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DE FÚRIAS, JAGUARES E BRANCOS: NOTAS SOBRE GÊNERO, SEXUALIDADE E POLÍTICA ENTRE OS KAIOWA E GUARANI EM MATO GROSSO DO SUL

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DE FÚRIAS, JAGUARES E BRANCOS: NOTAS SOBRE GÊNERO, SEXUALIDADE E POLÍTICA ENTRE OS KAIOWA E GUARANI EM MATO GROSSO DO SUL

Lauriene Seraguza1

Resumo: A proposta deste ensaio é a de contribuir para as reflexões teórico-metodológicas na temática de gênero e

sexualidade entre os povos indígenas. Os estudos sobre as mulheres em etnologia indígena foram por tempos marcados por duas linhas de abordagens preponderantes: a psicanalítica de viés freudiano e a estruturalista, que trazia a cena a troca e o pensamento simbólico como fundante do social. As etnografias contemporâneas sobre e com mulheres sugerem novas abordagens. Para este ensaio parto da noção de cosmopolítica como caminho para pensar gênero e sexualidade entre as mulheres Kaiowa e Guarani, bem como suas agências e relações com os seus Outros. Para isto, enfatizo uma situação etnográfica ocorrida num Aty Guasu Kuña (Grande Assembleia das Mulheres) em que as mulheres a partir das relações jocosas, conectaram sexualidade e política dando forma a um modo específico de política feminina engendrada entre os Kaiowa e Guarani, onde a sexualidade é acentuada e se relaciona com os poderes das mulheres em suas relações internas e externas. Então, proponho apresentar um breve histórico sobre os estudos de gênero e sexualidade na etnologia; trazer questionamentos teórico-metodológicos sobre a impossibilidade de nossos conceitos de gênero e sexualidade no trabalho de campo com as mulheres indígenas e; a partir da experiência das mulheres Kaiowa e Guarani, demonstrar como a cosmopolítica pode ser um caminho para se pensar as relações de gênero, sexualidade e política entre os povos indígenas.

Palavras-chave: Gênero, Mulheres Kaiowa e Guarani, Agência, Cosmopolítica, Sexualidade.

Gênero, sexualidade, política e povos indígenas

Aparentemente, nos últimos anos, houve uma crescente preocupação de produções na antropologia, em especial da etnologia ameríndia, meu lugar de fala, com mulheres indígenas. Entretanto, por mais que isso possa parecer uma novidade, não o é, já que as primeiras produções etnográficas com mulheres indígenas nas terras baixas, realizadas nos anos 1950, foram resultado de prolongados períodos de campo e tomavam por foco principal aspectos da sexualidade em rituais e mitologias (Belaunde, 2015). Mas, apenas nas últimas décadas, o tema tomou assento nas esteiras das preocupações etnológicas, como não deixam dúvidas as contribuições de Lea (1994, 2012), Franchetto (1996), McCallum (1999, 2001) entre outros.

Parto do pressuposto, compartilhado pela antropóloga Luisa Elvira Belaunde, “de que a sexualidade coloca em movimento uma abertura à alteridade, corporal, social e temporal, nos convida a pensar as possíveis interconexões entre as cosmologias indígenas e a produção de subjetividades diferenciadas, genderizadas e vivenciadas no desejo por outrem.” (Belaunde, 2015, p.399). Neste sentido, a categoria gênero vem sendo problematizada na antropologia, sobretudo a

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partir das críticas e contribuições de Annette Weiner (1992) e Marilyn Strathern (2006), que preconizam a necessidade de sua atualização na sociedade estudada, a partir do pressuposto de que gênero é uma categoria ocidental. Entre os Kaiowa e os Guarani em Mato Grosso do Sul, pude perceber que as relações de gênero se dão a partir da noção de que homens e mulheres, são “opostos equivalentes assimétricos” (Pereira, 2008; Seraguza, 2013).

Quando utilizo a categoria gênero, proponho conforme sublinha Marilyn Strathern acerca das sociedades nas Terras Altas da Papua Nova Guiné, onde for possível, sugerir uma aproximação com as sociedades de falantes de Guarani, nas quais “[...] as formas da vida coletiva estão intimamente ligadas aos construtos de parentesco familiar. Mas isso é muito diferente de sugerir que a vida pública (“sociedade”) seja a vida doméstica (“parentesco”) em maior escala.” (Strathern, 2006, p.88). Entre os Kaiowa e Guarani, essa dualidade, a da vida pública e privada, não corresponde a realidade dos grupos, diante da “complementariedade” exigida nas relações, onde a vida social das mulheres compreende a dos homens e o contrário também. Segundo Belaunde, em entrevista à revista do programa de pós graduação em Antropologia Sociocultural da Universidade Federal da Grande Dourados, a Ñanduty, “Não é porque os homens e as mulheres são complementares, é justamente por não serem complementares que a complementaridade é um desejo, uma prática, algo a ser realizado” (Belaunde, 2016, p.11).

Isto de certa maneira indica que as relações de gênero também poderiam ser pensadas entre os Guarani como bons modos de se perceber e estudar as relações cosmopolíticas, já que uma liderança tem que ser feita e esta feitura perpassa a fabricação do corpo e a construção da pessoa e de suas relações com a alteridade. Segundo Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro “Toda interação transespecífica nos mundos ameríndios é uma intriga internacional, uma negociação diplomática ou uma operação de guerra que deve ser conduzida com a máxima circunspecção. Cosmopolítica” (Danowski e Viveiros de Castro, 2014, p.96).

Renato Sztutman (2012) conecta a política ameríndia ao xamanismo, no diálogo com a noção de cosmopolítica de Bruno Latour (2002, 2007) e Isabelle Stengers (2002, 2007, 2009) e suas tentativas de fazer a política sair do modelo dominante. Para isto, os autores se ancoram na não separação entre política e natureza e na necessidade de se prestar atenção às práticas. A proposição cosmopolítica só se dá diante de situações concretas, o que faz da cosmopolítica um lugar da resistência e não apenas da construção de um mundo comum. É o cosmos insistindo na política, onde a política é maior, uma transcendência para domesticar e controlar a imanência.

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Entre os Guarani e Kaiowa, Spensy Pimentel (2013) apontou elementos para uma teoria política, a partir de uma pesquisa com as lideranças participantes do Aty Guasu - Grande Assembleia Guarani e Kaiowa, e demonstrou que os rezadores são fundamentais nos movimentos políticos ali engendrados. A cosmopolítica Kaiowa e Guarani é atravessada pelas rezas e cantos dos

ñanderu e ñandesy (rezador e rezadora, ou xamãs) aos jara, os donos dos patamares que compõe o

cosmos. As suas lutas são acompanhadas pelas rezas e cantos que são entoadas numa negociação cósmica, visam a alegria, e estão conectada com o teko porã, o bom modo de ser kaiowa e guarani que depende exclusivamente de poder viver em suas terras ancestrais com a parentela.

Desta forma, podemos entender que as mulheres atuam na produção de relações políticas com a alteridade, e na produção de pessoas, conhecimentos e aldeias, geradas/fabricadas/constituídas a partir da relação entre política, cosmologia e parentesco. Este me parece um bom caminho para se pensar a sexualidade e o gênero entre os povos indígenas. Senão, vejamos:

De fúria, jaguares, sexualidades e brancos2

Durante o V Aty Guasu Kuña, grande assembleia de mulheres Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul, ocorrida em 2014, um procurador da república, atuante no Ministério Público Federal da região se pronunciou e num tom de desabafo diante da flagrante realidade sul mato grossense kaiowa e guarani, acabou colocando a então presidenta da FUNAI numa posição indelicada. Sugeriu-a como a culpada da não demarcação das terras indígenas no MS, ignorando, num primeiro momento, a conjuntura geral que regia a discussão, como a participação do Ministério da Justiça, Casa Civil, bancada ruralista, bancada evangélica, bancada pró armamento, etc. Com os ânimos acirrados, em virtude das variantes sócio-políticas que permeiam a discussão das demarcações das terras indígenas no MS, esta assembleia foi palco de grandes tensões e discussões.

Uma liderança homem que ecoou momentos antes da chegada da FUNAI que prenderiam e amarrariam a presidente até que ela demarcasse as terras dos Kaiowa e Guarani, seguiu o tom da fala do procurador e ressaltou o discurso do primeiro. Uma liderança mulher que assistia as falas, pegou o microfone para si, assim como ocorrera num aty guasu anos antes em Arroyo Kora, área

2 Estes dados etnográficos foram discutidos com outras configurações teórico-metodológicas no artigo Aty Guasu Kuña – sexualidade e relações de gênero entre os Kaiowa e Guarani (Seraguza, 2016).

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indígena kaiowa em Paranhos, MS. Quando um Kaiowa está falando em público e não “está dando conta do recado”, a mulher pode reivindicar – num modo específico de fazer política – a fala e colocar o homem numa situação de “vexame”, pois o “papel da mulher é de suma importância na organização da parentela” (Pereira, 2004), para a produção da vida social. Conforme Pereira, “sem mulher não há fogo”, referindo-se ao fogo doméstico como módulo organizacional do núcleo doméstico kaiowa, princípio básico da composição das parentelas, fundador da organização social kaiowa. São atribuídas a elas as responsabilidades de “levantar” as pessoas, de controlar o “fogo doméstico”. Entre os Guarani são nomeadas por taipy jara (dona do fogo).

Com o microfone em mãos, a liderança que o tomara começou a falar, visivelmente alterada, que aquele ali era o aty guasu das mulheres e que “nada iria acontecer com a presidenta”, que foi ao evento porque “as mulheres convidaram”. Afirmou que os Kaiowa e os Guarani “estavam provando que não gostavam das mulheres”, porque se alguém ali iria fazer algo, seriam elas, elas que iriam falar e “não permitiriam” qualquer ação contra a presidenta da FUNAI. E recordou ao procurador presente, o papel do Ministério da Justiça, que frisaram ser coordenado por um homem, frente a morosidade dos processos demarcatórios. Aparentemente envergonhados, os homens ficaram em silêncio e quando a presidenta chegou, eles rezaram e cantaram para ela, como que em composição com as divindades e as mulheres, as donas fogo, para a ação política que estava por vir.

É recorrente entre os Kaiowa e Guarani, a ideia de que “língua de mulher ninguém segura” (Pereira, 2004), pois “Mulher, quando fala, pode ofender; é desmedida, em virtude de sua alteridade radical, [...]. É possuidora de uma ne’ẽ, fala, palavra/alma, eminente” (Seraguza, 2013, p.19), ou ainda, explicou-me certa vez uma xamã “que a mulher “é um elemento quente, ela é alterada, quando abre a boca sai sempre uma verdade que pode ofender alguém”. É preciso tomar cuidado ao falar para não “machucar as pessoas, atingir, pois o que fala acontece!”, elas são “ñaña” (Seraguza, 2013, p.40). Ñaña se aproxima em língua portuguesa as palavras bravo, briguento, um adjetivo comumente atribuído (às vezes de forma até jocosa) às mulheres Kaiowa e Guarani em MS. A mulher (kuña), mãe (sy), avó (jary), possuem uma palavra prestigiosa, mas que quando provocadas produzem efeitos vorazes.

No final de cada Aty Guasu, os Kaiowa e os Guarani elaboram um documento final que é encaminhado com suas deliberações às instituições e autoridades locais relacionadas à temática indígena, e assim foi feito neste. Na leitura do documento final na assembleia, um item foi objeto de

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discussão prolongada. Tratava-se da exigência das lideranças presentes, da proibição de “brancos” (não indígenas) viverem dentro dos limites de uma reserva indígena da região, pois se já não há terra nem para os indígenas, muito menos para os brancos morarem lá.

Além de serem os “brancos” acusados de responsáveis pela presença das igrejas evangélicas nas áreas indígenas, problemática nociva que atinge diretamente os Kaiowa e Guarani, mesmo existindo um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2008, entre as igrejas e os Ministério Público Estadual de MS, que idealmente regularia a atuação das igrejas em terras indígenas. É recorrente ouvir denúncias e acusações sobre pastores que pegam dinheiro; de pessoas que adoecem ou são machucadas durante batismos; de como atacam os líderes tradicionais e controlam a vida de homens, mulheres, velhos e crianças, além da mal falada “barulheira” que as igrejas causam em terras indígenas, com frequência os indígenas nomeiam a “Deus é amor”, igreja com grande número de adeptos e opositores dentro destes coletivos.

Outra questão foi levantada na assembleia. Segundo uma mulher Kaiowa liderança, os “brancos” causam outro problema, pois, “se o índio casa com uma mulher branca, o filho é índio, mas se o branco se casa com a índia, o filho é branco”, e esse tem sido um problema, a de produção de filhos não indígenas, de mães indígenas, vivendo dentro das reservas, tão espacialmente disputadas. Dessa forma, concluíram que seria o melhor para o bem estar dos Kaiowa e Guarani que os “brancos” fossem retirados da área, por decisão da Aty guasu e com o respaldo (e a ação) da FUNAI; assim exigiram.

Todavia, na redação do documento final, apareceu escrito que era para “ser retirado somente os não indígenas que perturbassem”. Durante a leitura na plenária para a aprovação dos presentes foi questionado sobre se queriam que a FUNAI retirasse “só os que perturbassem”, ou “todos os não indígenas”, e então, foi reaberta a discussão para a plenária que, alvoroçada, não mediu provocações.

Uma liderança mulher se levantou, e muito brava, discursando, gritou algo em guarani de onde só compreendi a palavra guasu, que significa grande em língua portuguesa. Ao fim da frase proferida, imediatamente os homens se levantaram soltando uma exclamação de reprovação coletiva e fizeram o jehovasa, um movimento com os braços, feito com eles levantados em direção ao norte e ao sul, para espantar os maus espíritos e pensamentos ruins. Tive a impressão que eles espantavam a fala, alterada e ofensiva, daquela mulher Kaiowa. Enquanto os homens se livravam do mal dizer, as demais mulheres riam muito, e então, perguntei para uma mulher o que a outra

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dissera e ela disse não ter entendido; uma colega da FUNAI que estava junto, perguntou a dois homens que disseram não saber; curiosa, ela se dirigiu a protagonista da fala que não mediu esforços para repetir em alto e bom som para que todos pudessem, mais uma vez, escutar: “eu disse que as mulheres índias gostam dos homens brancos porque eles tem o negócio maior do que o dos índios”, onde o “negócio” referia-se a genitália masculina. E por isso, reivindicavam a permanência dos homens brancos. Este era o motivo pelo qual os homens espantavam e maldiziam com tanta veemência aquelas palavras vai, palavras feias, ruins, desmedidas, ofensivas, acusatórias.

A mobilização do discurso da sexualidade, a disputa de palavras, a situação jocosa, o tom acusatório frente a gravidade da problemática exposta apontam para um modo específico de fazer política entre as mulheres que me parece, ser bastante eficaz e coerente com as relações de gênero e os modos específicos de resolução de conflitos percebidos no sistema social kaiowa e guarani, onde as mulheres, donas do fogo, respondem com voracidade as provocações.

Durante a minha pesquisa de mestrado (Seraguza, 2013), ouvi de uma de minhas interlocutoras que as situações de paquera entre os Kaiowa e Guarani, de certa maneira, implicam em relações sexuais. Em nossas conversas, algumas indicações sobre a sexualidade destas mulheres foram apontadas, como o fato de os homens indígenas não gostarem de mulheres não indígenas, preferirem as indígenas, porque “é diferente o jeito de se relacionar”, “o homem índio tem uma química diferente”, o “jeito de ser é diferente”. É frequente ouvir que os indígenas são “muito mais fortes” do que as mulheres não indígenas, por isso estas mulheres teriam dificuldades de estar com um homem indígena para uma relação sexual, pois são “mais fracas”. Mas as mulheres indígenas “se dão bem com os brancos”, contam que “eles são legais.”.

Uma jovem liderança, homem, pediu a fala após a turbulência momentânea na aty kuña e afirmou à plenária que não adiantavam eles “se iludirem com um homem ou mulher não índio”, pois eles sempre seriam “os índios” nas relações interpessoais e discriminados e diminuídos por isso. Disse ainda que isso era um problema nas famílias Kaiowa, que permitiam a entrada dos não indígenas na família e, por vezes, incentivavam o casamento das filhas com os não indígenas, pensando em prestígio, entretanto, “só aumentavam os problemas”. O jovem fez o “discurso dos velhos”, e foi aplaudido pelos homens mais velhos.

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Foto de Mario Vilela – Aty Guasu Kuñague 28/06/2014 – Acervo FUNAI

Um velho rezador ofendido com a fala das mulheres se levantou e acusou as mulheres de serem culpadas pela presença dos não indígenas nas áreas indígenas. Segundo o velho, eram elas que “os iam buscar na cidade”, e ainda reclamou o fato dos casamentos entre indígenas e não indígenas ocasionarem filhos que não respeitam os rezadores tradicionais e que estes rezadores poderiam desejar, e desejaram, às mulheres que ali falavam que tivessem filhos com deficiências ou ainda, filho-onças, que iriam arranhar e devorar suas mães. Este maldizer do velho às mulheres traz a cena o jaguareteava, o grande inimigo da humanidade Kaiowa e Guarani, a onça-gente que devorou a primeira mãe, Ñandesy, quando estava em busca de Ñanderu, o primeiro pai, grávida dos gêmeos ontológicos, Pa´i Kuara e Jasy no primeiro mundo mítico (Seraguza, 2013).

No final, o documento oficial do V Aty Kuña, constou que seria proibida a partir de então a entrada de não indígenas para morar na aldeia. Qualquer novo “branco”. Os que já estavam, permaneceriam. Recentemente, no primeiro semestre de 2017 esta discussão veio a tona novamente, apontando para o problema da superpopulação nas reservas indígenas em Mato Grosso do Sul,

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criadas de 1915 a 1918 por ação do Serviço de Proteção ao Índio, SPI, atual FUNAI, quando expulsaram os Kaiowa e Guarani de suas terras de ocupação tradicional (tekoha) das quais muitas hoje são reivindicadas e retomadas a revelia do Estado por homens, mulheres, velhos e crianças. A intervenção do Estado nos modos e relações mais íntimos da organização social dos coletivos em questão altera e traz consequências nefastas até os dias de hoje nas vidas dos Kaiowa e Guarani.

Da impossibilidade dos nossos conceitos ou alguns desafios e provocações

Dizer que gênero e sexualidade como difundido nas teorias não indígenas não existe, não parece ser tão distante diante do contexto que acabo de apresentar, mas de modo algum significa a inexistência destas relações. Ao contrário, as relações de gênero estão postas e é preciso sensibilidade para lidar com elas. A princípio, partir do pressuposto da não fixidez destes conceitos, nem gênero, nem sexualidade, nem mesmo mulher. Segundo Belaunde, “você é feminina na medida que você faz coisas femininas e não porque você nasce com um corpo pré-determinado feminino ou porque existe uma substância feminina. É a maneira de se viver que vai gerar essa feminilidade” (Belaunde, 2016, p.9). Ou seja, se é mulher porque se faz coisas de mulheres, mas é um estado de devir. E nos mundos indígenas, só se é, porque se faz acontecer...

É possível pensar a agência das relações de gênero e de sexualidade como modos específicos de fazer política feminina ameríndia, ou cosmopolítica, como modos específicos de fabricar corpos, construir pessoas, de criar a vida social. Se o ser mulher indígena, em sua multiplicidade, não pode ser fixo, muito menos o ser mulher etnóloga em campo, que nos exige uma série de deslocamentos, transformações e engajamentos para o trabalho com mulheres.

Descentralizar nossas percepções de mundo frente as múltiplas violências a que mulheres historicamente são submetidas, da agressão, morte, a “simples” interrupções de falas são desafios para estar em campo e fazer desta estadia prazerosa, construir relações alegres a partir da pesquisa, e ainda “[...]se deixar transformar, se deixar levar. Não é se posicionar como uma mulher, mas é entrar nos processos em que pessoas com que a gente queira estar também estão [...].” (Belaunde, 2016, p.21). Desta forma, é possível colocar sob suspeição nossas compreensões dos modos de ser mulher e a necessidade de determinadas respostas as nossas perguntas realizadas em campo. Para Viveiros de Castro,

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O antropólogo tem uma vantagem: ele pode se virar para o lado e perguntar para os índios – ou seja lá quem ele estude – o que eles acham dessa questão. O interessante é que raras vezes lhe ocorre perguntar aos outros, porque ele pensa que já sabe a resposta e quer simplesmente ver como a resposta dos outros se adequa à resposta que ele já tem. Ele vai lá simplesmente conferir se os outros sabem o que ele sabe, quando a questão de descobrir se os outros sabem o que ele não sabe, em geral, não lhe passa pela cabeça. Et pour cause! Se ele não sabe, como poderia saber que não sabe? Mas o antropólogo tem essa vantagem de poder virar para o lado e perguntar. [...] provavelmente esta é a aposta do antropólogo que vai para o campo. Se é para ir até o outro lado do mundo, é na expectativa de que haja respostas diferentes e – a expectativa ainda mais excitante – perguntas diferentes. E que, portanto, a questão não é de encontrar as respostas que os índios (ou seja lá quem for) dão às nossas perguntas – porque sempre entendemos que as nossas perguntas são as perguntas que todo ser humano faz –, mas colocar sob suspeita este pressuposto e imaginar que talvez as perguntas, elas próprias, sejam outras. E aí nós estamos realmente diante de um problema interessante (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p.17, 18).

As perguntas a serem feitas as mulheres indígenas também devem ser outras, e para ter outras respostas é preciso nos despir das nossas pré-concepções do que se é e do que se tem expectativa. Estas provocações possibilitam pensarmos as negociações realizadas nas relações de gênero estabelecidas como composições, conexões possíveis e parciais, experimentações; como política. É preciso compor como estratégias cosmopolíticas para sobreviverem e resistirem a uma investida homogeneizante do Estado e dos mundos não indígenas. Para viver, é preciso conectar mundos, modos de fazer mundos, de existências, conectar parcialmente ontologias diferentes.

Estas questões podem nos conduzir a uma nova percepção das categorias de gênero e sexualidade entre os povos indígenas e produzir efeitos no que chamamos de política, nos modos de fazê-la e, na percepção de suas (seus) protagonistas (os). Deslocar as categorias e atualizá-las conforme as compreensões do coletivo que se estuda talvez seja um outro desafio teórico-metodológico da pesquisa de campo com mulhers indígenas, mas é preciso ter em mente que "[...] não é necessário ser stratherniano, eu acho que é necessário gostar das mulheres, gostar de estar com elas, gostar das coisas que elas gostam. Isso é mais importante, curtir o que elas curtem, ou chorar com elas, aí é que a gente vê este dia-a-dia, faz boa etnografia e contribui para a renovação da teoria antropológica“ (Belaunde, 2015, p.22).

Referências

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OF FURIES, JAGUARS AND WHITES: NOTES ON GENDER, SEXUALITY AND POLITICS BETWEEN THE KAIOWA AND GUARANI IN MATO GROSSO DO SUL Astract: The purpose of this essay is to contribute to the theoretical-methodological reflection on the theme of gender and sexuality among indigenous peoples. The studies on women in indigenous ethnology were marked by two lines of preponderant approaches: The psychoanalytic of Freudian bias and And the structuralist, who brought the scene to exchange and symbolic thought as the founder of the social. Contemporary ethnographies about and with women suggest new approaches. For this essay I start from the notion of cosmopolitics as a way to think about gender and sexuality between Kaiowa and Guarani women, as well as their agencies and relations with their Others. For this, I emphasize an ethnographic situation in Aty Guasu Kuña (Great Assembly of Women) in which women from joking relationships connected sexuality and politics, giving form to a specific mode of feminine politics engendered between the Kaiowa and Guarani, where Sexuality is accentuated and relates to the powers of women in their internal and external relationships. So, I propose to present a brief history on the studies of gender and sexuality in ethnology; To bring theoretical and methodological questions about the impossibility of our concepts of gender and sexuality in the field work with indigenous women; From the experience of Kaiowa and Guarani women, to demonstrate how cosmopolitics can be a way to think about gender, sexuality and political relations among indigenous peoples.

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