determinar, com base na cláusula geral, as conseqüências jurídicas decorrentes de tal comportamento.

É interessante repetir o afirmado na introdução a respeito da omissão do legislador no que tange à obrigação dos contratantes agir conforme a boa-fé também após a extinção do contrato. De fato, mesmo depois de encerradas as obrigações principais do contrato, sendo dado este como extinto, podem restar ainda, em certas ocasiões, os deveres instrumentais, cuja inobservância pode gerar efeitos jurídicos com base na boa-fé.

Assim, esta última parte do trabalho será utilizada para verificar como a jurisprudência vem aplicando o princípio da boa-fé nestes três momentos da vida contratual, ou seja, nas relações pré-negociais, na execução do contrato e nos deveres remanescentes após a sua extinção, bem como para apontar o duplo efeito da utilização da

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cláusula geral: a aproximação do nosso sistema com o Common Law e a maior aplicabilidade dos princípios constitucionais no direito contratual.

3.1. A Responsabilidade Pré-negocial.

A aplicação da boa-fé objetiva na fase de conclusão do contrato atém-se os fatos que configuram as tratativas. Neste momento, embora ainda não tenham sido fixadas com precisão as obrigações principais da relação contratual, as partes devem comportar-se com lealdade para com os interesses do alter. Assim, as peculiaridades do caso concreto são essenciais na configuração destes deveres que visam proteger a solidez, a segurança e a facilidade da circulação das riquezas.

No caso dos tomates47, ocorrido no Rio Grande do Sul, a CICA, após ter distribuído gratuitamente sementes de tomate para agricultores da região de Canguçu, deixou de adquirir o produto em razão da modificação em sua política industrial, contrariando a atitude tomada em anos anteriores. Intentada pelos agricultores da região, que sofreram prejuízos decorrentes do cultivo dos tomates, a questão foi resolvida em segunda instância com base no princípio da boa-fé objetiva, conforme a ementa que segue:

“Contratos. Tratativas. Culpa in contrahendo. Responsabilidade civil. Responsabilidade da empresa alimentícia, industrializadora de tomates, que distribui sementes, no tempo do plantio, e então manifesta a intenção de adquirir o produto, mas depois resolve, por sua conveniência, não mais industrializa-lo naquele ano, assim causando o prejuízo do agricultor, que sofre a frustração da expectativa da venda da safra, uma vez que o produto ficou sem possibilidade de colocação. Provimento, em parte, do apelo, para reduzir a indenização à metade da produção, pois uma parte da colheita foi absorvida por empresa congênere, às instâncias da ré. Voto vencido, julgando improcedente a ação” (TJRGS, AC 591028295, 5ª Câm. Cível, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., j. 06.06.1991, por maioria, pub. in RJTJRGS 154/378).

47 Por ser considerado um caso emblemático de aplicação da boa-fé objetiva, é citado também por

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Em seu voto, o relator afirma que “decorre do princípio da boa-fé objetiva, aceito pelo nosso ordenamento (Clóvis do Couto e Silva, Estudos de Direito Civil

Brasileiro e Português, p. 61), o dever de lealdade durante as tratativas e a conseqüente responsabilidade da parte que, depois de suscitar na outra a justa expectativa de celebração de um certo negócio, volta atrás e desiste de consumar a avença”.

Quanto à argumentação da ré, na apelação, acerca da ausência de provas, o julgador aponta para as nuances do caso concreto: “Ora, é graciosa a pretensão de que o relacionamento estabelecido entre esses homens do campo, simples e rudes, estivesse documentado por escrito. (...) Confiaram eles lealmente na palavra dada, na repetição do que acontecera em anos anteriores, certamente não tendo porque lembrar de requerer a produção de prova ad perpetuam rei memoriam, tirar fotografias da plantação e da colheita, chamar o notário para documentar as declarações do intermediário”.

Em reforço a esta idéia, o Enunciado n. 25 do Conselho da Justiça Federal dispõe que “o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual”48. A fase pós contratual será abordada mais adiante.

3.2. A Teoria do Adimplemento Substancial.

Para exemplificar a aplicação da cláusula geral de boa-fé na apreciação de conflito gerado pela execução de contrato será analisado um caso referente à Teoria do Adimplemento Substancial. Atua a boa-fé, neste caso, na função de limitar o exercício de direitos subjetivos, pois o credor fica impedido de utilizar uma cláusula específica do contrato (resolutória) em benefício da economia contratual. Veja-se o seguinte voto da lavra do Ministro Ruy Rosado Aguiar Júnior, por si só suficiente para explicar a questão:

Referências

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