• Nenhum resultado encontrado

As funções do narrador nos relatos de naufrágios: a força lúdica da função comunicativa e a função ideológica

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "As funções do narrador nos relatos de naufrágios: a força lúdica da função comunicativa e a função ideológica"

Copied!
16
0
0

Texto

(1)

A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença.

Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra.

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso.

comunicativa e a função ideológica

Autor(es):

Martins, Adriana Alves de Paula

Publicado por:

Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23901

Accessed :

25-Jul-2021 05:52:58

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

(2)
(3)

AS FUNÇÕES DO NARRADOR NOS

RELATOS DE NAUFRÁGIOS:

A

força lúdica da função comunicativa

e a função ideológica

AoRIANA ALVES DE PAULA MARTINS

Mar Portuguez

Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão resaram!

Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu, Mas nelle é que espelhou o céu. (Fernando Pessoa, "Mensagem")

I INTRODUÇÃO:

Os relatos de naufrágios dos séculos XVI e XVII, compilados por Bernardo Gomes de Brito na História Trágico-Marítima, são um rico material para a crítica literária. Estes textos constituem-se num corpus vasto, passível de diversas abordagens não só pelo seu contributo histórico, mas sobretudo pelo testemunho de um mundo em transição.

A nossa investigação incidirá sobre as funções do narrador nestes relatos, tomando por base a classificação de Gérard Genette1

(4)

postula cinco funções do narrador: a função narrativa, a função de regência

(OU organizadora do texto), a função comunicativa, a função testemunhal

(ou de atestação) e a função ideológica.

Nos relatos de naufrágios, as funções do narrador poderiam ser organizadas segundo o esquema abaixo. Mesmo que, neste esquema, não apareçam todas as funções do narrador levantadas por Genette, ver-se-á, mais adiante, como elas podem ser relacionadas com o esquema que se segue.

As Funções do Narradornos Relatos de Naufrágios I - Função Narrativa

II - Função Comunicativa - Forças: 1 - didáctico -pedagógica; 2 -lúdica

III - Função Ideológica

A função predominante nos relatos é a função narrativa em que o narrador é o "doador" da história. Os textos são narrações dos preparativos para as expedições, dos naufrágios, da experiência em terras estranhas e do resgate dos náufragos. Apesar da importância desta função do narrador, concentraremos a nossa atenção nas funções comunicativa e ideológica.

A função comunicativa é aquela em que o discurso desvia-se da história propriamente dita e orienta-se para o narratário para manter contacto com ele ou mesmo para agir sobre ele. Esta função pode ser subdividida em duas forças: a didáctico-pedagógica e a lúdica. A primeira será aqui tratada apenas superficialmente, uma vez que concentraremos nossa atenção no aspecto lúdico da função comunicativa e na função ideológica que enunciaremos a seguir.

Afunção ideológica, que emerge quando as intervenções directas ou indirectas do narrador, a respeito da história, assumem a forma mais didáctica de um comentário autorizado, aparece em quase todos os textos. Em alguns, aparece de forma mais difusa, e, em outros, aparece mais explicitamente como veremos na secção dedicada a ela.

Convém salientar os seguintes aspectos:

1. A ordenação das funções do narrador nos relatos de naufrágios não é fechada, havendo a coexistência num mesmo texto de várias funções. 2. Os relatos foram considerados como um todo, o que não significa que as conclusões tiradas sejam válidas para todos eles. Uma análise mais detalhada de um dos relatos poderá revelar resultados diferentes dos

(5)

SOS. Isso, de modo algum, invalida o nosso trabalho, uma vez que a nossa

proposta é tecer generalizações sobre as funções do narrador na História

Trágico-Marítima.

II A FORÇA DIDÁCTICO-PEDAGÓGICA DA FUNÇÃO COMU-NICATIVA:

Como o próprio nome indica, a força didáctico-pedagógica busca ensinar algo. Ela tem um grande peso nos relatos e acredita-se que os ensinamentos contidos nestes textos tenham sido uma das razões da sua grande circulação nos séculos XVI e XVII.

A força didáctico-pedagógica pode ser dividida em dois aspectos: o preventivo e o religioso.

O aspecto preventivo está relacionado com as inúmeras indica-ções sobre o como agir em caso de naufrágio. Ou seja, numa época em que as expedições eram frequentes, saber como viver numa terra comple-tamente diferente de Portugal era muito importante, já que isto podia significar a garantia de vida dos náufragos. Lemos longas e detalhadas descrições de terras distantes e do contacto dos navegantes com os povos dessas regiões.

O conhecimento, por exemplo, do naufrágio de Manuel Sepúlveda e do ocorrido com a sua farru1ia, além da localização do acidente com a nau vêm corroborar este aspecto preventivo. A referência a este naufrágio é uma constante nos relatos.

A preocupação com o ensinar reflecte-se nas estruturas linguísticas utilizadas. Na descrição de Columbo, por exemplo, é recorrente a estrutura do tipo "a saber" que introduz longas enumerações e classificações.

O aspecto preventivo da força didáctico-pedagógica é reforçado pelo facto de os relatos trazerem informações que nem as cartas de marear traziam, evidenciando quão importante era a experiência vivida para a preservação de muitas vidas.

A tematização da própria função pedagógica encontra-se na introdução ao relato do naufrágio da Santo Alberto2

:

"A notícia da perdição da nau Santo Alberto no Penedo das Fontes, princípio da Terra do Natal, e a relação do caminho que fizeram em cem dias os portugueses que dela se salvaram, até o rio de Lourenço Marques, onde se embarcaram para Moçambique, são de grande importância para nossas navegações, e para aviso delas mui necessárias, porque o naufrágio ensina como se devem haver os navegantes em outro que lhes pode acontecer, de

(6)

que remédios proveitosos usarão nêle, e quais são os aparentes e danosos de que devem fugir, que prevenções farão para ser menor a perda do mar e mais segura a peregrinação por terra, como com menos perigo desembarcarão nela, e a causa da perdição desta nau (que o é quasi de todas as que se per-dem). A relação do caminho mostra qual devem seguir e deixar, que aper-cebimentos farão para a sua grandeza e dificuldade, como tratarão e comu-nicarão com os cafres, com que meios farão com êles o necessário comércio, e sua bárbar natureza e costumes. E para que de cousas tão importantes e novas se tenha o necessário conhecimento, escrevo este breve tratado, resumindo nêle um largo cartapácio que desta viagem fêz o pilôto da dita nau, o qual emendei e verifiquei com a informação que depois me deu Nuno Vêlho Pereira, capitão-mor que foi dos portugueses nesta jornada".

o

aspecto religioso pode ser incluído nesta função se o relacio-narmos com o apoio espiritual buscado pelos navegantes durante as expedições e, especialmente, nas duras e longas horas dos naufrágios. Ao menor sinal de insegurança, todos os navegantes, sem distinção de classe social, encomendam a alma a Deus, rogando penitência. Mais do que isso, após os naufrágios, toda a ajuda que os náufragos têm é encarada como sinal da providência e misericórdia divinas. As desgraças, por outro lado, são encaradas como castigos pelos pecados dos homens. De qualquer forma, a fé dos homens do mar é um exemplo de persistência e confiança na sobrevivência em terra alheia, havendo a preocupação em converter o herege.

A relação com a religiosidade está também patente na referência às datas religiosas, ou seja, o quotidiano das actividades era marcado pelo calendário das festas religiosas. É de salientar ainda as descrições detalhadas das cerimónias realizadas a bordo das naus.

Destacamos o papel fundamental dos padres nas viagens, pois não só organizavam as cerimónias religiosas, como também ofereciam o conforto espiritual aos homens atormentados com a sua divisão entre os prazeres da vida e a busca da salvação. O papel dos padres da Companhia de Jesus é constantemente ressaltado.

O trecho abaixo é um bom exemplo da influência do elemento religioso na vida dos navegantes. Parece que por ser dia de Nossa Senhora tudo melhora:

"Ao seguinte dia, que foi da Gloriosíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição, Madre de Deus, foi ela servida de nos abonançar o vento e aclarar o tempo, e mitigar o mar de sua fúria e braveza, para celebrarmos com missa e pregação, e muita festa que fizemos, seu glorioso dia; gover-návamos já em Leste, e começávamos a diminuir". 3

(7)

m

A FORÇA LÚDICA DA FUNÇÃO COMUNICATIVA:

Segundo Lanciani4, os relatos de naufrágios tiveram uma grande circulação nos séculos XVI e XVII, nomeadamente em folhas soltas. Pela sua grande circulação, concluímos que tais relatos possuíam um público certo que experimentava um grande prazer com essas leituras. A passagem seguinte sugere o prazer provável dos leitores, bem como a comunicação do autor com o receptor dos seus textos:

"Oito memórias notáveis achei deste glorioso Apóstolo, das quais, posto que se tem muitas vezes escrito com diferente estilo e espírito, não deixarei de fazer aqui menção delas, assim como as fui visitando, por me parecer que outros terão mais devoção de as ler e ouvir, do que eu tive de as ver e visitar". 5

E a que devemos atribuir este prazer? No século XVI, principalmente: a) à narração da grandeza do Império e da importância das conquistas portuguesas no mundo todo;

b) à narração de feitos que possuíam um dado de heroísmo; c) a uma relação com os problemas daquele período, como, por exemplo, a tensão dos homens da época entre a coragem e o medo, o pecado e a salvação, e

d) à possível veracidade dos factos vividos, uma vez que muitos dos

narradores ou pessoas próximas a eles estiveram presentes aos acontecimentos narrados.

A alínea d) aponta para a questão da verdade, pois não se sabe em que

medida os relatos contavam aquilo que realmente tinha acontecido, havendo sempre a preocupação dos narradores em dizerem com "comum estilo" aquilo que experimentaram, ou seja, em darem o seu próprio testemunho ou, pelo menos, obterem um testemunho de fé para o que era narrado:

"( ... ) posto que com comum estilo, direi o que alcancei na experiência de meus trabalhos, sem acrescentar nem diminuir a verdade do que se me oferece a contar". 6

"E assim gastou nela, no consêrto das naus e nas invernadas, mais de dezoito mil cruzados, como disseram pessoas muito verdadeiras e dignas de

4 LANCIANI, Giulia. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos

secs.XVI e XVII.

5 Descrição da Cidade de Columbo, p.96.

(8)

muita fé, que se acharam presentes em tôdas estas cousas, e nos deram tôdas estas informações". 7

Tal busca permite-nos relacionar a força lúdica com. a função testemunhal postulada por Genette como a relação do narrador com a história, suas relações afectivas, morais e intelectuais. A História Trá-gico-Marítima está repleta de menções às lembranças dos narradores, bem

como a sentimentos que certos episódios lhes despertam. Toma-se pertinente ainda uma relação entre a função testemunhal de Genette e a função emotiva de J akobson, quando o narrador homodiegético conversa com Deus, pedindo forças para narrar diante de uma dolorosa lembrança:

"( ... ) - socorrei-me, Senhor, em tempo tão necessário e avivai meus espíritos debilitados com a lembrança desta dor, para que a fôrça dela não afogue de todo as palavras, e eu possa continuar com a generalidade desta história, deixando o sentimento de meus próprios males para lamentado só de mim, no grau em que foi estimada a causa dele".8a

A relação entre as funções testemunhal e emotiva mantém-se quando os narradores são heterodiegéticos. Reparemos na adjectivação dos frontispícios e, em especial, no da Relação da Mui Notável Perda do Galeão Grande São João: "grandes trabalhos"; "lastimosas cousas que aconteceram ao capitão"; "lamentável fim". Nos relatos encomendados, a adjectivação toma-se ainda mais acentuada como que para dar mais relevo às dificuldades passadas pelos náufragos. Este é o caso do relato escrito por Diogo do Couto.

Uma outra função explicitada por Genette relaciona-se com a força lúdica da função comunicativa - a função de regência ou organizadora do texto que diz respeito ao trabalho do narrador sobre o próprio texto para marcar as suas articulações e suas inter-relações, ou seja, a sua própria organização interna.

Esta função evidencia-se quando consideramos a criação e quebra de expectativas promovidas pelo narrador. Esse procedimento é uma constante nos relatos. O leitor sempre sabe, de uma certa forma, o que vai acontecer, porque o narrador lhe antecipa os factos. Ao mesmo tempo, essa atitude do narrador é uma tentativa de criar um suspense, isto é, ele adianta algumas informações, mas não diz como os acontecimentos vão se dar. Isso serve como um estímulo à continuação da leitura e faz-nos lembrar algumas das

7 Relato do sucesso das naus Águia e Garça, pp.56 e 57.

(9)

telenovelas dos nossos dias, onde, a cada fim de capítulo, encontramos uma secção "a seguir cenas dos próximos capítulos".

A função organizadora do texto explicita-se nos momentos em que o autor indica como será a sua escrita como, por exemplo, no relato do naufrágio da nau São Bento:

"que por êste respeito deixei de escrever as desaventuras particulares de cada um, que é a principal substância do lastimoso, afastando-me o mais que pude do pesado e miserável; mas sem embargo de ser êste o meu intento, como a história em si seja triste, não sofre a verdade dela poder-se de todo fugir a palavras que uma hora por outra saibam à tristeza". 8b

A organização textual está marcada, por determinadas estruturas que indicam ao leitor o fim de uma digressão do narrador e o regresso à história propriamente dita. Assim, por exemplo, no primeiro relato, no volume I, página 32, após um juízo do narrador sobre Dona Leonor, encontramos a estrutura "tornando à história ( ... )". O jogo montado sobre a interrupção da narração da história propriamente dita, sobre a elaboração de um comentário e sobre a volta à história podia ser uma tentativa de dar um maior dinamismo aos relatos.

Se considerarmos os relatos numa linha evolutiva, constataremos que a organização dos textos vai numa espécie de "crescendo". No relato do naufrágio da nau Santo António há um prólogo ao leitor, havendo, portanto, uma preocupação explícita com o público a que se destinam os relatos. O relato do naufrágio da Santo Alberto é muito mais ordenado do que os primeiros. Esta ordenação pode ser relacionada com a intenção claramente peBagógica deste relato. O relato das batalhas e sucessos do Galeão Santiago e da Nau Chagas chega até mesmo a ser dividido em capítulos, diferindo dos demais. Neste mesmo relato, cada capítulo traz um pequeno resumo dos tópicos que serão tratados e já se segue um modelo de escritura com uma introdução que traz um resumo do que vai ser tratado, um desenvolvimento e um conclusão que pode ser feita com a retomada daquilo que havia sido antecipado na introdução. O relato dos sucessos do Galeão Santiago foi escrito em 1604, tendo um remate até poético, demonstrando todo um cuidado com a redacção:

"Consiste finalmente em partirem em Março de Lisboa, antes do Equinócio, e da Índia dentro em Dezembro; e com carga ordinária e não sôbre-carregadas. Tôdas estas cousas são factíveis, e, podendo-se fazer, podia ser que não houvesse tantas perdas, que magoam até as pedras".9

(10)

As funções testemunhal e de organização do texto encontram-se, pois, a serviço da força lúdica da função comunicativa.

Um outro aspecto da força lúdica e que justificaria a grande circulação dos relatos de naufrágios é o gosto pelo exotismo. O mundo nos séculos XVI e

xvrr

era um mundo em descoberta de lugares, de povos e culturas até então desconhecidos. Os relatos desvendavam todo um cenário fantástico que colaborava para acentuar o carácter heróico dos que conseguiam sobreviver aos naufrágios.

IV A FUNÇÃO IDEOLÓGICA:

A função ideológica manifesta-se nos relatos de narradores homo e heterodiegéticos, pois eles explícita ou implicitamente mostram a sua visão ideológica e mítica do mundo.

A função ideológica pode ser desdobrada em três sub-grupos: a) O elogio à expansão da Fé e do Império ou a voz oposta à do Velho do Restelo;

b) A crítica à expansão portuguesa ou a voz do Velho do Restelo; c) A função aliciante da Igreja ou a voz da Companhia de Jesus.

A) O ELOGIO À EXPANSÃO DA FÉ E DO IMPÉRIO OU A VOZ OPOSTA À DO VELHO DO RESTELO:

O elogio à expansão da Fé e do Império é muito frequente e não se pode dissociar a marca religiosa da marca política e económica. A fé é a justificativa para a busca de novas terras, pois, mais do que enriquecer o Reino, buscava-se espalhar a mensagem de Deus aos ignorantes. O apoio religioso funcionou como um dos elementos de resistência às adversi-dades.

A difusão da fé católica encontra um dos seus momentos mais fortes no relato do naufrágio da nau Santo Alberto. Mais do que o apoio dos cafres para a sua sobrevivência, Nuno Velho e seus companheiros conseguiram estabelecer sólidos laços de amizade e respeito, deixando em terra alheia o símbolo da religião católica, a cruz:

"Entregue com estas palavras o verdadeiro trofeu e singular glória da Cristandade ao Ancosse, êle a pôs às costas, e despedido dos nossos com saudosas lágrimas do penhor que lhes levava, e seguido dos seus, que seriam alguns quinhentos, se foi com ela à sua povoação, para fazer o que Nuno Vêlho lhe dissera e pedira. Triunfo foi êste da Sagrada Cruz, digno de se festejar à imitação dos de Constantino e Heráclio, porque, se aquêles cristianíssimos e devotos Emperadores libertaram a verdadeira de seus

(11)

inimigos, um dos judeus e outro dos persas, com que ela ficou triunfante, esta (imagem daquela) foi por êste honrado e virtuoso fidalgo levantada e arvorada no meio da Cafraria, centro da gentilidade, da qual hoje está triunfando. E pois que abraçado com êste doce Madeiro se salvou o mundo do seu naufrágio, quererá Deus Nosso Senhor alumiar o entendimento dêstes gentios, para que, abraçando-se com esta fiel Cruz que lhes ficou, se salvem da perdição e cegueira em que vivem". 10

A passagem acima aponta para o facto de a religião conferir aos portugueses um estatuto de superioridade em relação aos povos visitados, já que, segundo os portugueses, eles viviam na perdição e na cegueira, sendo a "árvore da cruz" a luz.

Lanciani 11, nas conclusões do seu livro, postula que os relatos não são

tão a favor da expansão do Reino. Discordamos dessa posição, posto que, nos discursos de alguns fidalgos, como o de Francisco Barreto, nas horas de maior desespero, onde só se contava com a morte, emerge uma voz que fala da possibilidade de descoberta de outras terras:

"Senhores fidalgos e cavaleiros, amigos e companheiros, não deveis de vos entristecer e melancolizar com irmos demandar a terra onde levamos posta a proa, porque pode ser que nos leve Deus a terra onde possamos conquistar outro novo mundo, e descobrir outra Índia maior que a que está descoberta, pois levo aqui fidalgos e cavaleiros, por companheiros, com quem me atrevo acometer tôdas as conquistas e emprêsas do mundo, por árduas e dificultosas que sejam, porque o que a experiência de muitos que aqui vão nesta companhia me tem mostrado me assegura e dá confiança, para não haver cousa no mundo que possa temer nem recear". 12

o

discurso de Francisco Barreto apresenta um tom quase que edificante que representa a voz que teima em não ouvir a voz do Velho do Restelo. É a voz de alguém que não se acha movido pela cobiça, mas sim pela vontade de servir a El-Rei e de espalhar aos "ignorantes" a palavra de Deus. É o que Lanciani chama de "missão evangelizadora da colonização" que pode ser relacionada com os fre9uentes elogios aos padres da Companhia de Jesus. Fala-se de outras ordens religiosas, mas os jesuítas são sempre exaltados. A esta missão evangelizadora podemos acrescentar ainda a defesa do que era considerado português com a recuperação do milagre de Ourique. O povo português era o escolhido para a difusão da religião:

10 Relato do naufrágio da nau Santo Alberto, p.67. 11 LANCIANI, Giulia. Op.cit.

(12)

«Enquanto vai o nosso galeão caminhando, e os inimigos após êle, paremos um pouco neste lugar; vejamos com que acção pertence a conquista e navegação de Guiné e Brasil e Índias Orientais mais à Coroa de Portugal que a outra alguma. ( ... ) - "Apareço-te Afonso para fortalecer teu coração nesta batalha e para fundar os princípios dêste reino sôbre uma pedra fIrme. ConfIa que não só nela alcançarás vitória, mas em tôdas as que pelejares contra os inimigos da cruz. E se êste teu povo te pedir que entres nela com título de Rei, concede-lho; e não duvides porque eu sou o que dou e tiro os impérios e reinos. E em ti, e em teus descendentes, quero fundar império para que meu nome seja levado a gentes estranjeiras; e para que teus sucessores saibam o fundador dêste reino, farás umas armas do preço com que eu comprei o género humano e do com que fui comprado pelos judeus; ser-me-á êste reino santifIcado, puro na fé, e amado de mim com piedade; e nem dele nem de ti se apartará em algum tempo minha misericórdia, porque lhe tenho aparelhado grande pedra e os escolhi para meus operários para terras remotas""y

B) A CRÍTICA À EXPANSÃO PORTUGUESA OU A VOZ DO VELHO DO RESTELO:

A crítica à expansão portuguesa está directamente relacionada com as péssimas condições das naus, com a manutenção inadequada e com o interesse e a cobiça de levar para o Reino o máximo possível. Reinava a obsessão pela quantidade e esquecia-se do respeito à vida de centenas de pessoas que iam nas naus e de outras tantas que ficavam em Portugal sem maridos, pais e filhos. Ouvimos claramente os ecos da voz do Velho do Restelo14

:

"6 glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

6

fraudulento gosto, que se atiça Crra aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles esprimentas!"

A passagem abaixo ilustra a crítica ao armazenamento inadequado da pimenta:

193.

"( ... ) porque acalmando aquêle bom tempo ( ... ), se pudera ter receio, quanto mais aquela, que, além de vir por baixo das cobertas tôda mossiça

\3 Relato das batalhas e sucessos do Galeão Santiago e da Nau Chagas, pp.192 e

(13)

com fazendas, trazia no convés setenta e duas caixas de marca e cinco pipas de água a cavalete, e se tirou tanta multidão de caixões e fardagem, que a altura destas cousas igualava o convés com os castelos e chapitéu ( ... )"15 A tentativa desesperada de salvar os objectos que estavam sendo transportados tinha dois fins: persuadir e "comprar" os cafres e tentar manter a maior quantidade possível de mercadorias de forma que estas pudessem ser levadas ao Reino pela nau salvadora. Apesar da tragédia, o espírito de cobiça convivia com o desejo de salvar a vida.

Desenvolve-se todo umjogo entre a importância dos objectos antes e depois dos naufrágios. Antes, reina a cobiça (referência aos "objectos tão estimados"); depois, o desejo de se desfazer rapidamente dos mesmos objectos para aliviar o peso das naus. Este jogo reflecte-se no uso dos tempos verbais e no aspecto dos verbos. Nas descrições das mercadorias transportadas, predomina o pretérito imperfeito do indicativo, apontando para um aspecto durativo no passado, que pode ser relacionado com o próprio transporte dos objectos. Nas descrições do lançamento das mercadorias ao mar, predominam estruturas do tipo "começar a ... " que apontam para a presteza da acção dos navegantes em livrarem-se dos objectos.

No relato das batalhas e sucessos do Galeão Santiago, a crítica à cobiça que levava à loucura de sobrecarregar as naus fica explícita pelo discurso do holandês. Esta crítica causa um grande impacto por proceder da boca de um estrangeiro:

"Dizei, gente portuguesa, que nação haverá no mundo tão bárbara e cobiçosa, que cometa passar o Cabo de Boa Esperança na founa que todos passais, metidos no profundo do mar com carga, pondo as vidas a tão provável risco de as perder, só por cobiça; e por isso que mais nos espanta é ver que não vindo êste navio, nem para navegar, nem para pelejar, vos ponhais muito de siso a quererdes batalha connosco."16

A crítica à expansão aparece também quando os naufrágios são motivados por um desacordo entre o capitão/fidalgo e o piloto que realmente comandava a nau. Um bom exemplo é o relato do naufrágio da nau Conceição. O fidalgo seria encarregado por EI-Rei da missão, mas seria alguém despreparado para as aventuras no mar. Isto poderia ser interpretado como uma crítica de cunho sócio-político, pois o desentendimento poderia ser lido como um protesto da classe menos favorecida contra a nobreza.

15 Relato do naufrágio da nau S.Bento, p.47.

(14)

No relato dos sucessos das naus Águia e Garça, volume II, página 58, a oposição de classes é clara:

"A êste mandado do capitão João Rodrigues de Carvalho não quiseram o pilôto nem o mestre e mais oficiais obedecer. ( ... ) E como o capitão era só e os outros muitos, venceu a fôrça à razão; ( ... )"

Aqui venceu a força à razão, sendo o fidalgo o detentor da razão, ou seja, prevalece o enobrecimento do fidalgo.

Com excepção de algumas críticas pontuais à nobreza, o enfoque do fidalgo é, na maioria dos relatos, positivo. O relato de autoria de Diogo do Couto nos apresenta a exaltação de Paulo de Lima, havendo que se considerar o facto de que o relato fora encomendado, não podendo, portanto, trazer críticas abertas ao fidalgo. Nuno Velho é outro a ser dignificado no relato do naufrágio da nau Santo Alberto, sendo o nobre avisado e sesudo, qualidades fundamentais ao verdadeiro cortesão. A caracterização de Nuno Velho é feita de tal forma que ele se toma uma figura carismática, despertando o interesse dos leitores.

O peso da crítica à expansão através da oposição entre fidalgos e navegantes pertencentes a classes menos favorecidas é bem menor que as acusações claras à cobiça dos portugueses em geral.

C) A FUNÇÃO ALICIANTE DA IGREJA OU A voz DA COMPANHIA DE JESUS:

Levantámos a hipótese de haver uma função aliciante da Igreja nos relatos de naufrágios. Esta voz aliciante seria principalmente a da Companhia de Jesus que é a ordem mais citada e elogiada ao longo dos textos.

A hipótese de um aliciamento surge quando pensamos na data dos relatos - que foram escritos a partir da segunda metade do século XVI - e no facto de alguns deles terem sido escritos por religiosos.

A função aliciante surgiria com o intuito de exaltar o poder de Inisericórdia e salvação divinas num período de Contra-Reforma, que teve um grande impacto em Portugal.

Este terceiro sub-grupo da função ideológica requer estudos mais aprofundados (que ultrapassam o âmbito do presente trabalho), bem como a investigação de outros textos da mesma época, para que possamos confirmar ou refutar a nossa hipótese. No entanto, o acentuado relevo dado à importância da religião em todos os textos da História Trágico-Marítima e, em especial, no volume V, e a reiteração da Inisericórdia divina e da ideia de que, com fé, Deus salva, além da marca do assinalar divino na difusão da palavra de Deus, nos fazem crer que é pertinente pensar em tal função. Observemos o trecho abaixo:

(15)

"E assim, se os hereges e piratas preguntarem quem deu esta conquista mais aos portugueses que a outra nação, se lhes responda que nosso Redentor Jesus Cristo e a sua Santa Madre Igreja Romana, Esposa sua sagrada; e que os portugueses têm seus títulos em pedra firme, da palavra de Jesus Cristo Nosso Deus, que não pode faltar".17

A caracterização negativa dos holandeses está montada em cima de dois elementos básicos: a heresia e o roubo. Eles são inimigos não só porque roubam, mas, principalmente, porque são hereges e aqui se delineiam, mais uma vez, os contornos da função aliciante:

"Mas basta serem hereges, cegos e errados, rebeldes à Santa Madre Igreja e a seu Rei e Senhor natural, para não haver que fiar deles e haverem os nossos que, caindo nas suas mãos, caem nas dos maiores inimigos que a nossa nação tem" .18

v

CONCLUSÃO

Os relatos de naufrágios constituem-se num sub-género dentro da literatura de viagens com características próprias. Os textos têm um importante valor documental, constituindo-se em relatos históricos, uma vez que conhecemos muito dos naufrágios, do comércio português e de terras alheias através deles.

Se considerarmos os relatos numa linha evolutiva, constataremos que há um certo cunho político nestes textos, sobretudo nos últimos e, em especial, no que narra as batalhas e sucessos do Galeão Santiago e da Nau Chagas. Nos primeiros relatos, o cunho político se manifesta a partir da tensão entre o elogio à expansão do Império e a crítica ao mesmo. No último relato, datado de 1604 e escrito por Melchior Estácio do Amaral, há que se considerar o momento político português que era de crise.

Portugal em 1604 estava sob dominação filipina, tendo perdido o seu Rei (com o desastre de Alcácer), a sua corte (que passou a ser Madrid) e muito da sua identidade cultural. Os portugueses experimentavam a saudade das glórias passadas. É de duvidar que não houvesse uma intenção política da parte de Melchior ao dedicar o relato a Dom Teodósio, duque de Bragança, e um dos homens importantes no processo da Restauração. Além disso, o relato é, sem dúvida, uma tentativa de resgate de um passado glorioso, que só pertencia a Portugal, posto que os portugueses foram

17 Ibidem, p.196.

(16)

escolhidos por Deus para levar a Sua palavra aos povos incultos. São os portugueses os obreiros da Fé.

Procurámos explicitar, em suma, a força lúdica da função comunicativa e a função ideológica nos relatos da História Trágico-Marítima, tendo por base a classificação das funções do narrador feita por Genette.

O corpus é riquíssimo e se presta a diversas interpretações, constituindo--se num manancial para estudos importantes acerca da vida e da cultura do homem do século XVI, bem como acerca das possíves influências desses relatos na literatura do século XVII.

BIBLIOGRAFIA:

ALBUQUERQUE, Luís de (dir). Grandes Viagens Marítimas - 1. Lisboa, Alfa, 1989.

ARNOLD, David. A época dos descobrimentos ( 1400-1600). Lisboa, Gradiva, s/do

ARTAZA, Elena. El ars narrandi en el siglo XVI espano I. Univ.de Deusto, 1989.

BOXER, C. A Índia portuguesa em meados do sec.XVll. Lisboa, Edições 70, 1982.

BOXER, C.O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa, Edições 70, 1981.

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas (org.de Emanuel de Paulo Ramos), Porto, Porto ed., 1987.

CIDADE, Hernâni. A literatura portuguesa e a expansão ultramarina (2 vols), Coimbra, Arménio Amado, 1963.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa, Lisboa, Vega, s/do LANCIANI, Giulia. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos secs.xVI eXVIl, B.Breve, Lisboa, 1979.

MULLET, Michael. A Contra-Reforma, Lisboa, Gradiva, 1989. PERES, Damião (org.). História Trágico-Marítima (compilada por Bernardo Gomes de Brito). 5 vols., Porto, 1936.

REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina, 2a ed., 1990.

SARAIVA, A. José. Para a história da cultura em Portugal, VoU, Lisboa, Bertrand, 1980.

SÉRGIO, António. "Em torno da História Trágico-Marítima" ln: Ensaios (Tomo VIII), Sá da Costa, 1974.

SILVA, Victor M.de Aguiar. Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1984.

Referências

Documentos relacionados

2 - OBJETIVOS O objetivo geral deste trabalho é avaliar o tratamento biológico anaeróbio de substrato sintético contendo feno!, sob condições mesofilicas, em um Reator

4 Este processo foi discutido de maneira mais detalhada no subtópico 4.2.2... o desvio estequiométrico de lítio provoca mudanças na intensidade, assim como, um pequeno deslocamento

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

1595 A caracterização do repertório de habilidades sociais dos alunos do Grupo com Baixo Desempenho Acadêmico (GBD) e do Grupo com Alto Desempenho Acadêmico (GAD),

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

O desenvolvimento desta pesquisa está alicerçado ao método Dialético Crítico fundamentado no Materialismo Histórico, que segundo Triviños (1987)permite que se aproxime de