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Autor: Marcelo Eduardo Leite Mestre em Sociologia pela UNESP e doutorando em Multimeios pela UNICAMP

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Academic year: 2021

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XI Congresso Brasileiro de Sociologia

1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP

GT 15: Praticas Culturais e Imaginário

Titulo do trabalho: Os retratos carte de visite produzidos pelo ateliê

Photographia Americana e o processo de construção de auto-imagens na

segunda metade do século XIX – São Paulo 1875-1885.

Autor: Marcelo Eduardo Leite

Mestre em Sociologia pela UNESP e

doutorando em Multimeios pela UNICAMP

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RESUMO:

A presente comunicação tem como objetivo central levantar algumas questões relacionadas ao processo de auto-representação da população paulistana por meio das fotografias carte de visite. Para tal, apresentarei uma série de retratos que fazem parte da produção imagética deixada por Militão Augusto de Azevedo, hoje aos cuidados do Museu Paulista da USP. Tais imagens configuram-se num bom exemplo de como atuavam os profissionais da fotografia, que além das atribuições técnicas intrínsecas a profissão, são cúmplices das mais variadas formas de afirmação da sociedade no século XIX.

PALVRAS CHAVES: Militão Augusto de Azevedo; Segundo Império; carte de visite.

A coleção Militão Augusto de Azevedo do Museu Paulista.

O trabalho que apresento se debruça sobre os retratos cartes de visite da Coleção Militão Augusto de Azevedo do Museu Paulista da USP. O material retratístico deixado pelo fotógrafo é resultado de duas etapas distintas da produção de Militão: a sua fase como fotógrafo-gerente, no ateliê de Carneiro & Gaspar, e a etapa em que figura como fotógrafo-proprietário do ateliê Photographia Americana. Estes retratos revelam os mais variados tipos humanos de uma sociedade em construção, gravam democraticamente os mais diferentes estratos sociais.

Além das leituras e de contatos com parte da produção retratística de Militão, por meio de livros, a pesquisa consistiu em visitas à „Coleção Militão Augusto de Azevedo‟, depositada no Serviço de Documentação Textual e Iconografia do Museu Paulista da USP, onde foi feita a triagem do material aqui apresentado. A partir do recorte efetuado – os retratos de „corpo inteiro‟ -, pude, por meio de um „banco de dados‟ informatizado, percorrer as imagens localizadas nesse subconjunto.

O conjunto do material é formado por um total de seis volumes encadernados, contendo ao todo mais de 10.000 imagens. Estes álbuns são o que se acredita ser os álbuns de controle e mostruário dos estúdios Carneiro & Gaspar e Photographia Americana, onde Militão atuou. As imagens presentes nos álbuns foram produzidas entre os anos de 1865 e 1885, sendo que o material imagético pode ser examinado por temas.

A pesquisa que apresento recai sobre os retratos de „corpo inteiro‟, por eles permitirem uma maior compreensão do contexto social retratado, congregando um número maior de elementos para serem analisados, tais como, vestuário, mobiliário, adereços do ateliê e objetos levados à cena fotográfica pelos próprios retratados. A investigação buscou selecionar retratos que de alguma forma exibissem a heterogeneidade

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humana e social de São Paulo. Desta forma, o material mostra os mais variados personagens da sociedade paulistana do período, tais como: artistas, negros, brancos, estudantes, trabalhadores diversos, crianças, casais, juristas, mulheres, homens etc. Isso confirma a hipótese de que os retratos de Militão possibilitam ter acesso aos diversos segmentos sociais, em sua busca pela construção de auto-imagens específicas. Movido pela necessidade de selecionar um material enxuto e, ao mesmo tempo, representativo, tanto em relação ao acervo como em relação aos meus objetivos, procurei escolher fotografias que demonstrassem ser o ateliê de Militão extremamente popular e aberto às mais diversas formas de representação da sociedade. Quer dizer, me movimentei guiado pelo critério da heterogeneidade. A opção exclusiva pelas cartes de visite se deu por este ser o produto mais popular oferecido pelos ateliês, penetrando de forma nunca vista na sociedade brasileira.

As idas e vindas ao Museu Paulista foram proporcionando a seleção de fotografias pertinentes a minha proposta. Uma vez pré-selecionadas as imagens, fui realizando anotações descritivas a respeito do material. Algumas informações, obtidas por meio da bibliografia histórica, mostraram-se extremamente importantes para a análise, como por exemplo os dados com relação aos tipos físicos da época, às vestimentas, às formas de apresentação e representação em sociedade etc.

Olhando o material selecionado de modo mais geral, minha primeira impressão foi que, a despeito dos padrões da época, o conjunto apresentava grande singularidade. Quer dizer, apesar das cartes de visite, difundidas como produtos comerciais, estarem condicionadas a padrões definidos de produção e consumo – como, por exemplo, montagem cênica, uso e abuso das poses, emprego de certas técnicas etc. -, elas permitem flagrar a visão particular de Militão.

Se um primeiro passar de olhos pelo material retratístico parece nos colocar diante de uma mesma imagem, já que elas se assemelham, certos indícios expõem o olhar do fotógrafo, suas escolhas e perspectivas. E foram eles que guiaram a análise.

O estudo das cartes de visite obriga a termos atenção à cena social e ao décor interno: equipamentos do ateliê, adereços, painéis utilizados como fundo, mobílias e roupas. O contexto histórico se coloca entre o pesquisador e o retratado como uma espécie de ponte. Literalmente, de um lado, está a realidade social. Do outro lado, o fotógrafo, seus pontos de vista e anseios, o que faz dele mais um rico e fértil referencial interpretativo. Como dito antes, a análise tenta desenhar um movimento que combina

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diferentes pontos de partida e de chegada: o fotógrafo, o ateliê, a cidade de São Paulo, cada um desses pólos remetendo invariavelmente ao outro.

No tocante às características específicas do trabalho apresentado por Militão, posso afirmar que, ao retratar personagens da cena social paulistana, ele está, de certa forma, inventando e reinventando, por meio das imagens fotográficas, os valores dessa sociedade. Creio que, na construção do retrato, os anseios de representações pessoais mesclam-se a valores sociais do meio social. Se isso é verdade, as condições do ateliê e o conhecimento técnico do fotógrafo impõem alguns limites para a construção do „sonho‟ do retratado. É justamente sobre este movimento definidor dos contornos das imagens projetadas que a análise aqui compreendida procura jogar luz.

A São Paulo dos últimos anos da escravidão.

O século XIX é marcadamente um período de grandes transformações para sociedade brasileira, nos seus mais variados aspectos. A segunda metade do século XIX é, por sua vez, um período no qual o Brasil vive uma razoável situação de estabilidade econômica. É neste momento que alguns costumes europeus chegam mais facilmente ao país: do modo de vestir às atividades culturais em geral. Neste instante, evidencia-se de forma mais clara o paradoxo típico da convivência tensa entre nós – para não dizer dramática - entre uma rica minoria letrada e uma ampla camada pobre, analfabeta. As maiores cidades brasileiras possuem uma elite que se apropria das modas européias, copiando valores estéticos. Assim como na Europa, também no Brasil, para as mulheres, por exemplo, o leque, a echarpe e o xale são componentes indispensáveis da vestimenta, sem os quais uma mulher „de nível‟ não se apresenta em público. Para os homens, a cartola, a bengala e as luvas têm igual importância na construção simbólica da posição social.

A cidade de São Paulo é espaço privilegiado para estas transformações. Capital de uma província que tem papel determinante na vida política e econômica da nação, São Paulo é ponto de passagem e de parada de inúmeras pessoas. Sua população, porém , é pequena, girando entre 25.000 e 35.000, entre 1860 e 1880. A área mais urbanizada da cidade é a Freguesia da Sé, que conta aproximadamente 9000 habitantes, em 1872, e 13.000 habitantes, em 1886. Mas grande parte da população está nos entornos da cidade. Tais bairros são compostos principalmente por habitações rurais e semi-rurais, como chácaras e sítios. Ao todo, os bairros somam 16.800 habitantes em 1872, passando a ter

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uma população de 34.000, em 1886 (quando a população total da cidade é 47.000 habitantes). É na região periférica que, usando a mão de obra escrava, são produzidos vários dos gêneros consumidos pela população, como hortaliças, frutas, laticínios etc1. A divisão entre as regiões mais afastadas e a central é demarcada pelas pontes que cruzam os rios, riachos e córregos da cidade. Essas passagens exercem uma “(...) função simbólica na organização espacial” da cidade, delimitando não só uma mudança nas formas de ocupação propriamente dita, mas também nas regras de comportamento. É nelas que a cidade encontra também um espaço de interação social, por meio do vaivém das pessoas que se deslocam para o centro. Por elas passam tropeiros, carreteiros, lavadeiras, e escravos, que na sua maioria vão a região central, onde desenvolvem seus ofícios.

A população escrava da cidade é em 1872 de 3500 indivíduos, o que constitui aproximadamente 15% de uma população de cerca de 25.000 habitantes2. O contingente negro – cativo ou forro - residente na cidade, proporcionalmente pequeno, tem sua visibilidade multiplicada por ter como seu espaço de convívio e expressão a rua. É nela que a população negra se reúne, aglomerando-se nos largos e chafarizes, onde ocorrem as rodas de capoeira e batuque. Tais concentrações despertam a indignação de parte da população que define a casa como seu espaço de sociabilidade. A população branca, com sua vida reclusa e sua privacidade garantida, lança seus olhos críticos e sua moral sobre as formas de ser dessa população.

Mas os limites geográficos da cidade vão aos poucos sendo alterados pelas transformações vividas, sendo a ferrovia um dos principais fatores de mudanças. A primeira a servir à província é inaugurada em 1867, ligando São Paulo a Santos, e tendo como objetivo direto o escoamento da produção cafeeira, até então feito com o uso de animais3. Dez anos depois, em 1877, é feita a ligação com o Rio de Janeiro. As mudanças na sociedade realmente avançam, e alteram inúmeras formas de se fazer representar, de brancos e negros. E, ao construir as suas auto-imagens, as pessoas tem nos fotógrafos um aliado muito importante. Assim, a população encontra um profissional que é cúmplice para sua afirmação no contexto social.

1 Maria Cristina Cortez WISSENBACH. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas - Escravos e Forros em São Paulo

1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 129-33.

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Nesse momento, a população escrava da província é 156.612, para 837.734 pessoas no total. Robert CONRAD. Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira: 1978, p. 361.

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Sergio SILVA. A expansão Cafeeira e as Origens da industria no Brasil. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976, p. 57.

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O espaço dos ateliês fotográficos.

Derivadas do negativo de colódio úmido, que proporciona, finalmente, uma imagem em negativo, permitindo a reprodução fotográfica em série, surge, em 1854, as

cartes de visite. Fruto da astúcia do francês André Disdéri, o novo invento consiste em

retratos realizados em estúdio que, devido a um sistema de lentes múltiplas, são produzidos em série. Medindo aproximadamente 5 X 9 centímetros, as imagens são cortadas e coladas em pequenos cartões que levavam no verso o símbolo do ateliê que as produziu.

No Brasil, é na década de 1860 que tal invento aporta entre nós, exatamente quando delineia-se de forma mais clara o perfil do profissional da fotografia e quando vivemos um período no qual surgem inúmeros ateliês nas principais cidades do país. É quando popularizam-se a fotografia, o fotografado e o fotógrafo. Dezenas de manuais publicados e equipamentos mais modernos permitem que pessoas com pouco conhecimento técnico trabalhem nesse novo mercado. A sala de poses é o local do ateliê onde se constrói a cena fotográfica; é o espaço onde alguns elementos básicos se impõem para o seu funcionamento, tais como “(...) telões pintados com decorações exóticas e barroquizantes, colunas, mesas, cadeiras, poltronas, tripés, tapetes, peles, flores, panejamentos, para criar imagens de opulência e dignidade”4

. Ao fundo da sala de poses, e enquadrando as costas do cliente, deveriam ser colocados painéis, sobretudo pinturas de paisagens diversas. Esses devem ser móveis a ponto de permitir a sua substituição, de acordo com o gosto do cliente, de modo a obter harmonia entre a imagem desejada e o retratado.

Os retratos possuem na pose, no planejamento técnico e no uso correto de acessórios, tais como móveis e objetos, elementos pertinentes ao seu bom desenvolvimento. Dentre esses, talvez seja a pose o elemento que melhor contribui para diferenciar os retratos. O retratista evita a massificação das poses. Alguns manuais indicam como posicionar o olhar do retratado; outros dão sugestões de como posicionar o cliente diante da parafernália da sala de poses, apoiando o modelo nos móveis e pilares ou balaustradas da cena fotográfica. Outro ponto muito interessante, com relação à composição cênica, vem do fato de os fotógrafos muitas vezes se inspirarem nos retratos feitos pelos pintores, reproduzindo de forma muito semelhante a composição.

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Tudo isso ocorre num momento em que os elementos da vida burguesa são difundidos com rapidez e as representações de status ganham importância diante de uma nova realidade que acena para a possibilidade de ascensão social. Nesse contexto, a vestimenta adquire enorme importância e passa a participar da construção dessa nova ordem. A fotografia, aliada à moda, passa a interagir no processo de construção e representação de novos valores. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza, a moda serve “(...) à estrutura social acentuando a divisão de classe; reconcilia o conflito entre o impulso individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação como pessoa) e o socializador (necessidade de afirmação como membro de grupo) (...)”, exprimindo idéias e sentimentos. É também quando se evidencia de forma clara a moda masculina e a moda feminina, “(...) traduzindo os antagonismos dos ideais de masculinidade e de feminilidade”, mostrando-se um reflexo dos novos papéis sociais, traduzindo a divisão dos dois mundos. A roupa não só contribui para a afirmação dos valores sociais; ela é, antes de tudo, o reflexo e expressa a maneira de ser desse novo homem. Atentos aos novos valores estéticos da sociedade, os fotógrafos percebem a sua importância e procuram explorar, ao máximo, a roupa do retratado. É quando a casaca e a cartola tornam-se elementos imprescindíveis da ornamentação masculina burguesa: “(..) todo homem decente terá de possuir ao menos uma (...)”5

. Muitos homens são retratados envergando uma simbologia que os distancie do mero trabalhador braçal, já que é importante transpor a imagem típica dos primeiros representantes da classe burguesa. A indumentária feminina, ao contrário, tem nas formas arredondadas do corpo da mulher um ponto a ser destacado. Para a mulher, a beleza é salientada, sendo as vestimentas ricas em fitas, bordados e rendas. Assim, no campo estético e cultural, salienta-se o distanciamento entre a condição masculina e a feminina.

Outro recurso muito explorado é o retrato de „corpo inteiro‟, o que permite ao fotógrafo cercar o retratado de artifícios que definem seu status, “(...) longe do indivíduo e perto da máscara social, numa paródia de auto-representação (...)”6, onde se unem realismo e idealização. No caso das cartes de visite, os retratos de „corpo inteiro‟ são a forma mais completa de junção da série de elementos mobilizados na elaboração da cena fotográfica. São também nestes retratos de „corpo inteiro‟ que os clientes podem introduzir a sua própria indumentária, trazendo desde objetos cotidianos à roupa do

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Gilda de Mello e SOUZA. O espírito das Roupas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 47-57.

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Candido Domingues GRANGEIRO. As artes de um Negócio: a febre Photographica - São Paulo 1862-1886 (dissertação de mestrado em História Social). Campinas: IFCH, 1993, p. 196.

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dia, podendo ostentar traços da moda desejada, e muitas vezes inacessível. Procuram, por meio desses objetos, contar a sua própria história, já que os „retratos de corpo inteiro‟ agregam os fragmentos da personalidade do indivíduo, que são incorporados e reincorporados na sala de poses, que é o local onde se estabelece esta construção imagética que projeta os indivíduos.

As imagens de Militão Augusto de Azevedo.

Em 1862 chega à cidade de São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, um dos personagens mais ilustres de toda a sua história: Militão Augusto de Azevedo. Vindo inicialmente para trabalhar como ator, acompanhando a Companhia Dramática Nacional, ele acaba, pouco depois, tornando-se fotógrafo, profissão que viria a consagra-lo como um dos mais importantes que já passaram pela cidade. Tudo indica que à nova profissão é escolhida num processo de busca de um trabalho mais estável, já que é nesta época ele constitui família. Sua atividade tem inicio no ateliê Carneiro & Gaspar, onde foi como fotógrafo e gerente até 1875, momento que adquire o estabelecimento, transformando-o no ateliê Photographia Americana.

Como a maioria dos estabelecimentos do período, o ateliê de Militão tem nas

cartes de visite seu produto mais difundido. No período no qual Militão atua na cidade de

São Paulo, existem aproximadamente seis ateliês fotográficos instalados, sendo que o ateliê Photographia Americana se destaca por ser mais popular que os demais. O preço pedido pelas cartes de visite no ateliê é um dos mais baratos de São Paulo, sendo que uma dúzia de retratos custa 5$000 (cinco mil réis)7. Se é difícil afirmar com exatidão que tais imagens são um produto verdadeiramente popular no Brasil, por outro lado, é notório que as cartes de visite abarcam novos segmentos da sociedade. Ao observar as imagens deixadas por ele, notamos que foram retratados alguns personagens oriundos das camadas mais pobres da sociedade. Principalmente naquelas produzidas pelo ateliê Photographia

Americana, localizado defronte à Igreja do Rosário, ponto de encontro da população negra

paulistana, na Rua da Imperatriz, 58. Isso, sem dúvida, dá a ele características bem peculiares, já que os outros estabelecimentos estão instalados nas regiões dos Largos da Sé e São Francisco. Isso explica em parte a grande quantidade de negros fotografados, bem

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Solange Ferraz de LIMA. “O circuito Social da Fotografia: estudo de caso II”. In: Annateresa FABRIS. Fotografia usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991, p. 75.

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como a própria forma em que estes aparecem nessas fotos: como cidadãos à procura de uma afirmação social.

Ao estar próxima do ateliê, a Igreja do Rosário acaba tendo uma importância maior do que inicialmente possa parecer. Ao lado do templo existem pequenos casebres pertencentes a Irmandade e que são ocupados por negros. Ali, também está localizado o cemitério dos negros, nos quais o sepultamento era “(...) feito à noite, com ritual, próprio, em que são evocados, disfarçadamente, ritos ancestrais”. O local é ainda espaço para rituais religiosos, nos quais se pode ver “(...) danças e cânticos no adro, executando a célebre música Tambaque”8

. Muitos se aglomeram nas quitandas, casinhas e nas escadas da própria igreja, sendo o comércio de rua muito intenso naquela área9.

Dentre os personagens que usam da fotografia para se fazer ver, a população negra, é um grupo muito importante. É o período no qual os negros se distanciam da escravidão, e se fazer representar como homem livre é muito importante. Nesse sentido, é comum a sua utilização para a manifestação de status dentro de padrões e valores tradicionais da sociedade burguesa. As cartes de visite disponíveis como um bem de consumo qualquer, podem ser, e são de fato, utilizadas por novos segmentos da população, e com o processo de “popularização” dos retratos, as representações de status, outrora restritas vão sendo cada vez mais praticadas por novos segmentos.

Como dito, o material selecionado se refere a sociedade paulistana, mais exatamente entre 1875 e 1885. Período no qual Militão atua no ateliê Photographia

Americana, o que corresponde à etapa final de sua produção retratística, quando ele é,

além de fotógrafo, proprietário do ateliê. É também quando ele, possivelmente, tem mais liberdade na sua atuação profissional, estando em contato com a cidade que vive o início de sua grande transformação urbana. A gigantesca produção de retratos que ele deixou é testemunho insubstituível das pessoas que na cidade vivem ou dos que por ela passam. As imagens que apresento aqui mostram, além dos personagens da urbe paulistana, os aparatos cênicos do ateliê e as formas de compor a cena fotográfica. Nas fotografias, conhecemos, por exemplo, quais são os painéis de fundo, as poltronas, as cadeiras, as colunas, os aparadores, os vasos, as estatuetas e, ainda, um sem número de chapéus, bengalas, guarda chuvas, sobrecasacas, vestidos e sapatos, além, é claro, dos inúmeros instrumentos de trabalho que são trazidos pelo retratado. Vamos aos exemplos.

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Barros FERREIRA. O nobre e o antigo bairro da Sé. São Paulo: Prefeitura do Município, 1971, p. 38.

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Na imagem 1, podemos notar como Militão usa com maestria a oposição entre os tons claros e escuros. No centro da cena, apoiada na mesa da sala de poses, a menina de pele negra olha diretamente para a câmera fotográfica. A roupa branca se destaca com relação à cor da sua pele. Os sapatos de cor preta constituem um elemento que destaca a modelo do chão malhado em tons claros e escuros do ateliê. Em seu pescoço, vemos um crucifixo metálico, sustentado por uma fita escura. O painel de fundo, ligeiramente desfocado, está postado no canto superior da fotografia, recurso notado com freqüência nos casos em que o fotógrafo procura dar destaque maior aos elementos de cena usados no primeiro plano da imagem. Esta técnica cria uma atmosfera de interioridade, propiciando, com isso, um segundo plano para a fotografia.

Se a cidade é o espaço da transformação da sociedade paulista, abrigando as ferrovias, os hotéis, os cafés e os restaurantes. Ela é também o local onde circulam os mais diversos tipos sociais: o escravo, o alforriado e o trabalhador rural, entre outros. Na imagem 2, há um homem vestindo uma camisa branca, com as suas mangas arregaçadas um pouco acima dos cotovelos. Calça escura com as barras tocando os seus calçados, aparentemente uma velha bota, sem brilho e com manchas. Na cabeça, um chapéu preto. A face ostenta longas costeletas, bigode e vistosa barba, que se alonga até a altura do seu peito. Ele ocupa exatamente a parte central da fotografia, o que dá equilíbrio à imagem. Seu olhar fita diretamente o fotógrafo. Essa concordância entre as linhas da imagem remete diretamente ao que eu acredito ser o elemento central desse retrato: a ferramenta de trabalho. Com as mãos, ele segura a ferramenta, que, posicionada em diagonal com relação ao seu corpo, acaba se incorporando às suas formas. Homem e ferramenta, diante dos nossos olhos, são agora indivisíveis (este é um componente importante nas imagens que representam ocupações). Este homem, usando o recurso moderno da fotografia, perpetua sua imagem de indivíduo ligado às raízes de um país onde predomina a sociedade rural, sendo, também, um exemplar testemunho da nossa história social. A foto mostra, ainda, que a ferramenta de trabalho aparece como uma extensão do retratado, tornando-se algo que este traz consigo, na busca de sua auto-afirmação.

Neste tipo de retrato, vemos a afirmação dos variados elementos que vão surgindo no cenário social brasileiro. Assim, ao virem a tona, os novos personagens procuram se afirmar por meio das imagens carte de visite.

As imagens de Militão captam os mais variados personagens que emergem no contexto social urbano em formação e, como dito, permitem ver, também, segmentos das

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classes inferiores da população paulista. Por seu ateliê passam , casais, crianças, artistas, profissionais em busca de afirmação social, entre outros, que são imortalizados por suas lentes. Dentre as fotografias retratando a população negra paulistana, uma (imagem 3) me parece bastante significativa, sendo um bom exemplo de como essa população usa de artifícios, até então restritos à população branca, para se afirmar nessa sociedade em transição. Nela vemos uma mulher negra postada ao lado da poltrona da sala de poses, na qual descansa sua mão esquerda. Seu vestido preto ostenta uma série de babados na sua parte inferior, aparentando estar devidamente ajustado ao seu corpo. Seu pé direito, está posicionado um pouco à frente, e seu corpo direcionado para o seu lado esquerdo. Seus cabelos curtos expõem pequenos cachos que escorrem pela testa. Na mão direita, um leque branco que se destaca sobre a roupa escura. Ao fundo, um dos painéis do ateliê ilustra paisagens que mostram uma área mais clara na sua parte superior direita. Isso, a meu ver, provoca um equilíbrio de tons, dialogando com a tonalidade cinza escura da mobília e com o preto do vestido.

Mas a cidade, espaço de afirmação de indivíduos e grupos, até há pouco impedidos de se mostrar por meio da arte dos retratos, é também onde alguns apenas buscam manter valores e atitudes. É o que notamos com o auxílio dos estudantes da Faculdade de Direito, personagens inconfundíveis da história paulistana, e que são freqüentadores dos ateliês fotográficos. As imagens que registram esse grupo não servem apenas como lembranças, enviadas aos entes queridos e distantes, mas também permitem a manifestação do próprio grupo.

Na carte de visite 4, vemos um jovem, que dentre os ícones possíveis para levar consigo à sala de poses - no intuito de marcar posição social -, optou por se „apresentar‟ com alguns livros. O retratado veste um vistoso capote negro que se alonga até a altura dos joelhos. No pescoço, um xale; na cabeça, uma cartola que, posicionada de forma inclinada, provoca uma linha curva. Sua roupa, obviamente, pouco combina com um país tropical, apesar de aceitável, mesmo porque se trata de São Paulo. De qualquer forma, temos um traje que dialoga de forma mais próxima com a paisagem apresentada pelo painel que exibe a imagem de uma espécie conífera, pouco presente nas paisagens nacionais. Compõe-se aqui o tão almejado ar europeu, mas creio que o que se busca mesmo é mostrar que este personagem também existe nas terras paulistanas.

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Imagem 1 Imagem 2

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Mesmo porque o país vive um momento rico de idéias que se alojam nos livros e que, mesmo que sejam meramente cênicas, marcam posição nessa sociedade em ebulição. Possivelmente, a indumentária pertence ao retratado. Digo isso não só pelo caimento perfeito que ela aparenta, mas, também, por indicar um tipo de figuração extremamente personalizada, que remete a um desejo peculiar.

Posicionado em diagonal com relação ao fotógrafo, o modelo tem seu olhar frontal e direto tão usado nos retratos. O braço direito está solto e colocado rente ao corpo; o esquerdo aperta contra seu peito os dois livros. O indivíduo agora está completo, obtendo o aparato cênico que o simboliza na fotografia. O saber que ele propagandeia está sintetizado no seu objeto. Ele se posiciona devidamente num contexto social heterogêneo e complexo, no qual as fotografias são, como vimos em tantas imagens, um elemento de afirmação e reafirmação de valores. Vejo nesse retratado uma vontade de marcar seu território no campo da ideologia. Quem sabe ele é uma amostra de como há nesse momento a necessidade de se afirmar como detentor de idéias? É uma sociedade que se transforma, e na qual surgem novos espaços sociais, onde o novo e o velho convivem lado a lado.

No geral, o que essas imagens nos mostram de verdade é que estes homens, mulheres, crianças e adultos estão realmente em busca do seu lugar no contexto social e, para tal, contam com o imprescindível talento de Militão que, antes de mais nada, é cúmplice dos indivíduos dessa cidade. Cidade que congrega os mais variados anseios e desejos e as mais variadas formas de dominação, que provocam, por sua vez, a imediata vontade de se afirmar.

Aqui, nessa São Paulo que observamos de forma tão privilegiada, chegam e desaparecem novos valores, criando e ao mesmo tempo excluindo formas de expressão. Se para uns, usar sapatos é uma forma de afirmação, outros se posicionam ao lado do seu clarinete, do cavalete, da pá. As imagens de Militão, com seus personagens, são uma fonte insubstituível de informações que remetem a uma história que se inclina diretamente aos detalhes do dia-a-dia. Esta possibilidade de análise, aberta por seus retratos, nos permite conviver com um espaço de afirmação social, que é gerado nos ateliês. Isso, para mim, apresenta uma fonte imprescindível para entender a sociedade brasileira.

É também por meio das imagens que vemos como se configura o trabalho dos fotógrafos no século XIX, já que elas evidenciam detalhes do ofício fotográfico. A seleção que apresento mostra, também, a penetração que os retratos têm nos segmentos que

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buscam afirmação, dando a eles a almejada visibilidade. Como já apontava a bibliografia, os retratos de Militão permitem que percebamos visualmente a heterogeneidade humana e social de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARVALHO, Vânia Carneiro de e LIMA, Solange Ferraz de. “Fotografia e Sociedade: como fica a pesquisa com os retratos de Militão?”, Revista de História (v. 137). São Paulo: 1998.

CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira: 1978.

DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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Município, 1971.

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iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994.

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KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.

KOSSOY, Boris. Militão Augusto de Azevedo e a documentação fotográfica de São Paulo (1862-1887): recuperação da cena paulistana através da fotografia (dissertação de mestrado). São Paulo: FESP/SP, 1978.

LAGO, Pedro Corrêa do. Militão Augusto de Azevedo. Rio de Janeiro: Capivara, 2001. LEITE, Marcelo Eduardo. Militão Augusto de Azevedo: um olhar sobre a

heterogeneidade humana e social de São Paulo (1865-1885) (dissertação de mestrado em Sociologia). Araraquara SP: FCL/Unesp, 2002.

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LEITE, Marcelo Eduardo. “Militão Augusto de Azevedo: Um olhar particular sobre a sociedade paulistana (1862-1887)”, In: Studium - 5, Departamento de Multimeios da Unicamp, 2001 [URL:http://studium.iar.unicamp.br/cinco/1.htm].

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WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas - Escravos e Forros em São Paulo 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998.

FONTES PRIMÁRIAS:

Álbuns de Retratos dos Ateliês Carneiro & Gaspar e Photographia Americana. Volume I – 1865 (contendo 2117 imagens). Coleção Militão Augusto de Azevedo - Museu Paulista da USP.

Álbuns de Retratos dos Ateliês Carneiro & Gaspar e Photographia Americana. Volume II – 1870 (contendo 3223 imagens). Coleção Militão Augusto de Azevedo - Museu Paulista da USP.

Álbuns de Retratos dos Ateliês Carneiro & Gaspar e Photographia Americana. Volume III – 1874 (contendo 2715 imagens). Coleção Militão Augusto de Azevedo - Museu Paulista/USP.

Álbuns de Retratos dos Ateliês Carneiro & Gaspar e Photographia Americana. Volume IV – 1877 (contendo 737 imagens). Coleção Militão Augusto de Azevedo - Museu Paulista/USP.

Álbuns de Retratos dos Ateliês Carneiro & Gaspar e Photographia Americana. Volume V – 1879 (contendo 568 imagens). Coleção Militão Augusto de Azevedo - Museu Paulista/USP.

Álbuns de Retratos dos Ateliês Carneiro & Gaspar e Photographia Americana. Volume VI – (sem data) (contendo 3.814 imagens). Coleção Militão Augusto de Azevedo - Museu Paulista/USP.

Referências

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